domingo, 10 de fevereiro de 2013

Capitulo XVIII - Nas Asas do Corvo


Capitulo XVIII

A magia existe de uma forma tão descarada que é difícil acreditar que é real, porque o ser humano valoriza o elaborado e mistifica demasiado o que é fácil. Quando do nada nasce o belo, quando da chuva nasce o arco-íris, quando da dor nasce uma nova vida, é impossível desacreditar-se na magia. Vanda ouvia Coro dos Escravos Hebreus, e sentiu a sua pele arrepiar-se e a sua garganta apertar-se sem perceber uma única palavra daquele canto que se elevava numa emoção transmitida apenas por uma magia que lhe roçava os sentimentos e se corporizava num eriçar de pelos. O telefone tocou e quebrou aquele momento em que ela se sentia voar apenas por ouvir uma junção de sons que atingiam uma harmonia perfeita.
- Sim! – Vanda atendeu contrariada o telefone.
- Olá! – A voz de Vasco surgiu do outro lado da linha e a magia da ópera de Verdi pareceu menos perfeita.
- Olá Vasco! – Ela já não ouvia aquela voz que lhe estava entranhada nos poros da sua própria pele há mais duas semanas e como por magia o frio de Fevereiro pareceu-lhe menos agressivo.
- Eu estou a ligar-te porque temos um dador possível.
- Que bom! – a exclamação de alegria saiu-lhe da garganta num tom demasiado esganiçado.
- Pois é! Só espero que essa pessoa aceite.
- Como é que alguém poderia recusar-se a ajudar uma criança maravilhosa como é o nosso Matias? – Vanda sentiu que a esperança começava a dominar a tristeza que sentia. A esperança é como a era. Só tem de ser plantada. E depois ela própria domina o espaço que precisa para florescer.
- Esse dador és tu. – As palavras de Vasco ficaram no ar e a magia quebrou-se. Vanda já não sentia a pele arrepiada da música nem a esperança que parecia dominar-lhe todas as outras emoções. Sentiu apenas a dúvida como uma erva daninha furiosa de preencher o seu espaço e que não precisa de ser plantada para aparecer de forma oportunista na primeira oportunidade. – Estás aí Vanda?
- Sim estou! – Vanda encheu o peito de ar e antes de se deixar dominar completamente pela dúvida teve forças para descansar Vasco, porque o bem estar dele era-lhe mais precioso do que o seu próprio bem-estar. – Vou apanhar o primeiro voo para aí.
- O médico é que queria falar contigo. Isto não é a forma correcta de fazer as coisas, mas quando soube que se tratava de alguém do Corvo soube que devia ser eu a falar… Não esperava que fosses tu… E quero que saibas…
Vanda desligou. Não conseguia ouvir mais a voz de Vasco sem que a culpa lhe ensombrasse a alma.
Tantos dadores inscritos e nenhum foi compatível com o pequeno Matias. Ela era a única que era compatível com aquele menino frágil. Vanda deixou-se ficar no sofá sem qualquer reacção física, apenas com o pensamento dormente. Havia algum tipo de raciocínio que se estava a formar na sua mente, mas que ela parecia querer bloquear. Passaram-se momentos longos que ela não soube precisar até que as lágrimas lhe chegaram em sintonia com a noite calma e fria num entendimento obscuro do que a atormentava. Não encontraram na própria família um dador compatível, porque talvez fosse biologicamente impossível… Porque talvez Matias seja seu filho. Chorou convulsivamente. Quando os olhos lhe arderam e se negaram a deitar mais uma lágrima, Vanda riu-se da ironia do destino com uma nova certeza. O Matias era o seu filho… Por algum motivo que não soube precisar as informações que Daniel lhe dera não estavam correctas. Vanda pegou no telefone e ligou para a Guest House.
- Estou! Catarina! – Vanda sentiu-se desiludida ao ouvir a voz da amiga. Tinha pressa em falar com o Daniel.
- Aconteceu alguma coisa Vanda? – Catarina esfregou os olhos e fixou com dificuldade o relógio que acusavam três horas e catorze minutos.
- Preciso muito de falar com o Daniel!
Vanda ouviu um barulho de fundo e segundos depois uma voz ensonada surgiu no telefone.
