domingo, 30 de outubro de 2011

CAPÍTULO VIII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO VIII
    O quotidiano da terra sobrepôs-se à alegria das festividades, e as rotinas garantidoras de uma sobrevivência digna numa ilha acabou por se instalar com a mesma naturalidade com que uma aranha aceita outro insecto na sua teia. O calor era suportável, mas a junção deste com a humidade faziam os corpos transpirarem um melaço peganhento que se agarrava descaradamente à pele daquelas gentes. Glória preparava o casamento tão desejado pelos noivos e trabalhado pelos restantes membros da família, que alimentavam o porco destinado a alimentar os convidados daquele dia.
- Estou tão feliz! – Glória tentava contagiar a amiga cada vez mais debilitada pela falta de alimento.
- Nem imaginas como eu te desejo toda a felicidade do mundo! – Fátima falava por entre um murmúrio libertado pelos lábios descarnados.
- Quero muito que estejas presente Fátima! – Glória agarra uma mão inerte e murcha e fixa aqueles olhos encovados numa face demasiado magra com um olhar esperançado. – Tu sabes que só será o dia perfeito para mim se fores tu a minha madrinha. Fizemos esta promessa quando começamos a pensar em rapazes, lembras-te?
    Fátima sorriu e soube que o momento de reencontrar o seu Manel teria de esperar mais um pouco. Este sonho que se realizaria com a sua morte foi imediatamente adiado em detrimento dos desejos da sua amiga. Pensando nisto Fátima não conseguiu evitar um sorriso. Parece irónico. Ela deseja de uma forma incomensurável deixar esta vida, as pessoas que lhe são próximas, e no entanto está a agir contra o seu desejo para dar uma alegria exactamente a uma dessas pessoas que ela pretende abandonar. Analisando friamente é este o cenário, mas a verdade é que os actos humanos acarretam cenários que nunca são tão simples ou fáceis. Cada acto humano transporta o peso das emoções dos impulsos dos raciocínios ou da falta deles... E este é um acto de amor, porque a base de uma amizade séria é o amor. Aquele amor que não tem vergonha de ser apregoado. Aquele amor que partilha tristezas, alegrias, sorrisos e confidências. Aquele amor que serve de alicerce a qualquer tipo de relação sincera. Porque sentir amizade por alguém é amar, e amar é usar de actos que intuem a felicidade do outro sem que isto signifique qualquer esforço caprichoso. E Fátima queria um último acto de amizade para com a sua amiga tão amada Glória...
Glória estava diferente. Ela sentia-se diferente. Aprendera que a sua personalidade frágil e quase apática é capaz de se evidenciar e sobrepor-se quando levada ao limite. Em cada visita semanal que tem feito a Fátima sente este novo sentimento de vitória e de imposição sedimentar-se. A D. Alice parece-lhe a cada nova visita mais pequena e insignificante, contrariando a altivez da jovem noiva. E a sensação de vitória é como a cafeína, quando ingerida nas doses certas revitaliza a alma e o corpo.
- Claro que vou! Já só faltam duas semanas... – Fátima sorri um sorriso malandro. – Dizes-me que vou ser madrinha apenas a alguns dias do casamento... Tens medo que tenha tempo de arranjar um vestido mais bonito do que o teu... – As raparigas riem gargalhadas diferentes.
De volta a casa, Glória encontra em cima da cama a pequena tera com um veu comprido comprido delineado por uma bainha de cetim branco. Glória sente um par de lágrimas rolarem-lhe pela face. É um trabalho moroso feito pela irmã mais nova e que reflecte o afecto que une as três irmãs. Glória chora um choro calmo e sentido. Não é tristeza, mas também não se trata de felicidade... Ou talvez sejam ambos os sentimentos. Um passo em frente na nossa vida significa sempre ficar mais próximo de um objectivo, mas mais distante de um apego. E o casamento é um passo demasiado comprido que a faz chegar a uma nova etapa da sua vida e afastar-se de outra etapa que lhe é tão querida. É verdade que a famíla caminha ao nosso lado durante toda a nossa vida... Mas existem várias formas de caminhar. Até aqui ela caminhou no mesmo caminho que os pais e as irmãs... Apartir daqui caminharão caminhos paralelos sem nunca se perderem de vista... Mas nunca mais será o mesmo caminho...
- Glória! Oh Glória! – Luzia entra no quarto das filhas com um olhar transtornado. Os cabelos mal apanhados arrepiavam-se fugindo da prisão dos ganchos partilhando o mesmo desalinho.
- O que se passa mãe? – Glória corre ao encontro da mãe que assim que a vê se deixa cair num banco da cozinha e desata num pranto.
- Eu vou fazer-te uma pergunta filha e não me mintas! – Luzia fixou o rosto de Glória concentrando-se em sinais que demonstrassem uma contradição às palavras que a filha pronunciaria. – A Tia Espirito Santo disse-me que corre á boca pequena na vila que a Fátima está a desfalecer de tristeza e que a culpa é da tua irmã… O que sabes tu desta história?
Os lábios de Luzia fecharam-se numa linha dura que acompanhava o olhar. O seu rosto conhecidamente alegre parecia talhado numa rocha cinzenta e Glória perante esta mãe desconhecida não sentiu abertura para rodeios.
- A nossa Ana apaixonou-se pelo filho do médico da vila, o Francisco.
- Ela quer matar-nos de vergonha? Mas que raio é que essa rapariga tem na cabeça? O rapaz tem uma noiva…
- Oh mãe! Acalma-te! – Glória rodou os ombros da mãe com os seus braços pálidos e embalou-lhe a desilusão. – Eu sei que estás desiludida com a Ana. Eu sei que a tua alma chora. Mas como uma família unida que nós somos é altura de formarmos um muro impenetrável à volta da Ana. Ela vai precisar de todo o nosso apoio e defesa para enfrentar o que aí vem. Ela não escolheu um caminho árduo porque gosta de sofrer… Ela apaixonou-se. E o Francisco retribui-lhe este sentimento.
- Ai Glória! Eu sempre rezei a Deus para que as minhas filhas tivessem uma vida humilde sem grandes sobressaltos e que soubessem viver das pequenas alegrias do dia-a-dia. As alegrias grandiosas têm preços muito altos…
As duas mulheres abraçaram-se e choraram tudo o que aquela situação merecia naquele momento, porque a partir daquele momento não haveria mais lugar para lamentações. José encostado à soleira da porta assistiu àquela conversa na sombra e partilhou daquelas lágrimas que anteviam as dificuldades de uma filha tão amada. Mas para além deste pronúncio de dias difíceis, José também chorou de gratidão pela família maravilhosa que Deus lhe tinha entregado sem que ele a tivesse escolhido.
- José! Não te senti chegar! – Luzia olhou o marido com um olhar de pedinte procurando uma gesto de apoio à decisão que acabava de tomar. Ela enfrentará tudo o que se insurgir contra a sua Ana e defenderá a sua cria como uma leoa.
José abriu os seus longos braços demasiado morenos e acolheu as duas mulheres reforçando a união daquela humilde família.
- Na vila a nossa Ana é uma víbora insensível. – José queria as cartas em cima da mesa. A partir deste momento não queria meias palavras ou falsos entendimentos. Se estavam unidos para proteger Ana, então teriam de falar no assunto abertamente. – Aqui na freguesia já começo a notar uns olhares de soslaio que deixam transparecer rancor.
- Mas a Ana não tem culpa! – Glória defendia a irmã sempre que sentia que lhe estavam a apontar o dedo.
- Eu não estou a culpar ninguém. Estou a mostrar-vos a situação tal como ela se apresenta. As pessoas são cruéis. Muito cruéis e apontar o dedo é uma ocupação preferencial das nossas gentes. Estão preparadas para os sussurros e olhares de soslaio de que vamos ser alvo a partir deste momento?
O sim uníssono surgiu a três vozes femininas sem nenhuma réstia trémula, com a segurança dos audazes. Maria juntara-se à reunião e sentia o sangue fervilhar-lhe dentro das veias numa inquietação que previa uns pares de estalos a quem se atrevesse falar mal da irmã.
O entendimento mutuo que saíra daquela cozinha ficou entrenhado na alma dos presentes e a precepção de que o casamento de Glória poderia não contar com todos os convidados foi intuido por todos, mas pronunciado por nenhum. Glória não se sentia melindrada com esse facto. Quem fizesse questão de presenciar o seu casamento sem vergonha e de a acompanhar naquele momento feliz da sua vida é porque realmente lhe interessava como pessoa. Quem não marcasse presença, então é porque não estava ali a fazer nada. Os momentos dificeis são o melhor coador de afinidades que existe.

