Capitulo XIV
O
sangue fervilhava-lhe nas veias e o esforço que fizera para escorraçar Daniel
da sua casa ainda lhe pesava nos membros. Vanda deixou-se
cair de rabo encostada à porta que acabara de fechar. Os seus olhos miraram
aquela sala pequena e agradável que tem sido o seu lar. As paredes escuras de
basalto pareciam reflectir a sua alma. Ela respirou furiosamente com
as narinas dilatadas e as bochechas demasiado rosadas, antes de chorar de uma
forma histérica. Estragaste a
tua vida, sua estúpida, e agora queres remediar os teus erros dessa forma ridícula Esta vozinha que
tinha conseguido afastar com tanto esforço ria-se agora da sua miséria. A caixa
de comprimidos para dormir pereceu-lhe naquele momento a sua melhor
alternativa. Aproximou-se da bancada da cozinha e encheu um copo com
água, fazendo-a perceber como as suas mão tremiam. Havia passado já algum tempo
desde que recorrera à ajuda daquele calmante. Deitou-se na cama e esperou o
efeito relaxante que não tardou, mergulhando-a num sono profundo.
Faltava
apenas dois dias para o Natal, e Vanda podia
adivinhar uma noite triste e solitária. Era assim desde a morte dos seus pais.
A solidão era sentida numa plenitude assustadora não deixando lugar para outros
sentimentos. Vanda começava
a antecipar o pesadelo que aquela noite significava, sozinha a chorar as suas
misérias. Queria convencer-se de que se tratava de uma noite como outra
qualquer, mas nunca conseguia reduzir aquela noite especifica à insignificância de todas as outras noites. O peso das
recordações e a saudade invadiam-na como os fantasmas do avarento Ebenezer Scrooge.
As
pancadas na porta sobrepuseram-se ao cair austero da chuva. Vanda arrastou-se preguiçosamente para
abri-la.
-
Olá! – Vasco entrou e sacudiu-se da chuva como se fosse um cão vadio,
respingando toda a entrada. Vanda revirou
os olhos. Por muito que ele se esforçasse não conseguia deixar de ser
desleixado. – Convidas-me para o almoço?
-
Tenho alternativa? – Vanda depositou-lhe
um beijo leve, mais por uma questão de hábito do que de espontaneidade.
-
Tens… Mas não seria a mesma coisa. – O sorriso fácil de Vasco tinha um poder
sobre ela como se a electrizasse. Vasco abraçou-a por trás, afastou o cabelo
com a ponta dos dedos e depositou-lhe um beijo na cova do pescoço. Vanda fechou os olhos e sentiu aquele
encostar de lábios em todos os nervos do seu corpo. Finalmente sorriu também.
-
Eu sou irresistível! – Vasco encheu o peito de um orgulho macho.
-
És um convencido. Essa é que é essa. – Vanda esqueceu-se
por umas horas da noite de Natal que se avizinhava e entregou-se à conversa
fácil e banal de Vasco. Sentiu-lhe uma vibração diferente, como se a sua
alegria não fosse tão natural como nos outros dias. Por entre os
sorrisos malandros e os olhares marotos, ela jurava que lhe trespassava uma
preocupação qualquer.
-
Passa-se alguma coisa Vasco? – Vanda comia
o borrego feito no forno com batatinha, enquanto Vasco brincava com a
comida sem muita vontade, contradizendo o Vasco de apetite permanente que
ingere qualquer coisa comestível ou duvidosa.
-
É o Matias! – Vasco deixou cair finalmente o garfo dentro do prato.
-
O que tem o Matias? Fez alguma das suas mausuras? – Vanda sorriu-lhe
tentando minimizar a preocupação dele. – Os miúdos estão sempre a meter-se
em sarilhos. É essa a função deles. E os adultos devem repreendê-los de forma a
que aprendam a evitar aqueles sarilhos novamente. Depois os garotos inventam
novos sarilhos, porque já aprenderam a evitar os antigos sarilhos e
lá vêm novamente os adultos com a sua sensatez… É assim mesmo… Um ciclo vicioso
até as crianças se tornarem adultas e pensarem que já sabem tudo.
Vasco
sorriu-lhe mas os olhos continuaram preocupados.
