sábado, 26 de maio de 2012

Capitulo IV - Nas Asas do Corvo


Capitulo IV

Aquela primeira semana aproximava-se do fim com o mesmo ritmo calmo que regia aquela ilha. Vanda saiu da sua última aula satisfeita por constatar que Matias era um menino inteligente e perspicaz, apesar de preguiçoso. Teria de trabalhar com ele métodos de estudo e incentivo, para que ele possa ter resultados mais satisfatórios. Sentia-se rendida àquele menino de sorriso fácil que que se acanhava sempre que ela lhe dirigia uma palavra mais directa. Os olhar era meigo e enternecia Vanda sempre ele o dedicava. Aquele rapazito frágil era dela. Era a certeza de que ela era capaz de criar alguma coisa de boa, sem máculas. Matias era o que a ligava a um mundo de esperança em que ela era dotada de uma capacidade humana apta a gerar vida e beleza sem intervenções negativas ou maldades indispostas. Ela tinha agora uma ligação a um mundo luminoso em que a esperança de se tornar uma pessoa melhor se alastra e engole o negrume da sua alma.
A chave penetrou a fechadura e com um pouco de esforço girou abrindo a porta, provocando um sorriso íntimo de segurança no peito de Vanda. Gostava do seu quotidiano naquela ilha. Os cumprimentos corriqueiros, as conversas banais, os toques casuais, as relações simples, os gestos despreocupados… tudo isso começava a preencher o seu dia de uma forma natural.
Vanda percorria o balcão da cozinha organizando os vegetais para a salada, quando os seus olhos se prenderam no rodar da maçaneta da porta. Ela esperou um segundo e riu alto quando o bater seco na porta se seguiu à primeira tentativa. Vanda dirigiu-se à porta num passo lento disfrutando aquele momento. Se Vasco não aprendia a bater à porta a bem, então aprenderia a mal.
- Olá Vasco! – Vanda abriu a porta e não conseguiu evitar um arregalar de olhos admirado. Vasco trazia o cabelo solto e ainda húmido do banho que se adivinhava. Pela primeira vez vestia umas calças de ganga justas que lhe delineavam umas pernas musculadas e uma camisa branca que lhe percorria o tronco descontraidamente. O desmazelado deu lugar a qualquer coisa que Vanda sentiu mas não soube descrever. Tentando disfarçar o seu ar embasbacado, continuou a conversa. – Estás a ver como não é difícil bater à porta?
- Nunca disse que era difícil… É apenas desagradável! – Vasco entrou e ofereceu-lhe o seu melhor sorriso. Sentia o constrangimento de Vanda e o seu ego masculino ficou agradecido. – Veste qualquer coisa e vamos sair.
- Como assim? Eu estou a preparar o jantar… - Vasco deu a volta ao balcão e fez uma careta quando viu que o jantar dela seria uma salada.
- Estou a ver… Vais comer alpista e agrião?
- Oh! – Vanda vibrou de indignação. – Vou ter uma refeição saudável! Não quero morrer aos quarenta anos vítima de um ataque cardíaco…
- Pois… Mas por enquanto tens apenas trinta anos e vais comer uma refeição saudável comigo. – Vasco aproximou-se dela e olhou-a com um olhar sedutor tentando uma resposta positiva.
- Eu não tenho trinta anos… - ofendeu-se.
- Anda lá Vanda! É sexta-feira à noite… Não podes estar sempre fechada em casa… Vamos jantar a casa de uns amigos e depois vamos à disco! – Quando Vanda franziu as sobrancelhas numa interrogação perfeita, Vasco suspirou. – Sim! Nós temos discotecas no ilhéu… Sabes…cabe muita coisa num raio de dezassete Quilómetros quadrados…
O riso comum libertou Vanda da sua rigidez típica e impulsionou Vasco na direcção daquela mulher que lhe preenchia os sentidos e lhe despertava emoções contraditórias. Ele queria muito penetrar naquela capa protectora que Vanda criara. Queria compreendê-la e completar o quebra-cabeças que ela representava… Ela era um desafio que ele começava a aceitar. A proximidade fez com que Vanda desvanecesse o sorriso e num desconforto notório afastou-se desculpando-se com o facto de ir mudar de roupa. Vanda olhou para o seu guarda-fato e desejou ter um vestido mais arrojado. Pela primeira vez queria desfazer-se dos cortes direitos e solenes. Queria correr o risco que parecer sexy… Ela fechou os olhos com força e afastou aquele desejo… “Os abusos nascem do excesso de confiança”, repetiu para si mesma… Contentou-se com uma saia de sarja beije e uma blusa verde lisa e justa que lhe desenhava as formas. As sabrinas castanhas pareceram-lhe uma boa opção quando pensou na calçada que a esperava.