O dia do casamento chegou numa premonição boa transmitida por um sol radiante sustendo-se numa felicidade tão brilhante que se espalhava pelo céu não premitindo a entrada de nuvens desagradáveis naquele cenário. Assim era o casamento de Glória. As pessoas mesquinhas que haviam tido a pertinência de avançar com juízos de valor não estavam presentes. E tal como acontece aos leais, foram premiados pela sua presença com a imagem fantástica de Fátima a suposta noiva enganada e eferma com o desgosto, no altar ao lado de Glória abençoando junto com as divindades aquela união. Os olhares pasmaram perante tal facto, mas como naquela igreja pouco cheia não havia lugar a olhares maldosos, os convidados congratularam-se por não se terem enganado na confiança que depositavam naquela familia.
A missa de casamento emocionou todos quando Glória no fim da cerimónio se apoderou do púlpito e pediu a atenção dos presentes.
- Quero agradecer a todos os presentes! Sei que os que se atreveram a vir a esta cerimónio são os verdadeiros amigos da minha familia. Fico-vos eternamente grata por não nos terem virado as costas e por partilharem este momento tão importante da minha vida. Quero também agradecer à minha amiga Fátima o facto de estar aqui presente e de ser a minha madrinha de casamento.
Face ao abraço apertado das duas amigas a plateia emocionou-se e explodiu num aplauso nunca antes atrevido na casa de Deus.
- Isto é uma família de gente boa! – A tia Espirito Santo falava para a senhora do lado. – Eram incapazes de fazer mal a alguém…
- Também acho! Eu e o meu Joaquim nunca acreditamos nessa história da filha dos Ferreira querer roubar o noivo da outra pequena. É uma história muito mal contada… - A mulher baixa e redonda que fazia conversa com a tia Espírito Santo adoptou o seu ar coscuvilheiro e continuou. – Mas tens de concordar que é estranho os pais da menina Fátima não estarem presentes. Dizem que eles foram contra o facto de a rapariga ser madrinha da Glória.
- Sabes o que te digo mulher de Deus! Se as pessoas se preocupassem mais com o que se passa dentro das suas próprias paredes havia mais gente feliz… - Filomena, uma mulher prática e pouco bonita arrematou aquele diálogo que se adivinhava tornar-se maldoso. Ela própria era viúva de dois falecidos maridos e tinha o terceiro muito doente em casa. Sabia bem os prejuízos da maledicência num meio pequeno. As pessoas sabiam lá o que ela sofrera com cada uma dessas perdas. As pessoas imaginavam lá o que é antever um futuro sozinha sem um companheiro para partilhar as dores e alegrias. Podiam chamar-lhe ave de mau agoiro. Podiam acusar-lhe de matar maridos por um motivo obscuro qualquer. Mas não sabiam o que se passava de verdade dentro da sua alma. A verdade era bem mais simples do que os sussurros maldosos que lhe rondavam a reputação. Ela tinha uma sorte muito rara num meio mesquinho daqueles. Deus dera-lhe três maridos que a trataram como uma rainha com todo o respeito e amor que se podia desejar numa relação. Mas o custo destas alegrias residia na durabilidade de cada um dos homens da sua vida. Se ela tivesse tido apenas um marido que a tratasse mal, a batesse e se embebedasse como um homem a sério, ela seria então considerada uma santa senhora… Estas são as hipocrisias das mentes pequenas.
Os festejos prosseguiram num almoço animado na voz do campo. Ana sentou-se ao lado de Fátima conversando animadamente causando primeiro alguns sussurros e depois alguns alívios.
- Fátima! – Ana queria abrir-se com Fátima. Ela merecia a sua sinceridade total. – Eu queria abordar um assunto delicado contigo.
- Eu sei Ana! Vamos ter de falar acerca do Francisco.
- Sabes que nos temos encontrado algumas vezes?
- Eu sei que vocês nutrem sentimentos que são correspondidos… e nem imaginas como vos invejo.
Ana sentiu um nó na garganta. Será possível que ela esteja mesmo a sofrer por amor a Francisco? O peso da traição que sentiu assentar-lhe no peito era impossível de ser transportado.
- Basta uma palavra tua Fátima e eu afasto-me…
- Não sejas tola! O que eu quero dizer é que tenho saudades do tempo em que eu me sentia capaz de enfrentar qualquer dificuldade apenas em troca de uns momentos escapados a olhares indiscretos com o meu Manel.
- Pois! A Glória contou-me a tua história!
- E fez muito bem! Eu devia ter tido coragem para a ter contado quando o meu Manel ainda era vivo. Devia ter enfrentado todos os olhares maldosos que se atrevessem a julgar a minha felicidade ao lado de um pobre diabo. Devia ter erguido a cabeça e ter passeado de mãos dadas com o Manel por entre os sussurros que se atrevessem a criticar a moralidade desse acto. Devia tê-lo apresentado aos meus pais e jantado com ele utilizando as porcelanas da Dona Alice. Devia ter apregoado ao mundo numa voz muito mais alta do que a criticas que amava um pobre baleeiro que cheirava a peixe e que não sabia sequer ler nem escrever… - Fátima pegou na mão de Ana sem nunca olhá-la. – Sabes Ana, o mundo é muito mais cruel com os cumpridores do que com os corajosos…
- Obrigada Fátima, pelas tuas palavras.
- Eu dou-te a minha bênção para o teu namoro com o Francisco. Só gostava de ter a oportunidade de vê-lo para libertá-lo deste vínculo invisível que o liga a mim…
- Nem imaginas como me estás a fazer feliz neste exacto momento Fátima.
Ana abraçou a rapariga que a afastou num gesto que intuía a não aceitação daquele afecto.
- Não me agradeças já! Eu vou ser a tua desgraça nesta ilha Ana! E nem imaginas como lamento isso…
- Não te estou a perceber…
- Eu sou vigiada 24 horas por dia! Não vou ter a liberdade necessária para terminar este noivado com a celeridade que mereceria e que permita um tempo suficientemente digno para que possas comprometer-te com o meu actual noivo.
- Continuo sem perceber Fátima!
- Eu vou deixar esta vida em breve para poder encontrar a minha própria felicidade… Não vou poder terminar o noivado da forma conveniente. Não te vais tornar noiva de uma forma digna aos olhos desta terra… Estás preparada para o que aí vem?
Ana percebeu o que Fátima lhe estava a transmitir naquelas palavras muito sábias e visionárias. Mas o que lhe entristeceu naquele exacto momento não foi a notícia das dificuldades que passaria para ficar com o seu Francisco, mas o anúncio da morte prematura da amiga. Os seus olhos tristes animaram-se um pouco ao fixarem a felicidade da irmã mais velha rodopiando nos braços do marido trocando sussurros eternos, partilhando gestos comuns e sorrindo em uníssono numa promessa duradoura.

