domingo, 17 de março de 2013

Capitulo XX - Nas Asas do Corvo


 Capitulo XX

O corpo permanecia numa dormência ansiosa premeditando uma dor que agonizava a mente, mas não se corporizava como Vanda esperava. A punção dos ossos da bacia foi adormecida por uma anestesia bem vinda. Vanda tinha dificuldade em sentir as extremidades do corpo e sentia a língua seca. Queria água mas a sua voz estava estrangulada.
- Olá Vanda! – Vasco entrou no quarto do hospital com um ramo de anturios que arrancou um sorriso fácil dos lábios de Vanda. – Sentes-te bem?
- Um pouco dormente e com muita sede.
Vasco foi buscar um copo com água e sentou-se na beira da cama encaixando a sua cabeça no antebraço e dando-lhe goles de água com um cuidado desnecessário que Vanda não recusou.
- O Matias vai ficar bem? – Vanda ansiava uma resposta positiva. Sentia-se agora com uma proximidade intima daquele menino, como se ambos partilhassem um elo forte e inquebrável.
- Está a correr tudo muito bem… Mas ainda é cedo para sabermos. – A tensão de Vasco era quase palpável e Vanda conchegou-o no seu colo tentando aliviá-lo da preocupação e finalmente ele chorou. Um choro reconfortante de quem aguentou o seu mundo e o dos outros com a firmeza dos heróis e que num colo quente e amado chora uma fraqueza humana.
Matias recuperou as cores e as forças voltando a sorrir um sorriso descarnado mas triunfante prometedor de muitas corridas no jardim traseiro da casa da D. Emília e de novas travessuras na companhia dos irmãos. Vanda abraçou-o e sentiu que o seu coração reagia a esta contacto com um estimulo diferente como se ela o pudesse defender de todos os males e perigos. Um instinto protector entranhou-se na sua pele e quando os seus olhos focaram aquele rosto magro e pálido ela soube que havia alguma coisa que os ligava. Algo que transcende o entendimento que dissipa as dúvidas e que dá sentido à vida. Um elo inquebrável capaz de uma força para além do alcançável. Vanda sentiu emoções sem encontrar palavras que as dignificassem. Então fechou os olhos e apenas sentiu, porque existem momentos que só podem ser sentidos.
Os corredores do hospital transpiravam as dores dos que ali habitavam e as tremuras dos medos que se tinham alojado permanentemente naquelas paredes. O arrepio que provoca a candura daquelas paredes imaculadamente brancas percorridas por batas igualmente alvas como se fossem anjos a trabalharem nervosamente contra os tormentos de corpos escuros e efémeros só era acalmado pela presença de Vasco. Ele acompanhava Vanda no mesmo ritmo de passo e com um braço protector a cobrir-lhe os ombros e os receios.
- Ele vai ficar bom! Eu sei que vai! – Vasco sorriu por completo como Vanda já não via há algum tempo.
- Eu sinto que ele  já está muito melhor! Daqui a nada vai voltar para casa e correr aquelas ruas com os irmão e nós vamos ralhar-lhe pelas diabruras próprias de um criança saudável.
- Vanda! – Vasco parou em frente ao carro fazendo Vanda virar-se para ele. Envolveu-lhe a cintura com os seus longos braços e puxou-a mais para si sem vergonha dos outros transeuntes que por ali passeavam apressados. – Obrigado Vanda! Por tudo o que fizeste pelo meu sobrinho… Salvaste a sanidade de uma família inteira.
Vanda sentiu-se invadida pela presença próxima de Vasco como sempre acontecia e os seus pensamentos começavam-lhe a parecer mais lentos.
- Não tens de me agradecer Vasco! Podes achar estranho isto que te vou dizer, mas de algum modo eu amo aquele menino…
- Hum! Acho que estou a ficar com ciumes!
Vanda riu alto, mas as palavras que ela sabia que Vasco queria ouvir dos seus lábios continuaram caladas. Apesar de Vanda senti-las. Vanda amava aquele homem como só uma mulher sabe amar, numa plenitude de sentimentos e emoções, numa fidelidade e lealdade de convicções. Ela amava-o e sentia-o em todos os poros do seu der, mas a sua língua parecia não querer reagir a este sentimento. Não era difícil dizer “eu amo-te”. Ela pensava-o permanente e insistentemente. O seu corpo senti-o profundamente. Os seus gestos ansiavam-no loucamente. Os seus olhos percorriam-no vorazmente. Os seus sentidos apuravam-se na sua presença como se ele fosse o seu pólo contrário. Mas a sua voz calava todo este turbilhão. Vanda olhou-o e depositou-lhe um beijo leve tentando evitar a desilusão da falta daquelas curtas palavras.
O silêncio dentro do carro era aterrador, mas Vanda não conseguia quebrá-lo. Foi Vasco que o fez daquela forma descontraída que o caracterizava.
- Estou ansioso que esta má fase termine. Nem imaginas como isto afectou a família.
- Eu sei que vocês são todos muito unidos. É isso que eu mais admiro na tua família. Todos sentem a dor de um e partilham-na de uma forma tão bonita. É como se o peso dessa dor fosse transportado por todos aliviando-o.