- Estou pronta! – A excitação da sua primeira saída desde há muitos anos, talvez desde sempre morreu quando os seus olhos lhe lembraram a desarrumação da cozinha. – Ora bolas!
- O que foi? – Vasco sentiu um baque no peito quando a viu pela primeira vez com o cabelo solto e rebelde, quase selvagem que lhe caía em cachos escuros pelos ombros e lhe conferiam um ar agreste aos seus traços fortes. Os olhos pareciam mais brilhantes e a forma como ela mordia o lábio de vez em quando fizeram-no desejar algo mais. O pensamento foi bloqueado e afastado com muito custo.
- Não posso deixar a cozinha assim!
Vasco sabia que ela não deixaria mesmo a cozinha naquele estado, por isso arregaçou as mangas e começou a arrumar os legumes dentro do frigorífico.
- Vais ficar aí a olhar ou dás-me uma ajuda? – Vanda apreciou a forma caseira como ele arregaçara as mangas e se deslocava sabedoramente na sua cozinha.
- Claro!
Arrumaram tudo num instante e quando Vanda pegou na esfregona, Vasco agarrou-lhe a mão.
- Deixa isso para amanhã!
- Não posso deixar o chão sujo!
- O chão não está sujo! E amanhã podes fazer isso…
- Mas…
- Pode ficar para amanhã Vanda! – Vasco manteve-se irredutível. Queria que ela se libertasse destas manias das limpezas.
Vanda fez um esforço para se libertar mas sem sucesso. Vasco estava preparado para manter a sua posição, mas quando lhe viu as lágrimas aflorarem os olhos, todas as suas defesas se desmoronaram.
- Eu não posso deixar isto assim… Se nos descuidamos uma vez, depois descuidamo-nos outra e depois há sempre desculpas para nos descuidarmos e tornamo-nos uns porcos sem salvação possível. – As palavras de Vanda eram demasiadamente sentidas e pouco claras, mas Vasco percebeu que no intimo dela era importante passar aquela esfregona pelo chão. – Não podemos facilitar em nada ou a nossa vida sai do que é desejável e torna-se num inferno…
- É só um dia…
- Eu já deixei que a minha vida fosse um inferno… e não quero voltar para lá… Percebes? – Agora Vanda chorava compulsivamente e Vasco atrapalhou-se nas ideias. Tirou-lhe a esfregona das mãos, sentou-a no sofá e ele mesmo limpou o chão.
- Bem, está tudo limpinho! Bora lá chica! – Vasco tinha esta capacidade de tornar tudo muito mais fácil e Vanda sorriu-lhe grata.
O jantar que Vanda interpretara como um encontro calmo entre amigos, era afinal uma despedida de solteiro. O jovem casal optara por juntar os amigos comuns e fazer uma jantarada com muita cerveja à mistura. Vanda entrou intimidade pela animação e sentiu-se mais segura quando Vasco lhe pegou na mão e a conduziu por entre os convidados.
- Olá Sílvia! – Vasco cumprimentou aquela mulher com um abraço apertado que incomodou Vanda. – Esta é a Vanda! E esta é o maior desperdício que esta terra já conheceu… - Vanda cumprimentou Sílvia dirigindo um olhar confuso a Vasco. – Vai casar-se… e não é comigo. Não é um desperdício?
- Não digas disparates! Ela ainda está convencida de que está a fazer um bom negócio! – Um homem de cabelo curto com uns olhos doces e um queixo saliente surgiu por detrás de Vanda. – Olá Vanda! Eu sou o Tomás e sou o noivo…
O beijo simples que uniu aquele casal transmitia uma solidez no tratamento que fazia adivinhar cumplicidade. Sílvia rasgou um sorriso feliz quando o noivo a envolveu num abraço firme. O seu cabelo curto e sedoso parecia mais brilhante e olhar cúmplice que os dois trocaram fechava em si segredos sussurrados.