domingo, 23 de outubro de 2011

CAPÍTULO VII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO VII


   Afinal foram as três irmãs dentro da velha camioneta a caminho da vila das Lajes para visitarem Fátima. Nenhuma delas apreciava a viagem lenta que parava em cada freguesia renovando o número de passageiros a cada dez minutos. As raparigas desceram na última paragem da urbana, junto à Igreja da Matriz. Os vinte minutos de distância que levaram a chegar a casa de Fátima foi feito num silêncio absoluto. Paradas em frente à porta de madeira pintada de verde e recortada por pesadas pedras de basalto escuro que contrastava com o branco imaculado das paredes. Glória levou uns minutos até levantar a mão trémula e bater naquele badalo dourado demasiado ornamentado para uma aldeia de baleeiros.
    A surpresa de Alice ao deparar-se com aquelas irmãs devassas à sua porta foi imediatamente substituída por um ar imponente a ameaçador.
    - Que surpresa meninas! A que se deve esta visita? – Alice manteve a porta a meio caminho vigiando apenas por uma fresta.     
    - Bom dia D. Alice. – Respondeu Glória com uma calma disfarçada. – Viemos à vila comprar uma bilhas e uns açafates novos que os nossos perderam-se nas festas, sabe como é...
    - Não, não sei... Infelizmente não há disposições para festas nesta casa.
    - Pois! Nós queríamos ver a Fátima. Estamos muito preocupadas. Nunca mais soubemos nada dela...
    - Ela está na mesma. Continua doente. Deve ser ansiedade do casamento. – E num gesto que intuía uma despedida breve começou a fechar a porta despedindo-se – Infelizmente ela está agora a dormir, mas fiquem descansadas que eu digo-lhes que estiveram cá.
    Maria indignada com aquela recepção forçou o seu corpo entalando-o entre a porta de modo a assegurar-se de que ela não era fechada.
    - Eu gostava muito de lhe deixar um desenho. Talvez a D. Alice tenha a gentileza de me emprestar um lápis e um papel. – Maria deixou deslumbrar o seu melhor sorriso acompanhado por um piscar de olhos inocentes que provocaram um arrepio de raiva pela espinha acima da dona da casa que culminou num ruborizar de bochechas e num faiscar de olhos.
    E antes que aquela bruxa inventasse outra desculpa, Maria forçou a entrada e fez-se de convidada.
    - Ah! D. Alice tem a casa sempre tão riquinha. Até dá gosto, vê-se que é muito primada. Oxalá a Fátima tenha saído a si... – Maria tentava fazer conversa com aquela mulher impenetrável de modo a que ela baixasse as defesas e as irmãs encontrassem uma oportunidade de deixar alguma mensagem a Fátima. – O Doutor Francisco é um homem de sorte...
    - Tirem-se quaisquer dúvidas disso. A minha Fátima vai fazê-lo muito feliz. – Responde Alice impondo ordem em qualquer intenção duvidosa que pudesse vir daquele trio.
    Maria percebendo que não podia contar com a ajuda das irmãs que se limitavam a segui-la atónitas continuou a conversa.
    - Vai ser o casamento do ano. Não se fala de outra coisa. Eu já tenho pelo menos meia dúzia de encomendas de chapéus para essa data. Já fizeram o vestido da noiva?
    - Já está encomendado. A Fátima já fez duas provas antes de adoecer. Agora talvez vá precisar de uns ajustes uma vez que aquela rapariga está a emagrecer a olhos vistos.
    Sentia-se que a D. Alice começava a desanuviar. A conversa dos preparativos do casamento fizeram-na baixar armas, o que foi muito inteligente da parte da Maria. Glória estava tão aparvalhada com a atitude da irmã mais nova que parecia ter o cérebro parado. Foi Ana a primeira a sair daquele estado de transe.
    - Eu quero que a D. Alice saiba que nós só queremos o que é melhor para a Fátima. E se a Fátima deposita todas as suas convicções no casamento, então tem todas as nossas preces nesse sentido. – Alice sentiu um misto de alívio e desconfiança. Talvez aquela batalha estivesse ganha...
    Maria conseguiu o pedaço de papel e o lápis pretendidos. Dividiu a folha em dois. Numa das folhas desenhou um cachalote a mergulhar, com vários botes a fazer mira para o animal. Homens minúsculos de arpão apontado envergavam peitos cheios de ar e orgulho enquanto os botes balouçavam ferozmente num mar irrequieto. Estava um cenário montado à espera de uma desgraça que o desenho deixava antever. Na segunda folha, Maria deixou um recado escrito à pressa:
“ Deixa a tua janela aberta. Vais receber uma visita importante.
                                                                  Maria Ferreira, irmã da Glória”
   
