sábado, 17 de dezembro de 2011

obrigada

Peço desculpa publicar esta mensagem no meio do livro. Sei que esperavam um novo capitulo. Mas tenho de partilhar esta boa nova com quem gosta de ler o que eu escrevo. A corpos editora vai publicar o meu primeiro romance. Estou muito feliz e queria partilhar esta felicidade convosco. O meu muito obrigada a todos aqueles que se deleitam com as minhas histórias.

domingo, 11 de dezembro de 2011

CAPÍTULO XIII - Na Base da Montanha




   
    A barriga proeminente própria dos cinco meses de gestação partilhou a harmonia de uma ceia natalícia onde reinou a fé, a amizade, o amor, mas principalmente a lealdade. Porque o que une as relações humanas é a lealdade. Uma relação profissional desleal acaba. Uma amizade que engana termina. Um amor que mente magoa. A lealdade é o alicerce de qualquer tipo de relação. Não existe confiança onde a lealdade é inexistente, e não existe relação sem confiança. Aquela humilde família vítima de acusações e maledicências era abençoada com este nobre sentimento e protegiam-se uns aos outros sem oportunismos escondidos. Aqueles pais acarinhavam as suas três meninas sem esperarem falsos orgulhos que pudessem abanar e desfilar perante olhares alheios. Eles amavam desmedidamente sem cobranças ou desilusões. Simplesmente amavam… Amam…
    A mesa sustentava uma ceia rara naquela casa. As papas de aveia deram lugar a um guisado de carne acompanhado com batata assada. O arroz doce ainda fumegava e derretia-se dentro das bocas deixando o rasto do sabor da canela. As filhós davam o retoque final naquele banquete. Ao contrário do tradicional nenhum deles foi à missa do galo. O assunto nem foi comentado naquela família. Todos perceberam que cometeriam aquele pecado em conjunto para protegerem Ana de qualquer tipo de humilhação. Até Luzia parecia aceitar esta falha com uma certa normalidade. Para compensarem rezaram em conjunto à imagem do Menino Jesus que tinham num Altar que fazia lembrar uma pirâmide onde se destacava a alvura das toalhas de linho que cobriam cada degrau e os napperons delineados de hábeis rendas. A imagem do Menino Jesus marcava a passagem de duas gerações, mas continuava a aquecer os corações daqueles que a adoravam. O corpo deitado com os bracinhos inclinados para um céu distante, os pés cruzados e uns olhos brilhantes que pareciam compreender a partilhar a mesma esperança daquela família. O altar enchia-se de laranjas e tangerinas que significavam as oferendas que Lhe faziam e neste cenário não podia falta a quadra que partilhava do mesmo aroma e numa só voz cantarolavam.
- Ó meu Menino Jesus,
   A sua capela cheira
   Cheira a cravos, cheira a rosas
   Cheira a flor de laranjeira!

