terça-feira, 12 de julho de 2011

Capitulo IX

Capitulo IX

    As férias da Páscoa aproximavam-se a um ritmo alucinante e Diana sentia-se pressionada por Duarte a ir ao Faial. Este tinha sido o tema de discussão do último telefonema, em que Duarte lhe pedia uma data para a sua chegada e ela tentava adiar o assunto. Diana ansiava provar que era merecedora daquele voto de confiança. O hotel de Coimbra era o hotel mais pequeno do grupo e sabia que estavam a testá-la para saber até onde iam as suas capacidades. Ela queria estudar o tipo de clientes, as épocas altas, as várias ofertas ao longo dos anos e a receptividade a cada uma delas de forma a poder aumentar o lucro daquele hotel. Não se podia dar ao luxo de tirar férias nesta altura, em que finalmente se tinha aberto uma porta inteira à frente. A vida tinha-lhe oferecido um atalho confortável para chegar onde tanto ambicionava e não tinha tempo para lamechices. Tinha uma vida inteira para amar, mas só tinha um momento para brilhar.
    Diana ocupava um gabinete mais confortável do que bonito, com um cadeirão em pele onde ela poderia confiar horas a fio de trabalho sem ficar com dores no corpo. Aquele cubículo passou a ser a sua segunda casa, onde trabalhava, estudava e tomava as suas principais refeições diárias. Diana trabalhava num protocolo com os países Palops, de forma a aproveitar os estudantes dos países africanos que vinham estudar para Coimbra pelo prestígio que isso significava. Muitos destes estudantes eram filhos de embaixadores, políticos e empresários influentes que visitavam os filhos frequentemente e precisavam de um sitio que os acolhesse com uma naturalidade que os fidelizasse.
- Posso entrar Diana? – Diana estacou todos os seus movimentos por uns segundos ao reconhecimento daquela voz.
- Claro! O Bernardo está em casa! – Bernardo estava de pé encostado à ombreira da porta como se ainda estivesse a decidir se devia entrar ou não. Quando Diana finalmente levantou o olhar e o focou, viu um homem igualmente atraente, mas mais pálido e magro.
- Sei que já conquistou a estima de todos aqui no hotel. Esse é o primeiro acto de um grande chefe. Fico satisfeito por saber que não me enganei a seu respeito Diana. – O sorriso débil que Bernardo lhe dedicou fez ruir qualquer muralha que Diana tentasse impor naquele momento.
- Sente-se Bernardo… Ou devo passar a trata-lo por Dr. Bernardo? – Diana sentia-se próxima daquele ser humano, mas não sabia se era um sentimento permitido.
- Tratas os teus outros amigos por doutor?
- Ah! Somos amigos? – Diana sentiu um alívio que escondeu por um pouco mais de tempo tentado mostrar a sua insatisfação com Bernardo. – Não estou habituada a que os meus amigos desapareçam.
- Eu sei que provavelmente devo-te uma satisfação. – Bernardo não acompanhava o sorriso que Diana finalmente deixara estampar no rosto. – Vamos tomar um café fora daqui, como nos velhos tempos?
    Como resposta Diana levantou-se prontamente entrelaçou o seu braço no de Bernardo e saíram. Instintivamente, Bernardo conduziu-os à esplanada junto ao rio Mondego, como se aquele lugar onde tinha iniciado a sua história a Diana fosse o lugar ideal para terminá-la. O chá fumegava na mesa, aconchegando um pouco o frio que se começava a fazer sentir e Bernardo voltou a fixar aquelas águas falsamente calmas.
- Tenho cancro! – Esta afirmação fez Diana deixar cair a chávena, tentando limpar o líquido que se espalhava sobre a mesa desajeitadamente. Bernardo pegou-lhe em ambas as mãos e fixou-lhe aqueles olhos verdes marejados de lágrimas. – Vou contar-te o resto da minha história. Queres ouvir?
