terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Capitulo XVI - Nas Asas do Corvo


Capitulo XVI

O coração palpitava numa garganta apertada que engolia umas lágrimas salgadas. Os soluços involuntários exercitavam-se sem que Vanda percebesse que chorava alto. Catarina correu à sala, deparando-se com aquela rapariga de aparência frágil e pálida  que estremecia num corpo curvado e correu a abraçá-la.
- Shhhh! Vai passar! – Catarina embalava-a nos seus braços tentando perceber o que se estava a passar. Olha por cima do ombro de Vanda para o ecrã do portátil. A página do facebook estava imobilizada no depoimento de uma Andrea Dea. – Queres falar um pouco?
Vanda afastou-se e fixou os seus olhos arregalados de terror nos olhos astutos de Catarina.
- Eu perdi o meu filho! – As palavras esganiçadas ecoavam um pânico antigo… - Ele morreu… Morreu! Todos estes anos… E ele já estava morto.
- Tem calma Vanda! Não estás a dizer coisa com coisa…
- Eu nem sei onde é que o enterraram… Ou se o cremaram… Nunca o vi… Nunca lhe peguei ao colo.  – Vanda chorava alto com os braços enrolados à volta da cintura, embalava-se enquanto deixava escapar uivos de dor. – Eu senti-o dentro de mim e rejeitei-o e agora não o tenho… - Vanda levantou-se com uns olhos vidrados de dor e loucura que assustaram Catarina.
- Tem calma Vanda! Estás muito alterada… Vamos até à cozinha para eu te fazer um chá…
- Eu só má… Eu sou do pior que se pode conhecer numa pessoa… - Vanda virou-se para o computador apontando freneticamente  – Ela teve direito a ficar com a filha dela… Deus permitiu que a filha dela fosse um milagre, porque ela amava a filha e desejava-a tanto… Ela amava-a tanto… E eu nem fui capaz de desejar ou amar o meu próprio filho… - A sua voz estrangulou-se – Eu perdi o meu filho… Perdi-o… Porque sou má… Eu perdi todos, todos… Não me resta ninguém.
Catarina sentiu que uma raiva perigosa começava a dar lugar à dor e o rosto de Vanda ruborizou-se de uma cólera assustadora enquanto gritava.
- Todos os que me amavam eram bons… E eu sobrevivi a todos sem merecer… Eu não mereço estar aqui… Não mereço que as pessoas percam o seu tempo comigo. Eu não mereço estar aqui entre pessoas boas e honestas… Porque eu não presto… Eu não presto Catarina. Afasta-te de mim porque eu sou uma pessoa perversa… Eu não devia estar aqui. Eu é que devia estar morta… - Os seus olhos abriram-se numa certeza de loucura que assustou Catarina. - É isso… Eu não devia estar viva… Eu é que mereço morrer.
Catarina agiu por impulso quando levantou a sua mão aberta e acertou o rosto de Vanda num estalo ruidoso. Ambas abriram a boca de espanto. O silêncio que se seguiu foi reconfortante e depois constrangedor.
- Desculpa! – Vanda sentiu-se envergonhada. Tinha-se comportado como uma louca, mas não o era… Ou era? Afinal de contas tinha estado internada num hospício durante tanto tempo. As forças faltaram-lhe e deixou-se cair no sofá contra a sua vontade que a mandava fugir dali.
- Agora que estás mais calma vais falar comigo de forma civilizada! – Catarina aparentava um tom autoritário na sua voz que não sentia. Olhou pela primeira vez para o ecrã do seu portátil tentando perceber a origem daquele ataque. – Oh! Sabes o que é síndrome de Hellp?
- Acabei de saber… - Vanda recompôs-se. Precisava de falar ou então iria rebentar. – Perdi o meu filho…
- Quando?
- Há mais de dez anos… - Vanda deixou sair o ar que tinha retido nos pulmões de uma só vez. – Fiquei a saber ontem que tive síndrome de hellp. Perante o olhar de dívida de Catarina Vanda sentiu que devia justificar-se e fê-lo de uma forma sucinta. – Sei que é difícil acreditar que só uma década depois é que eu sei o que aconteceu ao meu filho… É muito complicado Catarina. Até hoje eu acreditava que o meu filho estava vivo e tenho andado durante estes anos à procura de um fantasma. Foi essa procura que me trouxe a esta ilha…
- Pensaste que o teu filho estava aqui? – Catarina mostrou-se mais curiosa do que acusadora, o que incentivou Vanda a continuar a falar.
- Sim! – Vanda encheu-se de coragem. - Estive internada num hospício durante a minha gravidez. Foi aí que conheci o Daniel. Ele era o meu psiquiatra…
- Ah!...
- É uma época que está muito confusa na minha mente… Eu lembro-me de ter dado entrada na maternidade. Lembro-me de ter entrado em trabalho de parto. Eu dei à luz… Lembro-me de estar preocupada com o tempo de gravidez… Ainda era muito cedo para ter o meu filho e tentava que as minhas entranhas o retivessem… Sabia que não era altura para ele nascer, mas o médicos e enfermeiros moviam-se numa expectativa enervante como se alguma coisa não estivesse bem… Eu vi o meu filho… - Vanda deixou que os olhos inchados voltassem a rasar de água. – Era um rapaz… Tão pequenino, tão frágil… Eu pensei tê-lo ouvido chorar, mas os médicos disseram-me que era imaginação minha… Nunca acreditei neles, e iniciei uma busca louca… - Vanda retraiu-se ao pronunciar a palavra louca em voz alta. – E acabei aqui, juntando os cacos da minha vida tentando que fizessem sentido.
Catarina aninhou Vanda nos seus braços e afagou-lhe o cabelo rebelde. Beijou-lhe o topo da cabeça.
- Quantos amigos fizeste nessa jornada louca?
Vanda afastou-se e limpou o nariz com as costas da mão de forma muito pouco elegante.
- Só o Daniel… Mas só o percebi agora…
- A vida tem passado por ti, dando-te oportunidades que tu tens ignorado… Tens de ser tu a passar pela vida impondo o teu próprio ritmo… Vieste ter a esta ilha maravilhosa onde os milagres acontecem, porque neste cantinho do mundo existem todos os ingredientes necessários para se ser feliz… e como não existe forma de fugir daqui, só mar… – as duas riram tremulamente – Tens de aceitar as pessoas que aqui existem, e as atenções que te dão… Tens de aceitar o nascer do sol, a chuva, os cumprimentos matinais, as ruas conhecidas, os presentes dos alunos, os agradecimentos dos pais e não podes fugir. Se consegues despertar o amor de alguém, tens essa pessoa à tua porta todos os dias para te lembrar o quanto amada tu és… Somos uma população pequena que agradecemos a existência de cada um de nós. Cada perda entre os nossos é sentida por todos os da comunidade e cada aquisição é festejada por toda esta população. Aqui és obrigada a partilhar as tuas felicidades e tristezas…
Vanda reflectiu naquelas palavras sábias. Naquele ilhéu habitado partilhou mais do que em grandes centros cheios de gentes e possibilidades. Naqueles dezassete quilómetros quadrados já perdeu a respiração com paisagens simples que nunca encontra em extensões de terras a perder de vista. Ali no meio de meia dúzia de famílias sentiu-se menos sozinha do que no meio de multidões que já frequentou… Aquela ilha resplandecente de um verde brilhante de esperança era um pequeno milagre que a obrigava a aceitá-lo.