    - Pronto já acabei o desenho D. Alice. Vou só enfiá-lo debaixo da porta. – E dito isto a pequena levantou-se e dirigiu-se à porta do quarto sob o olhar atento da D. Alice. Maria adoptou um passo lento mas firme dando ao momento um certo dramatismo. Passou em frente ao sofá de pele vermelho escuro onde estavam sentadas as duas irmãs piscando-lhes o olho. Roçou levemente a beira da saia preta demasiado rodada da D. Alice que se encontrava encostada à porta do quarto guardando descaradamente a porta. Mostrou o desenho à D. Alice recebendo em troca um aceno de cabeça e um inspirar mais profundo transparecendo alívio por se tratar efectivamente de um desenho. Dobrou cuidadosamente a folha e num gesto quase gracioso baixou-se e enfiou o papel debaixo da porta.
    Seguiu-se uma despedida desajeitada e quase embaraçosa conduzida pela personagem mais jovem daquele elenco. Assim que as três irmãs sentiram a porta bater nas suas costas respiraram de alívio mas não diminuíram a passada, parando apenas no adro largo da igreja onde se encostaram ao muro de pedra escuro.
    - Mas que situação mais estranha! Agora que estou mais calma é que percebo que saímos tal como entramos, sem saber de nada... – Ana deixou cair os braços sobre o corpo num gesto de impotência.
    - Jesus Cristo nos valha! Que a situação é pior do que esperávamos. O que é que devemos fazer agora? – Glória começava a mostrar desespero naquela voz que se esganiçava como se ela estivesse à beira das lágrimas.
    - Se o mundo dependesse do vosso desembaraço estaríamos todos condenados... – Maria esticou-se, encheu o peito, empinou o nariz e mostrou porque era a mais inteligente da família. – Neste exacto momento a Fátima deve estar a abrir uma fresta da janela e espera a nossa visita clandestina.
   As duas irmãs mais velhas trocaram um olhar confuso.
    - O que é que estás para aí a dizer? – Perguntou Glória desconfiada.
    - Estou a dizer que enquanto vocês duas gaguejavam e faziam figuras tristes eu meti debaixo da porta um bilhete juntamente com o desenho pedindo que a vossa amiga deixasse a janela aberta de modo a que pudéssemos lá entrar sem a D. Alice dar conta.
    Ana agarrou Maria pela cintura e fê-la rodar no ar. Rodaram tanto que acabaram por cair no meio de gargalhadas estridentes em cima dos quadrados escuros de basalto que formavam um tapete negro por entre o verde do relvado até à porta da igreja.
    - Tu és um geniozinho sua pirralha esperta – gritava Glória enquanto despenteava freneticamente os caracóis alinhados da pequena.
    Com uma nova esperança as três irmãs passearam pelas ruas da vila. Sentaram-se no porto da vila Lajes mirando a paisagem. Logo ali ao lado tinham a rampa larga onde os homens forçavam os longos e estreitos botes a entrarem no mar. Desciam a rampa fazendo os botes deslizarem água adentro e saltavam lá para dentro sem fazerem a embarcação vacilar. Os botes afastavam-se deixando à vista apenas uns longos pontos brancos. Do lado oposto espalhavam-se as casas dos pescadores e baleeiros com a escuridão e tristeza do basalto escondendo sempre uma perda próxima. Aquela população triste e sorridente, pesada e solidária encrostada na base daquela montanha imensa coberta por um verde-escuro assombroso no inverno e resplandecente no Verão ofereciam cumprimentos e acções quotidianas simples e vulgares quase felizes.
    Quando os três corações começaram a bater compassadamente e a mente se libertou do aperto, as três raparigas resolveram voltar à casa de Fátima. Subiram as escadas do balcão quase de gatas. No topo destas encolheram-se contra a parede e passaram por baixo da primeira janela. Um grito vindo do interior fez com que gelassem contento os movimentos e a respiração durante uns longos segundos. Quando se sentiram novamente seguras continuaram a deslizar pela parede até à quarta janela. Maria subiu o olhar muito a medo espreitando o interior do quarto. De repente saltou lá para dentro, correu para a porta trancando-a, voltou à janela e ajudou as irmãs a treparem lá para dentro. E finalmente suspirou de alívio.
    O quarto cheirava a jasmim e a doença. Os três pares de olhos pousaram no rosto pálido de Fátima retendo uma alegria invulgar num rosto tão descorado.
    - O que é que se passa contigo Fátima da minh’alma? – Glória foi a primeira a avançar para a amiga deixando-se cair de joelhos ao lado da cama e afagando os cabelos sem brilho da doente.
    Fátima deixou cair uma lágrima gorda que contrapunha o sorriso descarnado.
    - Vou ter com o meu Manel. E pela primeira vez, desde a sua morte estou feliz. – Enfrentando os soluços descarados de Glória e o tremer de lábios das outras irmãs, Fátima sentiu-se incompreendida – Não chorem. Esta é a minha forma de conseguir ser feliz e quero a vossa aprovação.
    - Chega desta mariquice! – Explodiu Maria expondo toda a sua indignação por alguém jovem, relativamente belo, muito inteligente e cheio de saúde, estar desta forma a fitar a morte numa atitude ingrata e até arrogante. – O que é que queres Fátima? Chamar a atenção? Pois bem, és detentora de toda a nossa atenção... Agora vou buscar comida e enfiá-la por essa goela abaixo ou não me chamo Maria Ferreira...
    E numa atitude autoritária dirigiu-se para a porta do quarto decidida a fazer o que havia acabado de prometer, quando um grito desesperado a petrificou. Todas as três arregalaram os olhos na direcção de Fátima, seguindo-se a intuição de que a D. Alice corria a passos pesados para o quarto. Sem trocarem palavras e num entendimento geral as três irmãs esconderam-se como puderam. Maria enfiou-se dentro do guarda-fato e a outras duas meteram-se atrás dos pesados cortinados. A porta abriu-se com uma ferocidade que fez estremecer cada corpo humano que aquele quarto de cama continha.
    - O que foi? Que grito foi este? Ai que me agonias!... – A D. Alice entrou no quarto e sentou-se na beira da cama de Fátima.
    - Eu não ouvi grito nenhum. – Respondeu Fátima com uma calma aparente.
    - Como assim não ouviste se o grito saiu daqui deste quarto?
    - Ai mãe! Se lhe estou a dizer que não ouvi nada...
    - Só falatava agora que me chamasses de doida. Eu sei o que ouvi! Não sou nenhhuma desregulada do juízo. – E com isto a D. Alice levantou-se e avaliou cada canto do quarto com um olhar demasiado atento. Parecendo satisfeita com o veredicto, a mulher encaminhou-se para a porta.
    - Vou buscar-te qualquer coisita para comeres, está bem? – Perguntou meio a medo.
    - Não tenho fome.
    - Vais ter de comer mais cedo ou mais tarde. Tenho uns inhames cozidos lá dentro... Devias comer um pouco.
    - Obrigada mãe, mas não tenho fome.
    O calor que a D. Alice sentiu nas entranhas traduziram-se um rubor furioso e num atirar de palavras.
    - O que é que tu queres de mim filha ingrata? Pára de te armares em doente. Isso pega com o teu pai que é um tanso, mas não pega comigo... – Enquanto gritava os braços abanavam-se como se se estivesse a afogar. – Eu sei bem que gozas da saúde de um touro. Estás a armar-te em menina mimada, mas isso não te vai levar a lado nenhum. Nem que tenha de voltar a dar-te umas palmadas nesse rabo escanzelado como quando eras garota... – E num levantar de mão austero de quem se prepara para transformar em acções as sua palavras, a D. Alice enche o peito de ar elevando o máximo possivel o punho direito deixando-o descair com toda a sua força sobre o corpo frágil de Fátima. Aquele punho gordo e pesado é agarrado no ar por uma mão forte e pálida. Os olhares das duas mulheres encontram-se e detém-se um no outro por demasiado tempo. Os olhos da D. Alice estão esbugalhados de espanto e levam tempo a estreitarem-se num olhar ameçador. Glória mantém um olhar duro e demasiado escuro invulgar naquela cara jovem e conhecidamente feliz.
- Se volta a levantar a mão a Fátima, sou eu que acerto contas consigo sua bruxa oportunista... Malvada de uma figa... Diabos te levem velha maléfica... Eu juro que te parto em pedaços e dou-te de comer aos porcos... – As ameaças de Glória tornavam-se esganiçadas e terminaram repentinamente com um estalo barulhento que sentiu na sua face rebentando imediatamente o lábio inferior num rio de sangue que depressa se alastrou no colarinho de renda branca. Os olhos da rapariga deixaram de ser duros para brotarem em lágrimas de dor.
- Nunca mais tocas na minha irmã... – Maria saltou para as costas da D. Alice e agarrou-lhe os cabelos com uma força imprópria para uma menina da sua idade. Ana espantada com aquele cenário tardou a reagir puxando a irmã mais nova de cima da dona da casa enquanto a pequena endiabrada se rebolava e espernejava numa tentativa vã de se soltar.
    Ficaram uns segundos suspensos no ar em que todas se refizeram e organizaram pensamentos. Foi a D. Alice que rompeu aquele silêncio perturbador.
    - Vou chamar as autoridades e fazer queixa de vocês sua laparosas...
    - Não vai nada, porque senão nós dizemos a toda esta freguesia que você está a matar a sua filha aos poucos... – O olhar de Gloria brilhava de fúria enquanto os seus passos pequenos e firmes eram dados de forma intimidatória na direcção da senhora da casa. – Não se atreva a fazer queixa de nós, nem se atreva a maltratar a Fátima. A partir de hoje eu venho todos os dias visitar a minha amiga e espero que a porta me seja sempre aberta com recebimentos cordiais. – Agora Glória estava com a testa encostada à testa alta da D. Alice e sibilava em tom de ameaça. – Se não se portar bem a partir de agora, eu arranco-lhe os olhos. – Dito isto Glória endireitou-se deu um beijo de despedida a Fátima com um sorriso aberto como se aquela cena toda não se tivesse passado e prometeu-lhe visitá-la no dia seguinte.

