quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Capitulo IX - Nas Asas do Corvo


Capitulo IX

A felicidade é como a meteorologia. Não podemos adivinhá-la, apenas antecipar a tempestade de chuvas ventos e sentimentos que nos invadem a alma… restando no fim um rasto amargo de nostalgia. A dormência do amor tolda o entendimento de forma suave e quase imperceptível, transformando o quotidiano leve e desejado num vidro frágil perante verdades duras… É na dor que se encontra a verdadeira força humana. É na dor da queimadura que aprendemos a evitar o fogo. É na dor que residem todos os anticorpos das emoções. É da dor que nascem os sentimentos, memórias e vivências que nos acompanharão pelo curto caminho da vida, guiando-nos na escuridão das ilusões, alertando sempre que o perigo espreita e adormecendo sempre que o belo surge.
A dor adormecida de Vanda despertava sempre que a intimidade de Vasco espreitava, e a frustração impunha-se nos momentos mais calorosos. Vasco desejava a chegada de Daniel, como se este fosse portador de um pó de perlimpimpim.
- Bem-vindo Daniel! – Vasco pegou na pesada mala e colocou-a milimetricamente na bagageira do carro. A falta de um cumprimento caloroso que marcara os tempos de faculdade foi sentido por ambas as partes.
- Já lhe contaste que me conheces? – Daniel temia aquele encontro.
- Não.
- Onde é que ela está agora?
- Nas aulas.
As portas do carro foram fechadas com uma cautela exagerada, e os cintos de segurança passaram pesados sobre os peitos inchados.
- Diz-me onde é que ela mora para que eu…
- Eu levo-te lá logo à noite… - Daniel sentiu que Vasco queria marcar o seu território com aquela afirmação.
- Vocês… Estão envolvidos? Ou…
- Nós estamos numa relação firme! – Vasco queria deixar bem claro que não existia espaço para Daniel nas afectividades de Vanda.
- Ah… há quanto tempo é que estão juntos? – Daniel sentiu um nó no estômago quando pronunciou a palavra juntos. Devia ter cumprido as duas semanas que tinha estabelecido na última conversa que tivera com Vasco… Mas não tinha conseguido uns míseros dias de férias no hospital. Deixou passar quase dois meses… E ele sabia bem a resposta…
- Dois meses.
- Parece sério! – Daniel fazia um jogo psicológico com Vasco, que sem perceber encheu o peito de um orgulho macho espreitando aquela conquista.
- É sério Daniel! É uma mulher incrível que se encaixa na minha vida de todas as formas e feitios… Nunca pensei dizer isto, mas acho que ela é a tal…
- Bem… Parabéns aos noivos! – o sarcasmo antecipou o golpe final – Fico contente por saber que a Vanda conseguiu finalmente ter intimidade com alguém… Que se entregou de alma… e corpo. – O sorriso vitorioso de Vasco desvaneceu-se instantaneamente e Daniel sentiu-se um pouco vingado.
Daniel não escondeu o olhar admirado quando viu o lugar onde ficaria acomodado. Em vez de uma casa humilde com as divisões seguidas sem um corredor a dividi-las, encontrou uma casa grande e clara que envergava uma placa orgulhosa que anunciava Guest House Comodoro Corvo numa junção de azul, vermelho, amarelo e branco que fazia lembrar a bandeira americana. As paredes lisas e luminosas conjugavam-se com uns acabamentos em tiras de madeira que transportavam para uma utopia de casa de praia, e para o relaxamento imediato que essa ideia injectava.
- Fecha a boca senhor doutor! – Vasco deu um encontrão suave no seu antigo companheiro de noitadas estudantis. – Nós não temos nenhum hotel aqui, mas temos o Comodoro…
Daniel entrou e apreciou o local asseado que o recebia com um sorriso rasgado num rosto agradável.
- Bem-vindo! – A rapariga de estatura baixa e estreita sacudia o cabelo rebelde que reflectia um brilho desafiador como se estivesse em chamas. – Eu sou a Catarina. – O braço estendido esperou uma acção retardada de Daniel.
- Muito prazer…
- Levas as malas dele até ao quarto Vasco? – A rapariga despachada tomou o controlo da situação, embaraçando ainda mais o médico.
