terça-feira, 27 de setembro de 2011

CAPITULO III Na Base da Montanha

CAPITULO III


Francisco estacionou o carro fora da porta de sua casa. Sente um calafrio a percorrer-lhe as costas. É de prazer com certeza... Francisco está esgotado, deitado na sua cama, mas não consegue dormir. Sempre que fecha os olhos vê a imagem de Ana a sorrir-lhe e sente o seu cheiro invadir-lhe as narinas. Que vontade tem de voltar a afogar o seu nariz no pescoço de Ana. Que vontade tem de voltar a pegar-lhe a cintura e fazê-la rodopiar como uma pena. Que vontade tem de voltar a encostar os seus lábios aos dela... Porquê este devaneio? Afinal já beijou tantas mulheres, e beijos bastante fogosos que fariam corar as mais donzelas. Mas nenhum desses beijos delirantes e demoradamente quentes se igualavam àquele encostar de lábios. O sentimento que acompanhou aquele gesto nunca o sentira antes. Ficaria ali, de bom grado, para sempre, à porta da filarmónica com o seu corpo encostado tímidamente ao corpo de Ana. Está a amar pela primeira vez e, por estranho que lhe pareça, esta ideia não o desagrada. Tinha que dizer isto a Ana!..  Tinha que lhe dizer que o que sente é amor, que é o limite do verbo gostar...
O dia amanhece, e Francisco acorda devagar, percebendo que nem mudou de roupa. Agora é tempo de se tornar apresentável, pois os doentes devem estar a chegar ao consultório. Francisco trabalhava com o pai no seu consultório, que ficava no rés-do-chão de sua casa. O consultório era grande, tinha uma sala onde os doentes esperavam equipada com cadeiras confortáveis e uma secretária de madeira onde se sentava a Dona Helena, que recebia todos os dias os doentes com uma enorme simpatia e compaixão, ou não trabalhasse há já mais de vinte anos com o doutor Bruno, fazendo desta a sua única vida. Da sala de espera os doentes passavam para o consultório médico, onde o doutor Bruno se fazia acompanhar de todos os instrumentos necessários para poder aliviar o tormento dos seus pacientes. O doutor Bruno, mais conhecido por médico da vila era uma pessoa simples e caridosa. Tinha-se casado com uma mulher que nunca chegara a amar, mas que lhe dera a oportunidade de desempenhar a sua profissão sem restrições, uma vez que era muito rica. Para preencher o vazio do casamento trabalhava todo o dia, subindo ao andar de cima da casa apenas para comer e dormir. O Doutor Bruno tinha agora um novo entusiasmo que era ensinar tudo o que sabia ao filho e aprender com este as novas técnicas de medicina.
- Tem massa sovada quente para o almoço tal como tu gostas, filho. – Disse a senhora Clemência que não se cansa de mimar o filho. É para ela uma grande alegria ter Francisco em casa, e desta vez não tem de abdicar dele novamente. Ele veio para ficar. Clemência é uma mulher doce e dedicada ao filho e ao marido. Francisco é o seu único filho, é o fruto do amor que sente pelo marido. Ela sabe bem que este amor não lhe é retribuído. Mas não se cansa de ter esperança. Um dia o marido vai entrar em casa e vai olhá-la de uma forma diferente, com um brilho apaixonado nos olhos, vai correr a abraçá-la de uma forma apressada tentando recuperar todo o tempo perdido, e quando esse momento chegar ela vai estar de braços abertos pronta para recebê-lo. Enquanto isto não acontece, ela continuará a cuidar de Bruno e a admirá-lo com a mesma paixão com que se casou com ele.
- Tu ontem voltaste tarde. Nem te ouvi chegar. – Comenta Clemência com o filho.
- Sabe dona Clemência, aconteceu-me uma coisa maravilhosa ontem.
- E a tua mãe pode saber o quê?
- Descobri que estou verdadeiramente apaixonado... Ela é maravilhosa...
- Fico muito satisfeita que tu e a Fátima estejam apaixonados. Nem imaginas como isso facilita o casamento.
Pois é!... Fátima... Francisco esquecera a noiva. Está metido numa grande embrulhada. Como reagirá Fátima quando souber que Francisco já não quer casar? Ele tem de ser muito cauteloso, já que Fátima é uma rapariga muito frágil. Coitada!... Não merecia... Ela é tão meiga, e é uma excelente rapariga!... Sem dúvida... Mas é a sua felicidade que conta, e Francisco não quer abrir mão de Ana. Fátima também não aceitaria migalhas, nem merecia tal coisa... Oxalá não lhe faltem as forças na hora de falar com Fátima...
- Vou só num instante a casa de Fátima e já volto para ajudá-lo. – Anúncia Francisco ao pai, saindo logo de seguida.
Ao chegar a casa de Fátima quem o recebe é a senhora Alice, mãe da noiva. Francisco sente-se constrangido. Não consegue confiar naquele olhar cinzento e redondo, naquele cabelo que não consegue definir bem uma cor, umas vezes é castanho, outras parece vislumbrar um efeito vermelho suave. A sua cara redonda e a sua pele branca angelical contrastam com a sua postura altiva e com o sorriso de malícia que a acompanha sempre. A mãe de Fátima é sempre tão demasiadamente simpática com ele, e no entando ele juraria que ela transborda falsidade. Quando está perto dela não sente nenhum calor humano, apenas um gélido e fingido carinho.
- A Fátima está? Preciso muito de falar com ela.
- A minha rica filha foi passar o dia a casa do José Ferreira, em São João. Ela é muito amiga da filha mais velha dele, a Glória. A rapariga também vai casar, e o menino sabe como são as raparigas casadoiras, arranjam qualquer pretexto para trocarem segredos sobre os futuros maridos... É a ansiedade do casamento...
Francisco não podia acreditar! Que coincidência dos diabos! Então Ana já deve saber. O que terá pensado dele? Ele tem de arranjar uma forma de falar com Ana, de explicar que tencionava terminar o noivado. Com toda a certeza Ana vai compreender, afinal ela também o ama... Pelo menos ele assim pensa...