- Esta ilha está a obrigar-te a enfrentar os teus fantasmas, para que possas seguir em frente. E eu vou ajudar-te, porque sou tua amiga e vais ter que me aceitar como tal… - Catarina pegou no telemóvel e marcou um numero. – Estou!... Olá Joe, desculpa estar a acordar-te, mas precisava muito de falar com a tua mulher… - Catarina silenciava-se ao telemóvel sempre que o outro lado lhe falava e Vanda ouvia atentamente só o lado daquela nova amiga.  – Olá Vera! Desculpa acordar-te… Precisava muito que viesses cá. – Mais um silencio. – Sim é importante! Ok… Até já.
- É melhor ir andando… - Vanda ia retirar-se educadamente para que Catarina recebesse as suas visitas.
- Ah isso é que não vais… Acabei de chamar uns amigos que te vão ajudar… Eles estavam a dormir, por isso ainda vão demorar um bocadinho. – Catarina levantou-se do sofá com aquele ar ligeiro que a caracterizava  – Dá tempo para tomarmos mais um café bem forte… Ainda não dormi nada.
Enquanto as duas se movimentavam sincronizadamente na cozinha Vanda pensava quase de forma incrédula no que lhe estava a acontecer. Pessoas que estavam a dormir no conforto do seu lar iam abdicar do seu descanso para ajudá-la sem sequer a conhecerem ou saberem tão pouco qual era o assunto. Que ligação era aquela que unia as pessoas daquele lugar? Bastava um telefonema a pedir ajuda num assunto importante e a disponibilidade do outro lado surgia como por magia. As pessoas deixavam a preguiça do seu lar e deslocavam-se com base num simples telefonema, sem recriminações ou expectativas de recompensas. Uma amizade simples que responde ao impulso primário de ajudar sem qualquer ingrediente adicional.
- Catarina! Estás aí? – A voz rouca e masculina surgiu na porta da cozinha com os braços abertos a um beijo leve de cumprimento que foi depositado carinhosamente na bochecha de Catarina. Os olhos mostravam-se pequenos do cansaço típico de uma noite de fim de ano.
- Olá Joe! Obrigada por teres vindo. – O sorriso sincero entre os dois mostrava que não havia qualquer constrangimento naquele acto, nem naquele agradecimento. – Onde está a Vera?
- Estou aqui! – Vera abriu-lhe também os braços exibindo uma barriga de grávida. – Eu já não ando… Arrasto-me. – Vanda participou na gargalhada geral que antecipava um assunto sério.
- Vanda estes são os meus queridos amigos Joe e Vera Câmara. – Depois de uns cumprimentos rápidos Catarina continuou. – Chamamos-lhe Vera Câmara para a distinguir da Vera que é casada com o Marco… A cunhada do Vasco que tu conheces bem.
Aquela breve referência a Vasco feriu-a como um respingo de óleo. Primeiro a sensação de espanto e depois uma dor que arde enquanto aquela lembrança persiste no pensamento.
- Bem agora que estamos todos sentados com uma chávena de café bem forte, vamos ao que interessa. – Catarina mexia o seu café distraidamente com um olhar perdido parecendo procurar as palavras certas naquele movimento repetitivo. – A Vera é que criou esse grupo no facebook. – Catarina ergueu o olhar que se cruzou com um arregalar de expressões na mesa. – A Vera também sofreu do síndrome de hellp…
O silêncio que se seguiu serviu para todos assentarem o assunto que se seguia. Vera dirigiu um sorriso brando de compreensão a Vanda  e esperou que fosse ela a questioná-la. Vanda sentiu a garganta apertada. Ela tinha tido aquela doença e estava ali grávida novamente… Será que tinha corrido bem com ela? Será que ela era a única que tinha perdido o filho? Era a única que merecia essa penitência…
- Eu perdi o meu primeiro filho! – Vera respondeu à pergunta silenciosa de Vanda provocando-lhe um arrepio.
- Mas estás novamente grávida…
- Sim! – Vera voltou a sorrir-lhe. – Com a graça de Deus…
- É possível?
- Claro que sim! Com o acompanhamento médico adequado… Com muitas análises e consultas.
- Criaste o grupo “ Mulheres que passaram pelo Síndrome de Hellp”?
- Sim!
- Porquê?
- Porque precisava de respostas… Precisava de falar com alguém que me compreendesse… Precisava de mais informação  É uma doença pouco divulgada, e eu senti que até os próprios médicos estão desconfortáveis com a doença. Eles não me sabiam responder a todas as minhas dúvidas. Então perdi o meu filho… A dor da perda é mais fácil quando a compreendemos. Nunca deixamos de sentir Vanda, mas aprendemos a lidar com ela. Se não somos capazes de arranjar uma forma de domar a dor, ela devora-nos.
- Percebo… Eu perdi o meu filho há mais de dez anos e ainda não aprendi a lidar com essa dor… Ela devora-me todos os dias, consome todos os meus pensamentos, absorve todos os meus desejos e tolda-me todas as ideias… Eu tenho vivida atormentada por esta dor… Não compreendo ainda como é que tudo aconteceu… Eu estava grávida de seis meses mais ou menos e senti-me mal. A minha tensão estava muito alta e tinha muitas dores de barriga. Fui transportada para a maternidade… E depois foi tudo muito rápido e está tudo muito confuso na minha cabeça… Num dia estava tudo bem e no outro tinha um médico à minha cabeceira sem ser capaz de me encarar com um simples olhar a lamentar o facto de ter perdido o meu filho…
- Comigo aconteceu o mesmo… Aos seis meses depois de muitas dores e de ter tido picos de tensão muito alta fui evacuada e para S. Miguel com a simples informação de que tinha de interromper a gravidez. Fiquei mortificada. Em vinte e quatro horas fui evacuada, andei de helicóptero, fiz transfusões de sangue, fiz uma cesariana, estive à beira da morte… eram demasiadas coisas para assimilar. Fui mãe sem ter sentido o meu filho nascer… Sem ouvir o seu choro, sem pegar nele. – Joe pegou-lhe delicadamente na mão ao sentir que a voz da mulher tremia numa emoção sentida por toda a sala. - Estava numa cama de hospital com o meu sistema todo alterado, toda entubada e em risco de vida… horas de aflição que passei naquele hospital, que só eram esquecidas por breves minutos quando olhava para a incubadora onde estava o meu menino. Só esses momentos me davam algum conforto apesar de não poder pegar-lhe... mas só vê-lo a reagir cada vez que lhe tocava era uma emoção enorme. Um dos dias até me apertou o dedo.Foi a melhor sensação que já senti. Sentir o aperto da mão do meu filho. Infelizmente esses momentos de alegria duraram pouco tempo, quatro dias depois recebo informação da médica da Neo que o meu filho teria de ser operado. – Vera fez uma pausa para libertar um soluço. Catarina apressou-se a colocar lenços de papel em cima da mesa e assoou-se ruidosamente. Vanda sentia aquela história quase como se fosse sua. As dores, a tensão alta, o facto de lhe terem provocado o parto com tanta antecedência… Lembra-se vagamente de ouvir que mãe e filho corriam risco de vida se continuassem com a gravidez… Assim salvaram apenas a mãe… - Veio um médico do continente para fazer a operação já que era um risco transportar um prematura tão debilitado. O meu filho sobreviveu à operação… E passados onze dias quando as incertezas davam lugar a certezas e esperanças o meu anjinho partiu. – Vera enroscou-se nos braços de Joe e ambos partilharam uma lembrança intima.
- Ele chamava-se Isaac… - Joe fixou os olhos vermelhos em Vanda. – E o teu?
Vanda limpou o nariz e respondeu num fio de voz.
- Não tive tempo para lhe colocar um nome…

