Capitulo XVIII
A magia existe de uma forma tão descarada que é difícil acreditar que é
real, porque o ser humano valoriza o elaborado e mistifica demasiado o que é
fácil. Quando do nada nasce o belo, quando da chuva nasce o arco-íris, quando
da dor nasce uma nova vida, é impossível desacreditar-se na magia. Vanda ouvia Coro
dos Escravos Hebreus, e sentiu a sua pele arrepiar-se e a sua garganta
apertar-se sem perceber uma única palavra daquele canto que se elevava numa
emoção transmitida apenas por uma magia que lhe roçava os sentimentos e se
corporizava num eriçar de pelos. O telefone tocou e quebrou aquele momento em
que ela se sentia voar apenas por ouvir uma junção de sons que atingiam uma
harmonia perfeita.
- Sim! – Vanda atendeu contrariada o telefone.
- Olá! – A voz de Vasco surgiu do outro lado da linha e a magia da ópera
de Verdi pareceu menos perfeita.
- Olá Vasco! – Ela já não ouvia aquela voz que lhe estava entranhada nos
poros da sua própria pele há mais duas semanas e como por magia o frio de
Fevereiro pareceu-lhe menos agressivo.
- Eu estou a ligar-te porque temos um dador possível.
- Que bom! – a exclamação de alegria saiu-lhe da garganta num tom
demasiado esganiçado.
- Pois é! Só espero que essa pessoa aceite.
- Como é que alguém poderia recusar-se a ajudar uma criança maravilhosa
como é o nosso Matias? – Vanda sentiu que a esperança começava a dominar a
tristeza que sentia. A esperança é como a era. Só tem de ser plantada. E depois
ela própria domina o espaço que precisa para florescer.
- Esse dador és tu. – As palavras de Vasco ficaram no ar e a magia quebrou-se.
Vanda já não sentia a pele arrepiada da música nem a esperança que parecia
dominar-lhe todas as outras emoções. Sentiu apenas a dúvida como uma erva
daninha furiosa de preencher o seu espaço e que não precisa de ser plantada
para aparecer de forma oportunista na primeira oportunidade. – Estás aí Vanda?
- Sim estou! – Vanda encheu o peito de ar e antes de se deixar dominar
completamente pela dúvida teve forças para descansar Vasco, porque o bem estar
dele era-lhe mais precioso do que o seu próprio bem-estar. – Vou apanhar o
primeiro voo para aí.
- O médico é que queria falar contigo. Isto não é a forma correcta de
fazer as coisas, mas quando soube que se tratava de alguém do Corvo soube que
devia ser eu a falar… Não esperava que fosses tu… E quero que saibas…
Vanda desligou. Não conseguia ouvir mais a voz de Vasco sem que a culpa
lhe ensombrasse a alma.
Tantos dadores inscritos e nenhum foi compatível com o pequeno Matias.
Ela era a única que era compatível com aquele menino frágil. Vanda deixou-se
ficar no sofá sem qualquer reacção física, apenas com o pensamento dormente.
Havia algum tipo de raciocínio que se estava a formar na sua mente, mas que ela
parecia querer bloquear. Passaram-se momentos longos que ela não soube precisar
até que as lágrimas lhe chegaram em sintonia com a noite calma e fria num
entendimento obscuro do que a atormentava. Não encontraram na própria família
um dador compatível, porque talvez fosse biologicamente impossível… Porque
talvez Matias seja seu filho. Chorou convulsivamente. Quando os olhos lhe
arderam e se negaram a deitar mais uma lágrima, Vanda riu-se da ironia do
destino com uma nova certeza. O Matias era o seu filho… Por algum motivo que
não soube precisar as informações que Daniel lhe dera não estavam correctas.
Vanda pegou no telefone e ligou para a Guest House.
- Estou! Catarina! – Vanda sentiu-se desiludida ao ouvir a voz da amiga.
Tinha pressa em falar com o Daniel.
- Aconteceu alguma coisa Vanda? – Catarina esfregou os olhos e fixou com
dificuldade o relógio que acusavam três horas e catorze minutos.
- Preciso muito de falar com o Daniel!
Vanda ouviu um barulho de fundo e segundos depois uma voz ensonada surgiu
no telefone.
- Vanda! O que se passa?
- Houve um mal entendido… Preciso de falar contigo.
- Sabes que horas são? – Daniel ainda não conseguia ordenar as ideias.
Tinha Catarina ali nos seus braços e não lhe apetecia nada deixar aquele aconchego
que não o cansava.
- Sei. – Esta resposta fez despertar uma sirene dentro do Daniel
psiquiatra. Alguma coisa não estava bem.
- Vou já para aí Vanda!
Vanda sorriu quando ouviu as palavras que queria ouvir.
Passaram-se apenas uns eternos vinte minutos até que Daniel entrasse de
rompante pela porta dentro fugindo ao frio da noite. Vanda deixara a porta aberta
propositadamente. Tinha pressa…
- Olá! – Os olhos de Daniel perscrutaram-na enquanto amigo, mas foi o
psiquiatra que detectou o olhar vítreo preso numa teimosia qualquer que
reflectia uma sorriso palerma nos lábios inchados de uma choro intenso que
Daniel já tinha adivinhado. Os braços de Vanda abraçavam-na, enrolando-a numa
miséria que Daniel temeu.
