domingo, 26 de agosto de 2012

Capitulo X - Nas Asas do Corvo


Capitulo X

O céu estava fechado num cinzento prometedor, e Vanda soube que tinha de ser rápida no caminho. O mar fustigava as rochas negras e imponentes com uma histeria vibrante que só acalmava em explosões de espuma branca. Vanda sentia o sabor salgado da maresia sempre que passava a língua pelos lábios. E gostava. Gostava de tudo naquela ilha solitária que não era mais do que um vulcão adormecido no meio do oceano. Um vulcão calmo mesmo quando um mar enraivecido o maltrata e o provoca com chapadas descaradas… Sempre calmo, recebendo na eminência de uma lava poderosa um estampado de verde onde a única explosão que se permite é uma explosão de vida e alegria. Ela queria ser assim… Calma como aquela ilha.
Vanda entregara a nota dos primeiros teste, e só Deus sabia como lhe tinha sido difícil entregar um satisfaz pouco ao seu Matias. Mesmo assim não foi totalmente justa na nota e isso agora pesava-lhe na consciência. O seu menino é tão inteligente, mas a preguiça ganha sempre numa batalha com a inteligência. Talvez ele não seja estimulado em casa. Sentia um aperto no peito sempre que pensava que ele estaria melhor com ela, em vez de viver numa casa demasiado agitada, num vai e vem permanente de gente. É altura de iniciar uma relação mais próxima… Tão próxima, que seja ele a desejá-la para mãe.
A porta de casa estava fechada apenas no trinco, e quando Vanda rodou a maçaneta da porta sem precisar de utilizar a chave sorriu para si mesma. Ela tinha aprendido a confiar.
- Oh! Olá Vasco! – Vanda surpreendeu-se. Não esperava Vasco àquela hora, mas os seus olhos não conseguiam desviar do segundo homem. Ele estava de costas. Ombros largos e uma postura errada… Uma postura descaída para o seu lado esquerdo que lhe era familiar. Um cabelo castanho claro que começava a rarear no topo. Vanda susteve a respiração até que aquele homem se virou e ela reconheceu-o numa dor aguda do passado.
- Olá Vanda! – O cumprimento ficou sem resposta, exactamente como a relação que ele teve com ela durante anos, enquanto ela esteve internada no hospício. Ela nunca respondeu… - Eu e o Vasco fomos colegas de faculdade. – E a reacção em palavras não vinha. – Vim cá conhecer a ilha e aproveitar para descansar um pouco. – Daniel sentiu-se insignificante perante aquele olhar frio que o mortificara durante demasiado tempo. Num instinto não planeado inclinou-se e cumprimentou-a com dois beijos.
Vanda levou algum tempo a reagir. Ele lembrava-se dela… Claro que se lembrava. Não sentira necessidade de se apresentar, portanto lembrava-se dela. Vasco permanecia sentado no sofá e não estava histérico, portanto era bastante provável que o Dr. Daniel não tivesse contado que… Que ela era louca.
- Olá! – Vanda forçou-se a retribuir o cumprimento. – Não me disseste que terias visitas. – O olhar acusador trespassou Vasco que sentiu o peso da culpa transbordar-lhe pelas ideias. Ainda não acreditava no discurso de Daniel. O combinado era que eles contariam toda a verdade a Vanda, mas agora parecia-lhe que aquela nova subtileza seria mais sábia… Ou pelo menos mais confortável.
- Vamos jantar fora! – Vasco queria urgentemente um ambiente menos pessoal de forma a poder proteger Vanda. Não conseguia sujeitá-la àquele incómodo.
