Capitulo VIII
A
dor de cabeça mortificava-lhe a paciência e os movimentos. Vanda sabia que só
um calmante muito forte conseguiria pôr fim àquele sofrimento e deixou-se cair
na cama à espera que os dois comprimidos fizessem efeito. O quarto afunilava-se
numa agonia extrema e só os olhos atentos e preocupados de Vasco lhe indicavam
que a morte não era a melhor solução para aquele tormento. Os calmantes
trouxeram uma solução doce e pacifica que se evidenciou num sono profundo.
Vasco
sentou-se naquele sofá conhecido. Descalçou os sapatos cuidadosamente e
alinhou-os num canto oportuno. Deixou que o seu corpo se moldasse confortavelmente
ao sofá e fechou os olhos focando-se no turbilhão de pensamentos e sentimentos
que lhe invadiam a alma. Uma mulher misteriosa despertou-lhe os sentidos quando
pareciam adormecidos e impulsionava-o a desejos mais íntimos e longos. A mesma
mulher que lhe suscitava uma cautela que nunca tinha sentido relativamente a
ninguém.
O
telefone tocou.
-
Sim!
-
Vasco?
-
Sim sou eu. Daniel?
-
Sim…
Vasco
suspirou e achou que era altura de apelar à ajuda de um profissional.
-
Eu acho que devias vir até cá.
-
Ela não está bem?
A
resposta negativa gritava-lhe nas entranhas.
-
Ela contou-me a história da violação… Foi o tio…
-
Eu sei… Nos autos da polícia consta que ele apanhou-a desprevenida. Ela tentou
defender-se o que lhe provocou os hematomas que ela tinha no corpo nessa noite…
Mas ele forçou-a até ao fim… E quando ele tentou investir novamente nessa mesma
noite ela matou-o num desespero de que aquele acto isolado se voltasse a
repetir…
-
Então estás a dizer-me que sabias disto? Que ela o tinha morto?
-
Sabia…
-
Não foi um acto isolado!
O
silêncio que se seguiu serviu para medir o peso daquelas palavras.
-
Os abusos duraram três anos!
-
Foi ela que te contou? – Daniel sentia-se frustrado por Vasco merecer uma
confiança que Vanda nunca lhe dedicara, apesar de a ter acompanhado por anos.
-
Foi… Não sei lidar com isto! Tu é que és psiquiatra, bolas… - Vasco esfregava a
fronte dorida e prometedora de uma dor de cabeça. Pensou em ceder a um dos
comprimidos de Vanda, mas depressa afastou a ideia. Queria estar bem desperto
quando ela acordasse. – O que é que eu faço?
-
Eu daqui a duas semanas estou aí! Até lá vai só vendo se ela precisa de alguma
coisa… Depois podes desligar-te desse assunto.
-
É demasiado tarde para me desligar…
-
O que é que queres dizer com isso! – Daniel sentiu que não estava preparado
para aquela revelação.
-
Eu já estou demasiado envolvido!
-
Envolvido como?
-
Como estás a imaginar…
-
Cabrão! – Daniel sentia que todas as suas vísceras vibravam de ódio. – Eu
apenas pedi-te que a acompanhasses de perto porque ela ainda está vulnerável.
Eu é que a tenho acompanhado por todos estes anos… Na sombra… Protegendo-a… E
chegas tu com esse teu ar de galante reles e metes-te com ela, tirando proveito
da sua fragilidade…
-
Cala-te Daniel… só estás a dizer disparates…
-
Daqui a duas semanas estou aí… E tu… livra-te de a magoares
O
som intermitente do telefone desligado atingiu o tímpano de Vasco que se deixou
descair novamente no sofá. A respiração alterada que se seguiu àquela frase que
o mortificava ainda lhe ressoava na mente. “Matei-o”… Ela privou alguém de
viver… E este facto parece insignificante e até pouco merecedor de preocupação
face aos acontecimentos que o justificam… Como se houvesse justificação para matar
um outro ser humano. Assassinar é talvez o acto mais hediondo que o ser humano
pode praticar, seja em que circunstâncias forem. É o único acto em que a
liberdade de um absorve tudo o que é, foi e seria do outro. Será justificável?
Que insensibilidade é esta que Vasco sente ao sentir alívio e justiça num acto
cruel e egoísta que ultrapassa o princípio da equidade? O homem justifica
sempre a teoria que para ele é mais confortável sem ter muitas vezes a
capacidade superior de se distanciar e analisar os factos com a sensibilidade
de todos e chegando à conclusão mais sábia…
O ruído do copo a estilhaçar-se acordou Vasco
num sobressalto. Levantou-se num único movimento e deparou-se com Vanda na
cozinha a juntar os cacos do copo partido tentando não fazer barulho.
-
Já acordaste? – Vasco aproximou-se dela e ajudou-a a limpar o chão.
-
Sim! Tenho uma aula agora ao primeiro tempo…
-
Que horas são? – Os olhos de Vasco arregalaram-se ao perceber que era já a
manhã do dia seguinte. O cheiro do café invadiu-lhe as narinas dando-lhe algum
conforto. Depois de conversas e momentos dolorosos devem seguir-se momentos
descontraídos. E estes últimos devem ser muito mais prolongados do que os
anteriores, uma vez que aqueles em poucos minutos podem fazer estragos que
levam anos a serem reparados por estes.