    Incapaz de verbalizar um único pensamento, Diana limitou-se a acenar afirmativamente a cabeça. O empregado limpou a mesa, voltou a abastecer o chá, e discretamente afastou-se.
- Como te disse fui casado durante dezoito anos. Na data do nosso décimo sétimo aniversário de casamento, viajámos até Nice. Temos lá um hotel, na Baía dos Anjos, onde podemos usufruir de oito quilómetros de praia com um cenário idílico dos Alpes ao fundo. Era o lugar ideal para resolvermos algumas situações entre nós enquanto casal. – Bernardo fez uma pausa e baixou o olhar, fazendo prever que ia iniciar um relato da sua vida privada que lhe era doloroso. – Já há algum tempo que não tínhamos qualquer tipo de intimidade. O problema estava em mim claramente. Sempre pensámos que fosse do stress, que fosse resultado de um quotidiano sempre apressado. Pensámos que uns dias em Nice longe do quotidiano, dos problemas, dos telefonemas fosse a solução perfeita e depositámos muita fé naquela viagem. A Carla tinha uma esperança viva de que engravidaria nessa viagem e chegámos a esse paraíso com um punhado de desejos no bolso. – Bernardo fez uma nova pausa e mirou Diana, aquela rapariga que lhe tinha voltado a aguçar as emoções e sentiu-se humilhado enquanto homem. – Não resultou e a viagem tornou-se num inferno. A desilusão da Carla foi devastadora… Tão devastadora que conduziu a situações embaraçosas. No nosso quarto dia em Nice, fomos jantar a um restaurante à beira mar. Esse era o dia que queríamos festejar… Era o dia em que fazíamos anos de casados. O jantar começou num silêncio constrangedor, e a Carla foi bebendo e bebendo… Havia uma pista de dança no restaurante e ela foi para a pista demasiado alcoolizada e agarrou-se a um homem que estava ali sozinho claramente à procura de uma companhia fácil. Eu fui tentar resgatá-la e ela fixou-me com um olhar demasiado lúcido para quem estava embriagada e disse-me “ deixa-me, que esta noite eu quero um homem em plenas funções deitado ao meu lado”… - Bernardo sentiu a voz falhar-lhe, mas bebericou mais um pouco de chá e obrigou-se a continuar. – Aquelas palavras explodiram na minha cara e marcaram o fim do casamento. Quando voltei para Portugal, juntei toda a coragem que consegui e procurei um médico para tentar perceber a origem desta minha disfunção. Foi neste seguimento que descobri que tinha cancro da próstata… E foi neste momento que tomei consciência da minha impotência.
    Diana agarrou a mão de Bernardo e beijou-lhe a palma da mão num gesto repetido do passado.
- Isso não diminui o homem que és Bernardo! E não dá direito a que te humilhem. – Diana deixava as lágrimas gordas rolarem-lhe pela face sem vergonha. – A tua ex-mulher não presta. Ninguém que tenha coragem de se agarrar a uma fraqueza de outro ser humano da é merecedor de estima. Mas o que importa é a tua doença. Como é que estás neste momento?
- Quando descobri o cancro já estava avançado. Fiz quimioterapia e todos os demais tratamentos e pelo meio assinei os papéis de divórcio. Vou poupar-te pormenores. Neste momento já tenho a doença espalhada pelo intestino.
    Diana levantou-se, contornou a mesa e sentou-se no colo de Bernardo abraçada a este e embalando-o como se conseguisse diminuir-lhe o sofrimento.
    Os dias seguintes foram passados sem que aquele assunto que os assombrava fosse sequer mencionado. Diana já havia decidido que não ia ao Faial naquelas férias, e desculpou-se com o facto verdadeiro de haver um jantar de chefias para todo o grupo hoteleiro. Era uma oportunidade para Diana partilhar experiências com outros directores dos restantes hotéis e aprender melhores práticas. Duarte aceitou a desculpa com uma facilidade ensaiada, uma vez que planeava fazer uma surpresa a Diana.
