Capitulo X
O
céu estava fechado num cinzento prometedor, e Vanda soube que tinha de ser
rápida no caminho. O mar fustigava as rochas negras e imponentes com uma
histeria vibrante que só acalmava em explosões de espuma branca. Vanda sentia o
sabor salgado da maresia sempre que passava a língua pelos lábios. E gostava.
Gostava de tudo naquela ilha solitária que não era mais do que um vulcão
adormecido no meio do oceano. Um vulcão calmo mesmo quando um mar enraivecido o
maltrata e o provoca com chapadas descaradas… Sempre calmo, recebendo na
eminência de uma lava poderosa um estampado de verde onde a única explosão que
se permite é uma explosão de vida e alegria. Ela queria ser assim… Calma como
aquela ilha.
Vanda
entregara a nota dos primeiros teste, e só Deus sabia como lhe tinha sido
difícil entregar um satisfaz pouco ao seu Matias. Mesmo assim não foi totalmente
justa na nota e isso agora pesava-lhe na consciência. O seu menino é tão
inteligente, mas a preguiça ganha sempre numa batalha com a inteligência.
Talvez ele não seja estimulado em casa. Sentia um aperto no peito sempre que
pensava que ele estaria melhor com ela, em vez de viver numa casa demasiado
agitada, num vai e vem permanente de gente. É altura de iniciar uma relação
mais próxima… Tão próxima, que seja ele a desejá-la para mãe.
A
porta de casa estava fechada apenas no trinco, e quando Vanda rodou a maçaneta
da porta sem precisar de utilizar a chave sorriu para si mesma. Ela tinha
aprendido a confiar.
-
Oh! Olá Vasco! – Vanda surpreendeu-se. Não esperava Vasco àquela hora, mas os
seus olhos não conseguiam desviar do segundo homem. Ele estava de costas.
Ombros largos e uma postura errada… Uma postura descaída para o seu lado
esquerdo que lhe era familiar. Um cabelo castanho claro que começava a rarear
no topo. Vanda susteve a respiração até que aquele homem se virou e ela
reconheceu-o numa dor aguda do passado.
-
Olá Vanda! – O cumprimento ficou sem resposta, exactamente como a relação que
ele teve com ela durante anos, enquanto ela esteve internada no hospício. Ela
nunca respondeu… - Eu e o Vasco fomos colegas de faculdade. – E a reacção em
palavras não vinha. – Vim cá conhecer a ilha e aproveitar para descansar um
pouco. – Daniel sentiu-se insignificante perante aquele olhar frio que o
mortificara durante demasiado tempo. Num instinto não planeado inclinou-se e
cumprimentou-a com dois beijos.
Vanda
levou algum tempo a reagir. Ele lembrava-se dela… Claro que se lembrava. Não
sentira necessidade de se apresentar, portanto lembrava-se dela. Vasco
permanecia sentado no sofá e não estava histérico, portanto era bastante
provável que o Dr. Daniel não tivesse contado que… Que ela era louca.
-
Olá! – Vanda forçou-se a retribuir o cumprimento. – Não me disseste que terias
visitas. – O olhar acusador trespassou Vasco que sentiu o peso da culpa
transbordar-lhe pelas ideias. Ainda não acreditava no discurso de Daniel. O
combinado era que eles contariam toda a verdade a Vanda, mas agora parecia-lhe
que aquela nova subtileza seria mais sábia… Ou pelo menos mais confortável.
-
Vamos jantar fora! – Vasco queria urgentemente um ambiente menos pessoal de
forma a poder proteger Vanda. Não conseguia sujeitá-la àquele incómodo.
