quinta-feira, 30 de maio de 2013

Capitulo XXV - Nas Asas do Corvo

Capitulo XXV

A festa de Nossa Senhora dos Milagres prometia uma noite animada. Depois de um dia em que a população se vestiu a rigor para as cerimónias religiosas, culminando numa procissão que ostentava o altar florido da Nossa Senhora do Rosário, o arraial encerrava em si muitas promessas. Vanda estava sentada no sofá da Dona Emília transmitindo as ordens para aquela noite. Todos vibravam com aquele segredo e concentravam-se no que tinham de fazer. Matias mantinha uma proximidade confortável que deixava Vanda segura da sua decisão. Ele estava melhor na família que conhecia, e era melhor para Vanda ter um pouco de carinho do filho, do que ter o rancor de um amor forçado. Estava orgulhosa da sua decisão. Por vezes abdicar é a atitude mais sensata para se ser compensado.
- Vamos embora? – Sílvia e Tomás apressavam a saída daquela gente de casa da Dona Emília.
- O Marco já deve estar a jantar com o Vasco nas tasquinhas. – Vera concertava os calções tortos do filho Renato. – Já temos pouco tempo.
- Estás preparada amiga? – Vera Câmara e Catarina rodeavam Vanda numa euforia alcoviteira.
- Vamos a isso minha gente! – Vanda levantou-se e as tropas seguiram-na.
Vasco petiscava morcelas com bolo de milho sentado debaixo da tenda improvisada enquanto desabafava com o irmão.
- A Vanda foi muito sensata nesta história toda. Soube proteger o Matias sem privá-lo de saber a verdade.
- É verdade Vasco! – Marco limpou com o guardanapo uma gota de vinho que lhe escorria pelo canto da boca. – Se ela não tivesse exigido aquela conversa, nós nunca teríamos tido coragem para contar a verdade ao Matias.
O Ti Joaquim passou pelos irmãos e cumprimentou-os naquele seu jeito habitual.
- Oh malandro! – O velho dirigia o seu sorriso desdentado a Vasco. – Se levares mais tempo a conquistar a professora eu ainda fico com ela antes de morrer. – O olhar maroto brilhava perante aquele confronto divertido.
- E o que é que fazia com ela Ti Joaquim? – Vasco também lhe sorriu um esgar maroto. – Só se fosse para ficar envergonhado…
O riso dos que passavam foi contagiante. A noite estava estrelada e as lâmpadas da festa emitiam uma luz obliqua que cintilava divertida. O telemóvel de Marco tocou.
- É a Vera! – Marco mostrou-se admirado. – Mas o que será que ela quer? – Carregou no botão verde e falou alto certificando-se que Vasco o ouvia. – O quê?... Mas o raio do miúdo lembrou-se disso logo hoje… Pois eu sei, mas eu vou apresentar a banda daqui a nada. – Marco afastou o telemóvel e dirigiu-se ao irmão. – O Matias fugiu. A Vera diz que ele deve ter ido para o miradouro. Parece que andou o dia todo a dizer que queria ir lá à noite ver as luzes... – Voltou a concentrar-se no telemóvel. – Pronto, então vou ter de ir atrás dele, não é? Vou ver se arranjo outro para apresentar a banda. Até já. – Quando Marco levantou os olhos do telemóvel, o irmão já estava de pé.
- Nem penses que eu vou para cima daquele palco apresentar a banda! – Vasco tirou uma nota da carteira e entregou-a a um rapaz com problemas de acne que servia às mesas. – Tu é que te meteste nisso, tu é que vais passar vergonhas. Eu vou buscar o Matias.
Vasco afastou-se a passos largos enquanto Marco se esticava na cadeira sorrindo.
- És mesmo previsível mano!
Vasco caminhava a passos largos prometendo entre dentes um raspanete ao sobrinho assim que o apanhasse. Quando chegou ao miradouro forçou a vista para ver através do escuro. Um vulto mexeu-se à sua frente e Vasco dirigiu-se para ele.
- Não penses que te escapas pirralho! – Vasco agarrou um braço e quando o seu rosto se aproximou o suficiente encontrou Vanda a olhar para ele com uns olhos negros de lince. Um arrepio de surpresa e proximidade percorreu-lhe o corpo e ele puxou-a mais para si.
- Esperavas encontrar outra pessoa? – A voz irónica dela ecoou-lhe nos ouvidos com uma familiaridade que ele desejava. Vanda foi dando uns passos para trás encurralada por Vasco que a cada passo de recuo ele investia um passo de proximidade. Ela acabou por encontrar o muro atrás dela. Ele encostou-se mais sem nunca descolar o olhar do dela. A vila em baixo luzia uma festa desejada pelo ano inteiro. Vasco colou cada uma das suas mão no muro deixando Vanda sem escapatória, e sentiu que todo o seu corpo reagia a ela, desejando-a. Quando os lábios se roçaram todas as luzes da vila se apagaram. Vasco agarrou Vanda num instinto protector que a agradou.
- Mas que raio de momento para faltar a luz – Vasco tinha surpresa na voz. Vanda rodou o seu corpo de forma a fica de costas para Vasco e encaixou-se nele deixando-o envolve-la pelos seus braços.
- Não poderia haver melhor momento. – O não entendimento de Vasco foi abafado por umas luzes que se acenderam no fundo da vila. As luzes eram erguidas por muitas mãos e formavam uma frase: Ainda queres casar comigo?
Vasco riu alto e encostou o seu rosto ao de Vanda apreciando aquele momento. E depois de lhe mordiscar o lóbulo da orelha sussurrou-lhe.
- Como é que conseguiste mobilizar toda esta gente?
- Eu tenho os meus encantos. – Vanda sorria uma felicidade plena vivida pelas emoções e pelos seus sentidos que sentiam Vasco e os seus olhos admiravam aquela frase enorme que cintilava na escuridão.
As luzes da cidade voltaram juntamente com a música e a animação.
Vasco virou Vanda para ele. Queria ler-lhe as expressões dos olhos, os contornos dos lábios. Roçou o seu polegar naquele queixo sedoso e finalmente beijou-a sem pressas.
- Ainda não respondeste…
- A minha resposta está no envelope que te entreguei.
Vanda abriu muito os olhos. Tinha-se esquecido do envelope. Não sabia o que continha.
- Não o abri!