Francisco não se faz rogado, pega no carro e vai até S. João. Estaciona em frente à casa de Ana, mas não sai de dentro da viatura. O que faz agora? Tem de fazer a coisa certa ou deita tudo a perder. Perdido em discursos fantásticos, a tentar encontrar as melhores palavras, repara que em frente à atafona está Ana sentada num degrau, encolhida e com um aspecto muito debilitado. Francisco sai do carro e com cautela aproxima-se. Senta-se ao lado de Ana e abraça-a. Ana parece querer afastar-se mas faltam-lhe as forças. Estava distante, como se aquele abraço lhe fosse completamente indiferente.
- Como é que me pudeste fazer isto Francisco?
- Eu não te queria magoar. Eu...
- Tu disseste que havia algo de mágico entre nós, fizeste-me acreditar que os teus sentimentos por mim eram sinceros e puros, mas afinal brincavas comigo enquanto noivavas com outra... Vai-te embora Francisco... Ainda não é tarde para seguir o meu caminho... Por favor, respeita-me.
- Ana, deixa-me explicar-te. Não era minha intenção...
- Vai-te embora Francisco... E não te preocupes porque eu não contei nada à tua noiva. Ela está dentro de casa com Glória na sua maior inocência. Podes ir descansado.
Dito isto Ana levanta-se no intuito de se afastar. Francisco agarra-a desesperadamente e beija-a longamente. Ana não luta contra aquele acto, apenas se deixa levar. O beijo termina e Francisco olha nos olhos de Ana e segurando-lhe o rosto com ambas as mãos sente as lágrimas caírem apressadamente. Percebe a dor que lhe vai na alma e que trespassa aqueles olhos inchados e opacos de tristeza. Ana havia-se tornado na sua própria felicidade, e como poderia ser feliz com a sua Ana destroçada. Francisco quis falar mas a garganta apertada não deixava sair mais do que um soluço.
Ouvem-se vozes. Os pais, as irmãs e Fátima devem ter saido de casa e devem estar no balcão à conversa. Francisco tem de se ir embora...
- Eu amo-te Ana. Por favor confia em mim...
Ana vira as costas melancólicamente, depois ergue a cabeça, enxuga as lágrimas e caminha altivamente com a postura de uma rainha.
Francisco desce a terra que separa a casa da atafona, abre o portão e encontra a família de Ana com Fátima em animadas conversas.
- Desculpem incomodar, mas precisava muito de falar com Fátima se não se importarem.
- Queres um copo de angelica rapaz? – Pergunta José
- Não obrigado. Fica para outra altura. Eu estou com um pouco de pressa, pois o meu pai está à minha espera no consultório.
Fátima foi ao encontro do noivo e perguntou-lhe baixinho:
- O que se passa?
- Precisamos de conversar.
- Parece sério... Talvez seja melhor ires cear a minha casa e depois falamos.
- É melhor. Então fica combinado. – Francisco despede-se da noiva com um beijo muito frio na mão e vai-se embora sem se despedir de ninguém.
Fátima ficara intrigada. Era capaz de jurar que o noivo tinha uma lágrima prometedora no canto do olho. Estava com algum problema sério sem dúvida...
O consultório estava calmo. Ainda bem, proque assim o doutor Bruno não sentiu demasiado a falta do filho.
- Quem é vivo sempre aparece!...
- Fui a S. João...
- Fazer o quê?
- A Fátima estava em casa dos Ferreira e eu fui lá falar com ela.
- Queres dizer-me alguma coisa? Não te davas ao trabalho de ir a S. João se não houvesse algum problema. – O doutor Bruno tem um mau pressentimento, sente um calafrio percorrer-lhe as costas, e um murmúrio ao ouvido como se soubesse que apartir daquele momento a angústia seria sua companheira e o sofrimento andaria de mãos dadas com o filho.
- Eu vou esta noite cear a casa de Fátima. Vou terminar o noivado... – Francisco fica com o ar suspenso esperando uma reacção do pai.
- Porquê essa atitude? Até ontem andavas todo contente e agora parece que tens uma nuvem negra sobre a cabeça. Fizeste alguma asneira?
- Eu apaixonei-me por outra rapariga. É completamente diferente de Fátima. É alegre, divertida, espontânea... Quando estou com ela tudo o resto desaparece... E agora que eu lhe causei sofrimento, sinto um peso no peito. É como se a minha felicidade estivesse dependente da felicidade dela... É como se a nossa alma fosse uma só...
Francisco parece transportar todo o cansaço do mundo nos ombros.
- Vai descandar! Precisas de dormir um pouco, e quando acordares pensa bem no que vais dizer a Fátima... A rapariga não merece sofrer, por isso tens de ser muito honesto com ela, e principalmente, tens de mostrar respeito por ela.
Francisco obedece ao pai. O doutor Bruno fica a olhar para o filho até ele desaparecer nas escadas. Francisco nem imagina a sorte que tem por poder escolher uma esposa. Ele não depende de um casamento para fazer aquilo que gosta. É inútil pensar que depois do casamento podemos obrigar-nos a amar aquela pessoa que não nos desperta qualquer palpitar mais apressado no ritmo do coração. Como o sentimento facilita a relação... Quando falta o amor, cresce o vazio e a indiferença... O sentimento é substituído pelo quotidiano, pelo hábito de acordarmos todos os dias ao lado daquela pessoa, pelo costume de termos aquela presença em todas as refeições, pelo facto de ela ser a mãe do nosso filho.
Francisco descansa, mas não dorme. Tem de ser cauteloso ao terminar o noivado. Não sabe quais os sentimentos de Fátima em relação a ele. Ela sempre foi muito distante e pouco falante. Nunca viu uma emoção nos seus olhos apagados. Nas poucas cartas que trocaram, nunca houve uma jura de amor, nunca usaram aquelas expressões típicas das cartas dos namorados como por exemplo “ da sempre tua...”.
Chegou a hora. Francisco está em frente à porta de casa da Fátima, respira fundo, organiza pela última vez o discurso, e finalmente bate palmas...
- Francisco! Entre! Nem sabe como ficamos felizes por nos fazer companhia esta noite. – A senhora Alice estava com um brilho no olhar e com aquele sorriso maliciosamente delicado. Será que continuará tão atenciosa depois da notícia?