domingo, 25 de novembro de 2012

Capitulo XV - Nas Asas do Corvo


Capitulo XV

O relógio de parede com um rebordo prateado marcava três horas da tarde e Vanda sentia-se de alma vazia. A vida pregava-lhe partidas e brincava com ela de uma forma cruel. A chuva fustigava as janelas ao mesmo tempo que o remorso lhe fustigava a consciência. Era o último dia daquele ano. Um ano em que ela voltou a sentir-se. Voltou a ter consciência de emoções que ela pensou nunca mais ter capacidade de sentir. Voltou a sonhar, a suspirar, a ter esperança… voltou a amar… Não um amar desenfreado e frenético, mas um amar calmo e paciente que encontra na candura de um futuro previsível e corriqueiro o expoente máximo da ambição. Ela voltou a sentir-se feliz, de uma felicidade sábia que sabe chorar nos momentos tristes, porque a capacidade de chorar é executada quando a esperança de sorrir espreita desavergonhadamente. Quem não sente a felicidade perto, não chora… Não vale a pena…
O céu negro tornou-se permissivo a uns raios de sol que se exultavam num arco-íris presunçoso. Depois da tempestade vem sempre a bonança. Vanda sorriu. A verdade é que a noite de Natal foi calorosa e feliz. A empatia das conversas, o calor da partilha, o despertar de sentimentos fizeram parte daquela noite… E ela sentiu que pertencia ali… Não era a intrusa, mas sim parte daquele cenário. Sentiu que estava no sitio certo. Estava num trilho com várias saídas e as decisões dos seus próximos passos pertenciam-lhe apenas a ela. Não havia medicação para lhe toldar a mente. Não havia psiquiatras, nem psicólogos, nem nenhum tipo de vozes razoáveis a indicar-lhe o caminho. Ela tinha o total poder de decisão do que faria com o seu futuro. Naquela última semana tinha-se fechado em casa com as suas angústias, dúvidas desejos e incertezas. Ninguém a tinha importunado… nem mesmo Vasco. E apesar de sentir uma pontada de mágoa por este afastamento de Vasco, sabia que lhe fazia bem este espaço, porque só assim pode decidir sem tropeçar em emoções. Talvez abdicasse da verdade. Talvez não diria a ninguém que Matias é seu filho e manter-se-á sempre por perto, sempre pronta para caminhar ao lado dele na qualidade de amiga… de tia. Será isto suficiente? Matias é a sua única ligação de sangue, a sua única ligação de carne. Ela perdeu todas as suas ligações familiares. E se a relação dela e Vasco acabasse? Ela teria abdicado de Matias e ficaria sozinha, porque nessa altura já não teria dignidade para falar. Podia abrir já o jogo e lutar pelo seu menino. Ficar com ele… Educá-lo e amá-lo… E ele provavelmente odiá-la-ia quando ela o isolasse daquela família maravilhosa que ele tinha. Ficariam os dois sozinhos e faltaria a companhia e companheirismo dos irmãos, o carinho sábio dos avós e amor incondicional de uns pais normais. As dúvidas assombram a alma numa certeza angustiante de ignorância da resposta certa. E neste dilema, Vanda pegou no telefone e ligou para a única pessoa que a conhecia sem preconceitos da sua pessoas.
- Estou! – A voz de Daniel surgiu-lhe confusa e despertou um sorriso de reconhecimento em Vanda.
- Olá Daniel! – O silêncio parecia medir cada um dos lados da linha.
- Estás a ligar-me para me desejares um bom ano? - A ironia no comentário de Daniel libertou uma gargalhada em Vanda, e ela sentiu a proximidade da amizade.
- Tu conheces-me melhor do que isso Daniel.
Novo silêncio.
- Estás bem? - A preocupação era quase palpável na voz do jovem médico.
- Vou ficar! – Vanda recostou-se no sofá e questionou-se porque é que não tinha amigos.
- Já sei que recusaste um pedido de casamento muito original!
- Pois!
- Queres falar disso? – Daniel adoptou a sua personalidade de psiquiatra que não agradava a Vanda.
- Tu sabes bem porquê! – Vanda procurava quebrar a frieza típica da relação médico paciente.
- Ai Vanda! O que é que tu queres de mim? Se queres que te ajude tens de deixar-me fazê-lo…
- Eu não quero um psiquiatra…
- Então?
- Quero um amigo! Um amigo sincero…
Daniel inspirou enchendo os pulmões antes de falar.
- Sinto-me lisonjeado com o facto de me ligares no momento em que precisas de um amigo.
- Percebi com alguma amargura que nunca criei laços de amizade depois de França. – Vanda sentiu novamente a sua solidão, mas aceitou-a sem ressentimentos pela primeira vez.
- Tens em mim um amigo Vanda! Um amigo leal… - Lealdade! Eis uma das qualidade mais raras que podemos encontrar numa pessoa, e Vanda despertou esta qualidade em alguém. Afinal ela tinha capacidades. Foi capaz de despertar amor em Vasco e lealdade em Daniel. Sorriu com um orgulho presunçoso de si mesma.
- Obrigada Daniel! Voltas as Corvo?
- Já estás com saudades minhas? – Ambos riram alto como se partilhassem uma alegria privada.
- Tens esse efeito nas pessoas…
- Estou a orientar por aqui umas coisa, mas devo ir aí no inicio de Fevereiro.
- Só falta um mês! – Vanda sentiu-se aliviada. Podia ocupar-se facilmente durante um mês. Ela era perita em ocupar o tempo de forma a fazer crer que lhe faltava tempo para tudo e viver numa correria de modo a que o dia seguinte chegasse num ápice simulado.
- Podias fazer-me um pequeno favor Vanda!
- Ouvi dizer que é isso que os amigos fazem! – Vanda não se cansava de pronunciar aquela palavra… amigo.
- Queria que comprasses uma caixa de chocolates e um postal e que entregasses como sendo uma prenda minha à Catarina… - Daniel calou-se na expectativa de uma reacção  Se eram amigos podia contar-lhe que não passava um único dia que não pensasse em Catarina, naquela sorriso maroto, naqueles olhos demasiado seguros de si, naquela postura desafiadora sempre pronta a receber o mundo nos braços.
- Mas que bem… O senhor doutor enamorou-se… - Vanda soltou uma gargalhada. – E o que é que queres que coloque no postal?
- Sei lá Vanda! Escreve “ bom ano novo”…
- Credo homem! Queres que lhe coloque um carimbo da embaixada para ser mais formal? – Vanda riu alto.
- Que rica amiga me calhou na rifa… Então dá uma opinião melhor.
- Posso escrever : “ Desejo-te um novo ano repleto de felicidade e sonhos concretizados. A minha felicidade será retomada em Fevereiro. Com carinho Daniel”.
Daniel pensou naquelas palavras. Gostou da insinuação.
- Pode ser. Mas não ponhas “com carinho”… Termina apenas com “Daniel”.
- É claro que eu vou entregar os chocolates e o cartão em mãos. E vou fazer referência à tua visita à nossa humilde ilha em Fevereiro, para que ela assente bem as ideias. – Vanda sorria perante a felicidade quase adolescente do amigo.
- Falando de outra coisa Vanda! – Daniel tornou a sua voz mais clara. – Tenho estado com o Vasco… E com o Matias… Ele vai voltar aos tratamentos de quimioterapia. A Vera e o Marco estão arrasados, e o Vasco anda armado em forte, mas ele precisa de chorar. Precisa de apoio…
- Não sei se devo ser eu a dar-lhe esse apoio…
- Eu acho que deves ser tu… E falo-te como amigo e não como psiquiatra.
- Mas depois eu vou tirar-lhe o sobrinho… Vou abrir uma fenda profunda na família dele…
- Vanda! Agora vou falar-te como psiquiatra, e vou fazê-lo porque sou teu amigo. Tu não vais fazer isso, porque se quisesses fazê-lo realmente já o terias feito. Já tiveste inúmeras oportunidades de abrir a boca e dizeres que o Matias é teu filho, mas nunca o fizeste… E sabes porquê? – Daniel deu-lhe um minuto para ela assentar ideias e reflectir numa resposta. – Não o fizeste, porque no fundo do teu consciente tu sabes que não és mãe daquele menino. Tu sabes Vanda! – Daniel sentiu o vazio do silêncio. – Vou pedir-te uma outra coisa. Pesquisa sobre o síndrome de Hellp.
Vanda sentiu um aperto no peito perante aquelas palavras. Resistiu ao impulso de gritar e desligar o telefone. Fechou os olhos, inspirou e expirou devagar…
- Está bem…
A conversa continuou noite fora. Falaram da crise económica que o país atravessava e os ânimos por vezes exaltaram-se, outras vezes suavizaram-se. As piadas e ironias soltavam gargalhadas cúmplices e as preocupações sobre o futuro incerto de um país sobrecarregado de dívida fazia-os suspirarem resignação. As horas passaram-se sem que nenhum dos dois percebesse.
- Sabes que horas são Vanda?
- Não! Já é muito tarde?
- Falta dez minutos para a meia-noite…
- Oh! Desculpa Daniel… Deves ter compromissos e estás aqui ao telefone comigo… Falamos depois então…
- Cala-te tagarela… Tens champanhe em casa?
- Tenho um espumante no frigorífico
- Então vai lá buscá-lo… Não te esqueças do copo.
Vanda obedeceu sem contestações inúteis, saltando do sofá cheia de pressa. Vanda emitia risadinhas de felicidade. Uma felicidade quase infantil.
- Já está!
- Eu também já tenho aqui o meu champanhe!
As vozes uniram-se na contagem decrescente. Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um… “ Feliz Ano Novo”.