-
Bem! Deixei-me adormecer… - Vasco sentou-se no banco alto em frente a Vanda e
barrou uma torrada com manteiga. – Este domingo temos o casamento da Sílvia e
do Tomás.
-
Eu não fui convidada!
-
É claro que foste… És a minha companhia! – Vasco sorriu-lhe e levantou-se da
mesa apressado contornando-a. Depositou um beijo breve no topo da cabeça de
Vanda e olhou para o relógio. – Vê lá se vais bem arranjadinha que eu tenho uma
reputação nesta ilha a manter. – O riso que Vasco lhe provocava era mais
benéfico para a alma do que os antidepressivos. – Vejo-te logo.
O
resto da semana foi uma ressaca dos acontecimentos do feriado. O assunto
demasiado sensível e desconfortável tornou-se mudo entre os dois que viviam o
início de uma relação como se fossem dois adolescentes, aproveitando todos os
momentos longe dos olhares indiscretos para trocarem um beijo rápido ou
promessas sussurradas e cheias de significado. O domingo do casamento chegou e Vanda
incitada a correr riscos que havia esquecido arriscou e vestiu um vestido preto
com um decote pronunciado que deslizava pelo corpo acariciando-o de forma
discreta e sensual. Quando Vasco buzinou fora da sua porta e a viu sair de casa
com o cabelo preso apenas nos lados com os caracóis a saltitarem ao sabor do
movimento do corpo e o vestido a esvoaçar colando-se ao corpo, Vasco soube que
o que o ligava àquela mulher era mais do que uma simples atracção. Era o limite
do verbo gostar.
O
casamento era a razão ideal para reunir toda a população. Ninguém se tinha
poupado para a ocasião e se houvesse ladrões naquela pequena ilha este era o
momento de execução do seu profissionalismo, uma vez que todas as casas estavam
vazias de gente e de portas fechadas apenas no trinco.
Os
convidados ocuparam os lugares na igreja discretamente e os sussurros
sobrepuseram-se à ansiedade da espera. As conversas corriqueiras eram soltas, e
até os opositores políticos se cumprimentaram. Vasco olhou para o relógio,
pegou no braço de Vanda e conduziu-a para fora da igreja interrogado por um
olhar admirado, uma vez que a igreja já se encontrava cheia e perderiam um bom
lugar. No átrio da igreja encontravam-se Marco e Vera em segredos cúmplices com
um outro casal.
-
Ah! Sempre arranjaste par para a brincadeira! – Vera atirou um beijo ao cunhado
enquanto lançava um olhar malandro a Vanda.
-
Claro que sim! Isto sem mim não seria a mesma coisa.
Vanda
continuava sem perceber o que se passava. Juntaram-se a eles mais três casais e
os noivos chegaram juntos no mesmo carro para espanto de Vanda que achou aquilo
muito pouco tradicional.
-
Preparados? – Sílvia irradiava uma alegria que contagiou aquele grupo.
-
Para quê? – Vanda tentava perceber o que estava a acontecer.
-
Ah! Já percebi… Conseguiste arranjar par, porque a rapariga não sabe ao que
vem… Logo vi! – O sorriso malandro de Vera despertou mais curiosidade em Vanda.
-
Não lhe ligues Vanda! Estão mortas de inveja porque tu vais entrar com o homem
mais sexy que esta terra já conheceu…
-
Uhhhh! – Um vaio de protestos femininos foram interrompidos pelo noivo.
-
Vocês são os primeiros. – Tomás empurrou Vanda e Vasco para a entrada da igreja
e quando os olhares da plateia de deslocaram para o casal recém entrado, Vanda
sentiu-se diminuir de tamanho. Estava ali de mão dada com Vasco com uma
população inteira a olhar para ela. A música Forever do Chris Brown surgiu do
nada e Vasco começou a dançar desengonçadamente… Vanda sentiu-se corar. Vasco
mexia-se e abanava-se e incentivava-a a fazer o mesmo. Estaria doido? Ele
pegou-lhe nas duas mãos e obrigou-a a balouçar o corpo. Vanda ria alto sem
perceber a felicidade que lhe corria nas veias e sem pensar deixou-se levar e
os dois subiram a nave da igreja dançando desajeitadamente. Antes de se
posicionarem ao lado do altar, Vasco exibiu-se num pino torto o que fez
explodir a multidão em aplausos. Vanda sem querer ficar atrás, executou na
perfeição uma roda que terminou com as pernas juntas numa elegância que levou a
plateia ao rubro. Os casais seguiram-se sem se pouparem ao embaraço
desavergonhado e divertido. Quando os noivos finalmente entraram e também não
se fizeram rogados às figuras tristes, todos se sentiram incentivados a cantar
em vozes díspares e a aplaudirem desritmadamente enquanto os corpos se
balouçavam numa alegria sentida em uníssono.
Vanda
procurava na sua memória uma missa tão bonita mas a sua memória não conseguia
alcançar tal recordação. Participou em procissões de velas no Santuário de
Fátima e noutros casamentos em França e em Portugal e não tinha memória de
sentir tamanha emoção. Sentiu que o coração se enchia de qualquer coisa terna e
útil. Qualquer coisa que é imprescindível para a compreensão do sentido da
vida. Um sentimento forte que percorre as entranhas, reconforta as mágoas, cura
as feridas e dá-nos força para partilhar esse sentimento com quem precisa de um
alívio. É a segunda vez que Vanda se sente tocada por Deus, desde que deixou
que o terror dominasse a sua vida.
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