Francisco entra timidamente. À sua frente está Fátima que o cumprimenta sem sequer olhá-lo. Tem sempre o mesmo ar. Só a viu sorrir em casa dos Ferreira, de resto parece ausente.
- Eu gostava de falar um pouco a sós com a Fátima, se não se importarem. – Declara Francisco.
A senhora Alice perde o sorriso e adopta um ar preocupado. Ia tentar opôr-se quando o marido a pegou no braço e a conduziu para o quarto. O senhor Joaquim para além de marido e pai dedicado era um homem sensato, no entanto era demasiado submisso à mulher. O seu cabelo branco demais para os seus quarenta anos e os seus olhos pequenos e negros parecem transportar uma dor silênciosa. É alto e tem um porte atlético para a idade, no entanto, ali ao lado da mulher, não parece mais do que um pobre velho. A senhora Alice era muito manipoladora, cheia de esquemas e maliciosas simpatias, há muito que Joaquim desistira de se opôr às suas atitudes. Fingia que não percebia as intenções da mulher em relação a este casamento, mas a verdade é que hoje sentiu que a filha tem de ter alguma actividade neste noivado. É Fátima que deve sentir e viver este romance, e não realizar apenas o desejo da mãe de a ver casada com o filho do médico da vila.
- Senta-te Francisco.
- Fátima! Eu não sei bem por onde começar... No natal, quando resolvemos noivar, fizemo-lo sem qualquer tipo de sentimento. Apenas achamos que seria bom para ambos... Agora tenho dúvidas... Eu sei que o que sinto por ti é um respeito imenso e uma vontade de te ver feliz... E tu, Fátima? O que sentes por mim?
Fátima fica surpresa! Estava com medo que Francisco quisesse antecipar o casamento, mas afinal queria terminar. Por um lado sentia-se aliviada, não queria casar com Francisco, apesar de o achar muito atraente. Fátima não sentia nada que pudesse servir de base a um romance... Pelo menos não o sentia em relação a Francisco... Mas o que pensaria a mãe? Não ficaria nada satisfeita. Obrigá-la-ia a atitudes menos correctas para conquistar o Francisco... O que deveria dizer agora? Vai fazer o que o coração lhe manda. Vai dizer a verdade... Vai dizer.
- Eu admiro-o muito, mas eu também... – Fátima é interrompida por um grito da mãe...
Francisco levanta-se e corre a acudir a senhora Alice. A mãe de Fátima está desmaiada no corredor, e o marido sacode-a como se fosse um tapete...
- Acorda mulher, que me estás a deixar aflito...
Joaquim e Francisco tentam reanimar a mulher, enquanto Fátima fica de pé a olhar para aquela cena toda. Como são burros... Ela bem sabe o que se passou... A dona Alice estava a escutar atrás da porta e fingiu o desmaio para ganhar tempo. Sabia bem o que a filha ia dizer, seria o fim do casamento perfeito... Oh! Mas ela não vai deixar que este noivado acabe assim. Ninguém conhecia melhor a senhora Alice do que a filha. Fátima sabia exactamente o que se iria passar de seguida. Francisco sairia de sua casa deixando a conversa para depois, e a mãe perderia automáticamente aquele ar débil e doente e berraria com Fátima insultando-a. Depois de esgotar as forças numa gritaria ensurdecedora, apresentará a sua estratégia a Fátima e dir-lhe-á exactamente o que esta deve fazer, não lhe deixando alternativa. Era exactamente isto que Fátima não queria que acontecesse...
- Pronto, Fátima! A tua mãe já está acordada. É melhor que descanse um pouco. Não deve ser nada grave. Se ela piorar, por favor manda chamar-me... Não te preocupes. – Francisco prepara-se para ir embora.
- Não queres terminar a conversa? – Fátima não quer que aquela conversa fique para depois...
- Não é a melhor altura Fátima. A tua mãe agora quer que tu estejas ao seu lado. Faz-lhe companhia... Eu passo por cá depois.
Francisco saiu. Fátima sente um aperto no peito. Será que ele não percebe que depois será demasiado tarde? Será que ele nem questionou por que razão estaria a dona Alice atrás da porta desmaiada? Será assim tão cego? Agora quando conversarem já não poderá ser sincera... Já terá as directivas da mãe... Terá de seguir à risca os planos da tão gentil dona Alice...
Francisco sente-se decepcionado. Queria tanto ter aquela conversa com Fátima, sentir-se livre, mas afinal vai ter que esperar mais um pouco. No entanto estava mais esperançado. Tinha a certeza que Fátima não sentia nada por ele. Viu bem o brilho que o rosto de Fátima adoptou quando Francisco lhe deu a entender que não sentia mais do que respeito. Ela passou a ter em si espelhada uma nova esperança. Francisco sempre achou que Fátima era uma noiva pouco entusiasta, talvez porque não o desejava para marido. Teve a sensação de ter à sua frente uma outra rapariga, mais leve, mais espontânea, mais interessante. Com toda a certeza que o fim do seu noivado já tem um destino marcado... Parecia ironia o que a vida lhe fez. Francisco tinha planeado a sua vida de forma infalível rumo à felicidade. Seria médico como sempre quis, teria uma esposa dedicada em casa, de muito boas famílias, ideal para mãe dos seus filhos, teria como sogro o presidente da câmara... Agora passadas umas poucas semanas esta vida em que espelhara a sua felicidade futura era-lhe completamente intolerável. Esta vida perfeita e invejável era uma hipótese que Francisco não queria ponderar... Era uma felicidade sem raiz, que o consumiria numa tristeza intemporal...

sábado, 24 de setembro de 2011

CAPITULO II - Na Base da Montanha

CAPITULO II - Na Base da Montanha


O sol de Maio brilhava convidativo a um passeio à beira mar… As borboletas não se fizeram rogadas e esvoaçavam apressadamente medrosas de que o sol se escondesse sem avisar. Os lagartos esticavam-se desavergonhadamente sobre os muros de pedra alheios. As flores desabrochavam confiantes e vaidosas da sua beleza que cativava as abelhas cortejadoras. Todo este cenário era convidativo a sentimentos mais profundos, aos quais Glória não se poupava. A sua alma estava leve e o seu espírito repleto de uma alegria incomensurável. O seu sorriso era contagiante e deixava toda a gente de bom humor.