Vanda sentiu o braço de Vasco sobre os seus ombros reconfortando-a. Ela tinha de ser forte. O passado faz parte da vida completando-a e dando-lhe sentido. O ser humano é um todo completo quando tem um passado, um presente e um futuro. Estes três elementos são indissociáveis da história que forma um ser, e Vanda tinha de saber lidar com os três. Vasco já conhecia parte da sua história e não se tinha afastado dela, pelo contrário. Afinal de contas foi ele que lhe disse “ se não testares as tuas conquistas com as tuas verdades obscuras então é porque nunca as conquistaste”. Vanda sentia que devia ter fé no sentimento de Vasco…
No restaurante, Daniel não conseguia desviar o olhar de Vanda. Ela já não tinha aquele ar frágil que lhe ocupara a memória durante os últimos anos. O olhar baço que se perdia com facilidade num ponto qualquer desconhecido aparecia-lhe agora brilhante e astuto, sem medo de o enfrentar. A pele descorada estava iluminada e o sorriso fácil surgia como por magia. Não era a mesma Vanda. Se não fossem pequenos sinais que só um entendido consegue descortinar, Vanda passaria por uma mulher normal, com uma mente lúcida e sem traumas. Mas o alisar repetido do guardanapo que lhe cobre o colo, o separar o arroz da batata e do bife de forma perfeita, o encaracolar o cabelo com o indicador demonstravam tiques denunciadores de alguém que procura freneticamente a harmonia.
- Então! Conheceram-se na faculdade? – Vanda queria muito quebrar aquele silêncio demolidor que parecia sugar tudo à sua volta como se fosse um buraco negro.
- Sim! Conhecemo-nos nas praxes. Lembras-te Daniel? – Vasco procurava a afinidade da amizade que o tinha ligado àquele homem um dia.
- Como é que podia esquecer? Estávamos num jantar em que os doutores obrigavam-nos a comer sem talheres e de mãos atadas. – Riram-se juntos. – E tínhamos no prato um bife com arroz. O arroz foi fácil de comer, mas comer o bife sem poder usar as mão tornou-se  numa aventura.
- Mas nós conseguimos… fomos os únicos que conseguimos comer o bife todo como era exigido! – Vasco começava a baixar a guarda e deixava-se embalar pelas recordações.
- Porque nós sempre fomos uma dupla de génios. – Daniel voltou a sua atenção para Vanda. – Sabes como conseguimos? – Vanda abanou a cabeço começando a apreciar a conversa. – Eu peguei no meu bife com a boca e como não conseguia partir um bocado para mastigar, o Vasco pegou na outra ponta do bife com a sua boca e conseguimos ir partindo o bife assim…
- Parecíamos dois cães a comer o mesmo bocado de carne. – Vasco sentia-se envolvido como se estivesse a reencontrar uma antiga amizade.
- Mas não rosnávamos! – A conversa prolongou-se em memórias e risos.
O vinho caseiro da adega do senhor Matias escorregava pelas gargantas sempre ressequidas e as recordações eram verbalizadas de forma animada. Vanda deixou de esticar o guardanapo no colo e soltara o caracol saturado do indicador da sua mão direita. Ria-se alto e apreciava o Vasco que Daniel lhe apresentava. Um estudante brilhante que não perdia uma noitada e que primava pelas partidas divertidas.
- Uma acordei todo coberto de espuma da barba… Lembras-te Vasco?
- Sim! – Todos riam um riso já sem sentido. - E quando tu te colocaste fora da minha porta todo coberto de folhas secas, lembras-te?
- Pois foi! Ai Vanda, devias ter visto a cara dele quando saiu de casa todo descansado e eu saí debaixo das folhas… Ele gritou como uma menina.
Vasco encheu o copo de Vanda com uma angelica velha que lhe adoçou a boca e os pensamentos. A noite terminou sem o constrangimento que lhe deu início e a promessa de que Vanda mostraria algumas belezas da ilha a Daniel na tarde do dia seguinte ficou firmada na palavra.