O primeiro dia do ano amanheceu num frio que parecia conservar a felicidade daquela época e num azul celestial conservador de sonhos. Vanda levantou-se preguiçosamente e depois das suas tarefas matinais dirigiu-se para a cozinha. Decidiu que não levaria uns simples chocolates a Catarina. Daniel merecia que ela fizesse mais do que isso por ele. Tirou farinha, manteiga, ovos, açúcar e começou a preparar a massa para uns cupcakes de chocolate. Quando a massa atingiu a textura pretendida ela preencheu várias pequenas formas redondas e levou-as ao forno. Começou o buttercream de baunilha  Quando terminou colocou o preparado num saco de pasteleiro e esperou que os cupcakes ficassem prontos. Assim que o forno apitou, Vanda espreitou e ficou satisfeita com o resultado. Colocou os vários cupcakes num tabuleiro e começou a decorá-los com o buttercream. Encaixou o tabuleiro estrategicamente dentro de uma caixa de papelão e colocou um laço grande e vermelho que não deixava dúvidas de se tratar de uma prenda. Pegou numa cartolina branca e cortou-a fazendo dela um cartão. Satisfeita tomou um banho rápido, vestiu umas calças de ganga e uma camisola de lã branca. Prendeu o cabelo com um elástico e saiu de casa. O ar frio da manhã acariciou-lhe o rosto provocando-lhe um arrepio e o caminho fez-se num passo continuo e seguro. As ruas mostravam-se vazias, como se fosse ela a única habitante daquele cantinho. Vanda gostou da sensação de caminhar dom a pela das mãos em contacto com o frio húmido  dona das ruas, do tempo, e da sua vontade.
- Está aí alguém? – Vanda entrou na Guest House Comodoro conhecedora do caminho. – Catarina! Estás aí? – A filha do dono da residencial surgiu no campo de visão de Vanda, com o cabelo que parecia estar num emaranhado de labaredas vermelhas, apenas aparentemente controlado por um elástico largo.
- Olá Vanda! – Catarina dirigiu-lhe um sorriso cansado que não disfarçava a noite mal dormida.
As duas encaminharam-se para o sofá convidativo a dois dedos de conversa.
- Estás com um ar de quem aproveitou bem a noite de passagem de ano! – Vanda piscou-lhe um olho cúmplice.
- Fizemos aqui um jantar e a festa durou até de manhã. Ainda nem me deitei… - As duas riram.
- Vim entregar-te uma encomenda. – Vanda esticou a caixa.
- Oh! Não era preciso… - Catarina recebeu a caixa com um olhar confuso.
- Não é uma prenda minha Catarina…
Os olhos da pequena Catarina incendiaram-se numa expectativa  e os lábios contraíram se numa tentativa frustrada de disfarçar a esperança que lhe espelhava o brilho da alma. Depois da tremura das mão acalmar ela abriu a caixa numa ânsia e sorriu quando viu os cupcakes perfeitos. Só depois pegou no cartão e devorou as palavras que ali estavam escritas retendo o nome de Daniel na mente e no sorriso palerma que lhe invadiu a boca carnuda.
- Ainda bem que gostaste!
- Adorei! Pensei que nunca mais fosse saber nada dele… Afinal de contas ele é médico no continente e eu sou uma simples insular…
- Sabes uma coisa Catarina? Eu aprendi que é na simplicidade que nos deslumbramos. Tudo o resto só serve para nos enganarmos.
- Achas que ele volta cá?
- Volta! – Vanda fez um pouco de suspense, apreciando um pouco a ansiedade de Catarina. – Ele vem daqui a um mês mais ou menos. – Catarina soltou finalmente uma gargalhada de felicidade, tirou um cupcake e encheu a boca, revirando os olhos de prazer. A conversa à volta de Daniel fluiu, provocando em Vanda um sensação agradável de lealdade ao amigo.
- Como é que conheceste o Daniel? – A pergunta gelou os movimentos de Vanda que se torou rígida. Ela não devia mentir, nem envergonhar-se do seu passado, mas também não se sentia confortável para partilhar com toda gente.
- O Daniel ajudou-me numa fase muito difícil da minha vida… - Vanda suspirou. – Conheci-o num hospital psiquiátrico… Ele foi meu psiquiatra durante muito tempo.
- Ah! – Catarina interiorizou aquela revelação e de um forma sábia e grata pela sinceridade não insistiu naquele assunto.
- Tens net aqui? – perguntou Vanda.
- Sim!
- Importas-te de me deixar usar?
- Claro! – Catarina pegou num pequeno portátil que estava depositado na mesa de centro e ligou-o. – Pronto! Podes usar… Eu vou fazer um café bem forte para acompanhar esses bolos deliciosos…
Vanda seguiu Catarina com o olhar e quando a perdeu de vista sentiu o peso daquele passo que ia dar. Depois de fazer aquela pesquisa não podia voltar a trás… Mas ela nunca virou as costas aos problemas. Sabia que dentro de todos os seus erros era uma pessoa forte, capaz de aguentar o inimaginável. A pesquisa do Google estava em suspense à sua frente. Finalmente digitou “síndrome de hellp”. Abriu o primeiro resultado da pesquisa. “Síndrome HELLP é uma complicação obstétrica com risco de morte, sendo considerada por muitos uma variação da pré-eclâmpsia. Ambas as condições podem aparecer na gravidez ou as vezes após o parto.” Os seus olhos devoravam informação destacada e libertavam lágrimas na mesma medida que consumiam a consciência da doença. Finalmente leu a patologia e expressões como “gravidez ectópica”, “hipertensão gestacional”, “aborto espontâneo” ou “descolamento prematura da planceta” assentaram-lhe no estômago como se tivesse levado um murro. Limpou os olhos embaciados e continuou a pesquisa tentando perceber a doença. Entrou no facebook e encontrou um grupo “mulheres que passaram pelo sindrome de hellp”. Abriu um depoimento nu português brasileiro e deixou-se emocionar:

Andrea Dea

Minha história pessoal relacionada à Síndrome Hellp.
Vou contar mais detalhadamente como aconteceu:
Quando descobri que estava gestante, tinha acabado de perder minha mãe com cancer, em situação bastante difícil e eu ainda estava muito abalada...no demais, minha gestação foi completamente normal até o quinto mês que foi quando comecei a ter alterações na pressão arterial. Minha médica me receitou remédio pra controlar a pressão e estávamos sempre em contato. Fazia o acompanhamento médico corretamente e tinha feito exames de sangue e o ultra-som morfológico há uma semana e tudo estava normal.
A única coisa que eu e as outras pessoas estranhavam um pouco é que eu não tinha barriga tão visível apesar de já estar próxima de entrar no sexto mês, tinha engordado 5 quilos apenas, mas a médica dizia que estava ótimo assim, pois normalmente ganhamos mais peso a partir dos 6 meses.
No dia 31.08.2009, ( com 26/27 semanas de gestação) após trabalhar o dia todo normalmente e já estar deitada pra dormir, comecei a sentir um desconforto abdominal, algo parecido com o que sentimos quando comemos demais. Até então, estava tranqüila, sentia a bebê mexendo e comecei a andar pela casa, tomei algum medicamento para gases achando que este poderia ser o motivo do incômodo. Após algumas horas, ainda sem conseguir dormir, a dor começou a incomodar mais e também comecei a sentir dores nas costas. Nenhuma posição me era confortável, como era já madrugada, não querendo acordar o esposo, fiquei agüentando a dor, já chorando muito e pressentindo algo errado, porém não tinha a menor idéia do que estava acontecendo.
Por volta de 6 horas da manha avisei o esposo de que não estava bem, nesse momento já sentia um formigamento no meu lado direito, perna, braço e rosto...ele mediu a minha pressão e estava 17 por 10. Ligamos para a médica e quando tentei falar a minha voz saía enrolada, minha língua não me obedecia, minha mente estava sã, mas meu corpo não obedecia, ele pegou o telefone e já ouviu da médica que fôssemos o mais rápido possível para a maternidade mais próxima e ressaltou: “uma que tenha UTI neonatal”.
E assim fomos, quando cheguei passei por um primeiro atendimento, onde com o aparelho ouviram os batimentos cardíacos da bebê e estavam normais. Já fiquei mais tranqüila.
Eu tinha os exames recentes de uma semana antes e os levei, nem tinha ainda passado na consulta para minha médica ver, pois estava marcada a consulta para dali a alguns dias.
O obstetra de plantão solicitou uma ultra-sonografia, no momento do exame comecei a perceber que havia algo errado. O médico fez muitas perguntas, chamou outro e mais outro e ficavam olhando para o monitor com ar preocupado. Mas só disseram que o médico que estava me atendendo iria falar comigo depois, colheram sangue para mais exames e fiquei na emergência, recebendo um soro com medicação para as dores, que logo foram aliviando com o remédio. Por estar ali tudo muito tranqüilo aparentemente, até achei que após a medicação eu iria pra casa, ficar de repouso, algo assim. Quando acabou o soro chamei o enfermeiro e ainda disse que já podia tirar, ele falou pra esperar que o médico viesse falar comigo... ai de novo fui ficando preocupada.
De repente veio o médico, que tenho que dizer, foi totalmente rude e sem nenhum trato ao me dizer com estas palavras: “ O feto está em sofrimento, não recebe mais alimento, esta perdendo peso, temos que tira-lo, se não fizermos alguma coisa, o quadro o levará ao óbito, você vai ficar internada.” Foi bem assim e ele virou as costas e saiu andando...
Eu só consegui olhar pro meu esposo e perdi totalmente a noção do que estava fazendo, depois ele me contou que eu chorava e gritava que não podia perder minha filha, que ela não podia nascer ainda, só tinha 5 meses e pouco, que não ia aguentar, que eu não ia deixar eles tirarem ela e assim foi...e o medico voltou correndo e já foi mandando me colocarem numa sala reservada e me acalmarem para me levar para o quarto, aí ele se deu conta do que tinha feito e ficou tentando consertar.

Enfim, após a internação, fizeram outros exames (tudo no mesmo dia), iniciaram a coleta de urina por 24 horas para controle, os exames todos alterados eram colhidos a curtos espaços de tempo, o exame pra ouvir os batimentos da bebê era feito também varias vezes, o celular do esposo tocava e ele disfarçava e ia pra fora do quarto, depois que tudo passou é que soube que ele falava com a minha médica, ele sabia de tudo mas ainda não era a hora de eu saber.
Confesso que achava que tomaria aquelas injeções que ajudam no desenvolvimento do pulmão dos bebês e ficaria ali internada com todos os cuidados, ate passar o tempo certo da gestação, ainda não tinha noção da gravidade.
O que eu não sabia é que o médico do hospital já tinha enviado por fax os meus exames para a minha médica obstetra, que juntamente com os sintomas apresentados, identificou imediatamente a Síndrome Hellp, solicitando ao medico que me internasse com urgência para o parto, mas ela não queria me preocupar então contou tudo ao meu esposo e disse que ela mesma queria conversar comigo e me explicar todo o problema. A cirurgia foi marcada para as 20:00hs e eram já 17:00 e eu ainda tranqüila, achando que estava tudo sob controle, foi então que a médica chegou e me explicou tudo, toda a gravidade da situação, a queda das plaquetas, meus rins com problemas, pulmão...tudo ruim...que se não interrompesse a gestação nós duas morreríamos e o pior, mesmo assim, a bebê tinha poucas chances de sobreviver, e nisso ela foi muito clara: “ Você é jovem, poderá ter outros filhos.” Já me preparando para o pior.
Eu já tinha passado por complicações com anestesia em outras duas cirurgias, portanto havia ainda essa preocupação a mais, se as plaquetas ficassem abaixo de 50 mil, teria de ser anestesia geral, o que prejudicaria ainda mais a bebê. As minhas estavam em 63mil, o anestesista conversava comigo e dizia, vamos ficar atentos, queremos você acordada, porque tem que nos avisar se demorar tempo demais pra sentir as pernas após a cirurgia.
No meu quarto no hospital começaram a chegar os parentes e amigos...solidários com a situação...e decidiram fazer uma oração, me lembro de todos no quarto ao redor da cama e na oração foi feito o pedido que Deus colocasse a Sua mão à frente das mãos dos médicos e cuidasse de mim e da Fernanda...e assim fui para a cirurgia.
As 23:00 do dia 01.09.2005 nascia Fernanda, com 700 grs e detalhe: a Fernanda ainda chorou ao nascer, dois chorinhos...rsrs...minha médica fez o parto e me lembro dela sorrindo surpresa por ouvir o choro...”Mas olha só!! Ela até chorou!!” disse a médica...e não consegui ver a minha bebê porque logo a levaram para receber todos os cuidados necessários.
Fiquei ali enquanto o cirurgião terminava a parte dele, o anestesista veio conversar comigo e mais uma vez me disse: “ Se em até 3 horas você não voltar a sentir as pernas peça pra chamarem o médico plantonista na UTI”. Bem, além de me preocupar com a minha filha, ainda tinha que me preocupar com isto também. Fiquei na UTI e pela cortina que separa um leito do outro eu conseguia ver o relógio ali onde ficavam os enfermeiros e ia contando as horas. Graças a Deus após duas horas comecei a sentir umas das pernas e algum tempo depois também senti a outra normalmente.
Pela manha recebi a noticia de que minhas plaquetas já estavam a subir, e em alguns dias eu já sairia da UTI. Também recebi a visita de uma enfermeira da UTI neonatal, que também se chamava Fernanda. Ela trazia a foto da minha filha para que eu a conhecesse, impressa numa folha A4 (com muito zoom) ela parecia grande, comprida, apenas magrinha...não tinha noção do real tamanho dela.
A enfermeira começou me dizendo que as estatísticas dizem que as meninas sobrevivem mais que os meninos, e brincava, somos fortes já desde o nascimento!!!
E depois completou: “ Você sabe o que quer dizer o nome Fernanda?” eu respondi que sim e ela disse: “ Então você sabe que quer dizer FORTE, LUTADORA, OUSADA.”
E ouvi dela tudo que eu mais precisava ouvir naquele momento:

“ Vocês vão agora começar uma luta, no mínimo durante 3 meses, diariamente você virá a este hospital terá momentos de dor, de sofrimento, terá também alegrias, pequenas vitórias que serão comemoradas como se você tivesse ganhado na loteria....não sabemos o que vai acontecer, mas sabemos que você terá que ser forte por você e por ela, ela precisa de você, não chore perto dela, só passe coisas boas, tenha Fé e nunca perca a Esperança.”
E foi assim...eu saí da UTI após alguns dias e pude vê-la na UTI neonatal, passei mal quando a vi...ela não tinha ainda o furinho do nariz aberto, uma penugem branca cobria seu corpinho tão pequenino, tão magrinho....tantos fios, tubos, aparelhos...pensei “meu Deus será que ela vai viver?” me colocaram sentada até que eu melhorasse...após alguns dias tive alta sem a minha bebê nos braços, ter que deixa-la lá foi muito difícil...fui pra casa e chorei tudo que podia, no dia seguinte as 7 da manha estava já no hospital e saía de lá as 10 da noite....e assim foi por 82 dias....
Ela passou por muitas coisas, muitos processos, muitas lágrimas choramos, mas muito mais eram as vitórias que Deus nos dava...um médico vinha e nos dizia “houve sangramento cerebral, vamos aguardar os próximos exames”...ficávamos arrasados...após 3 ou 4 dias refaziam o exame e mesmo medico dizia: “ o sangramento foi absorvido, não aparece nada no exame”...e comemorávamos muito felizes...e isto se repetia em muitas outras ocasiões e eu me lembrava da enfermeira me dizendo que eu iria comemorar pequenas vitórias como se tivesse ganhado na loteria...e era exatamente assim...se ela ganhava 50 gramas era uma festa, mas no outro dia ela tinha perdido 100 grs....e a luta era mesmo diária e não havia tempo pra descansar ou pensar em mim...só nela...em cada passo, um dia de cada vez...paradas respiratórias, sangramento cerebral, pedras nos rins, retinopatia da prematuridade, canal arterial aberto (e até isso Deus permitiu que houvesse fechamento espontâneo sem precisar de cirurgia), tranfusões de sangue, etc....
Ela teve acompanhamento de várias especialidades médicas até os 3 anos de idade, e eu ouvia os médicos falarem: “sua filha é um milagre”.
Ela fez 6 anos em setembro, não tem nenhuma seqüela..e é meu tesouro mais precioso...não tenho palavras para agradecer a Deus por ter me dado esse presente, FERNANDA.
Às mulheres que passaram pela Sindrome Hellp e infelizmente suas histórias não tiveram um final feliz como o meu, desejo de todo o meu coração que Deus cumpra o desejo de vossos corações, e permita que um dia vocês possam vir a abraçar um filho.

Andréa”

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Capitulo XIV - Nas Asas do Corvo



Capitulo XIV

O sangue fervilhava-lhe nas veias e o esforço que fizera para escorraçar Daniel da sua casa ainda lhe pesava nos membros. Vanda deixou-se cair de rabo encostada à porta que acabara de fechar. Os seus olhos miraram aquela sala pequena e agradável que tem sido o seu lar. As paredes escuras de basalto pareciam reflectir a sua alma. Ela respirou furiosamente com as narinas dilatadas e as bochechas demasiado rosadas, antes de chorar de uma forma histérica. Estragaste a tua vida, sua estúpida, e agora queres remediar os teus erros dessa forma ridícula  Esta vozinha que tinha conseguido afastar com tanto esforço ria-se agora da sua miséria. A caixa de comprimidos para dormir pereceu-lhe naquele momento a sua melhor alternativa. Aproximou-se da bancada da cozinha e encheu um copo com água, fazendo-a perceber como as suas mão tremiam. Havia passado já algum tempo desde que recorrera à ajuda daquele calmante. Deitou-se na cama e esperou o efeito relaxante que não tardou, mergulhando-a num sono profundo.