Ana também andava radiante, mas por outros motivos. Fazia dezoito anos no sábado e o pai, como prenda de aniversário, ia levá-la consigo ao porto da  Madalena. A viagem era feita de camioneta e durava mais ou menos uma hora. Já a tinha feito umas poucas vezes. Lembra-se bem de como enjoara com aqueles balanços. Mas desta vez não ia deixar que isso acontecesse. Ia apreciar cada segundo da viagem e cada paisagem que os seus olhos conseguissem captar.
Este era o tempo ideal para se plantar o milho. Enquanto os homens iam para o mato,  as mulheres é que tratavam desta plantação sozinhas. As primeiras mulheres, com os “fouxos” faziam buracos na terra, onde as outras depositavam a semente e tapavam-na. Andava Ana nesta vida, quando viu a irmã acompanhada pelo seu recente noivo numa conversa apaixonante. Transbordavam felicidade, companheirismo, alegria e principalmente cumplicidade. Como devia ser bom estar-se apaixonada, poder partilhar sentimentos que só eles sentem… Poder partilhar uma linguagem que só eles falam… Poder trocar gestos que só eles entendem… Quando é que ela poderia partilhar estas emoções com alguém? Será que existe alguém que lhe está destinado? Onde? O que estaria a fazer neste exacto momento? Ana sonhava com um amor aventureiro, em que para além do sentimento, partilhassem o gosto pelo desconhecido… Queria uma pessoa que não tivesse medo de arriscar, que pegasse nela e a levasse numa viagem sem destino. Queria muito atravessar o oceano, chegar à capital e daí correr o mundo que lhe gravaram na imaginação há alguns anos, quando ainda andava na escola…
A noite começava a substituir o dia radiante que tinham tido. O cheirinho bom da ceia precorria toda a casa fazendo crescer água na boca. Nessa noite comeram todos com apetite e com mais um prato na mesa, uma vez que João os acompanhou durante esse serão.
Finalmente chegou o dia. Ana levantou-se da cama cheia de vontade de aproveitar cada minuto daquele dia.
- Pai, despacha-te… Olha que a camioneta não espera… Anda molengão.
Ana estava muito bem vestida, e ainda melhor penteada, ou não tivesse sido obra da sua irmã Maria. Tinha uma saia rodada que lhe tocava carinhosamente o joelho. Era vermelha com bolas brancas. Uma camisa branca bordada e uma “suera” da mesma cor. O cabelo estava todo apanhado por uma fita de seda vemelha, deixando bem à vista os lindos olhos envergonhados de Ana.
- Estás linda!... – exclamou Luzia olhando hipnotizadamente para a filha. Eram raros os momentos em que podia ver Ana tão bonita. Não que Maria não a vestisse mais vezes, pois escolhia-lhe a roupa todos os domingos e dias de festa, mas hoje Ana tinha um ar feliz, leve, muito invulgar, naqueles olhos redondos.
- Anda filha! Quem é o molengão agora? – provocou José.
Ana entrou dentro da camioneta cheia de esperança naquele passeio.
Ao contrário de Maria ela não estava ansiosa para saber o que os tios da América tinham mandado. Ela apenas queria sair da freguesia... Queria ver aquele porto cheio de gente... Com sorte conhecia alguém que viesse no navio e lhe falasse de outras terras. Da América, por exemplo onde falam estrangeiro apesar de usarem o mesmo alfabeto, apenas com mais algumas letras das quais Ana agora não se consegue lembrar...
Aquele cheiro a combustível e aquele abanar compulsivo fazem Ana começar a sentir-se enjoada. Ela tem de fazer um esforço para controlar aquele mal estar. Sabe lá quando voltará à Madalena... Tem de aproveitar todos os momentos de uma forma agradável... Raio de enjoo... A viagem parece não terminar.
- Ainda falta muito, pai?
- Não és tu que queres ir para terras onde o caminho não acaba? Vai-te habituando. – diz José com um sorriso nos lábios. Pode ser que assim a filha deixe de lado estas ideias parvas e passe a andar com os pés assentes no chão.
Passado uma eternidade lá chegaram. O enjoo foi esquecido assim que Ana saiu da camioneta. Era impressionante!... Tanta gente numa azáfama!... O barco já está atracado, e dentro dele sai gente como Ana nunca viu. Que roupas esquisitas, mas bonitas!... Maria ia gostar de ver... Ana olha sem piscar os olhos, não vá escapar alguma coisa!...
Neste olhar intenso Ana paralisa ao ver sair do barco uma rapaz alto, com um fato preto e uns sapatos de verniz muito bem cuidados. Sai com um sorriso muito airoso e com uma ar muito descontraído cumprimentando toda a gente. Vem andando na sua direcção e Ana consegue preceber melhor as formas do rosto. Tem o cabelo castanho muiro claro, quase louro. Uns lábios muito bem definidos, e quando esboçam um sorriso criam umas covinhas cumplices nas bochechas. Os seus olhos em forma de amendoa e negros descansam agora nos olhos de Ana, e a sua mão estendida espera um cumprimento da rapariga que se apressa nas ideias.
- Ainda não conhecia nenhuma das tuas filhas José. É um prazer conhecer a primeira. Como está a menina?
- Um pouco atordoada!... – responde Ana estendendo a mão e tentando disfarçar o embaraço – Ainda estou a recuperar do enjoo que a velha camioneta me causou.
O rapaz conhecia o pai... Que coincidência... Que lindos olhos! De onde será que ele é? Será americano?
O rapaz ainda conversou um pouco com José. Parecia ter alguém à espera, no entanto não se apressava e continuava uma conversa enfadonha sobre o tempo e as colheitas. O seu olhar fugia por vezes um pouco para a direita, exactemente onde estava Ana, que imediatamente fingia olhar para outro lado qualquer. Mas o certo é que Ana estava com um formigueiro na barriga e com o coração aos pulos. Não sabia o que fazer... Apetecia-lhe sair dali a correr, mas não sentia as pernas. O respirar estava apressado e a conversa entre o pai e aquele lindo rapaz parecia distanciar-se!...
- Ana, filha, acorda... – suplicava José desesperado.
Devagarinho Ana começou a abrir os olhos e a transformar uma imagem confusa e desfocada numa cena concreta.
