domingo, 3 de julho de 2011

PARTE II

Capitulo VI

    O olhar cansado fixava aquele tecto imaculado. De vez em quando os olhos fechavam-se numa tentativa frustrada de adormecer e arregalavam-se a cada gargalhada colectiva que vinha da sala. Adivinhava-se um dia difícil, em que Diana começava logo de manhã com aulas na faculdade e durante a tarde ia trabalhar. Precisava mesmo de dormir bem aquela noite. Já ocupava aquele quarto há mais de três anos, quando a sua vida universitária começara. Durante aqueles três anos de faculdade em Coimbra, a sua amizade com Raquel solidificara-se, e as diferenças entre as duas acentuaram-se. Logo no dia em que deixaram a ilha para começarem uma nova vida em Coimbra, Raquel chorou baba e ranho na despedida, apesar dos pais a acompanharem naquela viagem. Diana pelo contrário despediu-se de Duarte e de Pedro sem derramar uma lágrima. Apenas sentia ansiedade de começar esta nova etapa tão desejada. Quando chegaram ao pequeno apartamento em Celas, Diana sentiu que ia viver num pequeno palácio. A porta de entrada dava acesso a um espaço acolhedor que servia de sala e cozinha em que as cores, azul e amarelo combinavam-se harmoniosamente. Um pequeno corredor dava acesso à única casa de banho e aos dois quartos. Diana apaixonou-se pelo seu novo quarto assim que abriu a porta. As paredes pintadas de verde-água contrastavam de uma forma agradável com a colcha azul celeste que cobria totalmente a cama, uma secretária imaculadamente branca estava disposta junto a uma portada que dava acesso a uma varanda virada para o Hospital da Universidade de Coimbra. Desde esse dia já se haviam passado mais de três anos, em que Diana foi uma aluna de excelência na faculdade de Economia, reconhecida por professores e colegas e Raquel foi uma aluna mediana no seu curso de Psicologia. No entanto Raquel gozava de uma popularidade e de um número crescente de amigos. Participava em todos os jantares de curso, em todas as queimas de fitas, em todas as latadas, em todos os convívios da sua faculdade. Fazia parte da associação de estudantes e arranjava sempre apontamentos manhosos para evitar a leitura dos grossos manuais. Os namorados sucediam-se com a mesma velocidade das festas e a sua parede forrava-se de inúmeras recordações recentes, onde se destacava sempre uma foto de Pedro sentado na areia preta da Praia do Almoxarife a olhar o mar com ar distante. Diana, por seu lado, dividia-se entre as aulas, o estudo e um emprego como camareira num grande grupo hoteleiro… Mais uma vez os olhos forçaram-se a fechar, e mais uma vez abriram-se, reflexo do barulho vindo da sala. Duarte viria visitá-la no próximo fim-de-semana. Aproveitava o feriado de carnaval e passava quatro dias em Coimbra. Diana ansiava esses dias como um alcoólico anseia um copo de vinho. Até comprara lingerie nova para a ocasião. Se fizessem amor pela primeira vez não queria desiludir Duarte. Este era um assunto delicado que já tinha sido abordado e iniciado várias vezes, mas nestes momentos mais íntimos, Diana era assaltada por uma ansiedade que a sufocava, e o seu coração batia como se lhe fosse saltar do peito. Duarte identificava esta reacção como sendo ataques de pânico e levava a situação com paciência. Mais uma vez as pálpebras descaem num cansaço novamente frustrado pelo barulho, mas desta vez Diana vai dormir. Vencida, levanta-se e vai buscar os tampões para os ouvidos, que utiliza quando estuda.
    O toque do despertador faz-se ouvir cedo demais, e Diana sente na cama um chamamento poderoso ao sono. Contra todos os instintos e vontades que a mandam ceder à preguiça, Diana levanta-se e arrasta-se para um duche rápido. Depois de pequeno-almoço apressado, veste um impermeável, calça umas botas, pega no guarda-chuva e enfrenta corajosamente a água que cai desajeitadamente na rua e o frio próprio do mês de Fevereiro. Assim que entra na faculdade, atravessa o corredor comprido que dá acesso ao bar com o desejo da primeira dose de cafeína. Tanto docentes como alunos dirigem um cumprimento educado a Diana, mas ninguém a acompanha no café rápido e satisfatório. Nas aulas Diana já não se senta num lugar escondido, pelo contrário ocupa sempre um lugar nas primeiras filas e a carteira do lado nunca mais foi ocupada por uma velha mochila. Todos os colegas lhe falavam cordialmente, e tinha sempre companhia nos intervalos, no entanto já há muito que os colegas haviam desistido de a convidar para qualquer actividade social extra faculdade.
    No trabalho, Diana era meticulosa, mas pouco apaixonada pelas suas funções. Entrava pelas traseiras do hotel, vestia a farda cinzenta à pressa e entregava-se à limpeza dos quartos. A verdade é que não precisava daquele emprego, mas ela já tinha passado por tantas necessidades que havia uma ânsia esganada de conseguir sempre um pouco mais de dinheiro. Ela e o irmão iam fazendo crescer a poupança que se tinha iniciado com a morte do avô, mas Diana nunca se sentia satisfeita, apesar de ter mais dinheiro numa conta poupança do que a maioria dos jovens da sua idade. A necessidade de possuir uma certeza quanto ao futuro e de se prevenir contra a pobreza invadia-lhe mente e ocupava-lhe o cerne de todas as suas preocupações. Nunca mais queria passar fome. Nunca mais queria contar tostões. Nunca mais queria depositar o seu futuro num frasco tosco de moedas…
    -Olá bicha! Acabei de terminar o jantar! – Raquel tinha um dom no que respeita à cozinha, e o jantar emanava um aroma que fizera despertar o estômago de Diana. – Estava a ver que nunca mais chegavas…
- Então beta? O dia correu-te bem? – Diana desfez-se do impermeável e das botas numa pressa que antevia um jantar quente e saboroso.
- O Duarte ligou! Deve chegar amanhã por volta das oito da noite.
- Já estou a contar os segundos! – Um sorriso aflorou os seus lábios.
- Ele diz que me trás uma surpresa!
- A ti? Mas eu é que sou a namorada! – Diana finge-se ofendida para deleite de Raquel que lhe deposita um beijo no cocuruto.
- Vais ter visitas hoje?
- Não.
- Ainda bem. Então vamos enroscar-nos numa manta no sofá e ver filmes maricas.
- Excelente ideia. É melhor levarmos lenços para ti… Bicha lamechas.