- Eu? Ele que leve, que já é bem grandinho… - Catarina soltou uma gargalhada alta…
- Machos! Quem vai entendê-los? – Catarina encaminhou-os apresentando o espaço. – Aqui tem uma zona comum de lazer e refeições. Pode utilizar a kitchenette. – Daniel apreciou a simplicidade oferecida pelo espaço em que um sofá cerise escuro dividia o espaço de forma inteligente e confortável. O abuso das madeiras claras tornava aquela residencial acolhedora e quase familiar. Daniel dirigiu-se para um terraço exterior e deixou-se abrasar pela paisagem agreste de um verde húmido que desce humildemente para de fundir com o azul do mar.
O quarto não o desiludiu. Já tinha pernoitado em muitos hotéis estrelados que não conseguiam igualar aquele conforto disfarçado pela simplicidade própria dos meios pequenos. Deixou-se cair sobre a cama macia e fechou os olhos por um momento agradecendo a tão desejada solidão. Em breve estaria frente a frente com Vanda e no fundo temia este reencontro. Não a via há mais de cinco anos… Ou melhor ela não o via há mais de cinco anos. Será que ela o reconheceria? Ainda recordava os seus olhos assustados quando deu entrada no hospital acompanhada por dois polícias. Uns olhos negros e arregalados que assumiam uma neblina obscura. Ele foi o psiquiatra destacado para a acompanhar.
-Acreditamos que ela foi violada… - Aquelas palavras do polícia mais velho que exibia um bigode farfalhudo e uma barriga proeminente, ainda ecoavam na sua mente.
-Olá! Eu sou o Daniel! - Os olhos ausentes não lhe retribuíram o cumprimento. - Terás de fazer alguns exames médicos… - Agora sim, os seus olhos negros atingiram os olhos dele e um estremecimento percorreu-lhe a espinha. Não a podia deixar sozinha. Ele soube naquele momento que se tinha ligado àquele olhar de terror de uma forma pouco profissional.
- Não te preocupes… Eu vou acompanhar-te sempre! - A sala demasiado branca parecia rir-se daquela dor tão escura. A sujidade conferia-lhe um ar mais sofredor e acentuava-lhe a magreza… Uma enfermeira entrou no consultório.
 - Já está tudo preparado para recebê-la.
Daniel ajudou-a a levantar-se e conduziu-a para a medicina legal.
- Acho melhor ficar aqui… ela está em choque e podem precisar dos meus serviços. - Ninguém se opôs… Ninguém achou estranho… Mas ele sentia que estava a mentir… O profissionalismo que sempre o caracterizara estava diminuído pelo sentimento de protecção que aquela jovem frágil lhe provocava. Uma médica loura e de formas agradáveis retirou-lhe a roupa gentilmente. Vanda sentindo o corpo nu abraçou-se e encolheu-se começando a chorar compulsivamente.
- Está tudo bem! - Daniel sentou-se na maca ao lado dela e pegando com suavidade nas mãos delicadas abriu-lhe os braços. - Nós somos médicos… Podes confiar no nosso trabalho. - Quando os braços dela se abriram a tremer, Daniel teve a visão aterradora de um seio inchado de hematomas e escuro das agressões. O seu estômago revolveu-se e teve de sair da sala a correr. Lembra-se de ter vomitado num caixote do lixo. Vomitou freneticamente… Ele sentira-se mal porque teve um pequeno vislumbre daquela agressão impiedosa… Nem podia imaginar como estaria a mente daquela pobre jovem que sofrera na pele os horrores de um intimidade forçada e bruta…
Entrou novamente na sala.
- Ela ficará internada… Está muito mal tratada. Tem escoriações visíveis… Mas é um golpe que sofreu na cabeça que me preocupa. Vamos fazer mais alguns exames, para ver se este golpe deixou alguma mazela. - Daniel sentiu o seu coração acelerar-se. - Vais ter de acompanhá-la… ela ainda não emitiu uma única palavra. Ela não foi apenas violada… Ela foi muito maltratada…
- Eu vou acompanhá-la.
O outro médico aproximou-se e em tom de segredo esbofeteou-o com as suas palavras.
- Ainda bem que ela conseguiu matá-lo, ou então…
- Ou então?
- Estaria morta…

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