- Não faz mal, eu sei de cor o que te escrevi: Hoje eu estou aqui ao teu lado da mesma forma que estarei amanhã. Porque quero caminhar lado a lado contigo, atravessar as mesmas pontes, ultrapassar todas as curvas e contra curvas e ver-te sorrir ao meu lado em todos os nasceres de um novo dia.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Capitulo XXIV - Nas Asas do Corvo

Capitulo XXIV

Os preparativos para a festa da Nossa Senhora dos Milagres ocupavam os murmúrios e as tarefas da Vila do Corvo. O palco estava a ser montado e umas fileiras de lâmpadas coloridas jaziam no chão à espera de alguma utilidade. O ar transportava um cheiro a vinha-d’alhos e maresia. Os mais jovens passeavam-se ociosamente com roupas leves e escassas, na esperança de conseguirem um tom mais bronzeado. Vanda sentia o calor de Agosto entranhar-se nos seus poros numa humidade que a incomodava. O mar azul balouçava-se preguiçosamente numa eterna promessa de frescura.
Vanda seguiu o seu caminho cumprimentando todos os que se cruzavam no seu caminho.
- A senhora professora está melhor? – Perguntavam os mais novos.
- Já cá fazia falta. Espero que para o ano fique na nossa escola novamente. – Constatavam os pais dos seus alunos.
- Veio para ficar? – Indagavam os curiosos.
E ela ia respondendo em curtas frases e acenos de cabeça devolvendo sempre o sorriso. Dirigia-se para o seu futuro e não estava nervosa. Pelo contrário, sentia-se segura daquele passo que ia dar. Não queria mais recantos obscuros na sua vida. Não queria mais meias verdades. Não queria mais dúvidas a minar-lhe o passo seguinte. As meias verdades são parideiras de passos em falso. As dúvidas são minas mortíferas numa boa decisão. A vida é como um riacho que corre livremente quando as suas águas são limpas e fica estagnado quando as águas são turvas e sujas.
Vanda chegou ao destino e os seus olhos admiraram-se quando viu Vasco encostado ao muro branco que torneava a casa.
- Olá Vanda! – Vasco tinha uma olhar seguro quando a fixou. Ele estava mais moreno e o cabelo queimado pelo sol e pelo mar dava-lhe um ar rude e apetecível. Ele vestia umas bermudas largas e uma t-shirt que lhe definia os ombros largos e a cintura estreita. Vanda não pode deixar de admirá-lo naquele momento.
- Olá Vasco! Vim tratar do assunto do meu filho…
- Eu sei! – Vasco desencostou-se do muro e aproximou-se dela provocando-lhe um formigueiro no estomago. Percorreu-lhe o braço desde o ombro até ao punho com o polegar. Aproximou-se mais um passo até que não houvesse mais passos possíveis e aquela proximidade enevoou o bom senso de Vanda. Vasco agarrou-lhe um caracol e quando Vanda sentiu todo o seu corto e discernimento dormentes, Vasco enlaçou na sua mão um envelope e sussurrou-lhe ao ouvido.
- Abre apenas depois da conversa que vais ter lá dentro. – E pousou-lhe um beijo demorado na testa. – Boa sorte!
Vanda demorou uns minutos a recuperar todas a suas faculdades intelectuais e olhou para o envelope branco com curiosidade. Ponderou abrir o envelope antes de enfrentar Vera e Marco. Se havia ali algum tipo de ultimato preferia saber antes. Com o envelope a pesar-lhe nas mãos Vanda sacudiu-se arrumou o envelope na mala e rodou a maçaneta.
- Está alguém em casa? – Vanda abriu a porto como era hábito naquela terra. Vera surgiu-lhe assim que ela formulou a pergunta. Tinha os olhos inchados e denunciadores de noites mal dormidas.
- Temos estado à tua espera. – Vera exprimia-se num fio de voz que fez Vanda vacilar por uma fracção de segundo. Mas ela tinha um propósito e ia segui-lo até ao fim. – Entra. – Vera estendeu o braço indicando-lhe a sala de estar. Vanda reparou na desarrumação. Tinha dois copos de sumo meios vazios em cima da mesa de centro. Uma manta muito usada caia pelo sofá roçando o chão. O chão de mosaico de cerâmica apresentava nódoas e migalhas. E Vanda sorriu… Era uma casa habitada e vivida como a sua já há muito não era.
- Esta vai ser uma conversa difícil… Para todos nós. – Vanda deixou Vera sentar-se primeiro e escolheu o lado oposto do sofá para se sentar. Marco sentou-se numa poltrona ao lado da mulher. Parecia ter emagrecido e a pele estava com um tom pestilento. Não era o mesmo homem atraente que Vanda recordava.
- Eu sei… Mas a espera mata-me! Só quero que saibas que eu vou lutar pelo meu filho com todas as minhas forças. – Vanda assentiu. Não valia a pena protestar, porque ela sabia que Vera falava verdade.
- Eu queria que o Matias estivesse presente. – Vera abriu a boca e desviou um olhar espantado para o marido.
- Devíamos poupar o Matias ao máximo. – Marco apressou-se em socorro da mulher.
- O que nós devemos fazer é tratar o Matias com respeito. E só é possível respeitar o outro quando lhe damos a verdade do que ele é. O Matias tem uma parte da sua vida que é dele e que só a ele pertence essa verdade. Eu quero que o Matias esteja presente.
Vera e Marco pareciam perdidos. Foi a Dona Emília é que resolveu aquele impasse entrando na sala com o Matias. Vanda sentiu-se vibrar de alegria quando viu o seu filho com um ar saudável, as bochechas rosadas e os olhos brilhantes de diabruras infantis. O seu coração deu um pulo. Era como se finalmente o seu corpo reconhece-se a finidade dos dois, mas o corpo apenas reagia ao que já sabia, e não a nenhum estímulo paranormal.
- Eu acho que o Matias tem direito a participar nessa conversa. Afinal ele já é um homenzinho, não meu querido? – A avó depositou-lhe um beijo no cocuruto.
- Se me continuares a tratar assim nunca vou ser um homenzinho.
Ninguém conseguiu evitar o riso e todos aqueles olhos pousados em Matias, pertenciam a pessoas que o amavam profundamente.
- Olá Matias! – Vanda já não se sentia tão segura. O olhar desconfiado que o filho lhe dirigiu feriu-a por dentro. Um olhar frio e indiferente de uma pessoa amada é sentido mais profundamente do que um carinho. – Senta-te aqui. – Vanda apontou-lhe o lugar vago no sofá entre ela e a Vera. – Vamos conversar um pouco pode ser Matias?
Ele acenou a cabeça afirmativamente mas sem grande vontade.
- Tu já és muito crescido e é por isso que te vamos tratar como um adulto. – Ele revirou os olhos pressentindo uma longa ladainha de cautelas própria dos adultos. – Vou contar-te um pouco da minha história. – Vanda respirou fundo e decidiu que a verdade é útil na vida das pessoas, mas quando se trata de uma verdade demasiado pesada deve ser doseada na sua administração. Então decidiu que não contaria nada acerca do pai de Matias a não ser que ele questionasse. – Quando a Vera foi para Lisboa para te ter, ela deu entrada na maternidade onde eu também estava. Estávamos as duas grávidas.
- Mas a professora não tem filhos! – Matias mostrava-se curioso. Afinal não parecia uma conversa chata.
- Tenho Matias! Mas já chegaremos lá, meu querido. – Vanda pegou numa mão de Matias e acariciou-a enquanto falava. – Como te estava a dizer, eu e a Vera entramos em trabalho de parto as duas praticamente ao mesmo tempo e no mesmo hospital. Foi um dia muito difícil e muito confuso no hospital porque os dois partos eram particularmente difíceis. Ambas tivemos dificuldades no parto… E naquela aflição de haver dois partos difíceis e bem-sucedidos houve muitas confusões. Ambas demos à luz dois rapazes. O meu rapaz nasceu de boa saúde. – Vanda fez uma pausa estudando o rosto fechado de Matias. Ele não deixava transparecer nada, apenas curiosidade relativamente ao desfecho daquela história. – O bebé que a tua mãe deu à luz morreu.
Todas as respirações sustiveram-se em uníssono e todos os olhos estavam colados em Matias que continuava sereno.
- Não sabia disso! – Foi tudo o que Matias disse, intimidado por aqueles olhares. Não percebia bem o que queriam dele.
- Matias! O que te vou dizer agora é muito importante. E quero que, depois de ouvires o que te vou contar, digar exactamente o te vai na cabeça. Se quiseres gritar, então grita… Se te apetecer chorar, chora… Não te reprimas.
- Conta lá! – Matias estava curioso, mas tratava-se de uma curiosidade ansiosa que o deixava nervoso.
- Tu eras o bebé que sobreviveu…
Matias encolheu as sobrancelhas num gesto de dúvida.
- Mas disseste que o bebé da minha mãe morreu… - Ao formalizar a sua dedução em voz alta, Matias abriu muito os olhos num entendimento instantâneo. Virou-se para Vera e abraçou-a com toda a sua força. Vera acolheu o filho naquele colo quente e conhecido e deixou-o estar até que ele voltou a encarar Vanda.
- Estás a dizer-me que tu é que és a minha mãe?
- Sim Matias. – Vanda reparou na diferença de tratamento. Ela não teve direito ao abraço apertado. O seu filho não via nela um refúgio seguro. Quando precisou de consolo virou-se para Vera. Foi nesse momento que Vanda percebeu que é mais forte o amor que é construído no quotidiano rotineiro do que o amor de sangue. – Eu quero explicar-te que nunca te abandonei. Foi um erro que aconteceu nesse dia. Eu estava muito doente e internada numa clínica e naquela confusão trocaram os bebés. A culpa não foi de ninguém…
- Está bem… Mas o que é que queres agora? – Matias estava irredutível. Ele queria saber o que é que enfrentava, e Vanda sabia que nunca podia força-lo a amá-la como mãe. Ele já tinha esse lugar preenchido na sua vida. Vanda viu a lágrimas dele a aflorarem os olhos e sentiu-se vacilar. Pegou-lhe em ambas as mãos e quando sentiu aquele contacto de pele soube imediatamente qual era o seu caminho.
- O que eu quero é que tu saibas a verdade. Não é bom viver-se de mentiras, porque elas surgem sempre nos piores momentos para nos assombrarem. Se viveres sempre conhecedor da verdade é mais difícil surgirem-te surpresas desagradáveis pelo caminho. – Matias acenou e não retirou as suas mãos das de Vanda. – Eu também quero que tu saibas que eu te amo. – Vanda sentiu a sua voz faltar-lhe. Não era altura para ser forte. Era o momento que devia mostrar-se por completo ao seu filho. – Eu corri este país à tua procura e desejei-te muito ao longo destes anos, e quero que saibas isso. Quero que tenhas consciência do quanto amado tu és. – Vanda sentiu o sabor salgado das lágrimas no canto dos lábios. – E quero que saibas que fico muito contente por teres tido esta família na minha ausência. – Todos partilharam lágrimas sentidas. Todos sentiam aquele momento. Todos temiam o que seria a partir daquele momento. – E quero que fiques comigo…
Todos voltaram a suster a respiração. Os olhos de Vera faiscaram.
- Eu prefiro saber a verdade. – Matias abraçou Vanda com um carinho que a emocionou. O abraço apertado transportava os anos de atraso. Matias afastou-se e voltou a pegar nas mãos de Vanda. – Mas na minha cabeça e no meu coração a minha mãe continua a ser a Vera e o meu pai é o Marco. E na minha família tenho os meus irmãos e os meus avós… E tu vais ser a minha tia quando casares com o tio Vasco… É assim que eu sinto estas coisas. Não me obrigues a ir para um quarto que não é o meu…