Vanda
sentiu o braço de Vasco sobre os seus ombros reconfortando-a. Ela tinha de ser
forte. O passado faz parte da vida completando-a e dando-lhe sentido. O ser
humano é um todo completo quando tem um passado, um presente e um futuro. Estes
três elementos são indissociáveis da história que forma um ser, e Vanda tinha
de saber lidar com os três. Vasco já conhecia parte da sua história e não se
tinha afastado dela, pelo contrário. Afinal de contas foi ele que lhe disse “
se não testares as tuas conquistas com as tuas verdades obscuras então é porque
nunca as conquistaste”. Vanda sentia que devia ter fé no sentimento de Vasco…
No
restaurante, Daniel não conseguia desviar o olhar de Vanda. Ela já não tinha
aquele ar frágil que lhe ocupara a memória durante os últimos anos. O olhar
baço que se perdia com facilidade num ponto qualquer desconhecido aparecia-lhe
agora brilhante e astuto, sem medo de o enfrentar. A pele descorada estava
iluminada e o sorriso fácil surgia como por magia. Não era a mesma Vanda. Se
não fossem pequenos sinais que só um entendido consegue descortinar, Vanda
passaria por uma mulher normal, com uma mente lúcida e sem traumas. Mas o
alisar repetido do guardanapo que lhe cobre o colo, o separar o arroz da batata
e do bife de forma perfeita, o encaracolar o cabelo com o indicador
demonstravam tiques denunciadores de alguém que procura freneticamente a
harmonia.
-
Então! Conheceram-se na faculdade? – Vanda queria muito quebrar aquele silêncio
demolidor que parecia sugar tudo à sua volta como se fosse um buraco negro.
-
Sim! Conhecemo-nos nas praxes. Lembras-te Daniel? – Vasco procurava a afinidade
da amizade que o tinha ligado àquele homem um dia.
-
Como é que podia esquecer? Estávamos num jantar em que os doutores
obrigavam-nos a comer sem talheres e de mãos atadas. – Riram-se juntos. – E
tínhamos no prato um bife com arroz. O arroz foi fácil de comer, mas comer o
bife sem poder usar as mão tornou-se numa
aventura.
-
Mas nós conseguimos… fomos os únicos que conseguimos comer o bife todo como era
exigido! – Vasco começava a baixar a guarda e deixava-se embalar pelas
recordações.
-
Porque nós sempre fomos uma dupla de génios. – Daniel voltou a sua atenção para
Vanda. – Sabes como conseguimos? – Vanda abanou a cabeço começando a apreciar a
conversa. – Eu peguei no meu bife com a boca e como não conseguia partir um
bocado para mastigar, o Vasco pegou na outra ponta do bife com a sua boca e
conseguimos ir partindo o bife assim…
-
Parecíamos dois cães a comer o mesmo bocado de carne. – Vasco sentia-se
envolvido como se estivesse a reencontrar uma antiga amizade.
-
Mas não rosnávamos! – A conversa prolongou-se em memórias e risos.
O
vinho caseiro da adega do senhor Matias escorregava pelas gargantas sempre
ressequidas e as recordações eram verbalizadas de forma animada. Vanda deixou
de esticar o guardanapo no colo e soltara o caracol saturado do indicador da
sua mão direita. Ria-se alto e apreciava o Vasco que Daniel lhe apresentava. Um
estudante brilhante que não perdia uma noitada e que primava pelas partidas
divertidas.
-
Uma acordei todo coberto de espuma da barba… Lembras-te Vasco?
-
Sim! – Todos riam um riso já sem sentido. - E quando tu te colocaste fora da
minha porta todo coberto de folhas secas, lembras-te?
-
Pois foi! Ai Vanda, devias ter visto a cara dele quando saiu de casa todo
descansado e eu saí debaixo das folhas… Ele gritou como uma menina.
Vasco
encheu o copo de Vanda com uma angelica velha que lhe adoçou a boca e os
pensamentos. A noite terminou sem o constrangimento que lhe deu início e a
promessa de que Vanda mostraria algumas belezas da ilha a Daniel na tarde do
dia seguinte ficou firmada na palavra.
“A
vida coloca-nos permanentemente à prova”. As palavras da avó soavam-lhe num tom
monocórdico e chato aos seus ouvidos demasiado jovens e ansiosos de adrenalina.