“A vida coloca-nos permanentemente à prova”. As palavras da avó soavam-lhe num tom monocórdico e chato aos seus ouvidos demasiado jovens e ansiosos de adrenalina. Mas as verdades dos antigos acabam sempre por nos atingir quando já não precisamos de entendê-las, quando o momento ideal de entendimento já passou e o conselho de nada nos valeu. Era assim que Vanda se sentia naquela noite deitada na sua cama macia com os olhos vidrados no tecto de gesso, teimosos em não se fecharem. As palavras dos que a amaram foram-lhe oferecidas generosamente e ela não as aceitou… E como as desejava agora naquele momento em que sentia a falta da sua família. Não tinha ninguém. E não se tinha despedido de ninguém. Depois daquele dia fatídico, Vanda nunca mais voltou para casa da avó. Foi internada num hospício onde viveu uma gravidez sem emitir uma única palavra, nem mesmo quando a avó a visitava. Apesar da idade ela era uma mulher com uma desenvoltura invejável que trabalhava na terra como um homem, mesmo vestindo um preto permanente resultante da sua viuvez. Sempre que ia ao “lar” como ela gostava de chamar de forma a suavizar a realidade daquela casa de doidos levava pão caseiro e queijo de cabra que faziam as delícias do pessoal trabalhador. Ela gostava de se sentar com a neta no jardim e perante a mudez desta falava-lhe sem para afagando-lhe a mão descarnada. Apenas na despedida deixava que os sentimentos a dominassem e deixava cair um par de lágrimas. Ela morreu… Vanda nem sabia precisar a data… Foi pouco tempo depois de Vanda ter dado à luz. Este período é muito confuso. Andava sempre drogada com calmantes e as memórias perdem-se numa neblina de incertezas entre o que foi real e que foi resultado do seu estado de demência. A última recordação que tem da avó está confusa na sua mente. Lembra-se de vê-la sentada na cabeceira da sua cama com uns olhos pequenos de choro e uma magreza anunciadora do fim. Vanda sentia apenas desespero e num turbilhão de dores de perda de desatino de desalento, agarrou os braços finos e flácidos da avó e pediu-lhe que fosse buscar o seu filho…
Vanda fechou os olhos e deixou que as lágrimas de tornassem autónomas até que o cansaço da melancolia a embalou e deu-lhe o descanso dessa noite.
O dia amanheceu claro, mas frio. Um frio húmido que se entranha nos ossos, mas que acalma a alma. A escola agitava-se no mesmo ritmo lento daquela ilha sossegada. As pessoas cumprimentavam-se sem pressas e tinham sempre tempo para dois dedos de conversa. Matias entrou na escola e dirigiu-se imediatamente para a professora de história.
- Bom dia senhora professora! – O coração de Vanda enterneceu-se e depois de se obrigar a estabilizar as emoções, Vanda respondeu-lhe com um carinho da voz que denunciava a sua preferência por aquele aluno.
- Bom dia meu querido!
- A minha mãe ficou chateada com a minha nota…
- Mas ela tratou-te mal? – Vanda sentiu que o seu coração sobressaltava-se.
- Não! – Aquela monossílaba esbofeteou Vanda por ter sido emitida de forma tão veemente, não deixando dúvidas que ele tinha tomado uma posição defensiva em relação à mãe. – Ela ralhou-me e fez-me prometer que subia a nota. Pode ajudar-me?
- Claro, meu lindo! Eu ajudo-te em tudo o que precisares…
- É que se eu melhorar as notas os meus pais oferecem-se uma PSP pelo Natal… Se não melhorar não recebo nada! – O olhar triste que Matias adoptou perante aquela última hipótese fez brotar uma vontade de Vanda abraçar aquele menino.
- Então vamos estudar todos os dias no final das aulas em minha casa, o que me dizes?
- Não posso! Vou com os meus irmãos ao futebol às segundas e quintas.
- Pois! E às terças tenho reunião de direcção de turma… Então só nos resta as quartas e as sextas. – Vanda olhava para Matias com um olhar expectante.
- Está combinado! – O sorriso que iluminou o rosto daquele rapaz, também iluminou o peito de Vanda numa ternura que ela não soube explicar.