- Vanda! O que se passa?
- Houve um mal entendido… Preciso de falar contigo.
- Sabes que horas são? – Daniel ainda não conseguia ordenar as ideias. Tinha Catarina ali nos seus braços e não lhe apetecia nada deixar aquele aconchego que não o cansava.
- Sei. – Esta resposta fez despertar uma sirene dentro do Daniel psiquiatra. Alguma coisa não estava bem.
- Vou já para aí Vanda!
Vanda sorriu quando ouviu as palavras que queria ouvir.
Passaram-se apenas uns eternos vinte minutos até que Daniel entrasse de rompante pela porta dentro fugindo ao frio da noite. Vanda deixara a porta aberta propositadamente. Tinha pressa…
- Olá! – Os olhos de Daniel perscrutaram-na enquanto amigo, mas foi o psiquiatra que detectou o olhar vítreo preso numa teimosia qualquer que reflectia uma sorriso palerma nos lábios inchados de uma choro intenso que Daniel já tinha adivinhado. Os braços de Vanda abraçavam-na, enrolando-a numa miséria que Daniel temeu.
- Estávamos errados Daniel! – A voz de Vanda era nervosa e o salto que ela deu do sofá atirando-a para uma caminhada vertiginosa de uma lado para o outro assustou Daniel. – O Matias encontrou um dador…
- Ah! Isso é bom… Não é? – Daniel procurava a origem daquela atitude pouco convencional.
Vanda pareceu não ouvi-lo.
- E sabes que é o dador? – Daniel não respondeu porque sabia que ela não esperava que ele o fizesse. – Sou eu Daniel… sou eu. E sabes porquê? – Daniel continuou sem responder temendo aquele raciocínio sombrio. – Porque eu sou a mãe daquele menino. – Vanda disparava uma ladainha incompreensível de justificações que a conduziam àquela certeza inegável, e engolia palavras. De vez em quando fixava os olhos em Daniel como se estivesse à procura de sinais de que já o tinha convencido daquele facto. Ela era uma desesperada à procura de bênção para as suas ideias. Daniel sentou-se calmamente no sofá e deixou que ela própria se esgotasse. Só aconteceu quase duas horas depois. Vanda sentou-se no sofá e interrogou Daniel com um olhar profundo. O psiquiatra encontrou naquele olhar uma fenda naquela certeza de Vanda e agarrou-se a ela.
- Ficou muito feliz que sejas compatível com o Matias. Fico mais feliz porque sei que vais ajudar aquele menino. Mas não és mãe dele.
Vanda reencontrou forças para saltar do sofá e esganiçar as suas dúvidas.
- Como é que podes dizer uma coisa dessas. Ouviste alguma coisa do que te disse? A família toda fez os testes de compatibilidade e nenhum deles foi positivo. Eu é que sou compatível com ele, porque temos os mesmo genes… somos sangue do mesmo sangue…
Daniel voltou a esperar que ela terminasse aquele desabafo estridente. Aprendera com ela que quando um paciente se expõe daquela forma, não é porque está a ser agressivo ou demente… É porque precisa que o ouçam e o entendam. E ele entendia-a…
- Agora vamos pensar mais profundamente. Vamos pensar os dois juntos, está bem?
Vanda anuiu.
- Matias está internado num hospital, certo?
- Sim! – a voz de Vanda estava agora rouca.
- Um hospital bastante conceituado, não achas?
- Sim.
Daniel queria conduzi-la a uma certeza definitiva, mas uma certeza formada pela mente dela e não imposta por terceiros como fizera na última vez. Ele dissera-lhe que ela tinha tido Síndrome de Hellp e que perdera o filho e ela assimilou essa ideia. Mas foi uma ideia que lhe foi plantada na mente. E Vanda tinha uma mente forte que era capaz de desfazer ideias implantadas, por isso precisava que fosse a própria mente de Vanda a encontrar a resposta.
- A Vera e o Marco fizeram inúmeros testes para saberem se eram compatíveis com o Matias, certo?
- Sim.
- E os testes deram negativo, ou seja, nenhum deles é compatível com o menino, estou a pensar bem?
- Sim… E não são compatíveis porque não são os pais biológicos.