    Finalmente o dia tão desejado amanheceu e as raparigas acordaram com uma energia extra. As limpezas adivinhavam-se demoradas, mas necessárias para receber visitas. As duas mexiam-se sabiamente entre os utensílios de limpeza necessários e dançavam ao mesmo tempo ao som de Frank Sinatra. Apesar de ser uma visita específica para Diana ambas queriam que tudo estivesse perfeito. A união delas era soldada numa acção de forças à escala atómica. Aquilo que era muito desejado por uma era trabalhado por ambas, sem cobranças ou questões embaraçosas. Era amizade num sentido puro e sincero.
    Às oito em ponto a mesa estava posta com três pratos e as raparigas andavam de um lado para o outro numa desorientação coordenada. Estacaram dois segundos ao toque da campainha, para depois correram na direcção da porta.
- Duarte! – Diana afundou-se naquele abraço conhecido onde se sentia pequena e aconchegada.
- Bem-vindo Duarte! – Raquel cumprimentou-o com um beijo rápido, apressando assim as boas-vindas com o intuito de chegar depressa à parte da surpresa. Quando o olhar da rapariga se alongou para além da porta de entrada, sentiu todos os músculos do seu corpo retraírem-se e a língua parecia ter inchado instantaneamente. Foi Pedro que tomou a iniciativa e cumprimentou-a com um beijo lento na face. Aquela rapariga mexia com cada molécula do seu corpo. Apetecia-lhe pegar nela e apertá-la, mas tinha presente na sua mente todas as vezes que perguntara por ela ao telefone e ouvira a irmã responder “saiu com o novo namorado”. Pedro tinha viajado com Duarte com a desculpa de querer ver a irmã, que não sendo mentira não era a totalidade da sua verdade. Queria ver com os seus próprios olhos a reacção de Raquel a cada atenção que lhe dispensaria. Queria sentir se a química que existia entre os dois era partilhada por outros pretendentes de Raquel. Nesta viagem, Pedro tem a intenção de marcar uma posição na vida de Raquel.
    Diana não apreciava o carnaval, ao contrário da amiga que adorava tudo o que fosse desculpa para um bom momento de diversão. Assim Diana decidiu ficar por casa com Duarte, enquanto a amiga levava o irmão para conhecer os encantamentos do carnaval nocturno de Coimbra. Foram a um convívio nas cantinas onde Raquel sentiu-se inchar de fúria quando viu os demasiados olhares femininos que Pedro atraía sobre si. Raquel apresentou Pedro ao seu grupo de amigos e logo uma amiga alta e com uma pronúncia de peito demasiado avantajada, se apoderou das atenções do rapaz, provocando em Raquel um mau humor crónico que durou toda a noite, fazendo as delícias de Pedro que não desperdiçou a oportunidade para provocá-la.
- Vamos embora? – Raquel queria terminar com aquela conversa demasiado intima que já durava um par de horas entre a glutona de homens e Pedro.
- Agora que começo a apreciar os encantamentos de Coimbra? – Pedro piscou um olho à rapariga cujo nome não se conseguia lembrar, fazendo Raquel revirar os olhos de indignação.
- Então fica aí a divertir-te com a primeira galdéria que te aparece, que eu vou para casa. Tens táxis na Praça da República a qualquer hora da noite, no caso de te apetecer dormir em casa… - Raquel empinou o queixo e virou as costas àquela cena de engate degradante.
- Espera miúda! – Pedro agarrou-lhe o braço. – Eu vou contigo!
    O caminho de volta foi feito dentro do táxi em que a música de carnaval preenchia a falta de conversação. Raquel afastava-se o máximo possível de Pedro com os braços cruzados sobre o peito numa posição amuada, que provocava uma satisfação intima no mecânico.
    Chegados a casa Raquel encaminhou Pedro para o quarto de Diana, uma vez que tinha ficado acordado que os rapazes dormiriam nesse quarto, e as raparigas ficariam no quarto de Raquel. O seu espanto foi visível, quando se deparou com Diana a dormir profundamente nos braços de Duarte. A sua atrapalhação com a situação provocou um sorriso de satisfação em Pedro.
- E agora onde é que eu vou dormir? – Perguntou o mecânico agradado com a situação. – O sofá é demasiado pequeno…
- Pois… - Raquel sabia que ele tina razão. Tinham um sofá apenas de dois lugares na sala. O constrangimento da rapariga era quase cómico.
- Posso sempre ficar contigo no teu quarto. Tens uma cama de casal. Fica cada um para seu lado. – Pedro insinuou aquela solução com uma malícia que não foi evidente para Raquel que se sentia dormente nas ideias.
- Pois… - Foi a única coisa que a rapariga conseguiu proferir.
