Capitulo XVI
O coração palpitava numa
garganta apertada que engolia umas lágrimas salgadas. Os soluços involuntários
exercitavam-se sem que Vanda percebesse que chorava alto. Catarina correu à
sala, deparando-se com aquela rapariga de aparência frágil e pálida que estremecia
num corpo curvado e correu a abraçá-la.
- Shhhh! Vai passar! –
Catarina embalava-a nos seus braços tentando perceber o que se estava a passar.
Olha por cima do ombro de Vanda para o ecrã do portátil. A página do facebook
estava imobilizada no depoimento de uma Andrea Dea. – Queres falar um pouco?
Vanda afastou-se e fixou
os seus olhos arregalados de terror nos olhos astutos de Catarina.
- Eu perdi o meu filho!
– As palavras esganiçadas ecoavam um pânico antigo… - Ele morreu… Morreu! Todos
estes anos… E ele já estava morto.
- Tem calma Vanda! Não
estás a dizer coisa com coisa…
- Eu nem sei onde é que
o enterraram… Ou se o cremaram… Nunca o vi… Nunca lhe peguei ao colo. –
Vanda chorava alto com os braços enrolados à volta da cintura, embalava-se enquanto
deixava escapar uivos de dor. – Eu senti-o dentro de mim e rejeitei-o e agora
não o tenho… - Vanda levantou-se com uns olhos vidrados de dor e loucura que
assustaram Catarina.
- Tem calma Vanda! Estás
muito alterada… Vamos até à cozinha para eu te fazer um chá…
- Eu só má… Eu sou do
pior que se pode conhecer numa pessoa… - Vanda virou-se para o computador
apontando freneticamente – Ela teve direito a ficar com a filha
dela… Deus permitiu que a filha dela fosse um milagre, porque ela amava a filha
e desejava-a tanto… Ela amava-a tanto… E eu nem fui capaz de desejar ou amar o
meu próprio filho… - A sua voz estrangulou-se – Eu perdi o meu filho… Perdi-o…
Porque sou má… Eu perdi todos, todos… Não me resta ninguém.
Catarina sentiu que uma
raiva perigosa começava a dar lugar à dor e o rosto de Vanda ruborizou-se de
uma cólera assustadora enquanto gritava.
- Todos os que me amavam
eram bons… E eu sobrevivi a todos sem merecer… Eu não mereço estar aqui… Não
mereço que as pessoas percam o seu tempo comigo. Eu não mereço estar aqui entre
pessoas boas e honestas… Porque eu não presto… Eu não presto Catarina.
Afasta-te de mim porque eu sou uma pessoa perversa… Eu não devia estar aqui. Eu
é que devia estar morta… - Os seus olhos abriram-se numa certeza de loucura que
assustou Catarina. - É isso… Eu não devia estar viva… Eu é que mereço morrer.
Catarina agiu por
impulso quando levantou a sua mão aberta e acertou o rosto de Vanda num estalo
ruidoso. Ambas abriram a boca de espanto. O silêncio que se seguiu foi reconfortante
e depois constrangedor.
- Desculpa! – Vanda
sentiu-se envergonhada. Tinha-se comportado como uma louca, mas não o era… Ou
era? Afinal de contas tinha estado internada num hospício durante tanto tempo.
As forças faltaram-lhe e deixou-se cair no sofá contra a sua vontade que a
mandava fugir dali.
- Agora que estás mais
calma vais falar comigo de forma civilizada! – Catarina aparentava um tom
autoritário na sua voz que não sentia. Olhou pela primeira vez para o ecrã do
seu portátil tentando perceber a origem daquele ataque. – Oh! Sabes o que é
síndrome de Hellp?
- Acabei de saber… -
Vanda recompôs-se. Precisava de falar ou então iria rebentar. – Perdi o meu
filho…
- Quando?