- Faz sentido Vanda!
- Estás a ver! – Vanda levantou-se novamente vitoriosa. – Também achas o mesmo não é? Deve ter havido algum erro, alguma lacuna…
- O hospital já comunicou à Vera e ao Marco que não são os pais biológicos? – Daniel perguntou numa voz inocente, mas deixou uma nota de ansiedade que Vanda não notou.
- O quê? – Vanda parecia ter bloqueado todo o seu raciocínio. Recusava-se a voltar atrás. Ela tinha chegado a uma conclusão lógica e recusava-se a negá-la novamente.
- Sendo um hospital credível, como tu própria acreditas que é, neste momento e com tantos exames feitos que podem colocar em causa a paternidade de Vera e Marco, se realmente for verdade já terá comunicado, não achas?
Vera sentiu um pontada no peito. Seria desilusão? Seria alívio por finalmente ter alcançado o fim daquele dilema? Sentia-se dilacerada… Sabia que se houvesse dúvidas acerca da paternidade de Matias os pais já haveriam de ter sido notificados, e ela sabia que isso não tinha acontecido. Estava todos os dias com os pais de Vasco e assistia a todos os telefonemas feitos no final do dia com Marco. O hospital nunca levantara essa possibilidade e não o tinha feito porque não havia dúvida… era tão simples como isto…
Vanda já não encontrou forças para voltar a chorar aquela perda, mas sentiu que se tinha formado um novo buraco negro no seu peito. Sem qualquer palavras, ela dirigiu-se para o quarto e deitou-se. Daniel esperou até ao sol nascer, e quando teve a certeza de que ela estava a dormir, saiu levando consigo uma verdade que não valia a pena ser descoberta.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Capitulo XVII - Nas Asas do Corvo


Capitulo XVII

As aulas funcionavam como analgésicos e Vanda não se abstinha de usá-las como desculpa para dias atarefados entre a preparação de aulas, reuniões e testes. O mês de Janeiro foi passado num quotidiano apressado preenchido de forma aflitiva deixando o trabalho e as limpezas apenas para visitar os pais de Vasco. Estas visitas, no inicio espaçadas e formais, tornaram-se quotidianas e calorosas. Partilhavam a mesma preocupação com Matias, a mesma angustia na doença e Vanda voltou a sentir-se da família. Emília ansiava a sua visita sentindo-a como o seu momento de alivio diário. Para aproveitarem bem aquelas visitas, Vanda começou a jantar todos os dias naquela casa. Cozinhava com a D. Emília e com a sua irmã Irene que salpicava as tristezas com os seus comentários descabidos e engraçados.
- Os guisados da Emília é que te vão levar ao altar com o Vasco… - As três mulheres riram em uníssono como já não faziam há muito tempo. Vanda tinha encontrado naquelas mulheres umas boas confidente. Já toda a ilha conhecia a sua história e aceitava-a. Só desconheciam a loucura dela, desconheciam que ela acreditara ser mãe de Matias. Vanda nem queria imaginar como reagiriam se soubessem. Mas a verdade e que sabiam mais do que alguma vez alguém soubera a seu respeito e aceitavam-na assim mesmo. Esta era outra característica daquela pequena ilha. Eram um pequeno aglomerado de pessoas e cada pessoa tinha uma importância quase divina. Aceitavam cada um com os seus defeitos e virtudes quase como se fosse uma graça de Deus, e Vanda era mais um dos deles que preenchia o seu espaço naquele cantinho do mundo. E era apreciada. Na escassez encontramos importâncias que se perdem na abundância. E era assim que aquela ilha olhava para cada pessoa, valorizando a sua companhia, amizade, história e compreendendo cada ser sem grandes julgamentos… Porque cada um é imensamente desejado.
O telefone tocou e as três depois de um segundo de paralisia correram para a sala. Emília pegou no auscultador e inspirou fundo.
- Estou! – o momento de silêncio da mulher traduzia-se numa conversa solitária do outro lado da linha. Os olhos de Vanda devoravam qualquer pequeno sinal nas expressões de Emília, enquanto Irene rezava à padroeira da ilha, Nossa Senhora dos Milagres. Vanda sentiu o peito apertar-se quando Emília começou a chorar convulsivamente e largou o telefone. Vanda pegou no auscultador com uma premonição demoníaca que antecede uma má noticia.