- Pronto já passou!... – acalmou o rapaz – Foi só um mal estar... A viagem foi longa e o sol está muito forte, é natural que ela se tenha sentido mal. É melhor que coma qualquer coisa, pois parece fraca.
- Ouviste o que o doutor disse? Come este bolo de milho com queijo que a tua mãe mandou... – apressa-se José tentando acalmar a filha de uma forma aflitiva.
O belo rapaz é médico!... Que surpresa!... Deve ter estudado no continente, em Lisboa ou no Porto ou então em Coimbra... Deve ter tanta coisa interessante para lhe dizer... Que azar estar tão mal disposta.
Podia aproveitar para conhecê-lo melhor, mas em vez disso o seu corpo dá-se ao luxo de estar todo dormente!...
 José já tem o saco com as coisas que os tios mandaram da América.
 Já podem voltar para dentro da camioneta, e que o suplício de Ana comece...
A camioneta começa a andar e Ana sente um enorme cansaço pesar-lhe sobre as sobrancelhas. Vai fechar os olhos apenas por um instante, pois quer apreciar bem todo o caminho. Acaba por adormecer profundamente!...
Agora está no adro da igreja com um lindo vestido de linho rosa claro e com o cabelo solto a esvoaçar. Sente-se muito leve, como uma pena, se se esforçar um pouco pode voar... Ao seu encontro vem o lindo rapaz do porto, que lhe estende a mão. Ana pousa a sua mão sobre a dele e sente o seu corpo ser puxado de uma forma fortemente suave contra o corpo do rapaz e começam a redopiar. Ouve uma linda valsa... Começa a olhar em redor e não consegue perceber de onde vem a música... Mas que importa!... A valsa pára. Num gesto de carinho e de despedida o rapaz beija a testa de Ana e deixa escapar uma lágrima. Depois desaparece nos braços de um vulto de uma outra mulher...
 Ana acorda sobressaltada!
- Oh! Adormeci!...
- Pois foi filha! Esta viagem não correu lá muito bem. – responde José com um sorriso muito meigo.
- Quem era aquele rapaz que estava a falar consigo no porto? Aquele que me acudiu quando me senti mal...
- É o menino Francisco... Que agora já não é menino mas sim Doutor! Ele esteve a estudar em Lisboa para médico e agora volta para a terra. É filho do Doutor Bruno.
- Ah!... O médico da vila... Não sabia que ele tinha um filho.
Pronto... O rapaz do porto já tem um nome... Francisco! O belo Francisco... Ana queria tanto vê-lo novamente. Tem de admitir que vai ser difícil, pois ela não vai com muita frequência para aqueles lados das Lajes. Tem de pensar numa forma de o voltar a ver... Mas isso será depois, porque agora doi-lhe demasiado a barriga...
Finalmente chegaram a casa. As irmãs correm para Ana. Maria quer ver o que mandaram os tios... Glória enche Ana de perguntas e Luzia que acabou de saber do desmaio de Ana, toca-lhe fernéticamente na testa e na barriga.
- Estou bem! Foi o enjoo típico que me persegue nas viagens de camioneta e não me deixa aproveitar o passeio... Mas eu sou mais teimosa do que ele e cá estou cheia de coisas para contar!... – diz Ana toda entusiasmada...
As roupas que os tios mandaram são muito bonitas. No entanto precisam de algumas adaptações. Depois de dividirem a roupa entre as três irmãs, Maria tira medidas, pois é ela quem vai fazer os arranjos de todas as roupas.
- Glória, como é que soubeste que era amor o que sentias por João?- pergunta Ana envergonhada, aproveitando a distração de Maria com as roupas.
- Não foi fácil chegar a essa conclusão. Primeiro senti uma atracção. Inventava desculpas para poder vê-lo, nem que fosse à distância. Oferecia-me sempre para ir ao botequim fazer as compras só para passar pela barbearia. Depois comecei a falar com ele sempre que o encontrava. Perdiamos-nos no tempo quando falávamos, tinhamos sempre mais qualquer coisa para dizer... E não era uma conversa chata... Era tudo tão interessante... Tão intenso!... Depois veio o primeiro beijo!... Leve e suave... Era como se o mundo não existisse. Perde-se o medo de se ser apanhado... Perde-se a vergonha... Quando estou com o João o tempo é curto e quando não estou com ele o tempo é longo. Por fim veio a prova de fogo.... Saber se há respeito e companheirismo... Eu tive essa prova quando o João veio cá a casa disposto a enfrentar o problema ao meu lado... É a pessoa com quem eu quero envelhecer...- Glória tinha um brilho no olhar e aquele sorriso palerma nos lábios – Mas porque é que perguntas? Queres contar-me alguma coisa?
- Não digas disparates... Só quero estar preparada para quando me apaixonar...
A noite já ia longa. Ana devorava o silêncio com pensamentos vagos, mas fixos num único ponto... Francisco... “Primeiro há a atracção”... Isso Ana já sabia o que era. Era querer olhar sem nunca piscar os olhos, como se se tratasse de uma obra de arte. Era sentir o coração e o estômago trocarem de lugar, e não conseguir comandar os músculos. Mas será que está apaixonada? Ora vejamos... Depois vem a parte em que se inventa desculpas para podermos ver a outra pessoa... É verdade que já pensou em algumas, como por exemplo ir visitar a Fátima que também mora na vila das Lajes, se bem que não são muito amigas. Ela é mais amiga de Glória. Mas podia acompanhar Glória... Como convenceria os pais? E a própria Glória?... Tem de pensar melhor...
Passou-se a semana sem que nada de especial se tivesse passado. Maria ia para a escola enquanto as irmãs ajudavam os pais naquilo que precisassem.
- Apressem-se meninas! Olhem que o padre Inácio não espera!...- Gritava Luzia atrapalhada com o véu.
- Tem calma mulher! Não há Domingo que passe sem que haja esta azáfama.- Responde José com o seu ar pachorrento.
Apesar das pressas chegaram à igreja antes da hora, como acontecia sempre. Luzia gostava de trocar uns dedos de conversa antes da missa com as outras mulheres. O tema de conversa de hoje girava à volta dos preparativos para o casamento de Glória. Todas queriam ajudar... Não fossem esquecidas nos convites... Ana estava quieta. A conversa das mulheres distanciara-se dos seus ouvidos. Pensava novamente e sempre em Francisco...