- Há mais de dez anos… -
Vanda deixou sair o ar que tinha retido nos pulmões de uma só vez. – Fiquei a
saber ontem que tive síndrome de hellp. Perante o olhar de dívida de Catarina
Vanda sentiu que devia justificar-se e fê-lo de uma forma sucinta. – Sei que
é difícil acreditar que só uma década depois é que eu sei o que
aconteceu ao meu filho… É muito complicado Catarina. Até hoje eu acreditava que
o meu filho estava vivo e tenho andado durante estes anos à procura de um
fantasma. Foi essa procura que me trouxe a esta ilha…
- Pensaste que o teu
filho estava aqui? – Catarina mostrou-se mais curiosa do que acusadora, o que
incentivou Vanda a continuar a falar.
- Sim! – Vanda encheu-se
de coragem. - Estive internada num hospício durante a minha gravidez. Foi aí
que conheci o Daniel. Ele era o meu psiquiatra…
- Ah!...
- É uma época que está muito
confusa na minha mente… Eu lembro-me de ter dado entrada na maternidade.
Lembro-me de ter entrado em trabalho de parto. Eu dei à luz… Lembro-me de estar
preocupada com o tempo de gravidez… Ainda era muito cedo para ter o meu filho e
tentava que as minhas entranhas o retivessem… Sabia que não era altura para ele
nascer, mas o médicos e enfermeiros moviam-se numa expectativa enervante
como se alguma coisa não estivesse bem… Eu vi o meu filho… - Vanda deixou que
os olhos inchados voltassem a rasar de água. – Era um rapaz… Tão pequenino, tão
frágil… Eu pensei tê-lo ouvido chorar, mas os médicos disseram-me que era
imaginação minha… Nunca acreditei neles, e iniciei uma busca louca… - Vanda
retraiu-se ao pronunciar a palavra louca em voz alta. – E acabei aqui, juntando
os cacos da minha vida tentando que fizessem sentido.
Catarina aninhou Vanda
nos seus braços e afagou-lhe o cabelo rebelde. Beijou-lhe o topo da cabeça.
- Quantos amigos fizeste
nessa jornada louca?
Vanda afastou-se e
limpou o nariz com as costas da mão de forma muito pouco elegante.
- Só o Daniel… Mas só o
percebi agora…
- A vida tem passado por
ti, dando-te oportunidades que tu tens ignorado… Tens de ser tu a passar pela
vida impondo o teu próprio ritmo… Vieste ter a esta ilha maravilhosa onde os
milagres acontecem, porque neste cantinho do mundo existem todos os
ingredientes necessários para se ser feliz… e como não existe forma de fugir
daqui, só mar… – as duas riram tremulamente – Tens de aceitar as pessoas que
aqui existem, e as atenções que te dão… Tens de aceitar o nascer do sol, a
chuva, os cumprimentos matinais, as ruas conhecidas, os presentes dos alunos,
os agradecimentos dos pais e não podes fugir. Se consegues despertar o amor de
alguém, tens essa pessoa à tua porta todos os dias para te lembrar o quanto
amada tu és… Somos uma população pequena que agradecemos a existência de cada
um de nós. Cada perda entre os nossos é sentida por todos os da comunidade e
cada aquisição é festejada por toda esta população. Aqui és obrigada a partilhar
as tuas felicidades e tristezas…
Vanda reflectiu naquelas
palavras sábias. Naquele ilhéu habitado partilhou mais do que em
grandes centros cheios de gentes e possibilidades. Naqueles dezassete
quilómetros quadrados já perdeu a respiração com paisagens simples que nunca
encontra em extensões de terras a perder de vista. Ali no meio de meia dúzia de
famílias sentiu-se menos sozinha do que no meio de multidões que já frequentou…
Aquela ilha resplandecente de um verde brilhante de esperança era um
pequeno milagre que a obrigava a aceitá-lo.