- Estávamos errados Daniel! – A voz de Vanda era nervosa e o salto que
ela deu do sofá atirando-a para uma caminhada vertiginosa de uma lado para o
outro assustou Daniel. – O Matias encontrou um dador…
- Ah! Isso é bom… Não é? – Daniel procurava a origem daquela atitude
pouco convencional.
Vanda pareceu não ouvi-lo.
- E sabes que é o dador? – Daniel não respondeu porque sabia que ela não
esperava que ele o fizesse. – Sou eu Daniel… sou eu. E sabes porquê? – Daniel continuou
sem responder temendo aquele raciocínio sombrio. – Porque eu sou a mãe daquele
menino. – Vanda disparava uma ladainha incompreensível de justificações que a
conduziam àquela certeza inegável, e engolia palavras. De vez em quando fixava
os olhos em Daniel como se estivesse à procura de sinais de que já o tinha
convencido daquele facto. Ela era uma desesperada à procura de bênção para as
suas ideias. Daniel sentou-se calmamente no sofá e deixou que ela própria se
esgotasse. Só aconteceu quase duas horas depois. Vanda sentou-se no sofá e interrogou
Daniel com um olhar profundo. O psiquiatra encontrou naquele olhar uma fenda
naquela certeza de Vanda e agarrou-se a ela.
- Ficou muito feliz que sejas compatível com o Matias. Fico mais feliz
porque sei que vais ajudar aquele menino. Mas não és mãe dele.
Vanda reencontrou forças para saltar do sofá e esganiçar as suas dúvidas.
- Como é que podes dizer uma coisa dessas. Ouviste alguma coisa do que te
disse? A família toda fez os testes de compatibilidade e nenhum deles foi
positivo. Eu é que sou compatível com ele, porque temos os mesmo genes… somos
sangue do mesmo sangue…
Daniel voltou a esperar que ela terminasse aquele desabafo estridente.
Aprendera com ela que quando um paciente se expõe daquela forma, não é porque
está a ser agressivo ou demente… É porque precisa que o ouçam e o entendam. E ele
entendia-a…
- Agora vamos pensar mais profundamente. Vamos pensar os dois juntos,
está bem?
Vanda anuiu.
- Matias está internado num hospital, certo?
- Sim! – a voz de Vanda estava agora rouca.
- Um hospital bastante conceituado, não achas?
- Sim.
Daniel queria conduzi-la a uma certeza definitiva, mas uma certeza
formada pela mente dela e não imposta por terceiros como fizera na última vez.
Ele dissera-lhe que ela tinha tido Síndrome de Hellp e que perdera o filho e
ela assimilou essa ideia. Mas foi uma ideia que lhe foi plantada na mente. E
Vanda tinha uma mente forte que era capaz de desfazer ideias implantadas, por
isso precisava que fosse a própria mente de Vanda a encontrar a resposta.
- A Vera e o Marco fizeram inúmeros testes para saberem se eram compatíveis
com o Matias, certo?
- Sim.
- E os testes deram negativo, ou seja, nenhum deles é compatível com o
menino, estou a pensar bem?
- Sim… E não são compatíveis porque não são os pais biológicos.
- Faz sentido Vanda!
- Estás a ver! – Vanda levantou-se novamente vitoriosa. – Também achas o
mesmo não é? Deve ter havido algum erro, alguma lacuna…
- O hospital já comunicou à Vera e ao Marco que não são os pais
biológicos? – Daniel perguntou numa voz inocente, mas deixou uma nota de
ansiedade que Vanda não notou.
- O quê? – Vanda parecia ter bloqueado todo o seu raciocínio. Recusava-se
a voltar atrás. Ela tinha chegado a uma conclusão lógica e recusava-se a
negá-la novamente.
- Sendo um hospital credível, como tu própria acreditas que é, neste
momento e com tantos exames feitos que podem colocar em causa a paternidade de
Vera e Marco, se realmente for verdade já terá comunicado, não achas?
Vera sentiu um pontada no peito. Seria desilusão? Seria alívio por
finalmente ter alcançado o fim daquele dilema? Sentia-se dilacerada… Sabia que
se houvesse dúvidas acerca da paternidade de Matias os pais já haveriam de ter
sido notificados, e ela sabia que isso não tinha acontecido. Estava todos os
dias com os pais de Vasco e assistia a todos os telefonemas feitos no final do
dia com Marco. O hospital nunca levantara essa possibilidade e não o tinha
feito porque não havia dúvida… era tão simples como isto…
Vanda já não encontrou forças para voltar a chorar aquela perda, mas
sentiu que se tinha formado um novo buraco negro no seu peito. Sem qualquer
palavras, ela dirigiu-se para o quarto e deitou-se. Daniel esperou até ao sol
nascer, e quando teve a certeza de que ela estava a dormir, saiu levando
consigo uma verdade que não valia a pena ser descoberta.