- Menina Ana! Que prazer voltar a vê-la! Espero que hoje não me desmaie nos braços...
Era Franciso a cumprimentá-la... Estava com um sorriso magnífico... e as covinhas nas bochechas?!... Que querido...
- Como vai doutor? Hoje não lhe dou esse prazer. Talvez numa próxima oprotunidade. – Como pudera ser tão ousada na resposta?... Agora está dito... Ele está a sorrir... Não deve ter levado a mal.
- Hoje vai haver um bailarico na filarmónica. Como fica ali perto da sua casa estou a contar encontrá-la por lá...
- Não sei! É que...
- Não diga mais nada... Eu sei que vai...- disse Francisco com um elegante sorriso. Pegou delicadamente na mão de Ana e beijou-a demoradamente. Depois voltou costas e entrou na igreja, deixando Ana sem palavras.
Maria nas suas pressas de casar as irmãs veio logo fazer o interrogatório.
- Quem era aquele rapaz, Ana?
- Era o doutor Francisco. O pai apresentou-me no cais da Madalena. Estava a desembarcar do barco. Veio de Lisboa.
Ana tentou falar com uma certa indiferença, para inquietação da irmã. O rapaz era bem apresentado, e vestia-se muito bem, era pena Ana não aproveitá-lo como namorado...
- Vamos entrar na igreja para apanhar um bom lugar!- manda Luzia.
A missa já começou. Mas Ana não presta atenção às palavras do padre Inácio. Tem de arranjar uma forma de ir ao baile. Talvez a mãe a surpreenda e a deixe ir... Não... Não pode contar com milagres... Tem de arranjar uma forma infalível. Pode pedir a Glória para ir com o João e aproveita para ir com eles... Mas os pais não vão deixar... Eles ainda não casaram... Os pais não vão de certeza. Nunca têm paciência para bailaricos. Ainda por cima José tem andado constipado... Não vão querer ir de certeza... A tia Espírito Santo deve ir. Com ela os pais vão deixar de certeza... “Por Favor Deus, faz com que eu possa ir ao baile...”- pede Ana com muita fé.
Ana levanta a cabeça e olha para Francisco. Ele é perfeito. É bem parecido, educado, cavalheiro e tem sentido de humor. E o melhor é que ele conhece o continente. Deve ter tanta coisa para contar... Coisas que Ana não se importava de ouvir... Francisco agora olha também para Ana, mas sem o sorriso. Está com um ar pensativo e não desvia o olhar. Ana quer virar a cara mas não consegue... E assim ficam durante algum tempo, hipnotizados pelo olhar um do outro...
Já em casa, sentados à mesa para almoçarem, Ana tenta abordar o assunto do baile com muita cautela.
- Então Glória?!... Vais hoje à noite à filarmónica com o João?
- Ah!... Também já sabes que vai haver bailarico. Eu gostava muito de ir.
Ana percebeu logo que Glória estava tão interessada naquele assunto quanto ela. As duas aliadas têm mais hipóteses. Ana arrisca...
- Os paizinhos não querem ir ao baile esta noite?- pergunta Ana com os olhos completamente abertos e redondos.
- Oh filha! O vosso pai está constipado. Ele precisa de descanso para amanhã estar melhor e poder trabalhar.- responde Luzia.
Era esta a resposta que Ana queria ouvir. Agora passa à próxima solução.
- A tia Espírito Santo vai com o marido. Podiamos ir com ela, não acham?
- Bela ideia Ana!... Podemos ir paizinhos???- Glória fica radiante por haver uma nova esperança.
Luzia e José trocam olhares. Fazem-no frequentemente. Parece que comunicam dessa forma, que se entendem pelo olhar... Ana aposta que um deles vai falar agora em nome dos dois mesmo sem terem conversado, e daí sairá a decisão de ambos.
- Eu e a vossa mãe achamos que devemos confiar em vós. Mas esta confiança ainda é pequena. Hoje podem ir ao baile com a vossa tia. Cabe a vocês aumentarem ou diminuirem esta confiança. Vejam bem o que fazem com ela...- decide José.
- E eu? Também vou? – pergunta Maria toda risonha.
- Ainda és muito nova, filhota. Quando tiveres idade prometo que também vais... – diz Luzia acarinhando os caracois da filha, como se este gesto evitasse a desilusão.
O quarto está um caos. Roupa espalhada por toda a parte. Maria não tem mãos a medir. Ambas as irmãs querem a sua atenção. Maria entende a ansiedade de Glória. Afinal, é a primeira vez que ela vai bailar com o João como seu noivo. Agora o que lhe intriga é Ana. Porquê tanto nervosismo? Era capaz de jurar que Ana tinha um olhar culpado...
- Pronto!... Estão prontas... e lindas! Ficam a dever-me uns quantos favores por conta do trabalho que me deram. – anúncia Maria cheia de importância. Tinha realmente um talento. Transformar aquelas ratinhas do campo em verdadeiras princesas não era tarefa fácil, mas ela fazia-o com a maior das facilidades. Glória não era muito vistosa, por isso Maria tinha de aproveitar o melhor que ela tem para a fazer realçar, ou seja o sorriso. Então fez-lhe um lindo penteado prendendo-lhe o cabelo todo em forma de banana, deixando bem à vista o ar graciodo de Glória. Como ela era baixinha, pôs-lhe um vestido vermelho não muito cintado e pouco comprido, dando um ar mais esguio e menos “atarracado”. O vermelho ficava-lhe muito bem, já que Glória era muito branquinha.
Ana era mais complicada. Não que fosse mais feia, pelo contrário, era muito bonita, mas queria tudo muito simples. Maria ficava irritada... Podia transformá-la numa verdadeira princesa, mas nunca conseguia mais do que uma dama de companhia... Ana levava um vestido azul claro muito simples, completamente liso. Mas Maria pôs-lhe uma fita de seda branca à volta da cintura, tornando a saia um pouco mais rodada. No cabelo, Maria não conseguiu mais do que fazer um rabo de cavalo. Mesmo assim Ana estava deslumbrante...