    Raquel entrou no meio daqueles lençóis com um receio espelhado nos olhos. Pedro já se encontrava deitado apenas com umas boxer vestidas para grande incómodo da rapariga que se esticou desajeitadamente e ocupou logo o seu lado da cama de costas voltadas para Pedro. O seu coração estava descompassado e a sua respiração parecia demasiado pesada, como se nunca conseguisses inalar ar suficiente. Foi Pedro que rompeu aquele silêncio, aproximando-se de Raquel, apoiou a cabeça numa mão e com a mão disponível começou a brincar com um caracol louro.
- Porque é que estás tão nervosa Raquel? – Pedro sentia-se inebriado por ter a rapariga ali tão próxima, mas ao mesmo tempo sentia uma raiva crescente ao imaginar o número avultado de namorados que já teriam passado por aquela cama. – Afinal de contas tu recebes amigos com uma certa facilidade nesta cama, não é verdade?
    Aquele comentário maldoso provocou uma náusea na rapariga que se levantou apressadamente, levando consigo a almofada. Correu para a sala e aninhou-se naquele sofá desconfortável. Pedro com o arrependimento imediato seguiu-a e sentou-se ao seu lado no sofá.
- Desculpa Raquel! Eu não tinha o direito de fazer um comentário daqueles! – Pedro tentava pegar na mão de Raquel que se afastava para o extremo oposto do sofá.
- Pois… Não tinhas esse direito! Foste maldoso! Se queres uma conquista fácil devias ter ficado com a tua amiga no convívio…
- Eu não quero uma conquista fácil!...
- Estavas à espera de chegar aqui e passares um bom bocado às minhas custas…Tens cá uma ideia de mim!
- Desculpa Raquel!
- Achas que eu vou para a cama com qualquer um de forma descontraída… Foi isso que viste em mim… Tira essas mãos de cima de mim… - Raquel começou a sentir as lágrimas quentes rebolarem pelas faces e a voz estrangulou-se. Pedro puxou-a para si e abraçou-a. Sentia o remorso roê-lo por dentro. Ela estava naquele estado porque ele a tinha magoado propositadamente e isso pesava-lhe mais na consciência do que podia ter imaginado. Pegou nela ao colo e levou para o quarto deitando-a na cama.
- Tu ficas aqui e eu fico na sala. – Depositou-lhe um beijo na testa, e depois beijou-lhe os olhos delicadamente, como se lhe quisesse secar as lágrimas. Raquel deixou-se envolver por aquele gesto carinhoso e envolveu-o com os seus braços, puxando-o para si. O beijo suave aprofundou-se e a vontade latejante de se envolveram sobrepôs-se a qualquer mágoa. Fizeram amor sem pressas e de início de uma forma desajeitada, que deixou claro a inexperiência de Raquel. Adormeceram nos braços um do outro e só acordaram com o bater cauteloso que se fez sentir na porta do quarto. Diana tomou a liberdade de entrar no quarto, e pasmou com o cenário. Após uns segundos em que absorveu a situação constrangedora virou costas como se isso fizesse com que a sua retina não tivesse apurado aquela imagem típica dos amantes.
- Só vinha avisar que o pequeno-almoço está quase pronto. – E com um sorriso malicioso que não lhe foi detectado acrescentou. – E vinha pedir desculpa pelo facto de termos adormecido no meu quarto. Mas vejo que resolveram bem a situação.
    Quando Diana saiu, o casal levantou-se um pouco embaraçado e Pedro reparou numa mancha pequena de sangue nos lençóis imaculados. Sentiu um aperto no peito quando se lembrou das palavras que tinha atirado a Raquel na noite anterior, e aproximou-se da rapariga abraçando-a com uma força desnecessária. Os seus olhos retiveram-se no placar de fotografias em que ele tinha um lugar de destaque no centro, e mais uma vez sentiu-se um canalha. Ainda abraçado a Raquel, não pode evitar a pergunta.
- Foi a tua primeira vez, não foi?
- Foi. – Raquel não se prolongou numa resposta que não necessitava de mais delongas.
    Pedro afastou um pouco Raquel e fixou-lhe os olhos de forma a identificar se a próxima resposta era confirmada pelo olhar.
- Estás arrependida?
    Raquel deixou aflorar aquele sorriso fácil que lhe era característico, antes de responder. – Como é que me posso arrepender do melhor momento da minha vida?
- E… Isto fica por aqui?... Que dizer… Eu estou longe e sou só um mecânico… E… - Pedro só agora percebia como lhe seria doloroso abdicar daquela pequena loura que lhe enchia o peito de qualquer coisa indiscritível.
- Estás gago? Isso é nervosismo? – Raquel deliciava-se por ver pela primeira vez aquele rapaz que sempre lhe pareceu gigante, numa atitude tão insegura. – Eu não tenho nenhum problema com os mecânicos. Aliás, acabo de descobrir que gosto deles… - Um sorriso malicioso conduziu a um beijo prolongado que deu um início oficial àquela relação.

