Capitulo XX
O corpo permanecia numa
dormência ansiosa premeditando uma dor que agonizava a mente, mas não se
corporizava como Vanda esperava. A punção dos ossos da bacia foi
adormecida por uma anestesia bem vinda. Vanda tinha dificuldade em
sentir as extremidades do corpo e sentia a língua seca. Queria água
mas a sua voz estava estrangulada.
- Olá Vanda! –
Vasco entrou no quarto do hospital com um ramo de anturios que
arrancou um sorriso fácil dos lábios de Vanda. – Sentes-te bem?
- Um pouco dormente e
com muita sede.
Vasco foi buscar um copo
com água e sentou-se na beira da cama encaixando a sua cabeça no antebraço e
dando-lhe goles de água com um cuidado desnecessário que Vanda não
recusou.
- O Matias vai ficar
bem? – Vanda ansiava uma resposta positiva. Sentia-se agora com uma
proximidade intima daquele menino, como se ambos partilhassem um elo forte e
inquebrável.
- Está a correr tudo
muito bem… Mas ainda é cedo para sabermos. – A tensão de Vasco era quase
palpável e Vanda conchegou-o no seu colo tentando aliviá-lo da
preocupação e finalmente ele chorou. Um choro reconfortante de quem aguentou o
seu mundo e o dos outros com a firmeza dos heróis e que num colo
quente e amado chora uma fraqueza humana.
Matias recuperou as cores
e as forças voltando a sorrir um sorriso descarnado mas triunfante prometedor
de muitas corridas no jardim traseiro da casa da D. Emília e de novas
travessuras na companhia dos irmãos. Vanda abraçou-o e sentiu que o
seu coração reagia a esta contacto com um estimulo diferente como se ela o
pudesse defender de todos os males e perigos. Um instinto protector entranhou-se
na sua pele e quando os seus olhos focaram aquele rosto magro e pálido ela
soube que havia alguma coisa que os ligava. Algo que transcende o
entendimento que dissipa as dúvidas e que dá sentido à vida. Um elo inquebrável
capaz de uma força para além do alcançável. Vanda sentiu emoções
sem encontrar palavras que as dignificassem. Então fechou os olhos e
apenas sentiu, porque existem momentos que só podem ser sentidos.
Os corredores do
hospital transpiravam as dores dos que ali habitavam e as tremuras dos medos
que se tinham alojado permanentemente naquelas paredes. O arrepio que
provoca a candura daquelas paredes imaculadamente brancas percorridas por batas
igualmente alvas como se fossem anjos a trabalharem nervosamente contra
os tormentos de corpos escuros e efémeros só era acalmado pela
presença de Vasco. Ele acompanhava Vanda no mesmo ritmo de passo e
com um braço protector a cobrir-lhe os ombros e os receios.
- Ele vai ficar bom! Eu
sei que vai! – Vasco sorriu por completo como Vanda já não via há
algum tempo.
- Eu sinto que ele
já está muito melhor! Daqui a nada vai voltar para casa e correr aquelas ruas
com os irmão e nós vamos ralhar-lhe pelas diabruras próprias de um criança
saudável.
- Vanda! – Vasco
parou em frente ao carro fazendo Vanda virar-se para ele.
Envolveu-lhe a cintura com os seus longos braços e puxou-a mais para si sem
vergonha dos outros transeuntes que por ali passeavam apressados. –
Obrigado Vanda! Por tudo o que fizeste pelo meu sobrinho… Salvaste a
sanidade de uma família inteira.
Vanda sentiu-se
invadida pela presença próxima de Vasco como sempre acontecia e os
seus pensamentos começavam-lhe a parecer mais lentos.
- Não tens de me
agradecer Vasco! Podes achar estranho isto que te vou dizer, mas de algum modo
eu amo aquele menino…
- Hum! Acho que estou a
ficar com ciumes!