Foi tão simples quanto isto. Um problema que na maioria dos casos é resolvido pelos adultos durante anos e sessões intermináveis de audiências e terapias estava resolvido pela sensatez de uma criança… A solução está sempre no mesmo sítio onde reside o problema. O problema é que muitos se acham donos da mesma solução.

domingo, 26 de maio de 2013

Capitulo XXIII - Nas Asas do Corvo

Capitulo XXIII

A ilha aumentava à medida que o avião se aproximava. O veludo verde recebia, numa passividade altiva caricias violentas de um mar celestial que transpirava um fogo-de-artifício branco numa tentativa frustrada de chama a sua atenção. O asfalto da pista do aeródromo pareceu-lhe insuficiente e pela segunda vez teve aquela sensação de que o avião tinha roçado o mar antes encontrar terra firme. O avião travou a fundo e o seu corpo impulsionou-se contra o assento da frente. E Então a explosão de aplausos rebentou num calor humano que apagava as frivolidades trazidas do resto do mundo. Vanda saiu do avião com uma mala de rodinhas arrastada atrás de si. Parou na rua e olhou à sua volta. As pessoas cumprimentaram-na calorosamente como se ela não se tivesse ausentado por tanto tempo. Passou a Rua da Matriz contornando a igreja embrenhou-se pelo labirinto de calçadas estreitas. Chegou finalmente a casa. Rodou a maçaneta sem recorrer à chave e sorriu quando a porta simplesmente se abriu. As paredes negras de basalto receberam-na no seu interior e ela sentiu que aquele era o seu lugar.
A casa estava impecavelmente limpa como se a casa fosse imune ao pó se sete meses de ausência. Era óbvio que alguém tinha tido a preocupação de manter a casa arejada e sem pó, uma vez que ela não avisara ninguém da sua chegada. Vanda Largou a mala e descalçou as sandálias. Sentia o corpo melado daquela humidade quente. A casa trouxe-lhe uma frescura agradável que a aliviou do calor de Verão que se sentia na rua.
- Olá!
Vanda levantou os olhos numa ânsia voraz de encontrar o rosto que correspondia à voz. Vasco estava com um ombro encostado à ombreira do quarto dela com o cabelo rebelde a cobrirem o olhar e os braços cruzados. Vanda sentiu-se paralisar. Queria saltar para aquele abraço conhecido, mas os seus braços não se abriram para ela.
- O que fazes aqui? – Vanda queria mostrar-se fria e distante e permaneceu no tapete de entrada com as sabrinas penduradas nos dedos da sua mão direita.
- Tenho morado aqui… - Vasco olhava-a com um olhar fixo que ela não conseguia descortinar.
- Ah! – Vanda baixou o seu olhar cobardemente, sem ser capaz de o enfrentar de frente. – Eu tenho pago a renda todos os meses… Pensei que continuasse com o contrato de arrendamento…
- E continuas… - Vasco desencostou-se da ombreira da porta e aproximou-se três passos. Os traços do seu rosto continuavam sério. E Vanda sentiu-se encolher, mas contrariando os seus sentimentos ergueu a cabeça e preparou-se para enfrentá-lo. – Tenho estado à tua espera.
Vanda abriu a boca, mas foi incapaz de proferir uma única palavra. O que significava aquilo. Iria ele ameaçá-la…Iria proibi-la de contactar com o filho?
- Senta-te a Vanda! A casa é tua… - Vasco disparava as palavras numa frieza que lhe gelava o sangue. Ela obedeceu, mas apenas depois de arrumar as sabrinas na sapateira.
- Eu estou cansada Vasco… Vamos despachar isto…
Vasco sentou-se na ponta oposta do sofá tentado manter a distância. Mas o sofá era pequeno e o perfume dela tomou conta da pequena distância.
- Pois… E tu és boa nisso.
- Nisso o quê?
- A despachar pessoas… - Vasco dirigiu-lhe um sorriso triste que lhe cortou o coração. Mas Vanda manteve-se imóvel e impenetrável.
- Porque é que estiveste de baixa durante tanto tempo? – Vasco queria falar no sobrinho, mas a preocupação com o que lhe tinha acontecido nestes sete meses sobrepunha-se a outras conversas que tinham de ter.
- Estive a fazer um tratamento…
- A quê? Estavas doente? – Ambos pareciam estar a percorrer um caminho minado, usando de uma cautela exagerada.
- Estava… Mas levei muito tempo a perceber. – Vanda suspirou ao ver que Vasco continuava a fitá-la esperando uma justificação melhor. – O Daniel achou que devia ser acompanhada por uns tempos. Esta minha obsessão pelas limpezas, pelos horários, pela perfeição é uma doença e tem de ser tratada.
- Ah! E melhoraste?
- Não como imaginas… Continuo com um quotidiano muito próprio… Mas já não tenho ataques de histeria porque a ponta do tapete está dobrada. Também ajudou-me a arrumar as várias etapas da minha em vida em gavetas. E estão todas fechadas. Aprendi a ser arrumada na minha cabeça e desarrumada na minha vida. – Vanda sorriu esperando um retorno de Vasco que não se verificou.
- Pensei que tivesses ficado chateada com o Daniel…
- Não foi ele que fez as asneiras… Fui eu. Ele apenas tentou tratar dos meus problemas da melhor forma possível.
- Ah! – Vasco desviou pela primeira vez o olhar concentrando-o num ponto distante. – Estiveste fora muito tempo. Deixaste o teu trabalho, a tua casa…
- Sim, mas eu arranjei uma substituta para as minhas aulas bastante competente. A escola não ficou prejudicada pela minha ausência…
- A escola não… - Vasco voltou a concentrar-se em Vanda. Existia uma química inegável no ar, como se as suas peles tivessem sido feitas para se completarem. E era difícil estar assim a manter uma distância tão curta que seria facilmente encurtada por simples gesto.
- Vieste para ficar?
- Não sei… - Vanda tinha de ser o mais sincera possível com ele. Afinal ela amava-o.
- O que vais fazer relativamente ao Matias?
Afinal era este o ponto que importava e Vanda sentiu-se um pouco desiludida.