sábado, 15 de outubro de 2011

CAPÍTULO VI - Na Base da Montanha

CAPÍTULO VI

    Os açafates de pão transbordavam massa sovada e rosquilhas que eram empilhados cuidadosamente em cima do carro de bois enfeitados com um mar de rosas. O arroz doce fumegante era pulverizado com canela em pó formando desenhos apelativos de coroas e pombas, símbolos típicos das festas do Senhor Espírito Santo. Quando o sol começou a raiar as mulheres reuniram-se no império e começaram a preparar as mesas de refeição para receber a freguesia inteira e mais umas dezenas de fora.
    A missa começou à hora certa e a plateia apresentava-se nos seus melhores trajes escondendo por debaixo daquela fachada de calma o reboliço do início do dia que continuava a pairar na mente dos responsáveis pelas sopas. O marido da tia Espírito Santo foi o coroado, pois era ele o mordomo do império daquele ano. Com os joelhos assentes num coxim de cetim vermelho, os olhos fixos nos sapatos do padre Inácio em sinal de respeito, aceitou a colocação da coroa de prata em cima do seu cabelo ralo permitindo assim que o Espírito Santo descesse sobre si.
    No final da missa, à porta da igreja começaram a formar a procissão. Esta era composta por três quadrados formados por quatro longas varas seguras nas pontas por quatro pares de mãos adolescentes. No centro do primeiro quadrado encontrava-se Ana com um vestido rodado cor salmão, uma meia de renda branca que teimava em cair sobre o tornozelo e uns sapatos pretos de camurça. Os braços deixavam demarcados o esforço dos músculos ao transportar o estandarte vermelho sangue com a imagem de uma grande pomba bordada a ouro. No segundo quadrado centravam-se as três meninas mais bem arranjadas da procissão. A menina do meio, a filha da tia Espírito Santo era a rainha e trajava um vestido de seda branco com uma capa comprida da mesma cor do estandarte cheia de bordados. Aquela capa demasiado pesada dava-lhe um ar de Drácula que contrastava com o aspecto angelical da coroa de prata transportada pela mesma rainha. De cada lado da rainha caminhavam as damas envergando vestidos mais singelos e transportando o prato e o ceptro. No último quadrado Glória transportava outro estandarte com o símbolo do Império da freguesia. Entre estas quadras, mãos pequeninas e inocentes faziam esvoaçar pétalas de rosas que marcavam o caminho do Senhor Espírito Santo.
    O percurso tornou-se demasiado longo para as duas irmãs que suportavam o peso dos estandartes, e demasiado curto para a prima rainha que queria mais tempo de exibição. Enquanto a procissão percorria as ruas da freguesia iam-se juntando mais pessoas com os seus açafates de pão prometido que equilibravam em cima da cabeça com uma mestria de modelo.
    De volta às portas da igreja a filarmónica tocou o Hino das festas e as vozes elevaram-se num sentimento convicto mais profundo do que aquele sentido quando cantam o Hino Nacional:

Alva pomba que meiga apareceste
Ao Messias no rio Jordão
Estendei vossas assas celestes
Sobre o povo do órgão cristão

Vinde! Oh vinde entre nuvens de glória
Entre gente e cânticos de amor
Entre as asas de eterna vitória
E os querubins elevam o Senhor!
E os querubins elevam o Senhor!