Vanda riu alto, mas
as palavras que ela sabia que Vasco queria ouvir dos seus lábios continuaram
caladas. Apesar de Vanda senti-las. Vanda amava aquele
homem como só uma mulher sabe amar, numa plenitude de sentimentos e emoções,
numa fidelidade e lealdade de convicções. Ela amava-o e sentia-o em todos os
poros do seu der, mas a sua língua parecia não querer reagir
a este sentimento. Não era difícil dizer “eu amo-te”. Ela pensava-o
permanente e insistentemente. O seu corpo senti-o profundamente. Os seus gestos
ansiavam-no loucamente. Os seus olhos percorriam-no vorazmente. Os seus
sentidos apuravam-se na sua presença como se ele fosse o seu pólo contrário.
Mas a sua voz calava todo este turbilhão. Vanda olhou-o e
depositou-lhe um beijo leve tentando evitar a desilusão da falta daquelas curtas
palavras.
O silêncio dentro do
carro era aterrador, mas Vanda não conseguia quebrá-lo. Foi Vasco que
o fez daquela forma descontraída que o caracterizava.
- Estou ansioso que esta
má fase termine. Nem imaginas como isto afectou a família.
- Eu sei que vocês são
todos muito unidos. É isso que eu mais admiro na tua família. Todos sentem a
dor de um e partilham-na de uma forma tão bonita. É como se o peso dessa dor
fosse transportado por todos aliviando-o.
- Somos realmente
muito unidos. A minha mãe nem deixaria que fosse de outra forma. – Vasco
sorriu ao lembrar-se da mãe. – Sabes que quando fizemos os teste de
compatibilidade, um médico chegou a duvidar que o Matias fosse filho do meu
irmão e da Vera? Só me apeteceu bater-lhe… Aquele médico idiota que para além
da situação difícil ainda queria colocar mais uma farpa. A Vera ficou
desorientada. Sabes como ela é…
Vanda emitiu um som
afirmativo tendo retido apenas a informação que Matias não era filho deles. As
suas mão transpiravam e o coração galopava dentro do peito numa certeza festiva
como se lhe tivesse a atirar à cara “ eu bem te disse”.
- Ela gritou tanto com o
médico que ele acabou por confirmar que era apenas uma suspeita que só poderia
ser desfeita com um teste de DNA. – Vanda forçou um sorriso como
se tivesse a partilhar o mesmo interesse naquele episódio. – Agora só me
apetece rir. A Vera meteu-o no sitio. Gritou-lhe que o que ele queria era que
ela gastasse mais dinheiro em exames caros. Berrou-lhe todas as dores do parto
que sofreu para ter aquele garoto. Até chegou a agarrar-lhe o colarinho da
bata. O pobre médico pediu desculpa e saiu dali com o rabinho entre
as pernas. – Vasco riu alto e Vanda fez um esforço para também emitir
um gargalhada.
Na saída do carro as
pernas falharam-lhe e Vasco atribui ao facto de ela ainda se sentir fraca.
Apoiou-a em si e levou-a até ao apartamento deitando-a carinhosamente na cama.
- Estás a sentir-te bem?
- Sim! Só estou um pouco
cansada… Acho que vou dormir um pouco. – Vanda aconchegou-se na manta
que jazia em cima da cama para dar firmeza ao seu cansaço.
- Claro! – Vasco
passou-lhe os dedos longos e grossos pela face beijou-lhe a testa com uma
ternura que tocou o mais intimo de Vanda. – Eu amo-te Vanda! –
e saiu.
Vanda enroscou-se
como um bebé na almofada e chorou baixinho. Ela tinha de agir da forma mais
correcta. Ser mãe é mais do que ser outra coisa qualquer. É superior ao desejo,
é mais do que amor. Está acima dos sonhos. Ser mãe é apenas sentir intensamente
o filho e sabê-lo tão sabiamente que só uma mãe é capaz milagres na vida
do seu rebento. Ela sentia-o… Ela sabia… Mas tinha de agir da forma mais
correta. Tudo o resto na sua vida deixaria de fazer sentido se ela provocasse
uma única fagulha de dor no seu menino. Amanhã ela pensaria melhor… amanhã.
O cheiro a torradas
inundou a casa e preencheu os desejos básicos de Vanda. A mesa arranjada
com uns malmequeres no centro tocaram-lhe a consciência e o seu grilo
falante martelava a bengala dentro da sua cabeça alertando-a para traição que
ela preparava.