O dia terminou e Vanda surpreendeu-se quando se deparou com Daniel dentro da carrinha de Vasco à sua espera fora do portão da escola!
- Olá Vanda! – O olhar confuso da professora fez com que o médico tremesse com medo da rejeição como se fosse um jovenzito pouco confiante. – Prometeste mostrar-me o Caldeirão, lembras-te?
Ela não se lembrava, mas não tinha como recusar. Ela acenou afirmativamente a cabeça, colocou o seu melhor sorriso e saltou para dentro da carrinha sentindo-se como um rato numa ratoeira. Aquela tarde prometia ser longa… Muito longa…

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Capitulo IX - Nas Asas do Corvo


Capitulo IX

A felicidade é como a meteorologia. Não podemos adivinhá-la, apenas antecipar a tempestade de chuvas ventos e sentimentos que nos invadem a alma… restando no fim um rasto amargo de nostalgia. A dormência do amor tolda o entendimento de forma suave e quase imperceptível, transformando o quotidiano leve e desejado num vidro frágil perante verdades duras… É na dor que se encontra a verdadeira força humana. É na dor da queimadura que aprendemos a evitar o fogo. É na dor que residem todos os anticorpos das emoções. É da dor que nascem os sentimentos, memórias e vivências que nos acompanharão pelo curto caminho da vida, guiando-nos na escuridão das ilusões, alertando sempre que o perigo espreita e adormecendo sempre que o belo surge.
A dor adormecida de Vanda despertava sempre que a intimidade de Vasco espreitava, e a frustração impunha-se nos momentos mais calorosos. Vasco desejava a chegada de Daniel, como se este fosse portador de um pó de perlimpimpim.
- Bem-vindo Daniel! – Vasco pegou na pesada mala e colocou-a milimetricamente na bagageira do carro. A falta de um cumprimento caloroso que marcara os tempos de faculdade foi sentido por ambas as partes.
- Já lhe contaste que me conheces? – Daniel temia aquele encontro.
- Não.
- Onde é que ela está agora?
- Nas aulas.
As portas do carro foram fechadas com uma cautela exagerada, e os cintos de segurança passaram pesados sobre os peitos inchados.
- Diz-me onde é que ela mora para que eu…
- Eu levo-te lá logo à noite… - Daniel sentiu que Vasco queria marcar o seu território com aquela afirmação.
- Vocês… Estão envolvidos? Ou…
- Nós estamos numa relação firme! – Vasco queria deixar bem claro que não existia espaço para Daniel nas afectividades de Vanda.
- Ah… há quanto tempo é que estão juntos? – Daniel sentiu um nó no estômago quando pronunciou a palavra juntos. Devia ter cumprido as duas semanas que tinha estabelecido na última conversa que tivera com Vasco… Mas não tinha conseguido uns míseros dias de férias no hospital. Deixou passar quase dois meses… E ele sabia bem a resposta…
- Dois meses.
- Parece sério! – Daniel fazia um jogo psicológico com Vasco, que sem perceber encheu o peito de um orgulho macho espreitando aquela conquista.
- É sério Daniel! É uma mulher incrível que se encaixa na minha vida de todas as formas e feitios… Nunca pensei dizer isto, mas acho que ela é a tal…
- Bem… Parabéns aos noivos! – o sarcasmo antecipou o golpe final – Fico contente por saber que a Vanda conseguiu finalmente ter intimidade com alguém… Que se entregou de alma… e corpo. – O sorriso vitorioso de Vasco desvaneceu-se instantaneamente e Daniel sentiu-se um pouco vingado.
Daniel não escondeu o olhar admirado quando viu o lugar onde ficaria acomodado. Em vez de uma casa humilde com as divisões seguidas sem um corredor a dividi-las, encontrou uma casa grande e clara que envergava uma placa orgulhosa que anunciava Guest House Comodoro Corvo numa junção de azul, vermelho, amarelo e branco que fazia lembrar a bandeira americana. As paredes lisas e luminosas conjugavam-se com uns acabamentos em tiras de madeira que transportavam para uma utopia de casa de praia, e para o relaxamento imediato que essa ideia injectava.