    E com o fim do Hino ao Senhor Espírito Santo termina o festejo religioso e começa o convívio popular. A sala de Jantar do Império enche e esvazia-se vezes sem conta. Ana e Gloria servem as sopas de espírito, compostas por pão embebido num caldo de carne acompanhado por carne de vaca cozida. Glória olha nervosamente para a porta na esperança que Fátima apareça e possam falar um pouco. Desde a visita da Dona Alice que nunca mais teve notícias da amiga. É estranho este afastamento, este silêncio pesado que parece transportar um nevoeiro que torna todo o tipo de pensamentos e conclusões difusas.
    Ana começa a aglomerar os açafates de pão para que a distribuição da massa sovada e das rosquilhas comece. Ela gosta desta nova tarefa já que aqui não é obrigada a cumprimentar ninguém nem a facultar um sorriso generoso de menina inocente grata por poder servir o Império da freguesia. Perdida nas suas preocupações sente um puxão suave mas firme na beira da sua saia rodada. Apesar dos olhos tristes não consegue evitar um sorriso ao rapazito baixo com um boné enterrado na cabeça que lhe faz realçar as orelhas demasiado grandes. O miúdo descarado estende-lhe a mão fechada que Ana aceita no meio das suas duas mãos, mais num gesto mecânico do que de compreensão. É-lhe deixado um papelinho sem explicações com a mesma pressa e nervosismo com que se delega um tesouro de última hora. Ana abre o papel curiosa e sente um ardor nos olhos aliviado por um par de lágrimas discretas. Trata-se de um bilhete de Francisco.
    “Vem ter comigo às traseiras da igreja”. Um bilhete tão curto, tão pouco revelador, que lhe pesa tanto nas mãos trémulas. Tentando opor-se à sua saída da Ermida, Ana corre pelo pátio fora com o rosto corado de emoção e a respiração ofegante, sobe as escadas escuras de basalto da igreja como se voasse, contorna os cantos da igreja brancos de cal e só pára quando encontra à sua espera aquele sorriso maroto que termina numas covinhas prometedoras. Francisco está lá a sua espera. Abre os seus braços longos e este gesto é o suficiente para que Ana se deixe envolver por aquele abraço saudoso. É ali o seu mundo... Não importa as circunstâncias, os contornes mais obscuros. Ana acaba de perceber que prefere aqueles curtos momentos de felicidade do que uma falsa promessa de vida futura sem sobressaltos, vivida num marasmo constante.
    Sentados no degrau da porta da sacristia sentem o peso do momento no ar. É Francisco que corta aquele silêncio insinuante.
    - Ainda bem que vieste! É sinal que ainda tens um pouco de fé em mim… - Ana viu-lhe aquele olhar maroto cor de mel com um brilho de macho orgulhoso e não conseguiu evitar uma gargalhada sonora. Já há algum tempo que não se ria assim e como lhe estava a saber bem… Como precisava daquilo na sua vida…
    - Claro que sim doutor! Toda a minha fé reunida num só Deus. – Esta era a sua Ana. Descontraída, rindo de um futuro incerto sem exigir promessas ou compromissos. Entregava-se a ele sem questionar sem se vitimizar pelas circunstâncias. Nunca ninguém lhe dera esta estabilidade de sentimentos, esta prova de disponibilidade absoluta. Francisco não acompanhava Ana naquele riso fácil. Estava com o seu olhar preso naquele rosto perfeito demasiado moreno para a moda da altura, naquele cabelo rebelde que teimava em fugir do elástico, naqueles olhos verdes opacos e simples, naquele queixo bem definido que se impunha sobre um pescoço longo e altivo. Francisco pegou nesse rosto que lhe estava gravado na memória e aproximou-o do seu. Beijou-lhe a testa sem pressa, roçou-lhe os seus lábios sobre um olho de cada vez, deslizou a sua face pela face dela demoradamente até que encostou os seus lábios aos dela sentindo-os carnudos e quentes. Foram saboreando e explorando sem pressas os lábios um do outro como se tivessem a conhecer um novo território.
    - Ana! Estás doida? – Glória nem acredita no que vê. Mas que raio se passa com as irmãs. Andava à procura de Maria para evitar que ela se metesse em sarilhos, e afinal encontra um cenário pior. – Larga a minha irmã seu porco, nojento, ordinário. - A fúria sobe-lhe pela espinha acima e tortura-lhe a garganta que emite gritos de aviso. Arranca Ana dos braços de Francisco colocando-a atrás de si num gesto protector.
    - Eu posso explicar!... – Gemia Francisco baixinho para não enervar mais a rapariga endiabrada.
    Foi Ana que pôs fim àquele comportamento intempestivo da irmã.
    - Basta Glória! – Repreendeu Ana com um timbre seguro que fez Glória vacilar. – Se o Francisco diz que pode explicar dá-lhe pelo menos uma oportunidade para fazê-lo. – Glória fica parva a olhar para aquela Ana determinada. Onde é que está a irmã de olhos baixos, mergulhada numa tristeza infinita que tem vivido na sua casa nas últimas semanas?
    - Então desembucha homem! – Glória ainda não estava totalmente recomposta mas fez um esforço para engolir o doutorzinho.
    Francisco começou por contar como conhecera Ana, como se deixou envolver por ela, como estava neste preciso momento apaixonado por ela. 
    - Isso é tudo muito bonito, mas a realidade é que tens uma noiva, que está muito doente por sinal. O que pensas fazer relativamente a isso? Hã? Isto não é só dizer um desenrolar de disparates românticos e está tudo bem. Tens duas pessoas que estão a sofrer com esta situação. Uma é a minha melhor amiga e a outra é a minha irmã. Podes perceber que não estou lá muito satisfeita contigo. E também não estou caída de amores por ti, logo só posso chegar à conclusão de que és um canalha doutorado… - e nisto começou a bater em Francisco deixando escapar grunhidos reveladores do esforço que estava a desempenhar ao esmurrá-lo.
    Francisco segurou-lhe facilmente os punhos e olhando-a bem nos olhos respondeu com uma seriedade louvável.
    - Eu amo a tua irmã! Agora agradecia que me ouvisses, porque o que vou dizer também é importante para a Ana. – Glória deixou-se cair de rabo no degrau da porta da sacristia, vencida pelo cansaço e disposta a ouvir até ao fim. Francisco teve então a sua oportunidade de contar a sua tentativa frustrada de terminar o noivado. Contou todos os pormenores daquela noite, desde o brilho que parecia de esperança no fim do noivado que viu no olhar de Fátima até ao chilique da Dona Alice. Explicou que depois desta cena não tornou a ver Fátima. Só vai sabendo dela através da Dona Alice que lhe transmite sempre a mesma cantilena “ é a ansiedade do casamento”.
    Agora Glória deixou a raiva de lado para assumir uma postura preocupada.
    - Então a Fátima não conseguiu dizer-te se queria ou não este casamento? – Pergunta Glória pondo as ideias em ordem.
    - Não… Nem tão pouco me disse o que sentia por mim ou pelo facto de estar noiva. Nunca se manifestou nem a favor nem contra, mas eu juro que naquela noite quando eu insinuei que não queria este casamento ela mostrou-me uma nova Fátima. Era como se estivesse aliviada… Mas não conseguiu verbalizar nada disto.
    - Faz sentido Francisco…
    - O que é que faz sentido? – Perguntou Ana com uma nova esperança.
    Glória contou a Francisco o romance de Fátima e Manel, assim como o seu fim trágico. Contou a parte da história que ninguém conhecia… As tentativas de pôr fim à vida, as automutilações que Fátima infligiu a si própria resultado de todo o remorso que a acompanhava pela morte do namorado… Glória contou os horrores psicológicos a que a Dona Alice a submeteu, até que de repente Fátima apareceu-lhe noiva do filho do doutor Bruno. Contou-lhe a notícia com uma alegria falsa tentando justificar aquele acontecimento com frases feitas como “a vida continua”, “o Manel só queria que eu fosse feliz”…
    - Nós temos de falar com a Fátima. Temos de vê-la. Sabe-se lá os tormentos que ela está a passar… - Glória tinha os olhos rasos de água. Queria tanto ajudar a amiga, tirar-lhe todo o peso que esta vida injusta lhe tinha colocado aos ombros.
    Ana abraçou a irmã e sussurrou-lhe – Vamos chegar a ela custe o que custar, mas agora temos de voltar para a festa. Não podemos levantar suspeitas.
  As irmãs voltaram para a festa disfarçando o rebentamento de pensamentos e emoções que se soltavam nas suas almas. Caminhavam lado a lado sorrindo e retribuindo cumprimentos e sorrisos.
    As mãos erguidas para receber um pão de massa sovada igualava-se a um campo de girassóis virados todos para o sol. O pão chovia sobre aquele pequeno mar dando à situação uma quase interpretação bíblica. Com o anoitecer chegou o bailarico animado onde toda a família Ferreira participou activamente. Luzia e José dançavam como se de um par de garotos se tratasse. Glória desempenhava a dança do acasalamento cheia de mistério, murmúrios e risinhos malandros que a faziam corar mais do que o exigido pelo esforço das voltas da chamarrita. Até a Maria havia arranjado um par para rodopiar e estava inchada de importância por tal facto, ralhando com o pequeno rapaz sempre que este a pisava.
    Ana por seu lado era a única que estava isolada num canto absorvida por mil ideias e pensamentos que lhe invadiam a mente numa tentativa frustrada de ordenação lógica. Torcia e retorcia os dedos e mordia os lábios enquanto inventava soluções mirabolantes para a sua situação. Tinha de pensar em Fátima. Não queria de forma alguma que as suas atitudes a conduzissem para um abismo ainda maior. Mas que raio se passaria com a rapariga? Estaria ela prisioneira da própria mãe? Estaria mesmo doente? No dia seguinte far-lhe-ia uma visita acompanhada pela irmã e esperava obter assim algumas respostas.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

