Capitulo IX
A
felicidade é como a meteorologia. Não podemos adivinhá-la, apenas antecipar a
tempestade de chuvas ventos e sentimentos que nos invadem a alma… restando no
fim um rasto amargo de nostalgia. A dormência do amor tolda o entendimento de
forma suave e quase imperceptível, transformando o quotidiano leve e desejado
num vidro frágil perante verdades duras… É na dor que se encontra a verdadeira
força humana. É na dor da queimadura que aprendemos a evitar o fogo. É na dor
que residem todos os anticorpos das emoções. É da dor que nascem os
sentimentos, memórias e vivências que nos acompanharão pelo curto caminho da vida,
guiando-nos na escuridão das ilusões, alertando sempre que o perigo espreita e
adormecendo sempre que o belo surge.
A
dor adormecida de Vanda despertava sempre que a intimidade de Vasco espreitava,
e a frustração impunha-se nos momentos mais calorosos. Vasco desejava a chegada
de Daniel, como se este fosse portador de um pó de perlimpimpim.
-
Bem-vindo Daniel! – Vasco pegou na pesada mala e colocou-a milimetricamente na
bagageira do carro. A falta de um cumprimento caloroso que marcara os tempos de
faculdade foi sentido por ambas as partes.
-
Já lhe contaste que me conheces? – Daniel temia aquele encontro.
-
Não.
-
Onde é que ela está agora?
-
Nas aulas.
As
portas do carro foram fechadas com uma cautela exagerada, e os cintos de
segurança passaram pesados sobre os peitos inchados.
-
Diz-me onde é que ela mora para que eu…
-
Eu levo-te lá logo à noite… - Daniel sentiu que Vasco queria marcar o seu
território com aquela afirmação.
-
Vocês… Estão envolvidos? Ou…
-
Nós estamos numa relação firme! – Vasco queria deixar bem claro que não existia
espaço para Daniel nas afectividades de Vanda.
-
Ah… há quanto tempo é que estão juntos? – Daniel sentiu um nó no estômago
quando pronunciou a palavra juntos. Devia ter cumprido as duas semanas que
tinha estabelecido na última conversa que tivera com Vasco… Mas não tinha
conseguido uns míseros dias de férias no hospital. Deixou passar quase dois
meses… E ele sabia bem a resposta…
-
Dois meses.
-
Parece sério! – Daniel fazia um jogo psicológico com Vasco, que sem perceber
encheu o peito de um orgulho macho espreitando aquela conquista.
-
É sério Daniel! É uma mulher incrível que se encaixa na minha vida de todas as
formas e feitios… Nunca pensei dizer isto, mas acho que ela é a tal…
-
Bem… Parabéns aos noivos! – o sarcasmo antecipou o golpe final – Fico contente
por saber que a Vanda conseguiu finalmente ter intimidade com alguém… Que se
entregou de alma… e corpo. – O sorriso vitorioso de Vasco desvaneceu-se
instantaneamente e Daniel sentiu-se um pouco vingado.
Daniel
não escondeu o olhar admirado quando viu o lugar onde ficaria acomodado. Em vez
de uma casa humilde com as divisões seguidas sem um corredor a dividi-las,
encontrou uma casa grande e clara que envergava uma placa orgulhosa que
anunciava Guest House Comodoro Corvo numa junção de azul, vermelho, amarelo e
branco que fazia lembrar a bandeira americana. As paredes lisas e luminosas
conjugavam-se com uns acabamentos em tiras de madeira que transportavam para
uma utopia de casa de praia, e para o relaxamento imediato que essa ideia
injectava.
-
Fecha a boca senhor doutor! – Vasco deu um encontrão suave no seu antigo
companheiro de noitadas estudantis. – Nós não temos nenhum hotel aqui, mas
temos o Comodoro…
Daniel
entrou e apreciou o local asseado que o recebia com um sorriso rasgado num
rosto agradável.
-
Bem-vindo! – A rapariga de estatura baixa e estreita sacudia o cabelo rebelde
que reflectia um brilho desafiador como se estivesse em chamas. – Eu sou a
Catarina. – O braço estendido esperou uma acção retardada de Daniel.
-
Muito prazer…
-
Levas as malas dele até ao quarto Vasco? – A rapariga despachada tomou o controlo
da situação, embaraçando ainda mais o médico.