Faltava apenas dois dias para o Natal, e Vanda podia adivinhar uma noite triste e solitária. Era assim desde a morte dos seus pais. A solidão era sentida numa plenitude assustadora não deixando lugar para outros sentimentos. Vanda começava a antecipar o pesadelo que aquela noite significava, sozinha a chorar as suas misérias. Queria convencer-se de que se tratava de uma noite como outra qualquer, mas nunca conseguia reduzir aquela noite especifica à insignificância de todas as outras noites. O peso das recordações e a saudade invadiam-na como os fantasmas do avarento Ebenezer Scrooge.
As pancadas na porta sobrepuseram-se ao cair austero da chuva. Vanda arrastou-se preguiçosamente para abri-la.
- Olá! – Vasco entrou e sacudiu-se da chuva como se fosse um cão vadio, respingando toda a entrada. Vanda revirou os olhos. Por muito que ele se esforçasse não conseguia deixar de ser desleixado. – Convidas-me para o almoço?
- Tenho alternativa? – Vanda depositou-lhe um beijo leve, mais por uma questão de hábito do que de espontaneidade.
- Tens… Mas não seria a mesma coisa. – O sorriso fácil de Vasco tinha um poder sobre ela como se a electrizasse. Vasco abraçou-a por trás, afastou o cabelo com a ponta dos dedos e depositou-lhe um beijo na cova do pescoço. Vanda fechou os olhos e sentiu aquele encostar de lábios em todos os nervos do seu corpo. Finalmente sorriu também.
- Eu sou irresistível! – Vasco encheu o peito de um orgulho macho.
- És um convencido. Essa é que é essa. – Vanda esqueceu-se por umas horas da noite de Natal que se avizinhava e entregou-se à conversa fácil e banal de Vasco. Sentiu-lhe uma vibração diferente, como se a sua alegria não fosse tão natural como nos outros dias. Por entre os sorrisos malandros e os olhares marotos, ela jurava que lhe trespassava uma preocupação qualquer.
- Passa-se alguma coisa Vasco? – Vanda comia o borrego feito no forno com batatinha, enquanto Vasco brincava com a comida sem muita vontade, contradizendo o Vasco de apetite permanente que ingere qualquer coisa comestível ou duvidosa.
- É o Matias! – Vasco deixou cair finalmente o garfo dentro do prato.
- O que tem o Matias? Fez alguma das suas mausuras? – Vanda sorriu-lhe tentando minimizar a preocupação dele. – Os miúdos estão sempre a meter-se em sarilhos. É essa a função deles. E os adultos devem repreendê-los de forma a que aprendam a evitar aqueles sarilhos novamente. Depois os garotos inventam novos sarilhos, porque já aprenderam a evitar os antigos sarilhos e lá vêm novamente os adultos com a sua sensatez… É assim mesmo… Um ciclo vicioso até as crianças se tornarem adultas e pensarem que já sabem tudo.
Vasco sorriu-lhe mas os olhos continuaram preocupados.
- Ele anda novamente muito cansado. Parece que o fantasma da leucemia está novamente a pairar no ar. A Vera foi hoje com ele ao médico e as análises estão alteradas. Vão para Lisboa no dia de Natal. – Vasco deixou que os sentimentos lhe rasassem os olhos de um par de lágrimas que não evitou. Vanda sentiu que o seu coração parava.
- A Vera já me tinha dito que ele tinha tido leucemia, mas pensei que já estivesse curado…
- E esteve… Mas nós sabíamos que existia sempre a hipótese de a doença voltar. – Vasco afastou finalmente o prato e esticou os cotovelos em cima da mesa, posando a cabeça entre as suas mãos grandes. Vanda aproximou-se dele a afagou-lhe o cabelo demasiado comprido e ainda húmido da chuva como se aquele gesto pudesse absorver aquele medo. – Já passamos por isto uma vez. Não quero voltar a passar por tudo. O Matias é só um miúdo  Existe tanta gente má no mundo que merecia ser castigado e andam por aí a gozar de boa saúde  – Vanda continuava a acariciar-lhe o cabelo enquanto absorvia aquelas palavras. – Isto é tão injusto. Olho para o Marco e para a Vera e vejo um casal que luta todos os dias para aguentar aquela casa saudável, para manter os filhos longe dos problemas, para manter um casamento precipitado… Eles lutaram sempre… Mereciam ter agora algum conforto, algum descanso de tanta luta.
- A Vera disse-me que tu tens sido muito importante na vida deles.
- São a minha família. Eu sou o que faço menos pela família… O Marco casou-se. Já deu três netos aos meus pais. E luta para manter a sua família no caminho certo… Luta todos os dias… Isto é que devia ser apreciado nesta história e não uma ajuda que é dada de vez em quando. O Marco e a Vera dão de si todos os dias por aqueles miúdos e este é que é o acto heróico. – Vasco levantou finalmente a cabeça.
- As pessoas concentram-se demasiado em gestos grandiosos, quando são os gestos corriqueiros que sustentam o mundo.
- É exactamente isso que eu estava a tentar dizer… Mas tu conseguiste colocar mais inteligência no argumento. – Vasco sorriu-lhe finalmente, mas já nenhum dos dois sentia alegria. – A Vera num dos seus ataques de nervos que um casamento e três filhos lhe provocam, teve uma vez uma resposta linda. Estávamos numa noite quente de Agosto no Festival dos Moinhos à espera que começasse o concerto dos Quinta do Bill com mais alguns amigos, quando vimos um novo casal. Para além da novidade ficámos espantados porque a mulher era casada e tinha uma filha e nenhum de nós sabia que ela se tinha separado. Então chegou a Sílvia com as novidades já todas sabidas e emocionada com a história deles. Contou-nos que ele era da ilha das Flores e que tinha deixado a mulher. Disse que era um amor que já durava desde os tempos de adolescentes e que agora tinham decidido recomeçá-lo. Lembro-me que a Sílvia usou estas palavras “É uma história de amor tão bonita. Namoraram na adolescência. Casaram com outras pessoas e cada um teve um filho… Até foram ao casamento um do outro. E agora estão juntos novamente. É lindo. ” A Vera ficou vermelha de irritação e explodiu mais alto do que devia: “ Lindo é ter um casamento de quase quinze anos e lutar por ele todos os dias, enfrentando as más disposições, os ciclos menstruais, as depilações por fazer, os arrotos e peidos na cama… E mesmo assim continuarem lado a lado a apoiarem-se e a respeitarem-se para o resto das suas vidas… Isto é que é lindo! Mas este mundo anda ao contrário e acha que uma verdadeira história de amor é aquela em que eu vou para a cama contigo , mas caso com outro de quem tenho filhos e depois volto para o meu primeiro amor… Deixem que eles comecem a ver as misérias um do outro e vamos ver a beleza que isso é…” Como é evidente todos aplaudiram… não sei bem se foi pelas palavras dela ou se pelo o álcool que já corria nas veias...
Ambos riram. Vanda gostava daquela família  Uma família unida que ela provavelmente destruiria e sentia-se culpada por isso.
- Amanhã é noite de Natal! – Vasco tocou naquele assunto e o sorriso abandonou instantaneamente o rosto de Vanda.
- Pois é…
- Eu vim aqui porque queria muito que passasses a noite lá em casa.
Vasco iluminou-se com a surpresa visível na expressão de Vanda.
- Mas tu vais passar a consoada com a tua família…
- Deixa-me corrigir-te. Eu vou passar a consoada com as pessoas que amo…
Vanda sentiu que o seu peito se enchia de algo que não conseguia explicar. Era uma explosão de alegria que a fazia querer chorar e rir ao mesmo tempo. O nervosismo turvava-lhe a vista e os pensamentos. Vasco estava a dizer-lhe de uma forma muito subtil que a amava… Foi isso que aconteceu, não foi?
- E é claro que a minha família também faz questão que lá estejas…
Vanda atirou-se para os braços de Vasco e beijou-o com uma intensidade que o queimava. Levantaram-se da mesa de uma forma desajeitada sem se largarem. Vanda fez deslizar a sua mão sobre a mesa fazendo cair um copo no chão, partindo-se em mil pedaços… Mas nenhum dos dois lhe deu importância. As mãos de Vasco procuraram a pele de Vanda por debaixo da camisola de lã, enquanto os dedos de Vanda se emaranhavam no cabelo rebelde de Vasco. Chegaram ao quarto aos tropeções, e Vasco afastou-se um pouco. Fez os seus dedos subirem em contacto com a pele dela pela barriga elevando-se pelo seu corpo enquanto a libertava da camisola. Olhou-a com desejo e satisfação e aquele olhar queimava-a. Vasco percorreu o seu pescoço com os lábios húmidos e foi descendo libertando-a das calças largas, fazendo-a sentir-se possuída por corrente eléctrica misericordiosa que só se fazia sentir nos pontos certos. Os corpos tocaram-se e balouçaram-se numa necessidade de se saciarem um do outro e um véu de humidade cobriu-lhes a pele de satisfação. Por fim Vasco aconchegou Vanda na cova do seu braço.
- Eu amo-te Vanda. – Ela sentiu verdade naquelas palavras e a emoção de ser capaz de provocar amor em alguém foi demasiado para que ela pudesse responder.
A véspera de Natal clareou numa promessa intensa. O dia estava claro e deixava o frio visível numa geada frágil que cobria as ervas resistentes da calçada. Vanda entrou na carrinha de Vasco com a felicidade de quem não passaria a noite de Natal sozinha. Tinham decidido que iriam para casa dos pais de Vasco de manhã de forma a ajudarem nos preparativos para a ceia, e Vanda sentia-se nervosa. Levava os sacos com as prendas. Tinha comprado prendas para toda a família de Vasco num impulso que achara exagerado na altura, mas agora congratulava-se por tê-lo feito.