- Somos realmente  muito unidos. A minha mãe nem deixaria que fosse de outra forma. – Vasco sorriu ao lembrar-se da mãe. – Sabes que quando fizemos os teste de compatibilidade, um médico chegou a duvidar que o Matias fosse filho do meu irmão e da Vera? Só me apeteceu bater-lhe… Aquele médico idiota que para além da situação difícil ainda queria colocar mais uma farpa. A Vera ficou desorientada. Sabes como ela é…
Vanda emitiu um som afirmativo tendo retido apenas a informação que Matias não era filho deles. As suas mão transpiravam e o coração galopava dentro do peito numa certeza festiva como se lhe tivesse a atirar à cara “ eu bem te disse”.
- Ela gritou tanto com o médico que ele acabou por confirmar que era apenas uma suspeita que só poderia ser desfeita com um teste de DNA. – Vanda forçou um sorriso como se tivesse a partilhar o mesmo interesse naquele episódio. – Agora só me apetece rir. A Vera meteu-o no sitio. Gritou-lhe que o que ele queria era que ela gastasse mais dinheiro em exames caros. Berrou-lhe todas as dores do parto que sofreu para ter aquele garoto. Até chegou a agarrar-lhe o colarinho da bata. O pobre médico pediu desculpa e saiu dali com o rabinho entre as pernas. – Vasco riu alto e Vanda fez um esforço para também emitir um gargalhada.
Na saída do carro as pernas falharam-lhe e Vasco atribui ao facto de ela ainda se sentir fraca. Apoiou-a em si e levou-a até ao apartamento deitando-a carinhosamente na cama.
- Estás a sentir-te bem?
- Sim! Só estou um pouco cansada… Acho que vou dormir um pouco. – Vanda aconchegou-se na manta que jazia em cima da cama para dar firmeza ao seu cansaço.
- Claro! – Vasco passou-lhe os dedos longos e grossos pela face beijou-lhe a testa com uma ternura que tocou o mais intimo de Vanda. – Eu amo-te Vanda! – e saiu.
Vanda enroscou-se como um bebé na almofada e chorou baixinho. Ela tinha de agir da forma mais correcta. Ser mãe é mais do que ser outra coisa qualquer. É superior ao desejo, é mais do que amor. Está acima dos sonhos. Ser mãe é apenas sentir intensamente o filho e sabê-lo tão sabiamente que só uma mãe é capaz milagres na vida do seu rebento. Ela sentia-o… Ela sabia… Mas tinha de agir da forma mais correta. Tudo o resto na sua vida deixaria de fazer sentido se ela provocasse uma única fagulha de dor no seu menino. Amanhã ela pensaria melhor… amanhã.
O cheiro a torradas inundou a casa e preencheu os desejos básicos de Vanda. A mesa arranjada com uns malmequeres no centro tocaram-lhe a consciência e o seu grilo falante martelava a bengala dentro da sua cabeça alertando-a para traição que ela preparava.
- Que cheirinho bom! – Vanda sentou-se à mesa.
- Tudo para a minha doentinha preferida! – Vasco brindou-a com aquele sorriso brilhante encaixado numa cara larga e masculina que se afirmava numa barba por fazer e numa poder macho que a atraía sempre. O tronco nu não dava descanso aos olhos de Vanda que não se cansavam de admirar aqueles ombros largos, a cintura estreita e a barriga definida como se fosse uma tablete de chocolate preparada para uma trinca.
- Não estou doente! E é melhor não me mimares tanto…
- Vou mimar-te sempre… E tu vais ter de me aturar, porque não vais escapar-me das mãos novamente. – Vasco sentou-se na mesa e ela desejou que aquelas palavras fossem verdade. Desejou que ele não a odiasse.
- Seria capaz de me odiar Vasco? – a respiração sustida de Vanda alertou Vasco. Aquela pergunta não era inocente nem tão tola como parecia. Vasco pensou e respondeu com a certeza que ela merecia. Respondeu consciente de que no futuro teria de ser coerente com a resposta que desse naquele momento, porque Vanda era uma mulher especial, com fragilidades provocadas por uma vida difícil.
- Eu seria incapaz de te odiar… Por mais horrível que possas ser, e por vezes assustadora. A verdade é que odiar-te seria o mesmo que odiar uma parte de mim.
Vanda lançou-se para o seu colo e beijou-o calorosamente.
- Sabes o que sinto por ti, não sabes Vasco?
- Sei Vanda! Apesar de nunca me dizeres… - Vanda enterrou o seu nariz na cova do pescoço de Vasco .
A cozinha estava finalmente completamente limpa, e Vanda olhou-se ao espelho à procura de alguma imperfeição na sua roupa. Sorriu satisfeita.
- Vais já para o hospital? – Vanda calçava as botas equilibrando-se no tapete da entrada.
- Não! Quero ir à baixa comprar umas prendas para os meus sobrinhos. Se chego lá amanhã de mãos a abanar, dão-me cabo do juízo. – Vasco vestia o blusão de couro que lhe dava um ar rebelde e ainda mais apetecível. – Vens comigo, certo?
- Errado! Quero também fazer umas compras, mas prefiro ir a um centro comercial gigante. – Ambos riram.
- Posso ir contigo! Faço lá as compras. – Vasco pegou-lhe na mão enquanto desciam as escadas juntos.