Mas as verdades dos antigos acabam sempre por nos atingir quando já não
precisamos de entendê-las, quando o momento ideal de entendimento já passou e o
conselho de nada nos valeu. Era assim que Vanda se sentia naquela noite deitada
na sua cama macia com os olhos vidrados no tecto de gesso, teimosos em não se
fecharem. As palavras dos que a amaram foram-lhe oferecidas generosamente e ela
não as aceitou… E como as desejava agora naquele momento em que sentia a falta
da sua família. Não tinha ninguém. E não se tinha despedido de ninguém. Depois
daquele dia fatídico, Vanda nunca mais voltou para casa da avó. Foi internada
num hospício onde viveu uma gravidez sem emitir uma única palavra, nem mesmo
quando a avó a visitava. Apesar da idade ela era uma mulher com uma
desenvoltura invejável que trabalhava na terra como um homem, mesmo vestindo um
preto permanente resultante da sua viuvez. Sempre que ia ao “lar” como ela
gostava de chamar de forma a suavizar a realidade daquela casa de doidos levava
pão caseiro e queijo de cabra que faziam as delícias do pessoal trabalhador.
Ela gostava de se sentar com a neta no jardim e perante a mudez desta
falava-lhe sem para afagando-lhe a mão descarnada. Apenas na despedida deixava
que os sentimentos a dominassem e deixava cair um par de lágrimas. Ela morreu…
Vanda nem sabia precisar a data… Foi pouco tempo depois de Vanda ter dado à
luz. Este período é muito confuso. Andava sempre drogada com calmantes e as
memórias perdem-se numa neblina de incertezas entre o que foi real e que foi
resultado do seu estado de demência. A última recordação que tem da avó está
confusa na sua mente. Lembra-se de vê-la sentada na cabeceira da sua cama com
uns olhos pequenos de choro e uma magreza anunciadora do fim. Vanda sentia
apenas desespero e num turbilhão de dores de perda de desatino de desalento,
agarrou os braços finos e flácidos da avó e pediu-lhe que fosse buscar o seu
filho…
Vanda
fechou os olhos e deixou que as lágrimas de tornassem autónomas até que o
cansaço da melancolia a embalou e deu-lhe o descanso dessa noite.
O
dia amanheceu claro, mas frio. Um frio húmido que se entranha nos ossos, mas
que acalma a alma. A escola agitava-se no mesmo ritmo lento daquela ilha sossegada.
As pessoas cumprimentavam-se sem pressas e tinham sempre tempo para dois dedos
de conversa. Matias entrou na escola e dirigiu-se imediatamente para a
professora de história.
-
Bom dia senhora professora! – O coração de Vanda enterneceu-se e depois de se
obrigar a estabilizar as emoções, Vanda respondeu-lhe com um carinho da voz que
denunciava a sua preferência por aquele aluno.
-
Bom dia meu querido!
-
A minha mãe ficou chateada com a minha nota…
-
Mas ela tratou-te mal? – Vanda sentiu que o seu coração sobressaltava-se.
-
Não! – Aquela monossílaba esbofeteou Vanda por ter sido emitida de forma tão
veemente, não deixando dúvidas que ele tinha tomado uma posição defensiva em
relação à mãe. – Ela ralhou-me e fez-me prometer que subia a nota. Pode
ajudar-me?
-
Claro, meu lindo! Eu ajudo-te em tudo o que precisares…
-
É que se eu melhorar as notas os meus pais oferecem-se uma PSP pelo Natal… Se
não melhorar não recebo nada! – O olhar triste que Matias adoptou perante
aquela última hipótese fez brotar uma vontade de Vanda abraçar aquele menino.
-
Então vamos estudar todos os dias no final das aulas em minha casa, o que me
dizes?
-
Não posso! Vou com os meus irmãos ao futebol às segundas e quintas.
-
Pois! E às terças tenho reunião de direcção de turma… Então só nos resta as
quartas e as sextas. – Vanda olhava para Matias com um olhar expectante.
-
Está combinado! – O sorriso que iluminou o rosto daquele rapaz, também iluminou
o peito de Vanda numa ternura que ela não soube explicar.
O
dia terminou e Vanda surpreendeu-se quando se deparou com Daniel dentro da
carrinha de Vasco à sua espera fora do portão da escola!
-
Olá Vanda! – O olhar confuso da professora fez com que o médico tremesse com
medo da rejeição como se fosse um jovenzito pouco confiante. – Prometeste mostrar-me
o Caldeirão, lembras-te?
Ela
não se lembrava, mas não tinha como recusar. Ela acenou afirmativamente a
cabeça, colocou o seu melhor sorriso e saltou para dentro da carrinha
sentindo-se como um rato numa ratoeira. Aquela tarde prometia ser longa… Muito
longa…