- Fecha a boca senhor doutor! – Vasco deu um encontrão suave no seu antigo companheiro de noitadas estudantis. – Nós não temos nenhum hotel aqui, mas temos o Comodoro…
Daniel entrou e apreciou o local asseado que o recebia com um sorriso rasgado num rosto agradável.
- Bem-vindo! – A rapariga de estatura baixa e estreita sacudia o cabelo rebelde que reflectia um brilho desafiador como se estivesse em chamas. – Eu sou a Catarina. – O braço estendido esperou uma acção retardada de Daniel.
- Muito prazer…
- Levas as malas dele até ao quarto Vasco? – A rapariga despachada tomou o controlo da situação, embaraçando ainda mais o médico.
- Eu? Ele que leve, que já é bem grandinho… - Catarina soltou uma gargalhada alta…
- Machos! Quem vai entendê-los? – Catarina encaminhou-os apresentando o espaço. – Aqui tem uma zona comum de lazer e refeições. Pode utilizar a kitchenette. – Daniel apreciou a simplicidade oferecida pelo espaço em que um sofá cerise escuro dividia o espaço de forma inteligente e confortável. O abuso das madeiras claras tornava aquela residencial acolhedora e quase familiar. Daniel dirigiu-se para um terraço exterior e deixou-se abrasar pela paisagem agreste de um verde húmido que desce humildemente para de fundir com o azul do mar.
O quarto não o desiludiu. Já tinha pernoitado em muitos hotéis estrelados que não conseguiam igualar aquele conforto disfarçado pela simplicidade própria dos meios pequenos. Deixou-se cair sobre a cama macia e fechou os olhos por um momento agradecendo a tão desejada solidão. Em breve estaria frente a frente com Vanda e no fundo temia este reencontro. Não a via há mais de cinco anos… Ou melhor ela não o via há mais de cinco anos. Será que ela o reconheceria? Ainda recordava os seus olhos assustados quando deu entrada no hospital acompanhada por dois polícias. Uns olhos negros e arregalados que assumiam uma neblina obscura. Ele foi o psiquiatra destacado para a acompanhar.
-Acreditamos que ela foi violada… - Aquelas palavras do polícia mais velho que exibia um bigode farfalhudo e uma barriga proeminente, ainda ecoavam na sua mente.
-Olá! Eu sou o Daniel! - Os olhos ausentes não lhe retribuíram o cumprimento. - Terás de fazer alguns exames médicos… - Agora sim, os seus olhos negros atingiram os olhos dele e um estremecimento percorreu-lhe a espinha. Não a podia deixar sozinha. Ele soube naquele momento que se tinha ligado àquele olhar de terror de uma forma pouco profissional.
- Não te preocupes… Eu vou acompanhar-te sempre! - A sala demasiado branca parecia rir-se daquela dor tão escura. A sujidade conferia-lhe um ar mais sofredor e acentuava-lhe a magreza… Uma enfermeira entrou no consultório.
 - Já está tudo preparado para recebê-la.
Daniel ajudou-a a levantar-se e conduziu-a para a medicina legal.
- Acho melhor ficar aqui… ela está em choque e podem precisar dos meus serviços. - Ninguém se opôs… Ninguém achou estranho… Mas ele sentia que estava a mentir… O profissionalismo que sempre o caracterizara estava diminuído pelo sentimento de protecção que aquela jovem frágil lhe provocava. Uma médica loura e de formas agradáveis retirou-lhe a roupa gentilmente. Vanda sentindo o corpo nu abraçou-se e encolheu-se começando a chorar compulsivamente.
