sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Capitulo VIII - Nas Asas do Corvo


Capitulo VIII

A dor de cabeça mortificava-lhe a paciência e os movimentos. Vanda sabia que só um calmante muito forte conseguiria pôr fim àquele sofrimento e deixou-se cair na cama à espera que os dois comprimidos fizessem efeito. O quarto afunilava-se numa agonia extrema e só os olhos atentos e preocupados de Vasco lhe indicavam que a morte não era a melhor solução para aquele tormento. Os calmantes trouxeram uma solução doce e pacifica que se evidenciou num sono profundo.
Vasco sentou-se naquele sofá conhecido. Descalçou os sapatos cuidadosamente e alinhou-os num canto oportuno. Deixou que o seu corpo se moldasse confortavelmente ao sofá e fechou os olhos focando-se no turbilhão de pensamentos e sentimentos que lhe invadiam a alma. Uma mulher misteriosa despertou-lhe os sentidos quando pareciam adormecidos e impulsionava-o a desejos mais íntimos e longos. A mesma mulher que lhe suscitava uma cautela que nunca tinha sentido relativamente a ninguém.
O telefone tocou.
- Sim!
- Vasco?
- Sim sou eu. Daniel?
- Sim…
Vasco suspirou e achou que era altura de apelar à ajuda de um profissional.
- Eu acho que devias vir até cá.
- Ela não está bem?
A resposta negativa gritava-lhe nas entranhas.
- Ela contou-me a história da violação… Foi o tio…
- Eu sei… Nos autos da polícia consta que ele apanhou-a desprevenida. Ela tentou defender-se o que lhe provocou os hematomas que ela tinha no corpo nessa noite… Mas ele forçou-a até ao fim… E quando ele tentou investir novamente nessa mesma noite ela matou-o num desespero de que aquele acto isolado se voltasse a repetir…
- Então estás a dizer-me que sabias disto? Que ela o tinha morto?
- Sabia…
- Não foi um acto isolado!
O silêncio que se seguiu serviu para medir o peso daquelas palavras.
- Os abusos duraram três anos!
- Foi ela que te contou? – Daniel sentia-se frustrado por Vasco merecer uma confiança que Vanda nunca lhe dedicara, apesar de a ter acompanhado por anos.
- Foi… Não sei lidar com isto! Tu é que és psiquiatra, bolas… - Vasco esfregava a fronte dorida e prometedora de uma dor de cabeça. Pensou em ceder a um dos comprimidos de Vanda, mas depressa afastou a ideia. Queria estar bem desperto quando ela acordasse. – O que é que eu faço?
- Eu daqui a duas semanas estou aí! Até lá vai só vendo se ela precisa de alguma coisa… Depois podes desligar-te desse assunto.
- É demasiado tarde para me desligar…
- O que é que queres dizer com isso! – Daniel sentiu que não estava preparado para aquela revelação.
- Eu já estou demasiado envolvido!
- Envolvido como?
- Como estás a imaginar…
- Cabrão! – Daniel sentia que todas as suas vísceras vibravam de ódio. – Eu apenas pedi-te que a acompanhasses de perto porque ela ainda está vulnerável. Eu é que a tenho acompanhado por todos estes anos… Na sombra… Protegendo-a… E chegas tu com esse teu ar de galante reles e metes-te com ela, tirando proveito da sua fragilidade…
- Cala-te Daniel… só estás a dizer disparates…
- Daqui a duas semanas estou aí… E tu… livra-te de a magoares
O som intermitente do telefone desligado atingiu o tímpano de Vasco que se deixou descair novamente no sofá. A respiração alterada que se seguiu àquela frase que o mortificava ainda lhe ressoava na mente. “Matei-o”… Ela privou alguém de viver… E este facto parece insignificante e até pouco merecedor de preocupação face aos acontecimentos que o justificam… Como se houvesse justificação para matar um outro ser humano. Assassinar é talvez o acto mais hediondo que o ser humano pode praticar, seja em que circunstâncias forem. É o único acto em que a liberdade de um absorve tudo o que é, foi e seria do outro. Será justificável? Que insensibilidade é esta que Vasco sente ao sentir alívio e justiça num acto cruel e egoísta que ultrapassa o princípio da equidade? O homem justifica sempre a teoria que para ele é mais confortável sem ter muitas vezes a capacidade superior de se distanciar e analisar os factos com a sensibilidade de todos e chegando à conclusão mais sábia…
 O ruído do copo a estilhaçar-se acordou Vasco num sobressalto. Levantou-se num único movimento e deparou-se com Vanda na cozinha a juntar os cacos do copo partido tentando não fazer barulho.
- Já acordaste? – Vasco aproximou-se dela e ajudou-a a limpar o chão.
- Sim! Tenho uma aula agora ao primeiro tempo…
- Que horas são? – Os olhos de Vasco arregalaram-se ao perceber que era já a manhã do dia seguinte. O cheiro do café invadiu-lhe as narinas dando-lhe algum conforto. Depois de conversas e momentos dolorosos devem seguir-se momentos descontraídos. E estes últimos devem ser muito mais prolongados do que os anteriores, uma vez que aqueles em poucos minutos podem fazer estragos que levam anos a serem reparados por estes.
- Bem! Deixei-me adormecer… - Vasco sentou-se no banco alto em frente a Vanda e barrou uma torrada com manteiga. – Este domingo temos o casamento da Sílvia e do Tomás.