-
Ele anda novamente muito cansado. Parece que o fantasma da leucemia está novamente
a pairar no ar. A Vera foi hoje com ele ao médico e as análises estão
alteradas. Vão para Lisboa no dia de Natal. – Vasco deixou que os sentimentos
lhe rasassem os olhos de um par de lágrimas que não evitou. Vanda sentiu que o seu coração parava.
-
A Vera já me tinha dito que ele tinha tido leucemia, mas pensei que já
estivesse curado…
-
E esteve… Mas nós sabíamos que existia sempre a hipótese de a doença
voltar. – Vasco afastou finalmente o prato e esticou os cotovelos em cima da
mesa, posando a cabeça entre as suas mãos grandes. Vanda aproximou-se dele a afagou-lhe o
cabelo demasiado comprido e ainda húmido da chuva como se aquele
gesto pudesse absorver aquele medo. – Já passamos por isto uma vez. Não quero
voltar a passar por tudo. O Matias é só um miúdo Existe tanta gente
má no mundo que merecia ser castigado e andam por aí a gozar de
boa saúde – Vanda continuava
a acariciar-lhe o cabelo enquanto absorvia aquelas palavras. – Isto é tão
injusto. Olho para o Marco e para a Vera e vejo um casal que luta todos os dias
para aguentar aquela casa saudável, para manter os filhos longe dos problemas,
para manter um casamento precipitado… Eles lutaram sempre… Mereciam ter agora
algum conforto, algum descanso de tanta luta.
-
A Vera disse-me que tu tens sido muito importante na vida deles.
-
São a minha família. Eu sou o que faço menos pela família… O Marco casou-se. Já
deu três netos aos meus pais. E luta para manter a sua família no
caminho certo… Luta todos os dias… Isto é que devia ser apreciado nesta história
e não uma ajuda que é dada de vez em quando. O Marco e a Vera dão de si todos
os dias por aqueles miúdos e este é que é o acto heróico. –
Vasco levantou finalmente a cabeça.
-
As pessoas concentram-se demasiado em gestos grandiosos, quando são os gestos
corriqueiros que sustentam o mundo.
-
É exactamente isso que eu estava a tentar dizer… Mas tu conseguiste colocar
mais inteligência no argumento. – Vasco sorriu-lhe
finalmente, mas já nenhum dos dois sentia alegria. – A Vera num dos seus
ataques de nervos que um casamento e três filhos lhe provocam, teve uma vez uma
resposta linda. Estávamos numa noite quente de Agosto no Festival dos Moinhos à
espera que começasse o concerto dos Quinta do Bill com mais alguns amigos,
quando vimos um novo casal. Para além da novidade ficámos espantados porque a
mulher era casada e tinha uma filha e nenhum de nós sabia que ela se tinha
separado. Então chegou a Sílvia com as novidades já todas sabidas e
emocionada com a história deles. Contou-nos que ele era da ilha das Flores e
que tinha deixado a mulher. Disse que era um amor que já durava desde os tempos
de adolescentes e que agora tinham decidido recomeçá-lo. Lembro-me que
a Sílvia usou estas palavras “É uma história de amor tão bonita.
Namoraram na adolescência. Casaram com outras pessoas e
cada um teve um filho… Até foram ao casamento um do outro. E agora estão juntos
novamente. É lindo. ” A Vera ficou vermelha de irritação e explodiu
mais alto do que devia: “
Lindo é ter um casamento de quase quinze anos e lutar por ele todos os dias,
enfrentando as más disposições, os ciclos menstruais, as depilações por fazer,
os arrotos e peidos na
cama… E mesmo assim continuarem lado a lado a apoiarem-se e a respeitarem-se
para o resto das suas vidas… Isto é que é lindo! Mas este mundo anda ao
contrário e acha que uma verdadeira história de amor é aquela em que eu vou
para a cama contigo , mas caso com outro de quem tenho filhos e depois volto
para o meu primeiro amor… Deixem que eles comecem a ver as misérias um do outro
e vamos ver a beleza que isso é…” Como
é evidente todos aplaudiram… não sei bem se foi pelas palavras dela ou se pelo
o álcool que já corria nas veias...
Ambos
riram. Vanda gostava
daquela família Uma família unida que ela
provavelmente destruiria e sentia-se culpada por isso.
-
Amanhã é noite de Natal! – Vasco tocou naquele assunto e o sorriso abandonou instantaneamente o rosto de Vanda.