- Tanto tempo a tentar enganar a melhor mulher que esta ilha já conheceu e agora queres estragar-me o engate antes do casamento? – Tomás brincava, mas por uma questão de segurança não largava a futura esposa. – Arranja uma para ti…
- Estou a tentar! Mas não está fácil! – Vasco piscou um olho aos amigos e afastou-se com Vanda pela mão. O jantar resumia-se a frango e salsichas feitas num churrasco por debaixo de uma vinha e muita cerveja. Vanda olhava ao seu redor e não se atrevia a iniciar a refeição. As pessoas pegavam em pratos de papel e comiam com as mãos. Lambuzavam os dedos que pingavam gordura e depois metiam os mesmos dedos dentro de taças cheias de batata frita. Vanda sentia-se incendiada pelo cheiro apetitoso e a tentação da fome tornava-a cada vez mais fraca nos seus intuitos. Vasco ofereceu-lhe uma cerveja que ela aceitou. Depois de limpar a garrafa com um guardanapo, bebericou um pouco. A festa foi-se animando pelas luzes improvisadas daquele logradouro, a música que ela não reconhecia, mas que lhe começava a girar na cabeça as vozes soavam-lhe misturadas e o seu corpo pedia uma libertação.
- É melhor comeres qualquer coisa! A beberes dessa maneira com o estomago vazio, é capaz de dar mau resultado. – Vasco esticou-lhe um prato com uma coxa de frango e batata frita, que Vanda recebeu de bom grado.
- Obrigada! Estava faminta! – Vasco sorriu quando a viu arrastar as palavras e comer com a mão sem se queixar. A mente entorpecida pela cerveja fazia-a falar com todos os presentes de uma forma agradável e engraçada. Depois de ter o estômago reconfortado, Vanda juntou-se a uma grupo que jogava à sueca.
- Eu sou perita a jogar à sueca! Só preciso de um parceiro à minha altura.
- Então vamos jogar parceira! Quem se atreve a enfrentar-nos? – Tomás, o noivo fez as delícias de Vanda ao juntar-se a ela no jogo.
- Nós somos o par ideal! – Vasco surgiu de braço dado com Sílvia que também sorria e ria sem razão aparente.
O jogo foi distribuído e os quatro pares de olhos perscrutaram reacções que denunciassem algum movimento antecipado.
- Se não tiveres ouros corta, Tomás! Só falta sair a bisca! – Vanda jogava com inteligência e militarismo nas ordens.
- Pensei que a sueca fosse um jogo para mudos! – Sílvia tentava desencorajar os opositores vencedores.
- A Vanda é uma tagarela… É mais forte do que ela… Só Deus e eu sabemos o que eu sofro! – Vasco arregalou os olhos quando sentiu a palmada seca no braço. – Estão a ver do que eu falo?
Marco apareceu com o mesmo ar sonolento de sempre e sentou-se na mesma mesa.
- Olá pessoal! Desculpem lá o atraso, mas os filhos dão-nos cabo dos horários. – Todos riram. – Vera! Estou aqui! – Marco acenou à mulher. Tratava-se de uma mulher de estatura larga, com um corpo forte mas tonificado, o cabelo liso exibia uns reflexos artificiais louros que lhe suavizavam as expressões cansadas e evidenciavam um olhar verde e brando. Vera aproximou-se e sentou-se descontraidamente no colo do marido apreciando o jogo.
A conversa fluía e Vasco encantou-se com o efeito do álcool em Vanda. Ela soltara-se da sua rigidez e ria alto sem razão aparente. Conquistou definitivamente os outros dois casais que prometeram mais jantaradas daquelas.
O caminho de volta para casa antecipou a prometida ida à discoteca, uma vez que as horas se haviam passado sem serem notadas. Vanda transportava as sabrinas na mão e dançava em rodopios trapalhões ao som de uma música muda. A porta de casa recusava-se a abrir face à pressão que ela colocava na chave.