    Aqueles quatro dias ameaçavam chegar ao fim, para desespero de Diana que sentira uma felicidade calma e plena ao lado de Duarte. Mas ela sabia que as coisas boas da vida eram mais desejadas do que vividas e por isso o retorno a um quotidiano repetitivo e ritmado era inevitável. Aproveitava as últimas horas com o namorado, sentada no Penado da Saudade, num cenário nostálgico enaltecido pelas placas em pedra gravadas com mensagens daqueles que se despediram há muito daquela cidade marcada por muitas etapas de vidas distintas.
- Já tenho saudades tuas Diana.
- Na Páscoa já nos voltamos a ver. – Diana mostrava sempre um lado menos emotivo, apesar de sentir um aperto na garganta.
- Não vejo a hora de terminares o teu curso e voltares para o Faial… E podermos construir uma vida juntos.
- Também desejo muito começar uma vida contigo. – Esta era a verdade que Diana podia proferir. Esta era a verdade que escondia as dúvidas de Diana. Ela não queria simplesmente voltar para aquela ilha, exactamente como a tinha deixado, e voltar logo depois de terminar o curso seria humilhante. Ela queria voltar rica sem ter de pedir emprego a ninguém, sem ter que se sujeitar a concursos públicos em que a veriam sempre como a filha do Zé dos copos. Ela queria conquistar primeiro um poder indefinido e regressar de cabeça erguida. Mas não podia partilhar isto com Duarte… Não depois de lhe ler no rosto a vontade dele em construir uma vida com ela a partir do quase nada. Ela iria conduzir o seu futuro com cuidado, e iria introduzir esta sua ambição em Duarte só quando fosse necessário.





    

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