-
Pois é…
-
Eu vim aqui porque queria muito que passasses a noite lá em casa.
Vasco
iluminou-se com a surpresa visível na expressão de Vanda.
-
Mas tu vais passar a consoada com a tua família…
-
Deixa-me corrigir-te. Eu vou passar a consoada com as pessoas que amo…
Vanda sentiu que o seu peito se enchia de algo que não conseguia explicar.
Era uma explosão de alegria que a fazia querer chorar e rir ao mesmo tempo. O
nervosismo turvava-lhe a vista e os pensamentos. Vasco estava a dizer-lhe de
uma forma muito subtil que a amava… Foi isso que aconteceu, não foi?
-
E é claro que a minha família também faz questão que lá estejas…
Vanda atirou-se para os braços de Vasco e beijou-o com uma
intensidade que o queimava. Levantaram-se da mesa de uma forma desajeitada sem
se largarem. Vanda fez
deslizar a sua mão sobre a mesa fazendo cair um copo no chão, partindo-se em
mil pedaços… Mas nenhum dos dois lhe deu importância. As mãos de Vasco
procuraram a pele de Vanda por
debaixo da camisola de lã, enquanto os dedos de Vanda se emaranhavam no cabelo rebelde de
Vasco. Chegaram ao quarto aos tropeções, e Vasco afastou-se um pouco. Fez os
seus dedos subirem em contacto com a pele dela pela barriga elevando-se pelo
seu corpo enquanto a libertava da camisola. Olhou-a com desejo e satisfação e
aquele olhar queimava-a. Vasco percorreu o seu pescoço com os lábios húmidos e
foi descendo libertando-a das calças largas, fazendo-a sentir-se possuída por
corrente eléctrica misericordiosa que
só se fazia sentir nos pontos certos. Os corpos tocaram-se e balouçaram-se numa
necessidade de se saciarem um do outro e um véu de humidade
cobriu-lhes a pele de satisfação. Por fim Vasco aconchegou Vanda na cova do seu braço.
-
Eu amo-te Vanda. – Ela sentiu verdade naquelas palavras
e a emoção de ser capaz de provocar amor em alguém foi demasiado para que ela
pudesse responder.
A
véspera de Natal clareou numa promessa intensa. O dia estava claro e deixava o
frio visível numa geada frágil que cobria as ervas
resistentes da calçada. Vanda entrou
na carrinha de Vasco com a felicidade de quem não passaria a noite de Natal
sozinha. Tinham decidido que iriam para casa dos pais de Vasco de manhã de
forma a ajudarem nos preparativos para a ceia, e Vanda sentia-se nervosa. Levava os sacos com
as prendas. Tinha comprado prendas para toda a família de Vasco num
impulso que achara exagerado na altura, mas agora congratulava-se por tê-lo
feito.
-
Achas que os teus pais vão gostar de mim?
Vasco
soltou uma gargalhada alta.
-
Oh querida, se eles não gostassem tu já o saberias. Acredita em mim… Enquanto a
dona Emília continuar a mandar-te ovos, linguiça e batatas, é porque
gostam de ti…
-
Ela é que me manda essas coisas? – Vanda parecia
verdadeiramente surpreendida.
-
Claro! Quem é que tu achavas que te mandava isso?
-
Pensei que fosses tu a comprar… Já que comes lá em casa… E não comes pouco… - Vanda sentia-se dormente no raciocínio
– Mas pensei que fossem compras que, na qualidade de cavalheiro tivesses a
gentileza de trazer.
- Nop!
Sempre que levo qualquer coisa, são miminhos da sogrinha!
– E lá estava o seu Vasco com o seu sorriso malandro, exactamente como ela
gostava.
A
casa tinha um barulho de fundo familiar de vozes que se confundiam em sussurros e gargalhadas que se
corporizaram numa imagem de intimidade simples partilhada por
uma família especial numa cozinha gigante que aqueceu o coração de Vanda.
-
Oh querida! Entra… - A dona Emília recebeu-a com os braços
literalmente abertos, e Vanda sentiu
um conforto antigo naquele abraço quente. – Não ligues à confusão… A Vera tem
uma nova receita e está a torturar a minha cozinha…
-
Quando provarem o meu novo doce, vão abençoar esta balbúrdia – Vera
limpou as mãos na beira do avental e depositou um beijo na bochecha de Vasco e
outro na bochecha de Vanda.