- É a Vanda que fala agora. – O silêncio do outro lado colocou-lhe a duvida de que ainda estivesse alguém em linha. – Estou… Sim… Estou…
- Olá Vanda! – A voz rouca de Vasco penetrou-lhe nas entranhas. Vanda sentiu o seu estômago apertar-se ao sentir a tensão de Vasco e desejou imensamente poder abraçá-lo e diminuir-lhe o sofrimento que lhe sentia na voz.
- O que é que se passa Vasco?
- O Matias…
- O que é que tem o Matias? – Vanda sofria a antecipação daquela informação que adivinhava má.
- Ele precisa de um transplante… Precisamos de encontrar um dador. A Vera, o Marco e eu faremos os testes amanhã para ver se somos compatíveis…
- Não sei se estou a perceber… Isso é mau? Ele faz o transplante de medula e fica bom?
- Ai Vanda! Sinto-me cansado… sinto-me tão cansado… Onde é que tu tens andado?
- Estou no Corvo… - Vanda sentiu-se confusa com aquela pergunta. – Mas eu posso ir para aí… - Vanda hesitou. Nunca se tinha oferecido a ninguém que precisasse e não sabia lidar com esta situação.
- Não preciso de ti ao meu lado fisicamente… Mas neste tempo em que precisei tanto de ti, onde é que andaste?
- Eu… - Vanda engoliu o silêncio que lhe travava o raciocínio e ficou sem palavras nem reacção… Não tinha nada para dizer. Não tinha nada com que se defender. Passou todo aquele tempo mergulhada na sua miséria que arrasta consigo há demasiado tempo e voltou a magoar uma pessoa importante para ela…
- Adeus Vanda…
Vanda desligou o telefone e dirigiu-se para a cozinha. Fez uma sopa e saiu deixando a D. Emília entregue aos cuidados da irmã. Percorreu o caminho de calçada negra sem sequer prestar atenção no caminho demasiado conhecido. Todo o seu corpo tinha entrado num automatismo desconhecido e a letargia tomava conta dos seus pensamentos e emoções. Entrou em casa e fechou a porta apenas no trinco sem sequer pensar nos riscos de ter a porta principal destrancada. Atirou a mala para o sofá e fixou aquela imagem de uma mala caída de forma desleixada sobre uma manta impecavelmente branca que cobria o sofá em harmonia milimétrica com o tapete lilás. Alguma coisa naquela imagem a perturbou, mas Vanda não perdeu tempo a debater-se mentalmente com aquela desarmonia que não lhe interessava. Dirigiu-se ao quarto e deitou-se sobre a cama sem se despir. Não chorou, Não sofreu. Não racionalizou emoções. Apenas dormiu.
O sol entrou descaradamente pela portada do quarto. Os olhos teimavam em recusar aquela claridade prometedora de esperanças. Vanda esfregou a cara e  deixou escapar uma ladainha de insatisfações matutinas quando percebeu que tinha adormecido sem mudar de roupa. Levantou-se a custo e quase gritou consigo mesma quando viu a mala atirada sobre o sofá, enrugando a manta que agora precisaria de passar a ferro  para ficar novamente impecavelmente lisa. Tomou um duche demorando-se debaixo da água quente que lhe fustigava a pele como se fosse um castigo. Antes de sair arrumou meticulosamente o quarto repreendendo-se por ter-se tornado novamente desleixada. Vanda passeou os olhos pela turma que lhe pareceu imensamente reduzida sem Matias. Começava a sentir a importância de cada um enquanto individuo que caracterizava as relações daquela ilha. A sua boca explicava a alunos que nunca tinham saído daquele ilhéu e daquela realidade que mais parecia uma quimera o que era uma ditadura militar e como o país deles tinha vivida durante um período desses.
- Então quem é que escolhia o presidente? – As gémeas formularam a pergunta em uníssono como faziam habitualmente surpreendendo sempre Vanda.
- Os militares controlavam todos os poderes… Eram eles que elegiam os governantes. Por isso é que o presidente era um general… O general Carmona.