- Está tudo bem! - Daniel sentou-se na maca ao lado dela e pegando com suavidade nas mãos delicadas abriu-lhe os braços. - Nós somos médicos… Podes confiar no nosso trabalho. - Quando os braços dela se abriram a tremer, Daniel teve a visão aterradora de um seio inchado de hematomas e escuro das agressões. O seu estômago revolveu-se e teve de sair da sala a correr. Lembra-se de ter vomitado num caixote do lixo. Vomitou freneticamente… Ele sentira-se mal porque teve um pequeno vislumbre daquela agressão impiedosa… Nem podia imaginar como estaria a mente daquela pobre jovem que sofrera na pele os horrores de um intimidade forçada e bruta…
Entrou novamente na sala.
- Ela ficará internada… Está muito mal tratada. Tem escoriações visíveis… Mas é um golpe que sofreu na cabeça que me preocupa. Vamos fazer mais alguns exames, para ver se este golpe deixou alguma mazela. - Daniel sentiu o seu coração acelerar-se. - Vais ter de acompanhá-la… ela ainda não emitiu uma única palavra. Ela não foi apenas violada… Ela foi muito maltratada…
- Eu vou acompanhá-la.
O outro médico aproximou-se e em tom de segredo esbofeteou-o com as suas palavras.
- Ainda bem que ela conseguiu matá-lo, ou então…
- Ou então?
- Estaria morta…

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Capitulo VIII - Nas Asas do Corvo


Capitulo VIII

A dor de cabeça mortificava-lhe a paciência e os movimentos. Vanda sabia que só um calmante muito forte conseguiria pôr fim àquele sofrimento e deixou-se cair na cama à espera que os dois comprimidos fizessem efeito. O quarto afunilava-se numa agonia extrema e só os olhos atentos e preocupados de Vasco lhe indicavam que a morte não era a melhor solução para aquele tormento. Os calmantes trouxeram uma solução doce e pacifica que se evidenciou num sono profundo.
Vasco sentou-se naquele sofá conhecido. Descalçou os sapatos cuidadosamente e alinhou-os num canto oportuno. Deixou que o seu corpo se moldasse confortavelmente ao sofá e fechou os olhos focando-se no turbilhão de pensamentos e sentimentos que lhe invadiam a alma. Uma mulher misteriosa despertou-lhe os sentidos quando pareciam adormecidos e impulsionava-o a desejos mais íntimos e longos. A mesma mulher que lhe suscitava uma cautela que nunca tinha sentido relativamente a ninguém.
O telefone tocou.
- Sim!
- Vasco?
- Sim sou eu. Daniel?
- Sim…
Vasco suspirou e achou que era altura de apelar à ajuda de um profissional.
- Eu acho que devias vir até cá.
- Ela não está bem?
A resposta negativa gritava-lhe nas entranhas.
- Ela contou-me a história da violação… Foi o tio…
- Eu sei… Nos autos da polícia consta que ele apanhou-a desprevenida. Ela tentou defender-se o que lhe provocou os hematomas que ela tinha no corpo nessa noite… Mas ele forçou-a até ao fim… E quando ele tentou investir novamente nessa mesma noite ela matou-o num desespero de que aquele acto isolado se voltasse a repetir…
- Então estás a dizer-me que sabias disto? Que ela o tinha morto?
- Sabia…
- Não foi um acto isolado!
O silêncio que se seguiu serviu para medir o peso daquelas palavras.
- Os abusos duraram três anos!
- Foi ela que te contou? – Daniel sentia-se frustrado por Vasco merecer uma confiança que Vanda nunca lhe dedicara, apesar de a ter acompanhado por anos.
- Foi… Não sei lidar com isto! Tu é que és psiquiatra, bolas… - Vasco esfregava a fronte dorida e prometedora de uma dor de cabeça. Pensou em ceder a um dos comprimidos de Vanda, mas depressa afastou a ideia. Queria estar bem desperto quando ela acordasse. – O que é que eu faço?
- Eu daqui a duas semanas estou aí! Até lá vai só vendo se ela precisa de alguma coisa… Depois podes desligar-te desse assunto.