-
O que é que estás a preparar Vera? - Vanda mostrou-se
interessada naquele processo.
-
Floresta Negra… - Vanda sentiu
o calor do passado ainda mais próximo. Ela costumava fazer aquele bolo com a mãe
que colocava Vanda em
cima de uma cadeira e deixava-a raspar o chocolate negro fingindo não ver que
ela comia grandes bocados de chocolate, mesmo quando lhe limpava a boca de um
castanho intenso. “ Uma tablete inteira só deu estas raspas?” Vanda fechou os olhos e sentiu a voz da mãe
perto do seu ouvido. Cheirava à sua antiga cozinha e a mãe sorria-lhe quando
ela encolhia os ombros inocentemente engolindo à pressa o último quadrado do
chocolate.
-
Eu costumava fazer esse bolo com a minha mãe.
A
dona Emília sentiu a saudade tremida naquela voz sumida.
-
E agora vais fazê-lo connosco Foi Deus que te enviou para as nossas
vidas. Pode ser que consigas salvar a minha cozinha. –
Os miúdos entraram na cozinha aos pulos e todos a gritarem ao mesmo
tempo. Vanda olhou
para Matias com o rosto pálido e os olhos encovados e sentiu-se encolher.
Beijou os irmão dele fazendo-os corar e depois, adivinhando que Matias não
conseguia corresponder às brincadeiras, convidou-os a
ajudarem-na na cozinha.
-
Quem quer ajudar a fazer um bolo? – Os irmão mais velhos esquivaram-se
praguejando “Isso é coisa para as mulheres…”, mas Matias deixou-se ficar
na cozinha. Vanda sentou-o confortavelmente numa
cadeira e deu-lhe o chocolate negro com uma taça e um raspador, encarregando-o
daquela tarefa. Matias meteu um quadrado de chocolate na boca, provocando uma
gargalhada em Vanda que
lhe piscou um olho cúmplice. Todos ficaram radiantes com os doces que Vanda fez. Ela sempre tivera jeito para
doces. Quando era criança, passava horas com a mãe na cozinha fazendo bolos por
encomenda, de forma a ganharem mais uns dinheiros. “As receitas dos livros dizem para
usar óleo de forma a que o bolo fique mais fofo, mas perde o sabor. Deves usar
sempre manteiga e o segredo está em separar os ovos. Junta-se primeiro as gemas
e só no fim é que juntamos as claras batidas. O bolo fica mais consistente.” Vanda recordou o cheiro quente de bolo e
creme de manteiga. “ Tão
pequenina e já tens tanto jeito… Vais ser a melhor pasteleira de Paris!” E Vanda quis
ser pasteleira. Era a profissão desejada para
quando fosse crescida… e esquecera-se disso. Como podia ter-se esquecido dos
seus sonhos de infância? Como pode a vida turvar-nos os desejos mais inocentes
e sinceros. De repente sentiu vontade de estar novamente naquela pequena
cozinha no pequeno apartamento da porteira de um lindo edifício de
paris, sonhando pequenos sonhos e desejando coisas simples, porque é na simplicidade que encontramos a verdade… e ela só
queria ser pasteleira.
A
sala de estar estava decorada com um grande pinheiro cheiro de enfeites e
postais. Vanda reparou
que estavam todos os postais de Natal feitos pelos miúdos desde que
entraram para a primária. Os resto da sala estava cheia de enfeites que não
condiziam uns com os outros e não obedeciam a nenhum padrão. Adivinhava-se que
aquilo era obra dos três rapazes. Aquela desorganização não chocou Vanda,
pelo contrário, Aqueceu-lhe a alma.
Ela
estava sentada confortavelmente no sofá e espreitava Vasco pelo canto
do olhos encostado à janela conversando com o irmão com um ar demasiado sério.
Matias tinha adormecido encostado a ela. Tinha um ar calmo e ela sentiu uma
pontada de amor por aquele menino, que respirava calmamente um sono profundo.
-
Ele agora dorme muito! – a Dona Emília sentou-se no braço do sofá
pousando uma mão no ombro de Vanda.
-
Vai correr tudo bem… - Vanda não
era capaz de encontrar melhores palavras.