- Aqui no Corvo as pessoas votam no presidente da câmara e ganha quem tem mais votos… - Tiago que parecia sempre distraído das aulas intervinha com opiniões pertinentes nas alturas menos espectáveis.
- E é assim que deve ser Tiago… Mas nem sempre foi assim. – Vanda decidiu que em vez de continuar com a matéria iria aproveitar aquela demonstração de interesse e ensinar os seus pupilos a formarem opiniões e defendê-las. – Vocês acham que deve ser assim? Que o governante deve ser aquele que é eleito com o maior número de votos?
A resposta positiva surgiu em uníssono. Vanda sorriu. Tinha a atenção da turma nas suas mãos.
- E porque é que acham que deve ser assim?
Após um momento se silêncio profundo que reflectia debates internos nas cabecinhas dos seus alunos, uma da gémeas surgiu com uma resposta totalmente inesperada.
- Porque numa comunidade é importante que exista mais pessoas felizes do que  pessoas tristes.
E foi nesse momento que Vanda soube o que é viver em comunidade. É saber abdicar enquanto individuo beneficiando assim um todo… Mas este raciocínio ainda não reflectia as maravilhas de uma convivência tão unida. Foi a outra gémea que a elucidou dos benefícios do altruísmo em comunidade.
- Porque se houver nove pessoas felizes e apenas uma pessoa triste, as pessoas felizes unem-se e ajudam sem grande dificuldade a pessoa triste tornando-a feliz. Mas o contrario é mais difícil.
Foi neste momento que Vanda soube que aquela ilha se uniria para o bem de Matias e saiu disparada da sala de aulas. O gabinete da directora da escola encontrava-se vazio. Vanda fechou os olhos e obrigou-se a pensar. Ela estava a dar aula de matemática aos alunos do oitavo ano. Dirigiu-se para a sala e entrou sem bater à porta provocando um desviar de olhos silencioso na sua direcção. Após uns segundos de desconforto, Vanda recuperou a dignidade erguendo o queixo.
- Preciso de falar consigo Professora Margarida. É urgente!
A professora orientou os seus alunos para umas páginas de exercícios na expectativa vã de que ficassem sossegados.
- Do que se trata? – questionou a directora enquanto fechava a porta nas suas costas.
- O Matias vai precisar de um transplante de medula. – Vanda deixou que a ideia assentasse na mente da directora que abria os olhos numa preocupação evidente.A família fará os testes amanhã. Mas não podemos ficar de braços cruzados perante este tema. Acho que a escola poderia em conjunto com o centro de saúde fazer uma campanha de dadores de medula. Precisamos de ajudar o Matias… Nem que seja para mostrarmos à família que a ilha está disposta a ajudá-los a ultrapassar isto.
- Tem razão! Vou providenciar já tudo o que é necessário. Assim que souber de mais alguma coisa falo consigo Vanda. – A directora virou-lhe as costas mostrando intenção de voltar à sua aula. Deteve a mão na maçaneta da porta e voltou-se novamente pata Vanda com um sorriso. – Bem-vinda à nossa comunidade.
Vanda sentiu o peso satisfatório daquelas palavras. Ela estava integrada e sentia-se feliz por isso. Mesmo que significasse viver as dores dos outros, partilhar as amarguras e tristezas, também tinha quem a ajudasse a carregar a sua cruz.
O sábado chegou na azáfama da organização do grande dia. Daniel tinha chegado no dia anterior e estabelecera a ligação com o IPO de Lisboa de forma a que a recolha dos dadores fosse enviada para lá. Fora um sucesso. Todos os adultos da ilha compareceram. Não existiram cores políticas nem chatices de heranças e terrenos que afastassem a solidariedade daquele momento. Todos ouviram a explicação pacientemente do que significava ser dador de medula. Todos sujeitaram as suas veias às agulhas prontas para extrair o sangue. E todos saíram mais satisfeitos do que entraram no pavilhão da escola. Vanda olhava-se ao espelho com o sentimento de dever cumprido e sorriu para a imagem reflectida no espelho. O telefone tocou.
- Sim!
- Olá! – A voz cansada de Vasco penetrou-lhe a alma e de repente ela teve a sensação de que poderia fazer ainda mais… Mas não soube significar o quê.