- Que cheirinho bom! – Vanda sentou-se
à mesa.
- Tudo para a minha doentinha preferida!
– Vasco brindou-a com aquele sorriso brilhante encaixado numa cara larga e
masculina que se afirmava numa barba por fazer e numa poder macho que a atraía
sempre. O tronco nu não dava descanso aos olhos de Vanda que não se
cansavam de admirar aqueles ombros largos, a cintura estreita e a barriga
definida como se fosse uma tablete de chocolate preparada para uma
trinca.
- Não estou doente! E é
melhor não me mimares tanto…
- Vou mimar-te sempre… E
tu vais ter de me aturar, porque não vais escapar-me das mãos novamente. –
Vasco sentou-se na mesa e ela desejou que aquelas palavras fossem verdade.
Desejou que ele não a odiasse.
- Seria capaz de me
odiar Vasco? – a respiração sustida de Vanda alertou Vasco. Aquela
pergunta não era inocente nem tão tola como parecia. Vasco pensou e respondeu
com a certeza que ela merecia. Respondeu consciente de que no futuro
teria de ser coerente com a resposta que desse naquele momento, porque Vanda era
uma mulher especial, com fragilidades provocadas por uma vida difícil.
- Eu seria incapaz de te
odiar… Por mais horrível que possas ser, e por vezes assustadora. A
verdade é que odiar-te seria o mesmo que odiar uma parte de mim.
Vanda lançou-se
para o seu colo e beijou-o calorosamente.
- Sabes o que sinto por
ti, não sabes Vasco?
- Sei Vanda! Apesar
de nunca me dizeres… - Vanda enterrou o seu nariz na cova do pescoço
de Vasco .
A cozinha estava
finalmente completamente limpa, e Vanda olhou-se ao espelho à procura
de alguma imperfeição na sua roupa. Sorriu satisfeita.
- Vais já para o
hospital? – Vanda calçava as botas equilibrando-se no tapete da
entrada.
- Não! Quero ir à baixa
comprar umas prendas para os meus sobrinhos. Se chego lá amanhã de mãos a
abanar, dão-me cabo do juízo. – Vasco vestia o blusão de couro que lhe dava um
ar rebelde e ainda mais apetecível. – Vens comigo, certo?
- Errado! Quero também
fazer umas compras, mas prefiro ir a um centro comercial gigante. – Ambos
riram.
- Posso ir contigo! Faço
lá as compras. – Vasco pegou-lhe na mão enquanto desciam as escadas juntos.
- Eu adoraria ter a tua
companhia, aborrecido com o entra e sai de lojas que nunca mais acabam,
quando tu só querias comprar dois pequenos presentes. E depois vou ter de
enfrentar o teu olhar fulminante quando sairmos da loja numero quinhentos
apenas com três saquinhos na mão. – Vanda sorriu-lhe condescendente.
– Acho melhor fazeres as tuas compras na baixa, ao ar livre.
- Que mulher compreensiva que
eu arranjei… - Ambos riram alto e despediram-se com a promessa de se
encontrarem para o almoço.
Vanda sentia o
coração palpitar quando entrou no hospital. Sabia que não era hora da visita,
mas como tinha esperança que a deixassem visitar Matias. Tudo o que ela
precisava estava dentro da sua mala.
- Ei! Ei! Não
pode ir por aí! – Uma voz interrompeu-lhe a caminhada e Vanda inspirou
fundo. Teria de ser convincente.
- Eu só vim ver o meu
sobrinho!
- Mas ainda não é hora
da visita. – A mulher de ancas generosas e rosto redondo demasiado afogueado
sorriu-lhe gentilmente e Vanda sentiu-se encorajada.
- Eu sei! Mas tinha
esperança de poder vê-lo antes de voltar para os Açores.
- Ah! É tia do menino
Matias? – Vanda sabia que a referência aos Açores havia de despertar
a solidariedade daquela mulher.
- Sou sim! O Matias
queria muito que eu levasse uma carta que ele escreveu para os irmãos. – Vanda deixou
descair a cabeça para o lado direito. Lera em qualquer lado, talvez num
policial, que este gesto despertava piedade no outro sujeito.