- Esta ilha está a
obrigar-te a enfrentar os teus fantasmas, para que possas seguir em frente. E
eu vou ajudar-te, porque sou tua amiga e vais ter que me aceitar como tal… -
Catarina pegou no telemóvel e marcou um numero. – Estou!... Olá Joe,
desculpa estar a acordar-te, mas precisava muito de falar com a tua mulher… -
Catarina silenciava-se ao telemóvel sempre que o outro lado lhe falava e Vanda
ouvia atentamente só o lado daquela nova amiga. – Olá Vera! Desculpa
acordar-te… Precisava muito que viesses cá. – Mais um silencio. – Sim é
importante! Ok… Até já.
- É melhor ir andando… -
Vanda ia retirar-se educadamente para que Catarina recebesse as suas visitas.
- Ah isso é que não
vais… Acabei de chamar uns amigos que te vão ajudar… Eles estavam a dormir, por
isso ainda vão demorar um bocadinho. – Catarina levantou-se do sofá com aquele
ar ligeiro que a caracterizava – Dá tempo para tomarmos mais um café
bem forte… Ainda não dormi nada.
Enquanto as duas se
movimentavam sincronizadamente na cozinha Vanda pensava quase de forma
incrédula no que lhe estava a acontecer. Pessoas que estavam a dormir no
conforto do seu lar iam abdicar do seu descanso para ajudá-la sem sequer a
conhecerem ou saberem tão pouco qual era o assunto. Que ligação era aquela que
unia as pessoas daquele lugar? Bastava um telefonema a pedir ajuda num assunto
importante e a disponibilidade do outro lado surgia como por magia. As pessoas
deixavam a preguiça do seu lar e deslocavam-se com base num simples telefonema,
sem recriminações ou expectativas de recompensas. Uma amizade simples que
responde ao impulso primário de ajudar sem qualquer ingrediente adicional.
- Catarina! Estás aí? –
A voz rouca e masculina surgiu na porta da cozinha com os braços abertos a um
beijo leve de cumprimento que foi depositado carinhosamente na
bochecha de Catarina. Os olhos mostravam-se pequenos do cansaço típico de uma
noite de fim de ano.
- Olá Joe! Obrigada por
teres vindo. – O sorriso sincero entre os dois mostrava que não havia qualquer
constrangimento naquele acto, nem naquele agradecimento. – Onde está a Vera?
- Estou aqui! – Vera
abriu-lhe também os braços exibindo uma barriga de grávida. – Eu já não ando…
Arrasto-me. – Vanda participou na gargalhada geral que antecipava um assunto
sério.
- Vanda estes são os
meus queridos amigos Joe e Vera Câmara. – Depois de uns cumprimentos rápidos
Catarina continuou. – Chamamos-lhe Vera Câmara para a distinguir da Vera que é
casada com o Marco… A cunhada do Vasco que tu conheces bem.
Aquela breve referência
a Vasco feriu-a como um respingo de óleo. Primeiro a sensação de espanto e
depois uma dor que arde enquanto aquela lembrança persiste no pensamento.
- Bem agora que estamos
todos sentados com uma chávena de café bem forte, vamos ao que interessa. –
Catarina mexia o seu café distraidamente com um olhar perdido
parecendo procurar as palavras certas naquele movimento repetitivo. – A Vera é
que criou esse grupo no facebook. – Catarina ergueu o olhar que se cruzou com
um arregalar de expressões na mesa. – A Vera também sofreu do síndrome de
hellp…
O silêncio que se seguiu
serviu para todos assentarem o assunto que se seguia. Vera dirigiu um sorriso
brando de compreensão a Vanda e esperou que fosse ela a
questioná-la. Vanda sentiu a garganta apertada. Ela tinha tido aquela doença e
estava ali grávida novamente… Será que tinha corrido bem com ela? Será que ela
era a única que tinha perdido o filho? Era a única que merecia essa penitência…
- Eu perdi o meu
primeiro filho! – Vera respondeu à pergunta silenciosa de Vanda provocando-lhe
um arrepio.
- Mas estás novamente
grávida…
- Sim! – Vera voltou a
sorrir-lhe. – Com a graça de Deus…
- É possível?