- Estás a ver porque é que trancar as portas à chave atrapalha? – Vasco sentia-se vingado naquela dificuldade motora de abrir a porta. Arrancou-lhe a chave da mão e abriu a porta sem dificuldades. Quando entraram, Vanda atirou as sabrinas provocando um cair de queixos a Vasco que se apressou a arrumá-las, receando a reacção dela na manhã seguinte quando se deparasse com as sabrinas caídas no meio da sala. Nunca mais sairia com ele, e Vasco não queria arriscar este cenário.
- Dança comigo Vasco… - Ela rodeou-lhe o pescoço com os seus longos braços e Vasco engoliu em seco antes de se aventurar naquele abraço. Fechou os olhos e apertou-a conduzindo-a calmamente ao ritmo da música de Nina Simone que lhe cantava ao ouvido “Birds flying high you know how I feel, Sun in the sky you know how I feel, Breeze driftin’on by you know how I feel, It’s a new dawn, It’s a new day, It’s a new life for me, And I’m feeling good”. Os olhos de Vasco abriram-se e procuraram os de Vanda que lhe corresponderam com um fogo brilhante permissivo. As bocas uniram-se calmamente, mas a sofreguidão do desejo acelerou os gestos e o ritmo cardíaco. Vasco conduziu-a para o quarto sem nunca a largar. A respiração ofegante aumentava de intensidade e Vasco atirou-a para cima da cama. A urgência impunha-se à intenção e os movimentos ritmados explodiam de numa pressa íntima. Vasco arrancou-lhe a camisola e livrou-a do soutien num movimento brusco. Quando os seus olhos se deliciaram com aquela visão, os seus ouvidos perderam-se na confusão de um murmúrio.
- Os abusos resultam do excesso de confiança… - Vanda tinha uma olhar arregalado que denunciava desejo. Mas foi um brilho de terror de despertou um alerta em Vasco.
- O quê?
- Agora vais abusar de mim… - Não era uma pergunta. Era uma afirmação que Vasco recebeu como sendo um jogo de sedução.
- Pois vou… Porque tu portaste-te muito mal… - Vasco sorriu-lhe recebendo em troca apenas um olhar resignado.
- Não faz mal… De qualquer forma eu nunca conheci a intimidade de outra forma a não ser desta… Violação…
Vasco saltou da cama segurando as calças. O seu coração agora batia acelerado, mas já não era de excitação. A sua cabeça parecia explodir de raiva, indignação e surpresa.
- Achaste que eu ia violar-te? – O olhar resignado voltou e Vasco percebeu uma resposta positiva… - Eu era incapaz de tal coisa… Mas que raio… O que é que eu fiz que te levasse a pensar isso?
As ideias atropelavam-lhe o cérebro sem sentido e as pernas fraquejaram, obrigando-o a sentar-se na cadeira do quarto. Apoiou a cabeça nas mãos e tentou ordenar ideias. Não sabe quanto tempo esteve ali até perceber que Vanda tinha sido vítima de abusos sexuais e esta certeza acertou-lhe a mente num murro invisível. Primeiro sentiu-se enjoado perante esta constatação, depois alterado praguejando promessas violentas contra o agressor e por fim dolorido pelas dores daquela mulher que adormecera com o cabelo espalhado pela almofada alva. Vasco aproximou-se finalmente daquela cama e olhou-a, não com a paixão anterior, mas com um carinho que o assustou. Como não sabia bem a melhor forma de lidar com esse sentimento, cobriu Vanda com uma manta e fixou-se novamente na raiva que sentia naquele exacto momento pelo seu agressor.
O telefone tocou.
- Estou. – Vasco atendeu sem pensar bem no seu interlocutor.
- Quem fala? – Daniel estranhou a voz masculina do outro lado.
- Vasco. – Depois de esfregar os olhos cansados, Vasco continuou a conversa. - Ela foi violada…
Fez-se um momento de silêncio após aquela revelação em voz alta.
- Vou continuar a ligar-lhe todos os dias e dar-lhe o melhor apoio possível.