- Bem! Não se pode
demorar… - A mulher piscou-lhe um olho cúmplice feliz por poder ajudar .
Vanda entrou no
quarto e Matias estava sentado a jogar PSP. Ela sentiu um orgulho crescente ao
ver que ele usava naquela hora difícil o seu presente de Natal.
- Olá Matias!
- Olá professora!
Vanda sentou-se na
beira da cama dele olhando-o profundamente. Num gesto instintivo abraçou-o e
beijou-lhe o topo da cabeça.
- A tua mãe?
- Foi buscar um café.
- O médico pediu-me que
te trouxesse isto. – Vanda tirou o kit que tinha guardado
na sua mala, e entregou um cotonete longo ao Matias. – Tens de
esfregar o interior da boca com este cotonete. Habituado a exames e
rotinas estranhas, Matias obedeceu. Vanda guardou aquele cotonete com
um cuidado extremo e despediu-se daquele menino com o coração dorido e ao mesmo
tempo cheio de esperança.
O sol reclamava um
pedaço daquele inverno longo e permitia que Vanda e Vasco
desfrutassem de um almoço calmo junto ao rio.
- Vou adiar a minha viagem
por uns dias, Vasco!
Vasco olhou-a com um
olhar de duvida que Vanda fingiu não perceber.
- Porquê? – A pergunta
saiu-lhe mais rispida do que realmente queria.
- Tenho andado a fugir
do meu passado demasiado tempo e agora quero enfrentá-lo. Quero ir passar uns
dias a Ourém. Quero visitar a campa dos meus pais e da minha avó. – Vanda sentiu
a sua garganta apertar-se, e Vasco pareceu desorientar-se por uns
segundos. Contornou a mesa e abraçou-a.
- Está bem Vanda!
Eu fico contigo… Tenho de ligar ao Joe para ele continuar a cuidar
das minhas coisas. – Vanda retirou o telemóvel da mão de Vasco num
impulso.
- Não vais ligar a
ninguém. Não quero que vás comigo…
Vasco afastou-se e
voltou a sentar-se no seu lugar. As palavras assentaram-lhe como um soco no
estômago.
- Pensei que estivessemos novamente
juntos Vanda! – Vasco olhou-a com um olhar magoado e duro que Vanda não
conseguiu enfrentar. – Eu não estou disponível para ocupar apenas uma parte da
tua vida… Tu tens-me por inteiro… Ou eu ocupo toda a plenitude do teu ser
ou então eu não sirvo para ti. Eu não sou nenhum tapa buracos sentimental
Vanda…
O maxilar de Vasco
contraiu-se e os olhos cerraram-se. A expectativa de uma resposta de Vanda estampou-se
nas feições.
- Então se queres fazer
parte de mim. Se queres ocupar cem por cento do meu ser, vê lá se aguentas com
todos os factos…
Vasco arregalou os olhos
surpreendido com aquelas palavras que lhe soaram a acusação.
- E eu aceito todos os
factos da tua vida. E mais ainda… sofro contigo por alguns desses factos terem
existido… Não percebo o que é que estás para aí a dizer…
Vanda sentiu um
vulcão a formar-se dentro dela.
- Eu sou mãe do Matias!
Aceitas esse facto? Aguentas com esta informação? Queres ser meu companheiro
por completo, como o Marco é da Vera? Então diz-me que ficas do meu lado nesta
história toda… Eu sou a mãe biológica do Matias. Ele é fruto das violações de
que fui vitima. Corri metade deste país à procura dele e agora encontrei-o… - Vanda não
conseguiu reter mais as lágrimas. As suas palavras saiam soluçadas e os seus
lábios distorceram-se numa angústia velha. – Eu amo aquele menino que me foi
roubado. Eu é que sou a mãe dele Vasco. Ainda estás comigo Vasco?
A hesitação chocada de
Vasco fizeram-na antecipar a resposta. Vanda levantou-se da mesa
e desapareceu da vista de Vasco sem que ele fosse capaz de uma reacção.