- Oh pequenas, a tia já está aqui à vossa espera! Despachem-se... – Grita Luzia da cozinha.
Luzia aproveita aqueles minutos de demora para dar recomendações à dona Espírito Santo.
- Oh mulher, tem calma... Eu também tenho uma filha. Sei muito bem como cuidar delas. Fica descansada... – despede-se assim a tia, levando consigo as moças.
Glória e Ana vão muito ansiosas pelo caminho. Não evitam o gesto de darem as mãos. Glória sabe que Ana tem segundas intenções naquele baile, e vai descobri-las em breve. Quer poder aconselhar a irmã, para que não cometa os mesmos erros que ela própria cometeu.
Finalmente chegaram. O salão da filarmónica está muito bonito. Os bancos estão dispostos à volta da sala, e esta está toda enfeitada. Já está muita gente e os tocadores começaram a tocar. As irmãs sentam-se na companhia dos tios e da prima. João já as viu e aproxima-se. Cumprimenta todos de uma forma desajeitada e tira Glória para dançar. É engraçado!... O João é tão trapalhão, mas quando está com Glória torna-se tão seguro de si. Agora estão os dois dançando e João segura Glória com muita firmeza, e conversam muito sem que pareça gaguejar. A prima também já arranjou par, e Ana continua ali sentada. O Francisco só quis troçar com ela de certeza... E ela burra, caiu que nem um patinho... Que raiva... Como pode achar que ele era sincero. É um tonto com a mania que é doutor, e pior, com a mania que é encantador... Só visto!
- A menina dança?
Mais uma vez Francisco aparece do nada e apanha Ana desconcertada.
- Com todo o prazer.
Francisco pega na mão de Ana, e não desvia o olhar daquela linda face. Ana sente-se intimidada com aquele olhar. Levanta-se e olha sempre em frente para evitar cruzar o seu olhar com o de Francisco. Francisco sente-se novamente um garoto. Ele que já viveu tanto!... Quando andou na faculdade de medicina em Lisboa teve tantas namoradas, e outras tantas mulheres de outro tipo e nunca se sentiu assim. Teve mulheres elegantes, charmosas, cultas, com muita classe, que seriam o estereótipo da mulher perfeita. No entanto, nunca se sentira tão encantado e tão atraído como se sentia por aquela rapariguinha com um aspecto um tanto ou quanto selvagem. Não via em Ana aquele ar desprotegido típico das mulheres e que faz com que os homens se sintam úteis preenchendo o lugar de protector. Há coisas difíceis de se explicar...
Os dois redopiam ao som de uma valsa. A música está alta, mas sentem um enorme silêncio entre eles. Francisco tem Ana bem apertada em seus braços. Encosta um pouco a sua face à de Ana e fecha os olhos por um momento. Tem o seu nariz preenchido pelo odor agradável de Ana... De certeza que nunca mais o vai esquecer... É um misto de palha seca com água de rosas, muito suave e muito discreto.
Acabou-se a valsa. Alguém pede uma chamarrita. Com certeza alguém apaixonado. A chamarrita é uma dança em que se troca de pares, ideal para namoros proibidos ou escondidos, já que os enamorados têm oportunidade de dançar e trocar segredos por uns momentos sem que ninguém os critique... Afinal a culpa é da dança...
- Vamos um pouco à rua apanhar ar? – propõe Francisco
- Não sei se a minha tia vai achar muita graça...
- Está muita gente a dançar. Ela vai achar que estás no meio da confusão. Anda daí. - e pega-lhe na mão num gesto meio infantil, conduzindo-a até à rua.
Sentam-se numa pedra comprida a olhar o céu. Aquele silêncio desconfortável voltou. Francisco decide quebrá-lo.
- Tive medo que não viesses. – confessa Francisco
- Quem diria! Disseste com tanta segurança à porta da igreja: “Eu sei que vais”... – respondeu Ana com um sorriso maroto.
- Sabes porque fui à missa em S. João, em vez de ir à vila?
- Sei... Por minha causa... – respondeu Ana.
Os dois riram. Ana tinha a capacidade de desanuviar o ambiente, de tornar tudo muito mais fácil.
- Tu és tão diferente das raparigas que conheci até agora.
- Ai sim? Espero que isso seja bom...
- És divertida e espontânea.
- Obrigada. Tu estudaste em Lisboa, não é verdade?
- Sim, porquê?
- Conta-me como é que aquilo é.
Francisco começou por descrever as ruas, os carros, a vida nocturna... A electrecidade. Esta foi uma tarefa complicada, fazer Ana ententer que num botão faz-se luz numa sala inteira, e depois no mesmo bortão põe-se tudo às escuras. As pessoas aproveitavam a noite para passear, já que as ruas são iluminadas. Os namorados têm muito mais liberdade, vagueiam pelas ruas de mãos dadas. Nada se parecia com aquela ilha. Ana enchia Francisco de preguntas... Estava completamente encantada, e Francisco contava-lhe tudo com imenso prazer. Não tinha muita gente com quem falar de Lisboa. As pessoas sentiam-se entediadas quando ele começava a descrever as suas aventuras na capital, mas Ana estava ali a ouvi-lo, devorando cada palavra proferida pela sua boca.
- É melhor voltarmos para dentro! – alerta Ana levantando-se.
Francisco também se levanta. Ana caminha à sua frente. Mesmo antes de entrarem na filarmónica, Francisco agarra o braço de Ana e puxa-a contra si. Ana fica imóvel com os olhos muito abertos, sentindo-se rodeada pelos braços de Francisco. Com meiguice Francisco encosta a sua face à de Ana e sussura-lhe ao ouvido:
- Eu não quero perder o que há de mágico entre nós.
Depois devagar, e com algum receio da resposta, Francisco afasta a sua face da de Ana e fixa os olhos desta, esperando um reacção. Então Ana passa os seus braços à volta do pescoço de Francisco e num gesto mecânico encosta os seus lábios aos dele. Mas depressa se arrepende e larga-o num gesto meio brusco, fugindo de seguida para junto dos tios.
Ana está muito perturbada. Como pôde ousar uma gesto daqueles? Ela não é assim. Mas Francisco, com todo aquele charme, com toda aquela ternura, fê-la balançar. Ele é tão mais vivido... Vive num mundo tão distante do seu... Será que ele está apenas a brincar com Ana? É a primeira vez que ela põe esta hipótese, e sente-se aterrorizada. Não consegue evitar uma lágrima.