- Vou continuar a acompanhá-la por aqui todos os dias e tentar aliviar-lhe as dores…
A promessa foi trocada sem pressões e com a certeza de que seria cumprida de ambas as partes.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Capitulo III - Nas Asas do Corvo


Capitulo III

    O espelho reflectia uma imagem impecável repleta de respeito e rigidez. A primeira impressão que se causa numa sala de aulas é o reflexo do restante ano lectivo. E só deus sabe como é difícil impor respeito nos miúdos de hoje. O vestido escuro com um corte direito, o cabelo estreitamente apanhado e uns sapatos confortáveis que a permitissem ter um passo seguro eram os seus melhores alibis para a personificação de uma professora que impões respeito dentro da sua sala de aula. As crianças reagem à imagem que os adultos passam. Se um professor comete o erro de se apresentar pela primeira vez com um ar desmazelado, os alunos, instintivamente, sentem-se demasiado à vontade para colocarem as suas diabruras em prática. Mas se a primeira imagem for intimidatória, os alunos reprimem os seus instintos primários, sem sequer sentirem que estão a ser persuadidos nesse sentido. Com o tempo, Vanda poderá aparecer com um ar desmazelado na aula que o respeito continuará lá. No máximo conseguirá uns olhares admirados dos seus alunos. Mas hoje é o dia que os vai conhecer. Terá o horário completo, uma vez que dará aulas ao quinto, sexto e oitavo anos. Mas é o sexto ano que lhe interessa. É naquela turma de meninos de onze anos que reside a sua verdadeira motivação para se ter deslocado até àquela ilha.
    A escola tinha sido uma surpresa para Vanda. Os alunos chegavam sozinhos sem a supervisão dos encarregados de educação. Dividiam-se entre o passeio de acesso e a beira da estrada que devia ser reservada aos carros. A escola não destoava da visão de presépio que era toda a vila. Os traços do estado novo eram visíveis nas suas linhas suavizadas por obras recentes. As salas de aulas eram agradavelmente pequenas e proporcionavam uma sensação de proximidade entre aluno e docente. A campainha aguda avisou a hora de entrada pontual e sem grandes atribulações. Vanda sentiu um aperto no peito. Chegara a hora de saber quem era o seu filho. Vanda encontrava-se de pé, com a anca levemente encostada á secretária. A turma do sexto ano era constituída apenas por três rapazes e duas raparigas. Os alunos entraram aos pares cochichando e soltando risadinhas envergonhadas. Eram os rapazes que lhe interessavam. Depois de estarem todos sentados, Vanda apresentou-se.
- Eu sou a professora Vanda Rodrigues, e vou ensinar-vos história!- Vanda apresentou-se sem sorrir ou lançar qualquer olhar cúmplice à sua plateia, evitando que os alunos se sentissem incentivados a certas liberdades. Ela passa os olhos por cada um dos três rapazes e sente-se frustrada porque não consegue identificar o filho. Deveria haver um chamamento de sangue. Um palpitar de coração mais forte. Qualquer coisa que identificasse os laços que a unem a um daqueles rapazes. Mas não sente absolutamente nada para além de frustração. Terá de identificar o seu filho pela data de nascimento que está na ficha de aluno. – Agora quero que cada um se apresente. Comecemos por esta menina.
- Olá! Eu sou a Francisca e tenho onze anos. – Francisca era uma menina alta para a idade de cabelos castanhos que lhe caíam sobre os ombros numas pontas mal cortadas. Os seus olhos pequenos e astutos transmitiam um certo gozo. – E esta é a minha irmã gémea Madalena. – A irmã gémea era o reflexo de Francisca. Notava-se que a mãe tivera o cuidado de as distinguir pela cor da roupa.
- Muito prazer em conhecer-vos meninas!
    O olhar de Vanda desviou-se para um menino de aspecto frágil, pequeno demais para a idade e com uma palidez doentia, atenuada pelo seu sorriso fácil.
- Eu sou o Matias e também tenho onze anos! – O rapaz sorriu à professora, recebendo em troca um acenar frio que lhe desmanchou o sorriso.
- Eu sou o Joel e sou o mais velho da turma! – O rapaz, de corpo robusto com o cabelo demasiado grande que lhe tapava o olhar propositadamente, encheu-se de orgulho. – Sou o primeiro a fazer doze anos. Faço logo em Janeiro.
    Vanda não lhe deu demasiada importância, murchando-lhe o peito.