- Claro que sim! Com o
acompanhamento médico adequado… Com muitas análises e consultas.
- Criaste o grupo “
Mulheres que passaram pelo Síndrome de Hellp”?
- Sim!
- Porquê?
- Porque precisava de
respostas… Precisava de falar com alguém que me compreendesse… Precisava de
mais informação É uma doença pouco divulgada, e eu senti que até os
próprios médicos estão desconfortáveis com a doença. Eles não me
sabiam responder a todas as minhas dúvidas. Então perdi o meu filho… A dor da
perda é mais fácil quando a compreendemos. Nunca deixamos de sentir Vanda, mas
aprendemos a lidar com ela. Se não somos capazes de arranjar uma forma de domar
a dor, ela devora-nos.
- Percebo… Eu perdi o
meu filho há mais de dez anos e ainda não aprendi a lidar com essa dor… Ela
devora-me todos os dias, consome todos os meus pensamentos, absorve todos os
meus desejos e tolda-me todas as ideias… Eu tenho vivida atormentada por esta
dor… Não compreendo ainda como é que tudo aconteceu… Eu estava grávida de seis
meses mais ou menos e senti-me mal. A minha tensão estava muito alta e tinha
muitas dores de barriga. Fui transportada para a maternidade… E depois foi tudo
muito rápido e está tudo muito confuso na minha cabeça… Num dia estava tudo bem
e no outro tinha um médico à minha cabeceira sem ser capaz de me encarar com um
simples olhar a lamentar o facto de ter perdido o meu filho…
- Comigo aconteceu o
mesmo… Aos seis meses depois de muitas dores e de ter tido picos de tensão
muito alta fui evacuada e para S. Miguel com a
simples informação de que tinha de interromper a gravidez. Fiquei
mortificada. Em vinte e quatro horas fui evacuada, andei
de helicóptero, fiz transfusões de sangue, fiz uma cesariana, estive
à beira da morte… eram demasiadas coisas para assimilar. Fui mãe sem ter
sentido o meu filho nascer… Sem ouvir o seu choro, sem pegar nele. – Joe
pegou-lhe delicadamente na mão ao sentir que a voz da mulher tremia numa emoção
sentida por toda a sala. - Estava
numa cama de hospital com o meu sistema todo alterado, toda entubada e em risco
de vida… horas de aflição que passei naquele hospital, que só eram
esquecidas por breves minutos quando olhava para a incubadora onde estava o meu
menino. Só esses momentos me davam algum conforto apesar de não poder
pegar-lhe... mas só vê-lo a reagir cada vez que lhe tocava era uma emoção
enorme. Um dos dias até me apertou o dedo.Foi a melhor sensação que já senti.
Sentir o aperto da mão do meu filho. Infelizmente esses momentos de
alegria duraram pouco tempo, quatro dias depois recebo informação da médica da
Neo que o meu filho teria de ser operado. – Vera fez uma pausa
para libertar um soluço. Catarina apressou-se a colocar lenços de papel em cima
da mesa e assoou-se ruidosamente. Vanda sentia aquela história quase como se
fosse sua. As dores, a tensão alta, o facto de lhe terem provocado o parto com
tanta antecedência… Lembra-se vagamente de ouvir que mãe e filho corriam risco
de vida se continuassem com a gravidez… Assim salvaram apenas a mãe… - Veio um
médico do continente para fazer a operação já que era um risco transportar um
prematura tão debilitado. O meu filho sobreviveu à operação… E passados onze
dias quando as incertezas davam lugar a certezas e esperanças o meu anjinho
partiu. – Vera enroscou-se nos braços de Joe e ambos partilharam uma lembrança
intima.
- Ele
chamava-se Isaac… - Joe fixou os olhos vermelhos em Vanda. – E o teu?
Vanda
limpou o nariz e respondeu num fio de voz.
- Não
tive tempo para lhe colocar um nome…