- Eu adoraria ter a tua companhia, aborrecido com  o entra e sai de lojas que nunca mais acabam, quando tu só querias comprar dois pequenos presentes. E depois vou ter de enfrentar o teu olhar fulminante quando sairmos da loja numero quinhentos apenas com três saquinhos na mão. – Vanda sorriu-lhe condescendente. – Acho melhor fazeres as tuas compras na baixa, ao ar livre.
- Que mulher compreensiva que eu arranjei… - Ambos riram alto e despediram-se com a promessa de se encontrarem para o almoço.
Vanda sentia o coração palpitar quando entrou no hospital. Sabia que não era hora da visita, mas como tinha esperança que a deixassem visitar Matias. Tudo o que ela precisava estava dentro da sua mala.
- Ei! Ei! Não pode ir por aí! – Uma voz interrompeu-lhe a caminhada e Vanda inspirou fundo. Teria de ser convincente.
- Eu só vim ver o meu sobrinho!
- Mas ainda não é hora da visita. – A mulher de ancas generosas e rosto redondo demasiado afogueado sorriu-lhe gentilmente e Vanda sentiu-se encorajada.
- Eu sei! Mas tinha esperança de poder vê-lo antes de voltar para os Açores.
- Ah! É tia do menino Matias? – Vanda sabia que a referência aos Açores havia de despertar a solidariedade daquela mulher.
- Sou sim! O Matias queria muito que eu levasse uma carta que ele escreveu para os irmãos. – Vanda deixou descair a cabeça para o lado direito. Lera em qualquer lado, talvez num policial, que este gesto despertava piedade no outro sujeito.
- Bem! Não se pode demorar… - A mulher piscou-lhe um olho cúmplice feliz por poder ajudar .
Vanda entrou no quarto e Matias estava sentado a jogar PSP. Ela sentiu um orgulho crescente ao ver que ele usava naquela hora difícil o seu presente de Natal.
- Olá Matias!
- Olá professora!
Vanda sentou-se na beira da cama dele olhando-o profundamente. Num gesto instintivo abraçou-o e beijou-lhe o topo da cabeça.
- A tua mãe?
- Foi buscar um café.
- O médico pediu-me que te trouxesse isto. – Vanda tirou o kit que tinha guardado na sua mala, e entregou um cotonete longo ao Matias. – Tens de esfregar o interior da boca com este cotonete. Habituado a exames e rotinas estranhas, Matias obedeceu. Vanda guardou aquele cotonete com um cuidado extremo e despediu-se daquele menino com o coração dorido e ao mesmo tempo cheio de esperança.
O sol reclamava um pedaço daquele inverno longo e permitia que Vanda e Vasco desfrutassem de um almoço calmo junto ao rio.
- Vou adiar a minha viagem por uns dias, Vasco!
Vasco olhou-a com um olhar de duvida que Vanda fingiu não perceber.
- Porquê? – A pergunta saiu-lhe mais rispida do que realmente queria.
- Tenho andado a fugir do meu passado demasiado tempo e agora quero enfrentá-lo. Quero ir passar uns dias a Ourém. Quero visitar a campa dos meus pais e da minha avó. – Vanda sentiu a sua garganta apertar-se, e Vasco pareceu desorientar-se por uns segundos. Contornou a mesa e abraçou-a.
- Está bem Vanda! Eu fico contigo… Tenho de ligar ao Joe para ele continuar a cuidar das minhas coisas. – Vanda retirou o telemóvel da mão de Vasco num impulso.
- Não vais ligar a ninguém. Não quero que vás comigo…
Vasco afastou-se e voltou a sentar-se no seu lugar. As palavras assentaram-lhe como um soco no estômago.
- Pensei que estivessemos novamente juntos Vanda! – Vasco olhou-a com um olhar magoado e duro que Vanda não conseguiu enfrentar. – Eu não estou disponível para ocupar apenas uma parte da tua vida… Tu tens-me por inteiro… Ou eu ocupo toda a plenitude do teu ser ou então eu não sirvo para ti. Eu não sou nenhum tapa buracos sentimental Vanda…
O maxilar de Vasco contraiu-se e os olhos cerraram-se. A expectativa de uma resposta de Vanda estampou-se nas feições.
- Então se queres fazer parte de mim. Se queres ocupar cem por cento do meu ser, vê lá se aguentas com todos os factos…
Vasco arregalou os olhos surpreendido com aquelas palavras que lhe soaram a acusação.
- E eu aceito todos os factos da tua vida. E mais ainda… sofro contigo por alguns desses factos terem existido… Não percebo o que é que estás para aí a dizer…
Vanda sentiu um vulcão a formar-se dentro dela.
- Eu sou mãe do Matias! Aceitas esse facto? Aguentas com esta informação? Queres ser meu companheiro por completo, como o Marco é da Vera? Então diz-me que ficas do meu lado nesta história toda… Eu sou a mãe biológica do Matias. Ele é fruto das violações de que fui vitima. Corri metade deste país à procura dele e agora encontrei-o… - Vanda não conseguiu reter mais as lágrimas. As suas palavras saiam soluçadas e os seus lábios distorceram-se numa angústia velha. – Eu amo aquele menino que me foi roubado. Eu é que sou a mãe dele Vasco. Ainda estás comigo Vasco?
A hesitação chocada de Vasco fizeram-na antecipar a resposta. Vanda levantou-se da mesa e desapareceu da vista de Vasco sem que ele fosse capaz de uma reacção. 