- É demasiado tarde para me desligar…
- O que é que queres dizer com isso! – Daniel sentiu que não estava preparado para aquela revelação.
- Eu já estou demasiado envolvido!
- Envolvido como?
- Como estás a imaginar…
- Cabrão! – Daniel sentia que todas as suas vísceras vibravam de ódio. – Eu apenas pedi-te que a acompanhasses de perto porque ela ainda está vulnerável. Eu é que a tenho acompanhado por todos estes anos… Na sombra… Protegendo-a… E chegas tu com esse teu ar de galante reles e metes-te com ela, tirando proveito da sua fragilidade…
- Cala-te Daniel… só estás a dizer disparates…
- Daqui a duas semanas estou aí… E tu… livra-te de a magoares
O som intermitente do telefone desligado atingiu o tímpano de Vasco que se deixou descair novamente no sofá. A respiração alterada que se seguiu àquela frase que o mortificava ainda lhe ressoava na mente. “Matei-o”… Ela privou alguém de viver… E este facto parece insignificante e até pouco merecedor de preocupação face aos acontecimentos que o justificam… Como se houvesse justificação para matar um outro ser humano. Assassinar é talvez o acto mais hediondo que o ser humano pode praticar, seja em que circunstâncias forem. É o único acto em que a liberdade de um absorve tudo o que é, foi e seria do outro. Será justificável? Que insensibilidade é esta que Vasco sente ao sentir alívio e justiça num acto cruel e egoísta que ultrapassa o princípio da equidade? O homem justifica sempre a teoria que para ele é mais confortável sem ter muitas vezes a capacidade superior de se distanciar e analisar os factos com a sensibilidade de todos e chegando à conclusão mais sábia…
 O ruído do copo a estilhaçar-se acordou Vasco num sobressalto. Levantou-se num único movimento e deparou-se com Vanda na cozinha a juntar os cacos do copo partido tentando não fazer barulho.
- Já acordaste? – Vasco aproximou-se dela e ajudou-a a limpar o chão.
- Sim! Tenho uma aula agora ao primeiro tempo…
- Que horas são? – Os olhos de Vasco arregalaram-se ao perceber que era já a manhã do dia seguinte. O cheiro do café invadiu-lhe as narinas dando-lhe algum conforto. Depois de conversas e momentos dolorosos devem seguir-se momentos descontraídos. E estes últimos devem ser muito mais prolongados do que os anteriores, uma vez que aqueles em poucos minutos podem fazer estragos que levam anos a serem reparados por estes.
- Bem! Deixei-me adormecer… - Vasco sentou-se no banco alto em frente a Vanda e barrou uma torrada com manteiga. – Este domingo temos o casamento da Sílvia e do Tomás.
- Eu não fui convidada!
- É claro que foste… És a minha companhia! – Vasco sorriu-lhe e levantou-se da mesa apressado contornando-a. Depositou um beijo breve no topo da cabeça de Vanda e olhou para o relógio. – Vê lá se vais bem arranjadinha que eu tenho uma reputação nesta ilha a manter. – O riso que Vasco lhe provocava era mais benéfico para a alma do que os antidepressivos. – Vejo-te logo.
O resto da semana foi uma ressaca dos acontecimentos do feriado. O assunto demasiado sensível e desconfortável tornou-se mudo entre os dois que viviam o início de uma relação como se fossem dois adolescentes, aproveitando todos os momentos longe dos olhares indiscretos para trocarem um beijo rápido ou promessas sussurradas e cheias de significado.    O domingo do casamento chegou e Vanda incitada a correr riscos que havia esquecido arriscou e vestiu um vestido preto com um decote pronunciado que deslizava pelo corpo acariciando-o de forma discreta e sensual. Quando Vasco buzinou fora da sua porta e a viu sair de casa com o cabelo preso apenas nos lados com os caracóis a saltitarem ao sabor do movimento do corpo e o vestido a esvoaçar colando-se ao corpo, Vasco soube que o que o ligava àquela mulher era mais do que uma simples atracção. Era o limite do verbo gostar.