- É pena não estares aqui para ires comigo ao jantar! – Diana estava estendida no sofá com a cabeça deitada no colo de Raquel, enquanto falava com Duarte ao telefone. – Adorava voltar a ver-te vestido de smoking. E depois do jantar vai haver um baile em que poderíamos dançar muito abraçadinhos como fizemos no baile de finalistas. Lembras-te?
- Eu lembro-me de todos os momentos que já passei contigo! – Duarte planeava chegar a Coimbra e surpreender a namorada. Queria sentir a felicidade estampada no rosto dela só pelo simples facto de o ver. – Onde é esse jantar?
- Vai ser no hotel! No restaurante do hotel. E depois vai haver uma banda ao vivo e uma pista de dança e bar aberto para os aventureiros!- Diana deixou escapar uma gargalhada maldosa que foi acompanhada por Duarte. - Mas esta parte vai ser na sala de conferências. – Pronto! Duarte já tinha decidido. Ia aparecer no baile vestido com o seu smoking e agarrá-la-ia pela cintura e fá-la-ia redopiar e sorrir de prazer.
    O sábado esperado chegou sem pressas nem premonições. Diana e Raquel percorreram as lojas da baixa de Coimbra em busca do vestido perfeito. Foi Raquel que o encontrou, um vestido longo preto que delineava o corpo de Diana numa perfeição que não se adivinhava nas roupas quotidianas. Almoçaram numa tasca onde o atendimento fazia lembrar o café do porto pim.
- Tenho saudades do café… - Diana sentia-se saudosista naquele dia solarengo.
- Também eu amiga! – Raquel deliciava-se com o bitoque que continha todas as calorias tão desejadas ao longo de duas semanas de dieta.
- Sabes que daqui a um ano e três meses termino o curso!
- Terminamos as duas… E vamos fazer uma festa de arromba, Diana! Porque nós merecemos!
- A Guida disse-me que eles vêm à nossa queima das fitas. – Diana sentia um orgulho por saber que tinha amigos que fariam sacrifícios nas suas vidas para estarem presentes no momento mais importante da sua vida. Um momento que foi desejado, programado e concretizado em conjunto, e em que a beneficiária era apenas ela.
- Eu sei! Quando entraste para a faculdade e disseste que já não precisavas do dinheiro do pote, em vez de dividirem-no continuaram com a poupança para poderem vir cá.
    A noite chegou numa calma aparente e dentro do pequeno apartamento de Celas, Raquel esticava o cabelo de Diana enquanto palravam planos para o futuro. O resultado final foi do agrado de ambas. Diana envergava um vestido preto comprido que lhe delineava uma forma esguia e perfeita. O cabelo impecavelmente esticado e brilhante enrolava-se na perfeição num coque de bailarina. A ornamentar tinha apenas uns brilhantes pequeninos nas orelhas, e uma gargantilha em ouro branco que fazia conjunto com uma pulseira discreta, pertences da amiga Raquel.
- Estás deslumbrante Diana!- Raquel emitia os gritinhos de satisfação que lhe eram característicos quando estava entusiasmada. – Oxalá não encontres a Fátima Lopes pelo caminho… Ou ela rapta-te para fazer de ti uma modelo internacional…
    O Lexus estava estacionado pontualmente fora da sua porta e o motorista Adelino, não escondeu um sorriso de aprovação quando viu a rapariga. Só quando chegou à porta do restaurante do hotel é que Diana sentiu o nervosismo alojar-se nas suas entranhas. Empinou o queixo, fingiu um ar seguro e entrou num passo lento medindo o território que se estendia à sua frente. Assim que a viu, Bernardo sentiu que o seu coração parava e repreendeu-se intimamente por se deixar levar por aquele tipo de emoções. No entanto, não resistiu a deixar os convidados para ir recebê-la e garantir um lugar a seu lado naquele jantar.