- Eu não fui convidada!
- É claro que foste… És a minha companhia! – Vasco sorriu-lhe e levantou-se da mesa apressado contornando-a. Depositou um beijo breve no topo da cabeça de Vanda e olhou para o relógio. – Vê lá se vais bem arranjadinha que eu tenho uma reputação nesta ilha a manter. – O riso que Vasco lhe provocava era mais benéfico para a alma do que os antidepressivos. – Vejo-te logo.
O resto da semana foi uma ressaca dos acontecimentos do feriado. O assunto demasiado sensível e desconfortável tornou-se mudo entre os dois que viviam o início de uma relação como se fossem dois adolescentes, aproveitando todos os momentos longe dos olhares indiscretos para trocarem um beijo rápido ou promessas sussurradas e cheias de significado.    O domingo do casamento chegou e Vanda incitada a correr riscos que havia esquecido arriscou e vestiu um vestido preto com um decote pronunciado que deslizava pelo corpo acariciando-o de forma discreta e sensual. Quando Vasco buzinou fora da sua porta e a viu sair de casa com o cabelo preso apenas nos lados com os caracóis a saltitarem ao sabor do movimento do corpo e o vestido a esvoaçar colando-se ao corpo, Vasco soube que o que o ligava àquela mulher era mais do que uma simples atracção. Era o limite do verbo gostar.
O casamento era a razão ideal para reunir toda a população. Ninguém se tinha poupado para a ocasião e se houvesse ladrões naquela pequena ilha este era o momento de execução do seu profissionalismo, uma vez que todas as casas estavam vazias de gente e de portas fechadas apenas no trinco.
Os convidados ocuparam os lugares na igreja discretamente e os sussurros sobrepuseram-se à ansiedade da espera. As conversas corriqueiras eram soltas, e até os opositores políticos se cumprimentaram. Vasco olhou para o relógio, pegou no braço de Vanda e conduziu-a para fora da igreja interrogado por um olhar admirado, uma vez que a igreja já se encontrava cheia e perderiam um bom lugar. No átrio da igreja encontravam-se Marco e Vera em segredos cúmplices com um outro casal.
- Ah! Sempre arranjaste par para a brincadeira! – Vera atirou um beijo ao cunhado enquanto lançava um olhar malandro a Vanda.
- Claro que sim! Isto sem mim não seria a mesma coisa.
Vanda continuava sem perceber o que se passava. Juntaram-se a eles mais três casais e os noivos chegaram juntos no mesmo carro para espanto de Vanda que achou aquilo muito pouco tradicional.
- Preparados? – Sílvia irradiava uma alegria que contagiou aquele grupo.
- Para quê? – Vanda tentava perceber o que estava a acontecer.
- Ah! Já percebi… Conseguiste arranjar par, porque a rapariga não sabe ao que vem… Logo vi! – O sorriso malandro de Vera despertou mais curiosidade em Vanda.
- Não lhe ligues Vanda! Estão mortas de inveja porque tu vais entrar com o homem mais sexy que esta terra já conheceu…
- Uhhhh! – Um vaio de protestos femininos foram interrompidos pelo noivo.
- Vocês são os primeiros. – Tomás empurrou Vanda e Vasco para a entrada da igreja e quando os olhares da plateia de deslocaram para o casal recém entrado, Vanda sentiu-se diminuir de tamanho. Estava ali de mão dada com Vasco com uma população inteira a olhar para ela. A música Forever do Chris Brown surgiu do nada e Vasco começou a dançar desengonçadamente… Vanda sentiu-se corar. Vasco mexia-se e abanava-se e incentivava-a a fazer o mesmo. Estaria doido? Ele pegou-lhe nas duas mãos e obrigou-a a balouçar o corpo. Vanda ria alto sem perceber a felicidade que lhe corria nas veias e sem pensar deixou-se levar e os dois subiram a nave da igreja dançando desajeitadamente. Antes de se posicionarem ao lado do altar, Vasco exibiu-se num pino torto o que fez explodir a multidão em aplausos. Vanda sem querer ficar atrás, executou na perfeição uma roda que terminou com as pernas juntas numa elegância que levou a plateia ao rubro. Os casais seguiram-se sem se pouparem ao embaraço desavergonhado e divertido. Quando os noivos finalmente entraram e também não se fizeram rogados às figuras tristes, todos se sentiram incentivados a cantar em vozes díspares e a aplaudirem desritmadamente enquanto os corpos se balouçavam numa alegria sentida em uníssono.
Vanda procurava na sua memória uma missa tão bonita mas a sua memória não conseguia alcançar tal recordação. Participou em procissões de velas no Santuário de Fátima e noutros casamentos em França e em Portugal e não tinha memória de sentir tamanha emoção. Sentiu que o coração se enchia de qualquer coisa terna e útil. Qualquer coisa que é imprescindível para a compreensão do sentido da vida. Um sentimento forte que percorre as entranhas, reconforta as mágoas, cura as feridas e dá-nos força para partilhar esse sentimento com quem precisa de um alívio. É a segunda vez que Vanda se sente tocada por Deus, desde que deixou que o terror dominasse a sua vida.  

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