- Vasco! Está tudo bem? – O soluço que respondeu a esta questão mostrou a insignificância daquela pergunta.
- Vai tudo correr bem Vasco! Hoje vamos fazer uma vigília nocturna e vamos rezar pelo Matias… - Vanda sentiu que a voz a denunciava e esforçou-se mais. – Não é à toa que a vossa padroeira se chama Nossa Senhora dos Milagres… - A gargalhada frágil de Vasco arrancou-lhe um suspiro de alívio. – Vai correr tudo bem Vasco!
- Nenhum de nós é compatível Vanda…
O peso daquela afirmação desceu sobre a mente dos dois e ambos choraram em silêncio.
- Nós fizemos uma campanha de angariação de dadores de medula. Compareceram todos aqui na ilha. – Vanda procurava alento nas suas próprias palavras. – A Vera Câmara e a Catarina têm sido incansáveis… Já sabes como elas são. Conseguiram que todas as outras ilhas aderissem a esta campanha pelo Matias e vai haver uma recolha na terça feira em simultâneo em todas as ilhas.
- Obrigada por tudo o que estão a fazer aí!
- Não tens de agradecer. Vamos encontrar um dador compatível… Eu sei que vamos.
O som das pancadas na porta despertaram-na da conversa. Vasco despediu-se e ela foi abrir a porta a uma visita matinal inesperada.
- Bom dia Vanda! – Vera Câmara e Catarina entraram sem pedir licença. Vanda revirou os olhos. Aquele era um hábito que ela engolia mas não gostava. – Vai vestir uma roupa velha e não te preocupes com o calçado. – Vera abanou-lhe um par de botas de borracha em frente aos olhos. – Podes usar as minhas… Já que eu não posso ir à apanha da erva com este barrigão.
- Ir onde? – Vanda não estava a perceber nada daquela conversa.
- Vamos apanhar a Erva do Calhau! – respondeu Catarina como se aquilo fizesse sentido. Perante o erguer do sobrolho de Vanda, ela continuou com a explicação. – Tivemos um Inverno muito rigoroso com mar bravo. Hoje temos um dia azul com o mar brando. É altura ideal para apanharmos uma alga marinha que chamamos Erva do Calhau. Anda daí… é uma tradição e não podes faltar.
Vanda deixou de protestar e juntou-se ao grupo de mulheres que se encaminhavam em conversas animadas para o Porto do Boqueirão. As rochas negras e escorregadias perfuravam o mar azul e era aí que as mulheres agachadas apanhavam as algas. Vanda imitou-lhes os gestos e ficou a saber que se a erva estivesse verde ou amarela já não prestava. Se apanhasse muito sol também já não era boa, por isso tinham de aproveitar aqueles dias em que o sol ainda não aquecera o basalto e a humidade do mar protegera a frescura das algas.
- As algas depois de apanharem sol são como as couves de Agosto, não prestam para nada…
A manhã foi produtiva e quando os recipientes se mostraram cheios e as mulheres satisfeitas, o caminho de volta foi feito com promessas de um jantar muito saboroso. Vanda não imaginava como usariam aquelas algas na comida, mas sentia-se curiosa. Depois da experiência que tivera ao provar as lapas cruas e vivas, sentia-se corajosa o suficiente para outras aventuras gastronómicas.
- Encontramo-nos à seis e meia na casa da Vera para prepararmos o jantar, Ok? – Catarina esperava uma resposta afirmativa de Vanda que não demorou.
Já em casa, Vanda tomou um duche libertando-se da maresia que se tinha entranhado na pele e no cabelo. Limpou a casa de banho com um desinfectante novo que não a deixou totalmente satisfeita. Preparou uns legumes cozidos com atum para o almoço e sentou-se no sofá a preparar o próximo teste de avaliação. A porta abriu-se sem aviso provocando-lhe uma comentário desaprovador.
- Olá Vanda! Não te zangues… Não se trata de nenhum ladrão… Até porque não existe nenhum nesta terra. – O riso sarcástico de Daniel arrancou-lhe um sorriso benevolente.