sábado, 9 de março de 2013

Capitulo XIX - Nas Asas do Corvo


Capitulo XIX



A aterragem no aeroporto de Lisboa foi fria, com ausência de qualquer calor humano. Vanda sentiu falta dos aplausos que a surpreenderam no pequeno aeródromo daquele ilhéu que acabava de deixar. Os passageiros saíram numa fila ordenada do avião sem uma troca de olhares ou um cumprimento casual. Veio-lhe à memória um verso de Camões “um andar solitário entre a gente”. Era exactamente assim que ela se sentia. Os seus olhos  engoliram a imagem de centenas de corpos a movimentarem-se sem se darem conta uns dos outros, numa pressa virtual que prendia qualquer hipótese de relacionamentos entre aquela pequena multidão. O tapete onde deveria recolher a sua bagagem era o dezoito. Vanda soube que não valia a pena perguntar a ninguém, então procurou a ordem lógica dos tapetes até encontrar o que lhe interessava. O tapete fazia rolar bagagem com etiquetas em espanhol, o que lhe indicava que a bagagem do seu voo ainda não estava a circular. A mente entorpecida de Vanda foi desperta pelo toque do telemóvel. Ela olhou um pouco incrédula para o visor espantada por alguém estar a ligar-lhe. Era a D. Emília.
- Sim!