Um rapaz vem tirá-la para dançar. Ana aceita no intuito de não deixar que os tios percebam a sua tristeza. A música começa. É uma chamarrita. A animação eleva-se e Ana dança distraídamente com o seu par.
- “Vamos à praia” – comanda o senhor Tarimba. Ele é o que melhor conhece os passos da chamarrita. Ele manda e todos obedecem...
Trocam-se os pares e Francisco rouba Ana.
- Não sei o que te vai na ideia, mas quero que saibas que eu estou a sentir-me completamente perdido. Só me apetece estar contigo. Não quero sair daqui com algum assunto mal resolvido contigo. Por favor não fiques zangada... Eu não suportaria a ideia. – implora Francisco com uma voz desconcertada.
Ana nunca imaginaria Francisco tão pouco seguro de si. Ele tinha sempre aquele ar de quem controlava bem a situação. Afinal era uma pessoa como outra qualquer, e com sentimentos... Não poderia estar só a brincar com Ana...
Glória toca no ombro de Ana.
- Vamos embora. Os tios já estão à nossa espera.
Francisco despede-se beijando a testa de Ana e diz-lhe olhando nos olhos, com aquele sorriso malandro que lhe é típico:
- Não vais ficar muito tempo sem ter notícias minhas.
Caminham para casa em silêncio. Que noite estranha! Ana tem quase a certeza de que está apaixonada. Quando será que o volta a ver? Sente um sabor doce nos lábios e lembra-se do leve beijo. Não teve tempo para perceber bem qual a sensação de beijar, mas sentiu bem a emoção. “Era como se o mundo não existisse. Perde-se o medo de se ser apanhado... Perde-se a vergonha...”, sábias palavras estas de Glória. Ana agora percebia bem o que ela queria dizer. O sentimento de paixão é igual em qualquer ser humano de qualquer parte do mundo, a reacção que se tem perante este é que pode variar.
- Estás a gostar daquele rapaz do baile? – pergunta Glória com cautela.
Ana sente um frio na barriga. Uma coisa é esse sentimento ser discutido apenas no seu pensamento, outra coisa completamente diferente é exteriorizá-lo numa conversa com outra pessoa. É como se lhe fosse dar forma física. Talvez se não falar sobre o assunto ele acabe por desaparecer, mas se falar ele torna-se quase corpóreo. Mas que interessa? Ana não quer que ele desapareça, pelo contrário, o que ela quer mesmo é vivê-lo com muita intensidade ou não tivesse já a pensar na próxima oportunidade de estar com Francisco.
- Sim! Eu acho que estou apaixonada... E não me envergonho disso. – diz Ana de cabeça erguida e a olhar ansiosa para Glória. Resolveu confiar na irmã. Vamos ver o que ela lhe diz. Pode ser que a ajude a lidar com a situação, uma vez que é mais experiente. Sente-se mais aliviada... É como se dividisse as dúvidas com a sua confidente, e isso fá-la sentir-se mais leve.
- Isso é bom Ana! Quando é que ele vai falar com os pais?
- Eu não sei! Quer dizer, nunca pensei nisso! Nunca falámos sequer disso... Ainda é cedo!
- É cedo? Porquê? Não sabes o que ele sente, é isso?
- Mais ou menos... Sabes Glória, só falei com ele três vezes. A primeira desmaiei... Na segunda apenas cumprimentei... E hoje foi a única vez que realmente conversámos... Foi mágico, Glória. Ele falou-me da capital... Ele estudou lá, sabes? E deu-me a entender que sentia alguma coisa por mim... Mas não definimos sentimentos. Ainda é cedo... Percebes agora?
- Estudou na capital? De onde é que ele é? Como é que se chama? – pergunta Glória desconfiada.
- Chama-se Francisco. É da vila das Lajes, e estudou medicina. Estás satisfeita, ou queres um relatório completo? – pergunta Ana lançando um olhar cheio de ironia à irmã. Mas Glória não sorri. Parece preocupada...
- Não me digas que é o filho do médico da vila...
- Acertaste em cheio! Já o conhecias?
Glória fica desconcertada. Como é que há-de dizer isto à irmã? Tem de ser sincera e pronto... É melhor que ela saiba das coisas agora, para que não se envolva mais. Vai ficar tão triste... Nunca pensou que Ana se apaixonasse com facilidade, e agora que isso aconteceu escolheu logo a pessoa errada. Glória sabe que Ana apesar de ter aquela aparência de que nada lhe atinge, é na verdade muito frágil...
- Não sei bem como te dizer isto Ana...
- O quê Glória? Estás a deixar-me agonidada. Desembucha mulher...
- O Francisco é o noivo de Fátima... Vão casar para o ano... Eles ficaram, noivos no Natal quando o rapaz cá esteve, e combinaram casar-se um ano depois dele terminar o curso para que tivessem tempo de arranjar uma casa e dele arranjar os seus próprios pacientes... Foi a própria Fátima que me contou. Ainda não o conhecia!... Oh Ana, eu lamento!...
Ana chegou a casa completamente mergulhada no silêncio para grande aflição de Glória. Já deitada na cama não consegue dormir. O sentimento que ela sentia por Francisco devia ter desaparecido com aquela notícia, mas em vez disso parece mais vivo, e magoa-lhe tanto o peito. Sente o ar a faltar e um soluço preso na garganta. Não consegue controlar as imagens que vagueiam na sua mente. Os pensamentos libertaram-se e correm de um lado para o outro sem coerência nenhuma. A sua face está completamente molhada... As lágrimas também se tornaram autónomas e não pedem licença para sairem, um grito de dor permanece quieto num lugar muito incómodo que deixa Ana agoniada. Mas que desatino é este que ela está a sentir? Ana sabe bem o nome... É desgosto... desilusão... O seu encantado mundo estava a desmorenar-se. A magia estava a desfalecer. A esperança estava a morrer... Ana estava de luto por dentro e completamente desamparada por fora. Está a crescer-lhe um vazio no peito, que Ana sabe que vai ficar por preencher durante um período muito longo... Sempre...