- E tu? – O último rapaz era magro e tinha um aspecto selvagem, com um olhar perdido noutro assunto qualquer fora da sala de aulas.
- Eu sou o Tiago! Sou primo do Matias! E fica já avisada que se for uma bruxa para o meu primo eu torço-lhe o gorgomilo…
    Agora Vanda não conseguiu evitar um sorriso mal disfarçado.
- Estou a ver que tens um defensor Matias! – E virando-se para o primo protector. – Não tens com que te preocupar, porque tenho a certeza de que nos vamos dar todos muito bem!
    Como habitualmente na primeira aula, Vanda conversou sobre a matéria que iriam dar nesse primeiro período e marcou logo a data dos testes, recebendo gemidos de insatisfação da sua plateia.
    Quando Vanda conseguiu finalmente um momento sozinha na sala de professores, afastou os papéis que deveria organizar com as actividades extra curriculares que lhe caberiam e pegou na ficha dos alunos da única turma do sexto ano. O coração acelerou-se e a ansiedade reflectiu-se na humidade das palmas das suas mãos. As fichas da Francisca e da Madalena foram logo colocadas de parte. Para além de serem gémeas, Vanda tinha a certeza de que tinha dado à luz um rapaz. A primeira ficha a ser aberta mostrou-lhe o nome de Joel. Os seus olhos procuraram a data de nascimento. Doze de Janeiro. Era impossível. As mãos trémulas procuraram a ficha seguinte e os olhos turvos leram o nome Tiago que nascera no dia dezoito de Julho. Também não era o Tiago. Os seus pulmões sustiveram a respiração e o coração parou uma fracção de segundo quando os olhos transportaram a informação que ligava o nome do pequeno Matias à data de vinte e sete de Agosto do ano dois mil. Era aquele o seu filho. A emoção turvou-lhe a visão e o ar chegava-lhe aos pulmões em golfadas aflitas. Matias… O pequeno Matias. Tinha-o transportado dentro de si durante nove meses. Quiseram privá-la daquele filho, mas agora ele estava ali, num mesmo espaço de terra limitado pelo mar. Ele não ia a lugar nenhum. Nunca mais deixaria que o afastassem de si.
    O primeiro dia de aulas chegou ao fim e Vanda vigiava Matias de longe. Ele esperou à porta da escola por dois rapazes mais velhos e caminharam ao longo da rua entre risadas e brincadeiras. Um deles levava uma fisga improvisava com um elástico da caixa de costura da mãe e um ramo bifurcado. Apanhou uma pedra do chão e fez mira para as pernas de Matias, resultando num guincho mais de surpresa do que de dor. Vanda sentiu uma indignação que lhe subiu pelo tronco acima ruborizando-lhe as faces.
- Ei! Tu aí! – Os rapazes voltaram-se todos com um arregalar de olhos quando se depararam com a professora nova deslocando-se para eles com um passo apressado e um semblante carregado. – Dá-me essa porcaria, estás a ouvir! – Os três pares de olhos pousavam agora na palma da mão de Vanda que se encontrava estendida naquela direcção. – Vamos! Dá-me lá isso!
- Isso o quê? – Matias tentava fazer um esforço para perceber ao que é que ela se referia.
- Está aí quieto Matias! Não te metas! E não te preocupes, porque eu protejo-te. – Vanda dedica-lhe agora um olhar doce e meigo, que provocou um arrepio no rapaz. Como o miúdo mais velho não se decidia, Vanda arrancou-lhe a fisga das mãos.
- Hei!...
- Caluda! E que eu nunca mais te veja a magoar este menino… Estamos entendidos! – Os rapazes, vendo um olhar brilhante e quase louco, não se atreveram a contradizer aquela mulher. – Muito bem. Eu levo-te a casa Matias!
- Mas… - O rapazito sentia-se confuso com aquela situação. – Eu vou sempre com os meus irmãos.
- Oh! Não sejas ridículo… - Vanda sobressaltou-se. Quase lhe escapara a afirmação de que ele não tinha irmãos, mas conteve-se a tempo. Levou apenas uns segundos a perceber que Matias se referia aos outros dois rapazes e tentando não estragar a sua imagem, endireitou-se e adoptou novamente o seu ar de professora. – E que isto não se repita…
- Sim senhora! – Responderam os três em uníssono, sem perceberem bem ao que ela se referia.