- Vou contar-lhe a verdade… - Vasco baixou os olhos e deixou o tronco descair apoiando os cotovelos sobre as pernas. Esfregou as têmporas com as pontas dos dedos. Vanda tinha-o desiludido… Podia senti-lo. – Agora quero saias Vasco! Estou cansada e nada do que me digas vai mudar aquilo que vim cá fazer. – Vanda suspirou.- Só estive à espera que o Matias recuperasse da sua doença. Agora é a altura ideal para colocar as coisas no lugar certo. – Como Vasco não se moveu, Vanda levantou-se e dirigiu-se para a porta abrindo-a. – Não temos mais nada para conversar.
Vasco fitou por uns segundos sem se mexer, mas acabou por ceder. Levantou-se contrafeito e dirigiu-se para a porta. Parou antes de sair e fixou o olhar de Vanda com uma profundidade que a incomodou.
- Essa terapia não te valeu de muito. Numa relação tomam-se decisões a dois. E quando não se chega a consensos respeita-se a opinião do outro. Amar não é aceitar e acatar tudo o que vem do outro. Amar é saber travar o outro quando ele age da forma errada. Amar é levantar a voz quando é necessário e abrir os braços quando se impõe a fragilidade de afinal se ter errado. Eu queria caminhar ao teu lado… Queria que independentemente da tua decisão tu desabafasses comigo e me pedisses uma opinião… E queria no fim poder acompanhar-te em qualquer que fosse a tua decisão… Mas para isso tu terias de aprender a amar…
Quando a porta se fechou, Vanda sentiu que aquele assunto não estava arrumado numa gaveta dentro da sua cabeça. Vasco ocupava todos os poros do seu ser. Como podia ele ter a ousadia de lhe dizer que ela não sabia amar? Que agitação era aquela que ele lhe provocava? Era amor… A sua alma queria gritar-lhe, mas a sua boca calava cobardemente aquele rodopio que a dominava. Que tristeza era aquele que sentia sempre que ele lhe virava as costas? Era amor… Que necessidade de o ver feliz era aquela que lhe pesava no peito? Era amor… Que atrevimento dele supor que ela não sabia amar.
Vanda estava a desfazer a mala e a organizar a sua roupa de Verão. A humidade daquele lugar acentuava as temperaturas que nem eram assim tão altas. Nem que ria imaginar o que seriam mais de 30º graus naquela ilha. Derreteria com toda a certeza. Vanda ouviu a porta de entrada abrir-se e voou para a sala na esperança que fosse Vasco. Sentiu um misto de desilusão e de felicidade quando viu na sua cozinha Catarina e Vera Câmara com um sorriso de boas vindas. Ambas cumprimentavam-na e repreendiam-na por aquela ausência tão longa e silenciosa.
- Sabes para que servem os telefones? – Catarina pousou um saco em cima do mesão e começou a tirar inhames e linguiça de dentro do saco.
- Não merecias que viéssemos aqui receber-te… Mas tens sorte que aqui não há muito que fazer e tu és a novidade de agora.
- Esse é que é o teu herdeiro? – Vanda tirou o bebé minúsculo do colo de Vera sem lhe pedir licença e só depois de se deixar encantar por aquela criatura pequenina é que percebeu o que tinha feito. Sorriu… Afinal a terapia tinha valido de alguma coisa. – É lindo, lindo, lindo… Mas não consigo perceber com quem é parecido. – Todas riram ao mesmo tempo e Vanda sentiu-se grata por estar ali rodeada pelas amigas sem grandes dilemas para resolver naquele momento. Os inhames foram fritos juntamente com a linguiça entre risinhos e confidências. Catarina tinha confessado que Daniel estava a tentar ocupar a única vaga de médico que ficaria vaga com a reforma do Dr. Vicente. Vera reclamava das noites mal dormidas.
- Se não é o choro do filho… São os roncos do pai! – O riso fácil surgia e a mesa ficou posta ao mesmo tempos que o estômago de Vanda roncava. Vanda é que colocara a mesa e não tinha colocado base por baixo dos pratos. Partira o pão caseiro usando as mão sem luvas e permitiu-se petiscar um pouco de linguiça directamente das mãos de Catarina.
- Hum… Isto sane melhor na tua cozinha do que na minha! – Vera Fechou os olhos e gemia enquanto mastigava.
- Isso é porque é sempre melhor sujar a casa dos outros do que a nossa. – Vanda piscou um olho a Catarina.
- Afinal de contas tu é que és a mãe do Matias, hem? – Vanda quase se engasgou com aquele cometário de Vera.
- Como é que sabes?
– Foi o Joe que me disse. Sabes que ele e o Vasco são muito próximos e o Vasco desabafou com ele.
Catarina reparou na tensão que Vanda adquiriu com aquele assunto. Elas eram amigas para os bons e maus momentos.
- Existe um lado positivo nessa história.
- Qual? – Vanda interrogou Catarina com o mesmo olhar incrédulo que Vera lhe dirigia.
- Não sofreste de síndrome de hellp, portanto podes ser mãe sem esse tipo de complicações quando quiseres. – Aquela constatação foi tão absurda que todas riram com vontade…
- Amanhã vou contar a verdade ao Matias.
Aquela notícia caiu como uma bomba naquela mesa. As duas amigas pararam de comer e fitaram Vanda incrédulas.
- Tu vais o quê? – As vozes esganiçaram-se em uníssono.
- Vou repor toda esta situação. Afinal de contas eu é que sou a mãe do Matias. Alguma de vocês gostava de viver numa mentira destas toda a vida?
- Não, mas… - Vera olhava para o filho tão frágil a dormir no carrinho ao seu lado. – Ele é apenas uma criança… E já passou por tanto…
- Finalmente, ele está estável junto da família… - Catarina pousou os talheres dando a sua refeição por terminada. – O Marco e a Vera não merecem…
- E eu? – Vanda agora sentia-se insultada. – Acham que eu mereço esta situação. Ter de tomar este tipo de decisões… Acham que o Matias merece viver uma mentira sem ter qualquer hipótese de escolher a sua verdade?
Ambas se calaram.
- é uma situação delicada Vanda… Eu não queria estar no teu lugar. Mas faças tu o que fizeres, nós vamos estar aqui para te apoiar. – Catarina pegou-lhe na mão.
- Mas também vamos apoiar o Marco e a Vera… Nós somos uma família nesta ilha. E tu tens de perceber isso.