-
Hoje quero que seja tudo perfeito. Quero que o meu neto leve amanhã no coração
todo o amor que temos por ele. E quando ele estiver novamente nos tratamentos,
quero que ele se lembre desta noite e que deseje muito voltar para nós… - Vanda apertou a mão da Dona Emília e
trocaram um olhar sentido. – Agora vamos ao que interessa. Tenho aqui
um álbum de fotografias…
Vanda abriu o álbum e percorreu-o pormenorizadamente com a
Dona Emília A infância de Vasco estava ali descrita. Riram,
recordaram, sorriram e partilharam o amor que as ligava àquele homem.
A
noite anunciou-se num prenuncio cheiroso. A alcatra perfumava
a casa num ambiente familiar. A mesa posta vibrava de agitação e todos se
regalaram com as lapas grelhadas,
os bifes de peixe porco e a alcatra. Os doces foram comidos e repetidos.
-
Não sabia que eras capaz de fazer estas iguarias. – Vasco trocava caricias
subtis frequentemente com Vanda.
-
Ainda não sabes tudo a meu respeito! – aquelas palavras de duplo sentido
soaram-lhe mais a uma advertência do que a uma provocação. Mas ninguém reparou
no seu tom, já que todos se riram.
Os
três irmão apressaram o jantar e imploraram para abrir os presentes.
Em atenção ao estado de saúde de Matias, os adultos foram condescendentes. Abriram as prendas numa
sofreguidão própria da ansiedade infantil. Os irmãos mais velhos não deixavam
Matias para trás, ajudando-o sempre que este precisava. Sempre que do pacote
saia roupa todos torciam o nariz. Mas alegraram-se com o MP3 e com os skates.
No fim, Vanda tirou
as prendas que tinha comprado e entregou a todos. Ofereceu uma moldura à
Dona Emília, um lenço a Vera, uma camisola a Marco, umas pantufas ao
futuro sogro, e por fim entregou as prendas dos meninos. Quando abriram
emitiram gritos de alegria e de incredulidade.
-
Olha mãe! Uma consola… - O sorriso de Matias iluminou-se.
-
Oh Vanda! Mas isto é demais… -
Vera não sabia o que dizer. Sentia-se constrangida. Aquela mulher que mal
conhecia oferecera uma consola, das mais caras, a cada um dos seus filhos.
-
Não é nada… Se não fossem vocês, estaria a passar esta noite sozinha! – Mas ela
estava com eles, num ambiente familiar que a resgatara de uma procissão de
consoadas solitárias. Vera baixou o olhar. Não tinha oferecido as consolas aos
filhos porque os tinha castigado pelas notas baixas, mas a verdade é que ao
olhar para Matias fraco e sem grandes alegrias teve vontade de esquecer o
castigo. Agora não tinha coragem de os privar daquela brincadeira.
-
Obrigada Vanda! – Vera abriu-lhe os braços num aperto
estreito que estremeceu com o intimo de Vanda e
a sensação de segurança e de que tinha chegado à meta da sua maratona descansou
no seu espírito.
-
Agora é a tua vez de receberes as prendas! - Vanda admirou-se
e olhou para a sogra que lhe esticou um envelope. Vanda abriu o envelope curiosa e retirou um
cartão onde só constava a palavras "Queres". Vanda olhou para a dona Emília e
para o marido com a confusão transparente no olhar e antes que pudesse
questionar, Vera esticou-lhe outro envelope. Vanda aceitou-o
com a curiosidade estimulada no seu ponto máximo. Um novo cartão com
uma nova palavra "casar". Vanda abriu os olhos num misto de
incredulidade e antecipação. Olhou para Vasco à procura de um esclarecimento e
Vasco baixou um joelho à sua frente esticando-lhe uma caixa simples de veludo
azul. Vanda sentiu
o seu coração disparar. Pegou na caixa com cautela como se a fosse queimar e
finalmente abriu-a. Os seus olhos rasaram de lágrimas quando viu na tampa da
caixa a última palavra, "comigo".
A sua visão turvou-se por força das lágrimas, e o
seu espírito inquietou-se. Olhou à sua volta para
aquela família que ela desejava tanto e que começava a amar e
sentiu-se miserável. Não podia aceitar... Não podia fazer parte daquela
harmonia, quando se preparava para destruí-los. Abanou a cabeça em negação,
entregou a caixa a Vasco e saiu daquela casa a correr deixando no ar
apenas a negação.
-
Eu queria tanto aceitar... Mas não posso!