CAPITULO V - Na Base da Montanha

CAPITULO V


A cozinha dos Ferreira transborda animação e muitas mulheres, que se fazem acompanhar por aquele burburinho inevitável das risotas, segredinhos e mexericos. Glória acende o forno de lenha enquanto as restantes mulheres preparam a massa. As festas do Senhor Espírito Santo estão à porta e é preciso fazer a massa sovada para distribuir a quem queira, como recompensa pelos favores pedidos aos Santos. Este ano é a tia Espírito Santo quem oferece as sopas, pagando assim a promessa de que o marido se curasse de uma pneumonia. Como é da família, Luzia ofereceu o seu pessoal para ajudar. O José ajudará a matar as vacas e a preparar a carne, e as mulheres ajudarão na cozinha. Faltam só dois dias para a grande festança e o trabalho abunda sem nunca diminuir...
Maria anda chateada... Não queria participar naquela azáfama que lhe roubava tanto tempo... Logo agora que tinha tantos trabalhos para fazer.
- Mãezinha, posso ir para o quarto. A professora Noélia passou muitos deveres e tenho que fazê-los todos para amanhã, se não ainda apanho com a régua nas unhas... – Pede Maria com muito jeitinho e carinho tentando comprar a resposta positiva.
- Vai lá filha! Primeiro está a escola... – Luzia beija a fronte de Maria e olha-a com admiração. É tão criança e ao mesmo tempo tão responsável. É pela felicidade dela e das outras filhas que Luzia prometeu este ano dar cinquenta rosquilhas nas festas.
Maria nem agradeceu. Voltou costas e correu para o quarto. Trancou bem a porta não fosse alguém abri-la e descobrir o seu segredo... Tirou de debaixo da cama a sua mala da escola feita em madeira pelo seu falecido avô. Abriu com muito cuidado como se o seu interior guardasse um segredo e posou-a aberta em cima da cama. No interior desta mala não tinha nenhum material de estudo, apenas linhas, agulhas, tecidos, missangas... Maria tinha criado o seu próprio mini negócio como ela lhe chamava. Fazia chapéus muito bonitos. Começou com esta tarefa umas poucas semanas atrás, quando fez um chapéu para oferecer a uma amiguinha. A mãe da menina admirou muito o chapéu rosa com um véu branco e uma flor toda feita de tule branco a decorar o lado direito do mesmo e pediu a Maria que lhe fizesse um chapéu preto muito discreto, mas ao mesmo tempo chique para usar nos funerais. Maria aceitou o desafio. Primeiro pediu ao pai de João que lhe arranjasse moldes, depois desfez uma saia de seda preta que tinha para forrar o chapéu e com um dos véus que a mãe usava para levar à missa fez um véu pequeno adequado ao chapéu, e por fim fez uma rosa com arame e forrou-a com cetim branco, dando uma ar agradávelmente discreto e tirando um pouco o peso do luto. A sua primeira cliente ficou radiante com o resultado e fez da menina a sua chapeleira, recomendando-a às amigas. Maria ganhava um bom dinheiro. Tirava sempre uma pequena quantia que dava ao pai de João para que este lhe comprasse os materiais necessários, e o resto do dinheiro guardava para que um dia pudesse montar uma loja de chapéus feitos por ela. Não queria viver da terra, nem da lavoura. Sabia que as terras da família eram abundantes e que davam para garantir um bom futuro a toda a família, mas era um trabalho tão sujo... O mais complicado era manter segredo desta actividade. O pai de João prometera não dizer nada a ninguém, e as clientes só fazem as encomendas à porta da escola. No entanto, Maria sabe que corre o risco de ser descoberta e tem de estar preparada para tal. Quanto mais tarde os pais souberem melhor, pois assim tem tempo para guardar o máximo de dinheiro, não vá ficar sozinha e desamparada...
A tia Espírito Santo entra em casa dos Ferreiras com os vestidos das meninas prontos para a procissão.
- Glória!!! – Chama Luzia – leva os vestidos para o quarto e pendura-os direitinhos... Não são uma beleza?...
Glória apressa-se, pega nos vestidos com o máximo de cuidado possível e dirige-se para o quarto. Em frente à porta do quarto, Glória não consegue entrar.
- Maria!!! Abre a porta... Que fazes aí dentro trancada?
Maria apressa-se a enfiar tudo dentro da mala e envia-a para baixo da cama.
- Tem calma mulher... Parece que vais tirar o pai da forca. – Reclama Maria enquanto abre a porta.
Glória entra com os vestidos na mão, pousa-os em cima da cama e fixa Maria nos olhos.
- O que me estás a esconder, minha menina?
- Nada... Estava apenas a fazer os trabalhos de casa.
Glória olha em redor e não vê nenhum material escolar. Maria está a mentir-lhe de certeza. Nem ligou aos vestidos... Em circunstâncias normais, teria ficado histérica com os vestidos e começaria logo a inspeccioná-los, não fossem precisar de algum ajuste.
- Maria, Maria... Não gosto que me enganem... Se estás com algum problema podes dividi-lo comigo, afinal sou tua irmã, e mais do que isso, sou tua amiga.