Vanda ficou sozinha com uma cozinha por arrumar. Arregaçou as mangas e agradeceu ter aquela tarefa. O dia seguinte seria um dia duro.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Capitulo XXII - Nas Asas do Corvo


Capitulo XXII

Vanda despertou com a claridade a entrar pelo quarto e a promessa de um novo dia. Não lhe agradava o facto de vestir a mesma roupa, mas sinceramente não tinha grande importância. Enviou as calças e a camisola, pegou na mala, prendeu o cabelo sem sequer o pentear. Tomou o pequeno almoço na residencial e saiu. Parou numa mercearia e comprou uma escova de dentes e uma pasta dentífrica. Entrou de seguida num café escuro e vazio de clientes. Tomou um café curto e foi à casa de banho lavar os dentes. Essa parte da sua higiene diária não conseguia abdicar. De seguida dirigiu-se à rodoviária e apanhou um autocarro para Ourém. O seu espírito não absorveu as mudanças da pequena cidade que continuava a parecer uma aldeia. Não era uma visita de cortesia à sua terrinha, mas uma visita ao seu passado. Vanda apanhou um táxi e dirigiu-se para fora da cidade em direcção à casa da avó.
A casa continuava situada numa inclinação de terreno sem nada à volta para além de ervas altas. As paredes brancas começavam a descarnar-se deixando à mostra a pedra encoberta. A porta da frente estava descaída e o verde gasto e sujo descolava-se da madeira podre. Vanda rodou a maçaneta mas sem sucesso. O seu coração galopava uma angústia velha no peito. Vanda olhou em volta. Os vasos sustentavam terra seca sem vestígios de vida. Vanda olhou para um em especial. Levantou o vaso e lá estava a chave enferrujada. Sorriu um sorriso de reconhecimento. Finalmente abriu a porta e estava tudo arrumado exactamente como se lembrava. O pó descolorava os móveis velhos e antiquados e a carpete azul onde ela tantas vezes rebolara. A lembrança daquela pequena sala cheia pelos pais e pela a avó inundou-lhe a memória… e de repente era como se tivesse estado sempre ali. Vanda sentou-se na cadeira tosca que balouçava encostada à janela, onde a avó gostava de se sentar a fazer renda, e falava dos tempos antigos em que ela se sentia confortável. Vanda costumava sentar-se ali quando a avó não estava por perto. E quando a senhora se sentava a balouçar-se pacificamente, Vanda sentava-se no chão com as suas bonecas espalhadas sobre a alcatifa azul pedindo à avó que lhe contasse histórias. E ela estava ali novamente com a sua voz aguda e trémula a contar as aventuras de D. Nuno Álvares Pereira. Vanda sorriu e deixou-se balouçar naquela cadeira olhando pela pequena janela e vendo o quintal abandonado à libertinagem de uma vegetação selvagem.
- Gosto mais da tua casa do que da minha casa em casa em Paris! – Vanda tinha novamente oito anos e penteava os cabelos dourados de um nova boneca.
- Se vivesses aqui e passasses férias lá, passavas a gostar mais da casa de Paris. – A avó parecia ter sempre respostas inteligentes.
- Mas sinto sempre muitas saudades tuas.
A avó sorriu-lhe uma bondade que Vanda sentiu novamente.
- Eu também tenho sempre muitas saudades tuas minha pequenina. Mas os filhos devem estar perto dos pais. – A televisão começou a dar as noticias das oito. Era um momento sagrado para a avó. Ela aumentava o volume e prendia-se a cada noticia com uma atenção comentada de vez em quando. A noticia de abertura tratava uma troca de bebés numa maternidade que tinha acontecido há quase dez anos. E agora levantava-se as questões típicas. As crianças trocadas tinham-se habituado a uns pais que não eram os seus. Estavam comentadores e psicólogos a discutir o assunto e o melhor para as famílias.
- Esta gente fala demasiado nos problemas dos outros. Os dois casais e as crianças é que sabem o que estão a passar e eles é que devem decidir o que é melhor para eles… Raios parta quem tem tanta opinião e tão pouco para dar…
Vanda riu-se da asneira que a avó disse.
- Se me dissessem que eu teria outros pais, eu não os queria…
Vanda arregalou os olhos perante aquela lembrança que lhe assentou como um soco e sentiu-se sufocar.
Daniel entrou com a rapidez do nervosismo ao ouvir os gritos de Vanda. Ela estava enrolada sobre si mesma no chão da cozinha. A mesma cozinha onde ela tinha sido violada. A mesma cozinha onde ela matara o seu violador. Daniel debruçou-se sobre ela e obrigou-a a encará-lo. Ela surpreendeu-se quando o viu e agarrou-se a ele afundando o rosto no seu pescoço como se quisesse privar a vista daquela lembrança.
Daniel conduziu-a para fora de casa e sentou-a num degrau de pedra. Deixou que ela chorasse e quando o cansaço se sobrepôs à dor sentou-se ao seu lado.
- Como é que tu estás aqui Daniel?
- O Vasco ligou-me e contou-me a vossa conversa. – Daniel deixou que a informação assentasse na mente dela. – Ele queria vir procurar-te, mas eu não deixei.
- Ah! – Foi tudo o que Vanda conseguiu dizer.
- Precisamos de falar Vanda. De ter uma conversa franca e definitiva… Mas agora não estás em condições.
- Hum…
Daniel levantou-se e ajudou-a a dirigir-se para o carro. Entraram e Vanda adormeceu quase imediatamente.
O toque de um telemóvel despertou-a numa confusão de ideias. Vanda abriu os olhos e não reconheceu o quarto. Levantou-se de um pulo e correu para a porta rodando a maçaneta numa aflição duvidosa. Quando chegou a uma sala branca e bem decorada acalmou-se ao encontrar Daniel sentado numa cadeira roxa com um design engraçado que fazia lembrar uma mão aberta.
- Olá dorminhoca! – O sorriso que Daniel forçou não lhe chegou aos olhos. – Tens fome?
Vanda surpreendeu-se com a reacção do seu estômago. Estava verdadeiramente faminta. Daniel conduziu-a a uma cozinha pequena mas bem equipada em que um azul celeste contrastava com o inox dos electrodomésticos de uma forma confortável. Daniel preparou uns ovos mexidos que ela devorou sem trocarem uma única palavra.
- Queres mais?
- Não. Estou bem assim obrigada! – Vanda seguiu Daniel de volta à sala e sentou-se na ponta do sofá. – Esta é a tua casa?
- Sim! É o meu canto, o meu mundo! – Daniel aproximou-se dela no sofá. – Não trago aqui muitas mulheres… Tu és uma sortuda. – ambos riram um riso constrangido que antecipava uma longa e dolorosa conversa. – Temos de falar Vanda!
- Sobre o quê?
- Sobre a verdade de tudo isto! Eu vou falar contigo abertamente e gostava que abrisses a tua mente para tudo o que vamos conversar.
Vanda assentiu.
Daniel levantou-se e serviu-se de um pouco de licor beirão. Bebeu um longo gole e fechou os olhos por uns momentos procurando as palavras certas para começar aquele diálogo.
- Lembras-te do tempo em que estiveste internada?
- Sim! Quer dizer mais ou menos… - Vanda mexeu-se do sofá tentando encontrar uma posição mais confortável. – Existem momentos pouco claros na minha mente. Suponho que seja por causa da medicação…