-
Eu? Ele que leve, que já é bem grandinho… - Catarina soltou uma gargalhada alta…
-
Machos! Quem vai entendê-los? – Catarina encaminhou-os apresentando o espaço. –
Aqui tem uma zona comum de lazer e refeições. Pode utilizar a kitchenette. –
Daniel apreciou a simplicidade oferecida pelo espaço em que um sofá cerise
escuro dividia o espaço de forma inteligente e confortável. O abuso das
madeiras claras tornava aquela residencial acolhedora e quase familiar. Daniel
dirigiu-se para um terraço exterior e deixou-se abrasar pela paisagem agreste
de um verde húmido que desce humildemente para de fundir com o azul do mar.
O
quarto não o desiludiu. Já tinha pernoitado em muitos hotéis estrelados que não
conseguiam igualar aquele conforto disfarçado pela simplicidade própria dos
meios pequenos. Deixou-se cair sobre a cama macia e fechou os olhos por um
momento agradecendo a tão desejada solidão. Em breve estaria frente a frente
com Vanda e no fundo temia este reencontro. Não a via há mais de cinco anos… Ou
melhor ela não o via há mais de cinco anos. Será que ela o reconheceria? Ainda
recordava os seus olhos assustados quando deu entrada no hospital acompanhada
por dois polícias. Uns olhos negros e arregalados que assumiam uma neblina obscura.
Ele foi o psiquiatra destacado para a acompanhar.
-Acreditamos
que ela foi violada… - Aquelas palavras do polícia mais velho que exibia um
bigode farfalhudo e uma barriga proeminente, ainda ecoavam na sua mente.
-Olá!
Eu sou o Daniel! - Os olhos ausentes não lhe retribuíram o cumprimento. - Terás
de fazer alguns exames médicos… - Agora sim, os seus olhos negros atingiram os
olhos dele e um estremecimento percorreu-lhe a espinha. Não a podia deixar
sozinha. Ele soube naquele momento que se tinha ligado àquele olhar de terror
de uma forma pouco profissional.
-
Não te preocupes… Eu vou acompanhar-te sempre! - A sala demasiado branca
parecia rir-se daquela dor tão escura. A sujidade conferia-lhe um ar mais
sofredor e acentuava-lhe a magreza… Uma enfermeira entrou no consultório.
- Já está tudo preparado para recebê-la.
Daniel
ajudou-a a levantar-se e conduziu-a para a medicina legal.
-
Acho melhor ficar aqui… ela está em choque e podem precisar dos meus serviços. -
Ninguém se opôs… Ninguém achou estranho… Mas ele sentia que estava a mentir… O
profissionalismo que sempre o caracterizara estava diminuído pelo sentimento de
protecção que aquela jovem frágil lhe provocava. Uma médica loura e de formas
agradáveis retirou-lhe a roupa gentilmente. Vanda sentindo o corpo nu abraçou-se
e encolheu-se começando a chorar compulsivamente.
-
Está tudo bem! - Daniel sentou-se na maca ao lado dela e pegando com suavidade
nas mãos delicadas abriu-lhe os braços. - Nós somos médicos… Podes confiar no
nosso trabalho. - Quando os braços dela se abriram a tremer, Daniel teve a
visão aterradora de um seio inchado de hematomas e escuro das agressões. O seu
estômago revolveu-se e teve de sair da sala a correr. Lembra-se de ter vomitado
num caixote do lixo. Vomitou freneticamente… Ele sentira-se mal porque teve um pequeno
vislumbre daquela agressão impiedosa… Nem podia imaginar como estaria a mente
daquela pobre jovem que sofrera na pele os horrores de um intimidade forçada e
bruta…
Entrou
novamente na sala.
-
Ela ficará internada… Está muito mal tratada. Tem escoriações visíveis… Mas é
um golpe que sofreu na cabeça que me preocupa. Vamos fazer mais alguns exames,
para ver se este golpe deixou alguma mazela. - Daniel sentiu o seu coração
acelerar-se. - Vais ter de acompanhá-la… ela ainda não emitiu uma única palavra.
Ela não foi apenas violada… Ela foi muito maltratada…
-
Eu vou acompanhá-la.
O
outro médico aproximou-se e em tom de segredo esbofeteou-o com as suas palavras.
-
Ainda bem que ela conseguiu matá-lo, ou então…
-
Ou então?
-
Estaria morta…
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