- Estás magnífica Diana! – A rapariga corou um pouco e retribui o elogio sem dificuldade, uma vez que Bernardo emanava charme e sedução. Diana sentiu-se integrada naquele meio e depressa se adaptou às conversas e conquistou a simpatia dos presentes. Questionou sem embaraços e no meio de uma noite divertida manteve-se astuta aprendendo práticas e dicas de gestão dos outros hotéis.
    Findo o jantar, os presentes passaram à sala ao lado para a animação do baile. A banda não se fez envergonhada e começou a tocar convidando os pares a embalarem-se naquele ritmo delicioso. Diana conversava descontraidamente com os seus novos conhecimentos, mas os seus olhos perscrutavam a sala descansando apenas num contacto visual com Bernardo. Ele era detentor de toda a sua preocupação, e Diana queria muito vê-lo feliz. A amizade de que ela tinha beneficiado e que a tinha favorecido sem oportunismos queria agora oferecê-la a Bernardo. Queria que ele sentisse nela o mesmo que havia sentido no Café do Porto Pim… Uma amizade incondicional capaz de o pulsionar para um patamar de felicidade superior. A intuição de Diana captou uma rigidez imediata no corpo de Bernardo e captou-lhe a falta repentina de cor na face. Aproximou-se apressadamente dele temendo pela saúde dele.
- Está tudo bem Bernardo? – Diana entrelaçou o seu braço no dele e à falta de resposta encaminhou-o para uma mesa reservada. – Sente-se bem? Diga alguma coisa que me está a pôr nervosa.
- Vês o casal que acabou de entrar?
- Diana obrigou-se a desviar o olhar de Bernardo e focou um casal que tinha acabado de entrar na sala. Tratava-se de um homem de meia-idade de estatura média que começava a ter de lidar com a calvície. Era uma homem que passaria despercebido em qualquer lado, não fosse a companhia da mulher mais alta do que ele. Era uma mulher alta de feições redondas que não sendo muito bonita era bastante vistosa. Envergava um vestido vermelho com um decote demasiado pronunciado que deixava adivinhar uns seios comprados num caro cirurgião. O cabelo preto caia-lhe sobre os ombros em cachos de caracóis e serviam de desculpa para ela se abanar para além do necessário.
- É a Carla e o marido. Ele é um cliente fiel e rentável, uma vez que detém imensas empresas de turismo com quem temos vários protocolos. – Bernardo um pouco mais refeito do choque, continuou. – Enviámos um convite para o baile por educação, mas nunca imaginei que viessem.
- Não lhe ligue. Não pode deixar que eles o afectem dessa maneira.
- Eles não me afectam nada. Ela é que me afecta… E se queres que te diga Diana, neste momento sinto-me o mais miserável dos homens. – Bernardo começou a levantar-se do seu lugar de forma pouco graciosa.
- Onde é que vai?
- Vou-me embora! Isto é demasiado humilhante!
    Diana agarrou-lhe na mão e sem vacilar conduziu Bernardo para a pista de dança. Colocou-se onde tinha a certeza que faria parte do campo de visão de Carla e colou-se a Bernardo exibindo o seu corpo magnífico e com uma sobriedade que sabia que uma mulher vulgar como Carla invejaria. Diana vigiava pelo canto do olho a reacção de Carla e gostou do que viu. Ela esforçava-se por se enroscar no marido e mostrava um sorriso fatal sem desviar os olhos de Bernardo. Diana interpretou os seus gestos como insegurança e quando viu o desespero reflectido no olhar daquela mulher, Diana envolveu mais Bernardo e encostou os seus lábios ao dele, despertando em Bernardo a vontade de prolongar aquele acto. Foi um acto de amizade visto com a inveja de Carla e com a mágoa de Duarte que entrava na sala naquele exacto momento, afastando-se logo de seguida daquela cena que lhe atormentava a mente e da mulher que tanto amava…

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