Maria encolhe os ombros... Tem tanta vontade de lhe contar, de lhe mostrar orgulhosamente o seu trabalho, de lhe dizer que o chapéu que ela tanto admirou na última missa tinha sido obra sua. Maria abre a sua gaveta de roupa e tira de lá um lindo arranjo de flores muito pequeninas feitas em seda branca e entrelaçadas com muita harmonia formando uma tiara própria para prender um véu de noiva. Estendeu aquela pequena obra de arte à irmã.
- Gostas Glória?
- É linda!... Onde foste buscar uma coisa dessas... Deve ter custado um dinheirão... Olha só para o trabalho que aí está feito... – Glória pegou naquele objecto com uma cautela extrema.
- Fui eu que fiz... É para usares no teu casamento.
- Oh Maria! Onde é que aprendeste esta arte? Onde é que foste buscar o material? Estou tão deslumbrada quanto confusa... Era por isso que estavas trancada? Como é que pudeste fazer uma coisa tão bonita?... Tão perfeita...
- Glória! Eu preciso da tua compreensão para o que te vou contar...
Glória levantou o olhar da teara de florzinhas e fixou a irmã com preocupação.
- Sabes que falta pouco para eu terminar a escola, não sabes?
- Sim..
- Sabes que eu não gosto da vida que me espera... Eu não gosto de terras, nem de galinhas, nem de porcos, nem de vacas... Certo?
- Sim...
- Cá em nossa casa todos sabem que eu sou muito vaidosa e ágil de mãos para a costura...
- O que é que me queres dizer Maria?
- Eu já estou a preparar o meu futuro, de modo a que não passe pelo trabalho do campo.
Maria tirou a sua mala de madeira e mostrou o seu material de costura, assim como os desenhos de todos os chapéus que já tinha feito. Glória olhou desenho por desenho estupefacta.
- Tu fizeste estes chapéus? E conseguiste? Quem é que te ensinou? Não me digas que o chapéu da dona Filomena é este que está aqui no desenho... Levas dinheiro para fazê-los?... – Glória deixa-se cair em cima da cama e desabafa – tu ainda és tão novinha...
- Não sei se vou conseguir responder a todas as perguntas... Sim, eu é que fiz o chapéu da senhora Filomena, assim como todos os que estão aí desenhados... E aprendi sozinha. Eu escrevi uma carta aos tios da América e pedi-lhes que me mandassem um livro que ensinasse a fazer roupa. Eles assim fizeram, mandaram o livro juntamente com uma encomenda de roupa que o pai foi buscar ao porto das Lajes. Neste livro tem uma parte que ensina a fazer chapéus... É certo que o livro está escrito em americano e eu não precebo nada do que lá diz, mas tem desenhos que mostram os passos a seguir para se conseguir um certo resultado... Com os desenhos e com um pouco de imaginação eu faço chapéus e vendo...
- Tu vendes?... Com essa idade quem é que te paga?
- Muitas senhoras que sabem apreciar um bom trabalho...
- E como é que sabes o que deves cobrar?
- O teu futuro sogro ensinou-me que eu devo acrescentar ao dinheiro gasto com o material, o custo do tempo, o custo do trabalho e a minha margem de lucro...
- O pai do João sabia e nunca me disse nada?
- Eu é que lhe pedi segredo...
Glória sai do quarto com as sobrancelhas carregadas... Não sabe bem o que deve pensar. Atravessa as divisões da casa num passo longo e apressado, sai pela porta da cozinha sem ouvir as perguntas que as mulheres lhe dirigem e encaminha-se caminho abaixo rumo à barbearia do futuro sogro. Levava na ideia a convicção de que o pai de João estava a aproveitar-se da meninice de Maria para lucrar algum... Não havia outra explicação... Que raio! Um homem daquela idade a explorar o trabalho de uma miuda de dez anos, quase onze é certo...
- Com que direito pôs a minha irmã mais nova a trabalhar? Vá, desembuche homem...
O barbeiro fica apreensivo e com os olhos arregalados... Pronto! Tinha sido descoberto. Agora só lhe resta contar a verdade...
- Eu não pus a menina a trabalhar. Ela é que tem um talento enorme e está a tirar proveito dele, eu só a ajudo para que não faça asneiras ou para que ninguém a engane...
- Quer dizer que ela não trabalha para si?
- Claro que não! Eu sou um homem pobre, mas sou às direitas. A menina Maria é que me procurou e pediu ajuda para conseguir materiais... Eu apenas aceitei fazê-lo porque se não fosse eu a ajudá-la ela iria procurar essa ajuda noutra pessoa que poderia não ser muito séria. Eu encomendo os materiais dela juntamento com os da barbearia... E a pequena é mesmo boa naquilo dos chapéus, pois tem cada vez mais freguesas, e encomenda cada vez mais materiais...
- Ela é uma criança que já lida com dinheiro... Com negócios...
- Ela já tem quase onze anos e tem um talento que lhe dá prazer e sustento. Quantos se podem gabar do mesmo?
Glória sai da barbearia sem a revolta que transportava no peito, mas com uma confusão angustiante que lhe pesa enormemente na mente. É verdade que a pequena Maria não quer o trabalho sujo das terras, mas também é verdade que ela é muito nova... Tem talento, não pode negar... E deve dar um bom sustento, caso contrário o pai de João não a teria incentivado. Quando chegar o momento certo saberá o que fazer, e este não é o momento, basta olhar para a sua cozinha onde reina o trabalho e a boa disposição. Depois das festas do Espírito Santo, logo se vê...