- Quando te dissemos que estavas grávida, tu choraste durante dias seguidos e nunca disseste uma única palavra. Beliscavas a tua barriga até fazeres nódoas negras e por vezes sangue. Estiveste durante duas semanas amarrada à cama… Quando dei a ordem de te amarrarem senti que estavam a martelar-me na cabeça… Mas o pior foi quando cheguei ao teu quarto e vi-te de braços e pernas esticados presos à barra da cama. Tu nem te mexeste quando entrei no quarto. Tentei falar contigo, mas nem me olhaste mantiveste-te imóvel a fixar um ponto muito distante como se só o teu corpo estivesse ali. Os teus olhos não emitiam uma única expressão quando eu estava contigo. Fechavas-te num mundo inacessível e o teu corpo não te traía. Nem um único músculo se mexeu, mas uma lágrima rolou pela tua face inexpressiva e eu saí do quarto a correr. Queria mandar que te libertassem, mas eu sabia que não podia fazer isso. Tu fizeste com que tomasse as decisões mais difíceis da minha vida…
- Desculpa. – Vanda não se lembrava bem dessa fase. Agora parecia realmente lembrar-se de ter estado atada para não se magoar. Mas era uma lembrança vaga e muito enevoada. No entanto Vanda lembrava-se bem do que lhe ia na alma nesse momento. Queria morrer… Queria que aquela gravidez acabasse por qualquer motivo… ela não queria dar à luz o filho de um monstro. Não suportaria. Lembra-se de tentar magoar a barriga e quando não podia magoá-la por estar com os movimentos limitados, lembra -se de passar horas a fazer força para ver se expelia aquilo que estava a crescer dentro de si.
- Tu não querias aquela criança. Tu gritavas isso mesmo durante o sono.
- Eu falava enquanto dormia?
- Era a única altura em que ouvia a tua voz. Tinhas muitos pesadelos e normalmente falavas, muitas vezes de uma forma desconexa, mas noutras vezes fazias sentido. E naquela altura era bastante evidente que não querias aquela gravidez. E depois acalmaste e deixaste de estar presa à cama. Passavas os dias a deambular. Já não magoavas a tua barriga, e já não sonhavas alto. Mas não me pareceu que tivesses aceite a tua gravidez… Apenas estavas num estado e apatia conformista. Depois entraste em trabalho de parto mais cedo do que seria esperado, mas num período em que já não era demasiado frágil para o bebé.
- Pois foi…
Daniel mudou de posição. Inclinou-se para a frente e posou o copo em cima da mesa. Descansou os cotovelos em cima dos joelhos e esfregou o pescoço concentrando-se no que tinha para dizer.
- Vanda!
- Sim…
- Vou precisar que entendas tudo aquilo que te vou contar… E por favor, se quiseres culpar alguém, culpa-me apenas a mim…
- Não estou a perceber Daniel!
- As únicas reacções que vi da tua parte relativamente à gravidez foram as que já te descrevi. Foram reacções negativas… E depois apenas um silêncio profundo. E quando dei conta estava numa maternidade a dar à luz…
Daniel fez mais uma pausa olhando o fundo do copo vazio.
- Estava na maternidade a acompanhar-te, quando o Vasco me ligou a dizer que a cunhada tinha dado entrada de urgência na mesma maternidade. Os dois partos deram-se quase em simultâneo e eu como amigo do chefe de serviço tive praticamente livre acesso aos dois processo. Tu deste à luz um rapaz que apesar de prematuro era saudável e a Vera deu à luz um bebé com muitos problemas que não resistiu ao parto.
Vanda abriu muito os olhos com uma compreensão lenta que se formava incrédula na sua mente.
- Cabrão! – Vanda libertou toda a sua energia nuns punhos fechados que se abatiam sobre Daniel numa chuva sucessiva de movimentos descoordenados e imprecisos. Daniel agarrou-a com algum esforço e obrigou-a a sentar-se. – Tu sabias… Foste tu que me tiraste o meu filho…
Aquela acusação magoou-o mais do que os socos.
- Ouve-me até ao fim Vanda… Depois podes nunca mais olhar para mim… Podes até processar-me… Faz o que quiseres, mas ouve-me até ao fim.
Vanda obrigou-se a sossegar e sem derramar uma única lágrima fixou-lhe aquela olhar negro e sombrio que o fez sentir-se encolher.
- Põe-te no meu lugar. Tu estavas internada num hospício recusando tratamentos e, na minha óptica, odiando o ser que geravas dentro de ti. Não havia sequer a hipótese na minha cabeça de ficares com aquela criança. Nem imaginei isso por um segundo… Até aquele dia eu imaginei que a criança seria entregue aos serviços sociais. E tu viverias com a sombra de teres dado vida a um novo monstro… Eu juro que o que fiz naquele momento foi convencido de que te estava a proteger… Pareceu-me o mais correcto… Tinha de um lado uma louca que rejeitava o filho que paria condenando-o a um crescimento entregue a instituições. Tinha do outro lado um casal que desejava aquele filho com todas as forças e que proporcionaria uma vida feliz àquela criança. Tinha ainda um bebé que podia ser criado em instituições privado de amor e provavelmente a sentir o peso da rejeição de uma mãe que o odiava e o peso de ter sido concebido de uma forma tão perversa… Ou que podia ser criado no seio de uma família que o acolheria e que se dedicaria a fazê-lo feliz sem as preocupações que deviam ser proibidas a todas as crianças. – Vanda reparou que o Daniel chorava e deixou-o chorar.
- A Vera ou o Marco sabem dessa troca? – Vanda mantinha uma postura demasiado rígida, um ar altivo e uma expressão fria .
- Agora já devem saber…
- Como assim?
- Quando o Vasco me ligou, eu contei-lhe tudo. Ele ficou furioso e viajou para o Corvo. Disse-me que tinha de contar a verdade.
Vanda pensou naquela situação toda. A sua alma chorava, mas o seu corpo recusava-se. Ela agora sabia a verdade… finalmente. E o que é que significava aquela nova verdade? O que significava verdadeiramente estar na posse de uma verdade que lhe foi ocultada durante tantos anos? Não conseguia olhar para Daniel com uns olhos verdadeiramente acusadores. Chegava até a sentir algum amor naquela atitude. Seria possível sentir-se amor na mentira? Ela sentia naquele exacto momento o peso da compaixão que despertou um dia em Daniel e os sacrifícios que ele se dispôs a fazer por ela sem lhe pedir nada em troca. Era-lhe fácil agora acusá-lo. Ela possui agora todas as condições que lhe conferem a dignidade da acusação. Mas na altura em que estas decisões forma tomadas, ela alheou-se a comprometer-se com qualquer tipo de decisão. É fácil quando nos momentos difíceis deixamos os outros decidirem por nós, e quando chega a calma que vem sempre depois desses momentos, é fácil apontar o dedo ao resultado dessas decisões. O difícil teria sido ela falar, erguer a sua voz e dizer que não estava doida e que queria ajuda para criar o filho… Mas ela não o fez e deixou que a conduzissem. Só tomou as rédeas da sua vida quando a lhe foi mais confortável e não podia exigir que estivesse tudo à sua espera. A sua felicidade parecia  uma porta perra, que só abre o suficiente para uma espreitadela.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Capitulo XXI - Nas Asas do Corvo