    Vanda rodou sobre os calcanhares e seguiu o caminho de volta para casa com o ritmo cardíaco a atraiçoar-lhe o ar empertigado. Matias. Nunca tinha pensado no seu filho com um nome, e Matias era um nome que lhe agradava. Ficava-lhe no ouvido. Sim, o seu filho pode chamar-se Matias…
    Quando Vanda entrou em casa sorriu ao encontrar tudo no seu devido lugar e fechou os olhos por um instante apreciando o silêncio. Tirou os sapatos cuidadosamente substituindo-os pelas pantufas. Abriu o frigorífico e tirou o salmão já temperado com sal e limão. Ela adorava as segundas-feiras, uma vez que salmão era o seu prato preferido. Preparava-o sempre da mesma forma. Temperava-o de manhã e perto da hora do jantar, embrulhava a posta de salmão em papel de alumínio regado com azeite extra virgem e levava ao forno. Como ainda era cedo para preparar o jantar, Vanda resolveu apanhar a roupa que tinha no logradouro. Encostou o nariz à roupa alva e seca e sorriu satisfeita com o cheiro próprio do novo detergente de Aloé Vera. O seu pensamento fugiu novamente para junto de Matias. Ainda era cedo para revelar a verdade ao rapaz. Primeiro queria conquistar a simpatia e confiança dele. Queria que ele gostasse dela naturalmente ao ponto de a desejar como mãe. Então aí seria a altura certa para lhe abrir os braços e chamá-lo de filho. Ela achava que já tinha começado bem. Hoje quando o defendera, deve ter-lhe ficado na memória como uma heroína…
- Vanda! Estás aí? – Vasco estava na sala a gritar por ela. Esta mania de entrarem na casa dela sem baterem à porta vai ter de acabar.
- O que é que queres? – Vanda espreitou pela porta do quarto que dava acesso á sala.
- Olá para ti também! – Vasco sorriu-lhe, aquele sorriso malandro e Vanda teve de reconhecer que pela primeira vez em muitos anos tinha-se afeiçoado àquela espécie de amizade.
- Tenho de tirar hoje um tempinho para ti! – Esta afirmação surpreendeu Vasco que abriu os olhos numa admiração clara.
- Vais tirar um tempinho para mim… Por iniciativa tua? Sem que eu me imponha ou me faça de convidado…
. Sim! – Vanda não resistiu a devolver-lhe o sorriso malandro e bateu as pestanas. – Vou ensinar-te a bater às portas antes de entrar…
- Oh! Eu logo vi que era sorte a mais… - Vasco encostou-se ao balcão e cruzou os braços simulando que ficara amuado. – Então, gostaste do primeiro dia de aulas?
- Sim! Fala-me do Matias!
- Qual Matias?
- Um menino que é meu aluno do sexto ano… Deves saber quem é de certeza… Nesta ilha o impossível é não se saber quem é quem. – Depois de rirem os dois, Vasco permitiu-se estranhar a pergunta, mas fez-lhe a vontade.
- Não há muito para dizer. É um rapaz normal. Sempre teve uma saúde um pouco frágil…
- Como assim? – Vanda assaltou-lhe o discurso com aquela pergunta aflita, aguçando ainda mais a curiosidade de Vasco.
- Nada de especial. As viroses dão-se sempre muito bem com ele. É do tipo que tem gripe todos os invernos… Se há um andaço de vómitos e diarreia, lá o garoto fica em casa… não há nada que ele não apanhe…
- Se calhar é mal cuidado pelos pais, coitadinho! Devia estar com alguém que tratasse bem dele, que o agasalhasse, e lhe desse comida decente…
- Nada disso! Ele é filho do meu irmão Marco. Ele e a Vera são muito cuidadosos.
- O Matias é teu sobrinho? – Depois da surpresa, Vanda lembrou-se de que estava numa ilha com quatrocentos e qualquer coisa habitantes… Era mais do que normal, o Vasco ser parente do Matias… No entanto esta constatação provocou-lhe um mal-estar interior que analisaria mais tarde.