- Entra! Estava a ver que não me visitavas. Deves estar instalado muito longe da minha casa! – As gargalhadas prometeram animar aquela tarde, enquanto a conversa fluía e flutuava entre o trabalho dele e as aulas dela. Depois de cumprido o ritual de uma conversa ligeira, Daniel tocou no assunto que realmente lhes preenchia a alma.
- Sabes que ainda não encontraram um dador para o Matias? – Vanda absorveu aquela realidade demasiado conhecida.
- Sei… Mas recuso-me a entrar em pessimismos. Encostei-me sempre ao facilitismo de aceitar o lado mau sem sequer tentar conquistar o bom… Recuso-me a continuar por esse caminho. Não temos apenas uma família a lutar pelo Matias, mas sim uma ilha inteira… Aliás, um arquipélago, porque quando se trata de cuidar de um insular açoriano, não há povo como este… Esganam-se todos para ajudar um.
- Lá isso é verdade. Continuam à procura de uma dador compatível. – Daniel silenciou-se por uns segundos e perscrutou as feições de Vanda como se estivesse à procura de alguma evidência. – E tu Vanda? Como é que estás a lidar com esta nova realidade de não seres a mãe do Matias?
- Tenho percebido um pouco a doença. Nunca tinha ouvido falar do Síndrome de Hellp, mas o grupo de mulheres que encontrei no facebook tem sido incansável. – Vanda suspirou. – Sabias que o grupo é liderado por uma mulher daqui do Corvo?
- Estás a brincar!
- Cá nada. É liderado pela Vera Câmara, casada com o Joe. Deves saber quem são… eles são muito amigos da Catarina. – O rosto de Daniel ruborizou-se quando o nome de Catarina foi pronunciado. – E por falar em Catarina… - Vanda deu-lhe um encontram cúmplice com o ombro.
- Pois…
- Pois o quê? – Vanda arregalou muito os olhos face ao entendimento que a expressão acanhada de Daniel transmitia. – Tu não me digas que vocês… - Vanda libertou uma risadinha tipicamente feminina. – Grande malandro. E agora? Ela vai para o continente?
- É aí que reside o problema. Ainda não falamos sobre isso. É uma situação que nos assombra os pensamentos, mas parece que temos um pacto de silêncio sobre esse assunto…
- Mas como… - Vanda deixou a pergunta no ar. Não queria estragar o momento de felicidade do amigo.
O resto da tarde passou-se entre conversas animadas e menos animadas. Recordações e conselhos. Sempre acompanhados por um chá preto que fumegava por entre uma amizade que ia crescendo sem esforços ou pré-avisos. Porque a amizade é uma acto de entrega genuíno que só floresce quando está completamente despida de expectativas ou oportunismos.
Seguiram ambos para casa da Vera Câmara e chegaram no horário previsto. Joe atirou um avental a Vanda e uma cerveja a Daniel provocando uma ladainha de protestos no mulheredo.
- Ainda não estão bem domesticadas. – O piscar de olho cúmplice de Joe para Daniel aumentou automaticamente o volume dos protestos. A cozinha exibia vapores cheirosos. Vanda nem pensou nas calorias e gordura que aquela refeição continha. As morcelas negras combinavam na perfeição com os inhames e as tortas de erva do calhau adquiriam um tom escuro que se perdia numa junção perfeita de sabores com um bolo de milho cozido num forno de lenha. Vanda revirava os olhos a cada garfada. Ela era nativa daquela ilha de certeza absoluta. A conversa alongou-se pelo jantar partilhado. A barriga de Vera foi mimada por todos os presentes que não se poupavam a uma caricia ou a beijos ruidoso que arrancavam gargalhadas altas à mãe babada.
A noite caiu e todos deslocaram-se à igreja da matriz. A D. Emília já estava no átrio e recebia cada recém chegado agradecendo o apoio. A ilha deslocou-se toda, idosos adultos jovens e crianças partilharam aquele momento de oração e os corações de todos foram depositados junto de Matias. Vanda voltou a sentir a mão de Deus e as lágrimas partilhadas misturaram-se no pedido único de várias vozes para que Deus ajudasse o pequeno Matias. As esperanças foram todas colocadas na padroeira da ilha, Nossa Senhora dos Milagres e as rezas elevaram-se num sentimento profundo de altruísmo.