Capitulo XXI

O coração martelava dentro do peito numa inquietação vulnerável e todo o seu corpo reagia a cada impacto do batimento. A cabeça parecia pesar toneladas, motivo pelo qual Vanda encostou-a ao vidro do autocarro enquanto olhava a paisagem sem a absorver. A culpa, o amor, a amizade, a lealdade, a paixão, a vontade misturavam-se numa sopa passada em que já não conseguia distinguir o ingrediente principal. Durante a sua infância guardava como recordação o sentimento de felicidade. Fechava os olhos e via o rosto sereno e gasto da mãe sorrindo-lhe por entre as olheiras carregadas de horas de trabalho. O pai chegava a casa ao entardecer e pegava-lhe ao colo atirando-a ao ar como se ela fosse uma pena. E ela voava como nunca mais foi capaz de voar. A sua voz grossa tornava-se suave e doce. “Olha a minha pequena fada a voar!”. “Eu sou uma fada pai?. “ És a mais talentosa das fadas.”. E ela acreditava. Sentia ainda aquelas mãos grandes e duras profundamente marcadas por calos novos que se formavam ao lado dos velhos. Aquelas mãos eram sinónimo se segurança e confiança quando se sentia no ar prestes a cair. Vanda não sabe precisar o exacto momento em que começou a sentir vergonha dessas mãos demasiado deformadas para pegar numa caneta. A imagem do pai dentro do banco a ser atendido por um senhor distinto invadiu-lhe a mente. Ela estava ao seu lado e corou de embaraço quando o senhora segurou delicadamente as pontas da folha onde o pai assinava numa tentativa frustrada de conseguir uma melhor assinatura. O embaraço transformou-se em raiva quando o pai puxou da sua humildade e desculpou-se com o facto de ter poucos estudos. O senhor bem educado sorriu um sorriso condescendente que trucidou o orgulho de Vanda. A adolescência é uma idade parva em que se perde a inocência de criança sem se ter adquirido a esperteza de um adulto. É um período em que este vazio é preenchido por valores que definem o futuro. E Vanda encheu-se de rancores contra as suas origens humildes. Insurgiu-se contra Deus e o diabo. Chorou e fez chorar aqueles que a amavam. Colecionou amarguras, vendo em todas as atitudes dos pais afrontas à sua dignidade sem perceber que não a tinha. A dignidade só se eleva antes da critica. Quem critica sem ter criado argumentos na sua vida para exemplificar o contrário está isento de dignidade.
Vanda adormeceu e sonhou com a avó. O seu olhar doce, na noite em que Vanda expulsara os pais da sua vida, estava novamente ali depositado nela. E aquele olhar magoou-a profundamente. Não era um olhar de acusação, nem tão pouco de desdém. Era pior. Doía mais. Era um olhar de pena.
- Quando plantamos o mal, nasce um inferno! – As palavras esquecidas daquela velhota analfabeta renasceram na sua mente.
A avó acolheu-a nos seus braços e na sua vida. E Vanda poderia ter aproveitado aquela nova oportunidade numa aldeia em que ninguém se distinguia. Uma aldeia feita de gente humilde, em que eram todos parecidos. Ali não havia um fosso entre ela e os outros. E de repente já não lhe bastava apenas ser igual aos outros. Ela queria ser superior aos outros. E assim a sua popularidade na escola era aumentada pela sua estupidez e a admiração que ela lia nos olhos dos colegas eram na verdade uma maledicência que ela alimentava com um andar altivo e um riso demasiado fácil e estridente.
- O riso em excesso é constate na boca dos tolos. – A avó afligia-se, mas na ignorância da sua velhice era ludibriada pela neta entre carinhos e argumentos que a excluíam dos tempos modernos.
Vanda passou por terapias suficientes para perceber que preencheu demasiado a sua adolescência de forma a não ter de pensar nem sentir a morte dos pais. Mas ela sentia a sua falta e a culpa pesava-lhe na consciência e no peito.
Agora é uma mulher adulta e independente mas prisioneira das sombras do passado sentindo-se pequena e insignificante perante a magnificência da vida como se não fosse digna de a usufruir. A capacidade de saber viver não é um dom que todos possuem. É como o projecto de voar do Leonardo Da Vinci. Ele idealizou, sonhou, projectou, mas não concretizou. Depois houve alguém que conseguiu colocar o homem no ar e até na lua. E agora existem os que usufruem dos sonhos dos outros. O tipo de humanidade resume-se a três categorias. Os sonhadores, os realizadores e os aproveitadores.
O autocarro saiu da auto-estrada e contornou uma grande rotunda fazendo com que as emoções de Vanda se sobressaltassem no seu peito, eriçando a pele e a mente numa corrente de recordações. A avenida estava arranjada numa calçada portuguesa que fazia o autocarro tremer. As árvores continuavam a cumprimentar os visitantes em vénias cordeais. Os contornos enlameados da estrada deram lugar a largos passeios onde grupos de peregrinos circulavam com coletes florescentes, cajados e posturas descaídas do cansaço, mas as vozes erguiam-se em uníssono para os céus. Vanda desceu do autocarro.
Atravessou a avenida e dirigiu-se para o santuário de uma forma instintiva. A capelinha mantinha-se exactamente como ela a recordava. Apenas a nova basílica se elevava naquele cenário sereno sem lhe despertar grande interesse. O ritual foi executado sem que ela precisasse de um esforço de memória. Tirou três velas e colocou o donativo na ranhura. Dirigiu-se para o toucheiro e acendeu a primeira vela. Fechou os olhos e pediu a Deus que ajudasse o seu filho Matias a ultrapassar a doença. Acendeu a segunda vela e pediu que Deus abençoasse os seus novos amigos nomeando os nomes. E por fim acendeu a última vela pedindo que Deus a orientasse nas suas decisões. Pediu iluminação e sabedoria suficientes para que desta vez não tomasse a decisão errada. Pediu forças para seguir o caminho certo.