- Vejo que o miúdo te causou uma forte impressão… É de família! Uma mulher bonita depois de conhecer um de nós não quer outra fruta! – O riso de Vasco foi interrompido pelo mau humor repentino de Vanda. Mas que mulher estranha.
- Pára lá com as gracinhas, que eu não estou para aí virada! O que é que vieste cá fazer?
- Dar-te um beijo! – E adivinhando uma resposta torta e rezingona, Vasco beijou-lhe à pressa a bochecha e fugiu, rindo como uma criança orgulhosa de uma qualquer diabrura.
    Vanda respirou de alívio. Gostava da companhia dele, da forma descontraída com que ele se movia, do sorriso fácil, do facto de ele não exigir nada em troca, mas agora sentia-se pressionada pelo facto de Matias ser seu sobrinho. Não sabia que tipo de pressão é que sentia no peito, mas assemelhava-se a uma angústia de vir a desiludi-lo. Sempre se sentira sozinha ao longo da sua vida, sem ninguém que lhe controlasse os actos ou lhe desse um aconchego. Mas agora sentia um certo conforto por saber que alguém se dava ao trabalho de a procurar só para ver se ela estava bem. Afinal fora isso que Vasco fizera. O salmão libertava um cheiro apetitoso ao qual Vanda não se poupou. Podia ter convidado Vasco para jantar. Gostava de vê-lo a ficar satisfeito com uma posta de salmão e uns brócolos cozidos. Sorriu face à careta de Vasco que lhe trespassou a mente… O telefone tocou.
- Estou!
- Olá Vanda!
- Olá Daniel!
    O silêncio que se repetia ao cumprimento era já um ritual ao qual nenhum dos dois se poupava. E como de hábito foi Daniel a interromper.
- Como foi o teu dia?
- Foi bom! Comecei hoje aquilo que vim fazer a esta ilha.
- Ah! Pois é… Foi o teu primeiro dia de aulas.
- Também!
- Foste fazer mais alguma coisa a essa ilha para além de dar aulas?
- Sim! – Vanda sentia o coração a palpitar numa antecipação de ter um confidente. Pela primeira vez na vida precisava de desabafar. Pesquisara o paradeiro do filho sempre sozinha e em silêncio, planeara cada passo seu antecipadamente de modo a chegar àquela ilha sem levantar suspeitas… Mas agora que ia agir, sentia uma necessidade quase física de aprovação de alguém.
- E queres contar-me a verdadeira razão que te levou para o Corvo?
- O meu filho!
    O silêncio voltou. Prolongado e vazio. Desta vez era um silêncio incómodo.
- Tens um filho?
- Sim! Ele tem onze anos, e chama-se Matias!
    O silêncio voltou.
- E ele está a gostar do Corvo?
- Eu acho que sim…
- Como assim?
- Ele sempre viveu cá… Nem sei se ele conhece outra terra. – Agora que pensava nisso sentiu um vazio de informação acerca do seu próprio filho.
- Mas tu disseste-me que tinhas acabado de chegar ao Corvo!
- Daniel!
- Sim…
- Não te vou contar já a minha história! Conta-me tu um pouco da tua…
- Está bem! Eu sou o Daniel, tenho trinta e cinco anos e sou solteiro… - Daniel parou a conversa á espera de uma reacção.
- E…
- Mexeriqueira!
- Pensei que era assim que as pessoas se conheciam…
- Tens razão Vanda! Sou cirurgião plástico… - Mais uma espera.
- Interessante!
- Só isso! Estava à espera de uma reacção mais entusiasta… quando eu digo isto a uma mulher pergunta-me logo de que retoques é que precisa ou quantos pares de mamas é que eu vejo por dia… - Agora riam ambos.
- Eu não preciso de retoques… mas agora deixaste-me curiosa! Vês muitas mamas?
- Ahahahaha! Muitas… e olha que isso nem sempre é agradável.
- Imagino! – Vanda estendera-se no sofá relaxadamente e deixava-se envolver pela conversa ocasional. – Coitadinho do Daniel que sofre tanto no trabalho…
    O assunto do filho de Vanda não voltou a ensombrar a conversa que se tornou animada e fluida, nascendo entre eles uma cumplicidade que prometia servir de apoio a ambos.