- Achas que os teus pais vão gostar de mim?
Vasco soltou uma gargalhada alta.
- Oh querida, se eles não gostassem tu já o saberias. Acredita em mim… Enquanto a dona Emília continuar a mandar-te ovos, linguiça e batatas, é porque gostam de ti…
- Ela é que me manda essas coisas? – Vanda parecia verdadeiramente surpreendida.
- Claro! Quem é que tu achavas que te mandava isso?
- Pensei que fosses tu a comprar… Já que comes lá em casa… E não comes pouco… - Vanda sentia-se dormente no raciocínio  – Mas pensei que fossem compras que, na qualidade de cavalheiro tivesses a gentileza de trazer.
- Nop! Sempre que levo qualquer coisa, são miminhos da sogrinha! – E lá estava o seu Vasco com o seu sorriso malandro, exactamente como ela gostava.
A casa tinha um barulho de fundo familiar de vozes que se confundiam em sussurros e gargalhadas que se corporizaram numa imagem de intimidade simples partilhada por uma família especial numa cozinha gigante que aqueceu o coração de Vanda.
- Oh querida! Entra… - A dona Emília recebeu-a com os  braços literalmente abertos, e Vanda sentiu um conforto antigo naquele abraço quente. – Não ligues à confusão… A Vera tem uma nova receita e está a torturar a minha cozinha…
- Quando provarem o meu novo doce, vão abençoar esta balbúrdia  – Vera limpou as mãos na beira do avental e depositou um beijo na bochecha de Vasco e outro na bochecha de Vanda.
- O que é que estás a preparar Vera?  - Vanda mostrou-se interessada naquele processo.
- Floresta Negra… - Vanda sentiu o calor do passado ainda mais próximo. Ela costumava fazer aquele bolo com a mãe que colocava Vanda em cima de uma cadeira e deixava-a raspar o chocolate negro fingindo não ver que ela comia grandes bocados de chocolate, mesmo quando lhe limpava a boca de um castanho intenso. “ Uma tablete inteira só deu estas raspas?” Vanda fechou os olhos e sentiu a voz da mãe perto do seu ouvido. Cheirava à sua antiga cozinha e a mãe sorria-lhe quando ela encolhia os ombros inocentemente engolindo à pressa o último quadrado do chocolate.
- Eu costumava fazer esse bolo com a minha mãe.
A dona Emília sentiu a saudade tremida naquela voz sumida.
- E agora vais fazê-lo connosco  Foi Deus que te enviou para as nossas vidas. Pode ser que consigas salvar a minha cozinha. – Os miúdos entraram na cozinha aos pulos e todos a gritarem ao mesmo tempo. Vanda olhou para Matias com o rosto pálido e os olhos encovados e sentiu-se encolher. Beijou os irmão dele fazendo-os corar e depois, adivinhando que Matias não conseguia corresponder às brincadeiras, convidou-os a ajudarem-na na cozinha.
- Quem quer ajudar a fazer um bolo? – Os irmão mais velhos esquivaram-se praguejando “Isso é coisa para as mulheres…”, mas Matias deixou-se ficar na cozinha. Vanda sentou-o confortavelmente numa cadeira e deu-lhe o chocolate negro com uma taça e um raspador, encarregando-o daquela tarefa. Matias meteu um quadrado de chocolate na boca, provocando uma gargalhada em Vanda que lhe piscou um olho cúmplice. Todos ficaram radiantes com os doces que Vanda fez. Ela sempre tivera jeito para doces. Quando era criança, passava horas com a mãe na cozinha fazendo bolos por encomenda, de forma a ganharem mais uns dinheiros. “As receitas dos livros dizem para usar óleo de forma a que o bolo fique mais fofo, mas perde o sabor. Deves usar sempre manteiga e o segredo está em separar os ovos. Junta-se primeiro as gemas e só no fim é que juntamos as claras batidas. O bolo fica mais consistente.” Vanda recordou o cheiro quente de bolo e creme de manteiga. “ Tão pequenina e já tens tanto jeito… Vais ser a melhor pasteleira de Paris!” E Vanda quis ser pasteleira. Era a profissão desejada para quando fosse crescida… e esquecera-se disso. Como podia ter-se esquecido dos seus sonhos de infância? Como pode a vida turvar-nos os desejos mais inocentes e sinceros. De repente sentiu vontade de estar novamente naquela pequena cozinha no pequeno apartamento da porteira de um lindo edifício de paris, sonhando pequenos sonhos e desejando coisas simples, porque é na simplicidade que encontramos a verdade… e ela só queria ser pasteleira.
A sala de estar estava decorada com um grande pinheiro cheiro de enfeites e postais. Vanda reparou que estavam todos os postais de Natal feitos pelos miúdos desde que entraram para a primária. Os resto da sala estava cheia de enfeites que não condiziam uns com os outros e não obedeciam a nenhum padrão. Adivinhava-se que aquilo era obra dos três rapazes. Aquela desorganização não chocou Vanda, pelo contrário, Aqueceu-lhe a alma.
Ela estava sentada confortavelmente no sofá e espreitava Vasco pelo canto do olhos encostado à janela conversando com o irmão com um ar demasiado sério. Matias tinha adormecido encostado a ela. Tinha um ar calmo e ela sentiu uma pontada de amor por aquele menino, que respirava calmamente um sono profundo.
- Ele agora dorme muito! – a Dona Emília sentou-se no braço do sofá pousando uma mão no ombro de Vanda.
- Vai correr tudo bem… - Vanda não era capaz de encontrar melhores palavras.
- Hoje quero que seja tudo perfeito. Quero que o meu neto leve amanhã no coração todo o amor que temos por ele. E quando ele estiver novamente nos tratamentos, quero que ele se lembre desta noite e que deseje muito voltar para nós… - Vanda apertou a mão da Dona Emília e trocaram um olhar sentido. – Agora vamos ao que interessa. Tenho aqui um álbum de fotografias…
Vanda abriu o álbum e percorreu-o pormenorizadamente com a Dona Emília  A infância de Vasco estava ali descrita. Riram, recordaram, sorriram e partilharam o amor que as ligava àquele homem.
A noite anunciou-se num prenuncio cheiroso. A alcatra perfumava a casa num ambiente familiar. A mesa posta vibrava de agitação e todos se regalaram com as lapas grelhadas, os bifes de peixe porco e a alcatra. Os doces foram comidos e repetidos.
- Não sabia que eras capaz de fazer estas iguarias. – Vasco trocava caricias subtis frequentemente com Vanda.
- Ainda não sabes tudo a meu respeito! – aquelas palavras de duplo sentido soaram-lhe mais a uma advertência do que a uma provocação. Mas ninguém reparou no seu tom, já que todos se riram.
Os três irmão apressaram o jantar e imploraram para abrir os presentes. Em atenção ao estado de saúde de Matias, os adultos foram condescendentes. Abriram as prendas numa sofreguidão própria da ansiedade infantil. Os irmãos mais velhos não deixavam Matias para trás, ajudando-o sempre que este precisava. Sempre que do pacote saia roupa todos torciam o nariz. Mas alegraram-se com o MP3 e com os skates. No fim, Vanda tirou as prendas que tinha comprado e entregou a todos. Ofereceu uma moldura à Dona Emília, um lenço a Vera, uma camisola a Marco, umas pantufas ao futuro sogro, e por fim entregou as prendas dos meninos. Quando abriram emitiram gritos de alegria e de incredulidade.
- Olha mãe! Uma consola… - O sorriso de Matias iluminou-se.
- Oh Vanda! Mas isto é demais… - Vera não sabia o que dizer. Sentia-se constrangida. Aquela mulher que mal conhecia oferecera uma consola, das mais caras, a cada um dos seus filhos.
- Não é nada… Se não fossem vocês, estaria a passar esta noite sozinha! – Mas ela estava com eles, num ambiente familiar que a resgatara de uma procissão de consoadas solitárias. Vera baixou o olhar. Não tinha oferecido as consolas aos filhos porque os tinha castigado pelas notas baixas, mas a verdade é que ao olhar para Matias fraco e sem grandes alegrias teve vontade de esquecer o castigo. Agora não tinha coragem de os privar daquela brincadeira.
- Obrigada Vanda! – Vera abriu-lhe os braços num aperto estreito que estremeceu com o intimo de Vanda e a sensação de segurança e de que tinha chegado à meta da sua maratona descansou no seu espírito.
- Agora é a tua vez de receberes as prendas! - Vanda admirou-se e olhou para a sogra que lhe esticou um envelope. Vanda abriu o envelope curiosa e retirou um cartão onde só constava a palavras "Queres". Vanda olhou para a dona Emília e para o marido com a confusão transparente no olhar e antes que pudesse questionar, Vera esticou-lhe outro envelope. Vanda aceitou-o com a curiosidade estimulada no seu ponto máximo. Um novo cartão com uma nova palavra "casar". Vanda abriu os olhos num misto de incredulidade e antecipação. Olhou para Vasco à procura de um esclarecimento e Vasco baixou um joelho à sua frente esticando-lhe uma caixa simples de veludo azul. Vanda sentiu o seu coração disparar. Pegou na caixa com cautela como se a fosse queimar e finalmente abriu-a. Os seus olhos rasaram de lágrimas quando viu na tampa da caixa a última palavra, "comigo". A sua visão turvou-se por força das lágrimas, e o seu espírito inquietou-se. Olhou à sua volta para aquela família que ela desejava tanto e que começava a amar e sentiu-se miserável. Não podia aceitar... Não podia fazer parte daquela harmonia, quando se preparava para destruí-los. Abanou a cabeça em negação, entregou a caixa a Vasco e saiu daquela casa a correr deixando no ar apenas a negação.
- Eu queria tanto aceitar... Mas não posso!