- Olá Vanda! Só queria saber se chegaste bem. – Esta preocupação gratuita emocionou Vanda que se esqueceu da solidão que estava a sentir no meio daquela gente miudinha que se movimentava numa correria impessoal pelos corredores do aeroporto.

- Sim. A viagem foi boa e estou agora à espera da bagagem. – Vanda fechou os olhos. Não lhe apetecia desligar já. – Vou apanhar um táxi directamente para a residencial e depois vou logo para o hospital. – Vanda  continuou a falar procurando alongar aquela sensação de companheirismo que estava a sentir e que a confortava. – Quer que lhe telefone quando estiver no hospital?
Vanda susteve a respiração na esperança de uma resposta positiva.
- Oh querida! Não precisas de fazê-lo. – Vanda libertou o ar desiludida. – O Vasco está aí fora à tua espera.

- Oh! – a admiração de Vanda traduziu-se num nervosismo miudinho que ela não conseguia explicar. – Não era preciso.

- Claro que era! Achas que te deixaríamos aí sozinha? – A D. Emília sussurrou algo que ela não percebeu. – A Irene manda-te beijinhos.
- Para ela também.

- Agasalha-te bem aí que nessa terra faz um frio dos diabos. Depois voltamos a falar. Um beijo grande e juízo, filha.

Vanda murmurou uma despedida e guardou aquele carinho num sorriso palerma que lhe aflorou os lábios. Ela tinha-a chamado filha.

A sua mala finalmente rolou no tapete e Vanda pegou-lhe com algum esforço pousando-a direita no chão. Congratulou-se por levar desta vez uma mala com rodinhas e um pouco mais segura de si encaminhou-se para a saída de passageiros. A entrada do aeroporto estava repleta de gente que esticava a cabeça numa esperança apressada de reencontrar uma cara conhecida. Quem não sofria da ânsia do reencontro transportava uma cartaz com nomes e esperavam que alguém os contactasse. Vanda sentiu um embate no peito quando os seus olhos encontraram os de Vasco. Ele estava visivelmente mais magro e o cabelo tinha levado um bom corte mantendo um desalinho que continuava e ser-lhe característico. Vanda desceu a rampa sentindo que as pernas falhavam, mas fazendo o possível para manter a dignidade. Parou em frente a Vasco e a proximidade estremeceu-lhe o corpo num reconhecimento intimo.
- Olá Vanda. – Vasco estacou uns segundos antes de cumprimentá-la. O embaraço tornou-se visível na imprecisão dos movimentos. Levantou um braço que dirigiu à figura de Vanda deixando-o cair antes de lhe tocar, provocando a desilusão típica que postecipa uma ansiedade frustrada.
- Olá Vasco.

O caminho para o parque de estacionamento foi feito num silêncio desconfortável, assim como o caminho até ao apartamento onde Vasco estava instalado.

- Espero que não te importes de ficar aqui. – Vasco parou na entrada como se tivesse perdido as certezas. – Se for desconfortável para ti levo-te a um hotel.
- E porque seria desconfortável? – Vanda olhava-o agora de frente sem vergonha encarando-lhe o olhar que era mais quente do que ele desejava.

- É o apartamento de uma amigo meu… ele está fora e deixou-me ficar aqui… e talvez tu não queiras… - Vasco parecia não conseguir coordenar as ideias. – Eu estou aqui hospedado, e tu podes não querer partilhar o apartamento comigo. – As palavras foram disparadas num só fôlego e com um tom de rancor que não escapou a Vanda.
- Eu quero ficar aqui. Podes mostrar-me o meu quarto? – Vasco seguiu o corredor largo de paredes brancas e despidas e entrou na última porta à direita. Vanda seguiu-o entrando no quarto impessoal que tinha uma cama de casal em cerejeira coberta por uma colcha azul escura e uns cortinados de linho com uns bordados que Vanda não apreciou. Aquele apartamento era de uma homem solteiro de certeza.