O casamento era a razão ideal para reunir toda a população. Ninguém se tinha poupado para a ocasião e se houvesse ladrões naquela pequena ilha este era o momento de execução do seu profissionalismo, uma vez que todas as casas estavam vazias de gente e de portas fechadas apenas no trinco.
Os convidados ocuparam os lugares na igreja discretamente e os sussurros sobrepuseram-se à ansiedade da espera. As conversas corriqueiras eram soltas, e até os opositores políticos se cumprimentaram. Vasco olhou para o relógio, pegou no braço de Vanda e conduziu-a para fora da igreja interrogado por um olhar admirado, uma vez que a igreja já se encontrava cheia e perderiam um bom lugar. No átrio da igreja encontravam-se Marco e Vera em segredos cúmplices com um outro casal.
- Ah! Sempre arranjaste par para a brincadeira! – Vera atirou um beijo ao cunhado enquanto lançava um olhar malandro a Vanda.
- Claro que sim! Isto sem mim não seria a mesma coisa.
Vanda continuava sem perceber o que se passava. Juntaram-se a eles mais três casais e os noivos chegaram juntos no mesmo carro para espanto de Vanda que achou aquilo muito pouco tradicional.
- Preparados? – Sílvia irradiava uma alegria que contagiou aquele grupo.
- Para quê? – Vanda tentava perceber o que estava a acontecer.
- Ah! Já percebi… Conseguiste arranjar par, porque a rapariga não sabe ao que vem… Logo vi! – O sorriso malandro de Vera despertou mais curiosidade em Vanda.
- Não lhe ligues Vanda! Estão mortas de inveja porque tu vais entrar com o homem mais sexy que esta terra já conheceu…
- Uhhhh! – Um vaio de protestos femininos foram interrompidos pelo noivo.
- Vocês são os primeiros. – Tomás empurrou Vanda e Vasco para a entrada da igreja e quando os olhares da plateia de deslocaram para o casal recém entrado, Vanda sentiu-se diminuir de tamanho. Estava ali de mão dada com Vasco com uma população inteira a olhar para ela. A música Forever do Chris Brown surgiu do nada e Vasco começou a dançar desengonçadamente… Vanda sentiu-se corar. Vasco mexia-se e abanava-se e incentivava-a a fazer o mesmo. Estaria doido? Ele pegou-lhe nas duas mãos e obrigou-a a balouçar o corpo. Vanda ria alto sem perceber a felicidade que lhe corria nas veias e sem pensar deixou-se levar e os dois subiram a nave da igreja dançando desajeitadamente. Antes de se posicionarem ao lado do altar, Vasco exibiu-se num pino torto o que fez explodir a multidão em aplausos. Vanda sem querer ficar atrás, executou na perfeição uma roda que terminou com as pernas juntas numa elegância que levou a plateia ao rubro. Os casais seguiram-se sem se pouparem ao embaraço desavergonhado e divertido. Quando os noivos finalmente entraram e também não se fizeram rogados às figuras tristes, todos se sentiram incentivados a cantar em vozes díspares e a aplaudirem desritmadamente enquanto os corpos se balouçavam numa alegria sentida em uníssono.
Vanda procurava na sua memória uma missa tão bonita mas a sua memória não conseguia alcançar tal recordação. Participou em procissões de velas no Santuário de Fátima e noutros casamentos em França e em Portugal e não tinha memória de sentir tamanha emoção. Sentiu que o coração se enchia de qualquer coisa terna e útil. Qualquer coisa que é imprescindível para a compreensão do sentido da vida. Um sentimento forte que percorre as entranhas, reconforta as mágoas, cura as feridas e dá-nos força para partilhar esse sentimento com quem precisa de um alívio. É a segunda vez que Vanda se sente tocada por Deus, desde que deixou que o terror dominasse a sua vida.