Sentou-se na capelinha e o tempo ludibriou-a numa rapidez que lhe foi insensível. Ela fixou os olhos húmidos na imagem adorada e não rezou… Não Pediu… Não pensou… Apenas chorou um choro calmo que se fazia notar apenas pelo rolar de lágrimas gordas que lhe acariciavam a cara.
- Olá!
Vanda voltou a ligar-se ao mundo naquele cumprimento. Uma freira dirigia-lhe um olhar bondoso e uma sorriso gratuito.
- Olá! – Vanda não pode recusar o cumprimento.
- Gosto de vir aqui! – A freira sentou-se ao lado de Vanda causando-lhe desconforto. – Sinto uma paz que não posso explicar… É uma calma que apenas se pode sentir e as ideias ficam mais claras.
- Pois… - Vanda não estava para conversas. Não tinha disposição e a voz ameaçava tremer sempre que ela a forçava.
- Foi aqui sentada que eu soube qual era o meu papel no mundo!
- Ah… - Vanda revirou os olhos. Não queria acreditar que naquele momento de introspecção, uma velha freira ia satisfazer conversa de momento com ela.
- Eu tive uma vida difícil antes de seguir o caminho de Deus. – A freira mergulhou nos seus pensamentos em voz alta e Vanda teve de fazer um esforço para não a mandar calar. - Os meus pais eram ambos alcoólicos e dependentes de ajudas alheias.Mas independentemente disso eles amavam-me. Amavam-me muito. A assistente social comentava em voz alta como se eu não percebesse que eles não tinham capacidade para ficar comigo. Dizia que se eles me amassem de verdade mudavam de vida por mim. Como elas eram ignorantes… Perceber quem precisa de ajuda é o primeiro passo para poder ajudar. Quem julga antes de perceber raramente se torna útil na vida do necessitado.  Mas continuando… - A freira pousou a sua mão no joelho de Vanda dando-lhe umas palmadinhas calorosas, sem nunca olhá-la. – Então quando eu tinha seis anos estava a sair de casa para o meu primeiro dia de aulas com os meus pais. Eles tinham-me comprado uma mochila. E eu estava tão contente. Sabia que eles tinham poupado dinheiro para me comprarem aquela mochila cor de rosa com uns malmequeres bordados e prometi a mim mesma que iria cuidar bem daquela mochila até ficar velhinha. Morávamos no último andar de um prédio de quatro andares sem elevador, e eu comecei a descer as escadas demasiado gastas agarrada ao corrimão como fazia sempre e com a mochila às costas. O meu pai estava bêbado como era o seu normal, mas a felicidade de me estar a levar à escola com uma mochila que ele próprio tinha comprado estava-lhe estampada no rosto. De repente o meu pai tropeçou nas escadas e caiu em cima de mim. Rolamos os dois pelas escadas abaixo ao som dos gritos da minha mãe. Só me lembro de ter acordado no hospital. O meu pai estava sentado numa cadeira encostado à minha cama e chorava como uma criança. A minha mãe dormitava numa outra cadeira. Quando o meu pai ouviu a minha voz ajoelhou-se e agradeceu a Deus. Eu lembro-me de me ter sentido amada naquele momento olhando para aquele homem que em vez de chorar as suas nódoas negras chorava as minhas mazelas. Quando nos preparávamos para sair do hospital, o meu pai entregou-me a uma assistente social. Entregou-me de livre vontade. A minha mãe chorava… Não ela gritava uma dor que lhe devorava as entranhas e lhe salientava as veias da testa. O meu pai sorria-me um sorriso nervoso e repetia que era para meu bem. Que só fazia aquilo porque me amava muito. Eu pedi para ficar com eles. Implorei. Chorei. Esbracejei. Gritei. Foi como se me arrancassem um bocado de carne. A Assistente Social teve de pegar em mim e enfiar-me dentro de um carro. Colei-me ao vidro traseiro do carro até que os rostos dos meus pais se perderam no horizonte.
A freira deixou de falar de repente e só então Vanda soube que estava envolvida naquela história. Queria saber o que vinha depois.
- E então? – A freira sorriu com o olhar sempre fixo num ponto distante.
- Então fui para uma casa que acolhia crianças. Os meus pais iam buscar-me todos os fins de semana. E eu ansiava os fins de semana como um toxicodependente anseia a sua dose. E então deu-se o milagre. Como os meus pais só estavam comigo durante o dia de Sábado e Domingo começaram a fazer o sacrifício de se manterem sóbrios nesses dias. - Pela primeira vez a freira olhou Vanda nos olhos, e o seu olhar tocou-lhe a alma. – Eu tive a oportunidade de conhecer os meus pais sem o efeito de álcool. Foi preciso saber abdicar para ser compensada.
Vanda sentiu que aquelas palavras faziam sentido na sua vida, mas ainda não conseguia precisar como.
- E porque é que se tornou freira? – Vanda sentia-se envolvida naquele relato, naquela vida.
- Porque é o único lugar onde sinto que sou útil à humanidade. Eu rezo a Deus para que os homens saibam decidir bem. E uma boa decisão nem sempre é aquela que resulta dos nossos sonhos ou desejos. Uma boa decisão é aquela que pensa primeiro naqueles que nós amamos. O meu pai rezou naquele hospital para ter uma segunda oportunidade comigo. E conseguiu tomar a decisão correcta para mim e para ele. Tivemos momentos lindos. Fiquei a conhecer a história da minha família. Tive oportunidade de passear com o meu pai sem ter de lhe servir de equilíbrio. Corremos juntos. Rimos muito. Porque no Sábado e no Domingo ele era aquilo que não conseguia ser permanentemente. Eu rezo para que todos os homens tenham força para seguir o melhor caminho. E tu?
Vanda sentiu-se atordoada com a pergunta.
- Eu o quê?
- Já decidiste? Já pensaste no que é melhor para aqueles que tu amas? - A freira sorriu-lhe carinhosamente, levantou-se e foi-se embora com uma mochila cor de rosa com uns malmequeres bordados pendurada num ombro.