- Bem… - O incómodo de Vasco era visível. Vanda dirigiu-lhe um sorriso que o fez estremecer. Ela percebeu a adrenalina que se movimentava em desatino pelo sangue de Vasco e decidiu não lhe facilitar a vida. Pousou a mala em cima da cama e tirou o casaco de costas para Vasco sentindo os seus olhos presos nela. Depois soltou o cabelo deixando cair em cachos rebeldes sobre os ombros. A excitação pulsava invisível entre os dois e Vanda sorriu mantendo-se de costas para Vasco dobrando-se mais do que o necessário para a mala de viagem empinando um rabo perfeito. O bater estridente da porta do quarto fez Vanda dar um pulo e o seu coração cavalgou de susto admiração e raiva por Vasco a ter deixado ali sozinha. Correu atrás de Vasco a espumar rancor mais chateada por se sentir rejeitada do que chateada por ele ter batido a porta.
- Não é preciso bateres assim a porta! – Vanda sentia as faces vermelhas como se uma convulsão de emoções estivessem a ferver-lhe nas bochechas em simultâneo.

- Não me provoques Vanda! – Vasco virou-se para ela e lançou-lhe um olhar perigoso.

- Não sei do que estás a falar. – Vanda aproximou-se dele empinando o peito mas menos corajosa. Passou os dedos pelos cabelos e Vasco resfolegou encurtando a distância entre ambos com dois passos bruscos. Agarrou-lhe os pulsos e prendeu-os atrás da cintura. Vanda sentiu-lhe o cheiro da loção de barba e encostou mais o seu corpo ao dele. A proximidade de ambos fazia-os partilhar o mesmo ar e trocarem hálito ansiosos emanados por uma respiração pesada. Vasco roçou os seus lábios nos dela e afastou novamente a cara só para poder ler-lhe a expressão do rosto. Sorriu quando ela gemeu baixinho e sentiu-se cheio de um orgulho macho quando lhe viu os olhos revirarem de puro prazer. Vasco encostou a sua face à dela e mordiscou-lhe o lóbulo da orelha provocando-lhe um estremecimento. Então sussurrou-lhe ao ouvido.
- É pena que não me queiras com tanta convicção. – E muito contrariado soltou-a virou costas e saiu. – Vou buscar almoço.

Vanda ainda sentia a respiração alterada e o seu pensamento começava a assimilar lentamente o que acabara de acontecer. Fora rejeitada. Diabos o levassem. Se ele queria guerra então teria guerra. Vanda olhou à sua volta e obrigou a sua mente a acalmar-se e viu o que até então lhe tinha escapado. Estava tudo extremamente limpo. Não havia uma única ruga na manta horrorosa que cobria o sofá. Vanda correu para a cozinha e reparou que as bancadas de inox tinha sido esfregadas com bravo deixando-as brilhantes como se fossem espelhos. Ele tinha tido esses cuidados por causa dela. Vanda deixou escapar uma gargalhada trémula e saltitou para o seu quarto. Aquele jogo tinha apenas começado e Vasco seria recebido em casa com uma surpresa.

Vasco abriu a porta decidido a ignorar Vanda de forma que ela sentisse apenas uma dizima parte daquilo que ele sentiu quando ela negou um futuro ao seu lado. O seu espírito sentia-se motivado a fazê-la sofrer um pouco e talvez ela lhe desse o devido valor e deixasse de brincar com ele. Ele estava completamente decidido até levantar os olhos das chaves que arrancava da porta e encontrar Vanda com um olhar quente e penetrante vestindo apenas uma tanga preta. Vasco devorou aquele corpo escultural que ele aprendera a amar e todas as suas convicções foram esquecidas. Os sacos foram atirados para um canto sem que nenhum dos dois se preocupasse com o seu conteúdo espalhado pelo chão. Os passos apressados de Vasco conduziram as suas mão carentes para umas costas quentes fazendo Vanda encaixar-se no corpo dele e o beijo selvagem nasceu de um desejo primitivo que aliado a um sentimento profundo transportou-os para um lugar maravilhoso situado entre a Terra e o Paraíso. Os sentidos procuraram-se e completaram-se. Os espíritos fundiram-se numa pressa carnal. As ânsias culminaram juntas num cansaço satisfatório. E as almas preencheram-se novamente.