- Que Deus abençoe a minha irmã Ana e o bebé! – Maria foi a primeira a verbalizar em voz alta o seu pedido. Todos interiorizaram aquelas palavras inocentes e rezaram para que essa prece se elevasse e se tornasse prioritária junto àquele Deus misericordioso.
- Eu peço a Deus que proteja e ampare a minha família como eles estão a fazer comigo neste momento em que tanto preciso. Peço a Deus que lhes estenda a mão e os eleve numa nobreza de sentimentos que só alguns são capazes. – Ana fechou os olhos e sentiu cada palavra que a sua garganta expulsava. – Rezo para que a minha irmã Glória usufrua da felicidade de um longo casamento com este marido bom que lhe colocaste no seu caminho. Rezo para que continues a iluminar a alma brilhante da minha irmã Maria para que ela siga a sua vocação e para que continue justa e bondosa nos seus actos. Rezo para que os meus pais não sofram descriminações por minha causa que ultrapassem as suas forças.
    A noite aquecida pelo forno a lenha que mantiveram aceso na cozinha manteve-se num ritmo caloroso e simpático sem ligar a tristezas ou sofrimentos antecipados. Estavam todos a despedirem-se de Ana que partiria no primeiro dia de Janeiro para a ilha da Terceira rumo a um futuro incerto. Ela inscrevera-se no exame de aferição para a escola do magistério, mas foi-lhe recusado fazer o exame da sua própria ilha devido à sua condição. Esta palavra ainda ensombrava as ideias de Ana… Condição… Era esta a palavra usada para se referirem à sua gravidez. Não era uma condição digna de exemplo a futuros alunos. Uma professora devia ser irrepreensível em todas as suas acções de modo a que os seus alunos a tomem por exemplo. Esta era a afirmação mais ridícula que já tinha ouvido. As crianças deviam olhar para o seu exemplo de frente e retirarem as suas próprias conclusões, só assim teriam capacidade de avaliar os seus próprios actos e consequências de forma consciente. Deviam saber avaliar os possíveis resultados das suas escolhas. Deviam aprender a enfrentar as consequências e deviam inspirar-se nela para verem que não são obrigadas a caírem num buraco negro que lhes sugará a alma e as forças sempre que agirem em desconformidade com as regras. E Ana não pode ter agido de forma tão errada. Ela não se arrepende de ter amado para além do entendimento superficial do amor. De se ter entregado sem perspectivas ou cobranças. Sem esperar ser recompensada por isso, porque amar desmesuradamente é entregar sem esperar nada em troca e ela sabia que era capaz de tal acto. E todos queriam fazê-la acreditar que estava a ser castigada por isso. Como poderia acreditar em semelhante coisa, se foi neste exacto momento que mais se sentiu amada e amparada pela sua família. Foi nesta circunstância que ela percebeu que o amor que os seus lhe dispensavam era incomensurável. E foi nesta loucura que Deus a abençoou com uma criança que ela tanto desejava. A vida é feita de contrastes e balanços. Para possuirmos o benefício de uma felicidade plena, temos de ter a capacidade de a contrabalançar com algum sofrimento, mas só depende de cada um dar mais importância ao momento de felicidade ou ao sofrimento que a vida teve que impor para manter a ordem das coisas.
    Os dias finais daquele ano passaram-se sem que Ana saísse de casa ou recebessem qualquer visita. Fora daquelas paredes só os pais e irmãs eram alvo de olhares de soslaio e de comentários murmurados. Ana sabia que estava a ser poupada a semelhantes constrangimentos, mas mesmo fechada ela sabia… Ela sentia as malícias. Ouviu os pais comentarem que o marido de Glória se metera numa briga na Voz do Campo para a defender de comentários perversos. Sabia que a tia Espirito Santo inventara uma desculpa para dissimular o parentesco que a unia à família. Os vizinhos partiam para o mato sem esperarem pelo pai como era costume fazerem. Mas o que mais a magoava era o silêncio de Francisco… Nunca mais ouve uma palavra um bilhete um sinal. Ele pô-la fora da sua vida e fechou-lhe a porta na cara, sem uma justificação ou uma esperança. Ana ainda sentia uma pontada de desilusão e mágoa da rejeição, mas no seu íntimo sabia que a longo prazo ela seria a beneficiada. Ela usufruiria sozinha do fruto daquela relação e Francisco ficaria privado do seu próprio filho, e só Deus sabia o peso que a sua consciência carregaria quando o desejo de disfrutar daquilo que ela desfrutará um dia, lhe cair sobre a memória e atemorizar-lhe o arrependimento.
    A última noite naquela casa suportava a saudade antecipada e o tempo parecia curto para absorver todas as palavras, olhares, e gestos que lhes seriam negados nos próximos meses. Glória passaria aquela noite na casa dos Ferreira com o marido de forma que não conseguia afastar a sua mão da irmã. Roçava os seus dedos pálidos nos braços de Ana e acariciava-lhe a barriga constantemente. Maria refugiava-se no ângulo do cotovelo de Ana e enterrava o seu nariz entre o peito e a barriga da irmã tentando reter o cheiro que tanta falta lhe faria. Luzia confirmava e reconfirmava as malas da filha garantindo que não lhe faltava nada, mas os olhos enublados não lhe facilitavam o trabalho. José tentava inalar um pouco de ar forçando aquela garganta que teimava em fechar-se. Ele admirava a filha, a força interior de que ela dispunha naturalmente, a justiça nos seus actos e o discernimento das suas decisões. Ela enfrentaria um futuro incerto sem garantias de sucesso, sem facilidades ou facilitismos, apenas com um punhado de desejos e um lar para onde poderá sempre voltar. José já sentia orgulho naquela menina mulher que de queixo erguido iria enfrentar sozinha novas oportunidades e novas derrotas, mas no seu íntimo José sabia que se havia alguém neste mundo capaz de conseguir algo positivo de uma situação desastrosa, esse alguém seria a sua filha Ana. Deus só coloca problemas na medida da capacidade de quem os deve resolver. Cabe a cada um saber lidar com essa dificuldade e conseguir uma nova situação mais confortável e fortalecida.
- Vinha um coelhinho
   Da roça a passear
   Encontrou uma coelhinha
   Com quem logo quis casar
   Minha querida minha doce
   Minha linda coelhinha
   Vim falar-te de amor
    Com intenção de seres minha…
    Maria já dormia sob o efeito da voz de Ana que lhe contava pela última vez ladainhas sussurradas para embalar a irmã. Ana deixou que os seus olhos se fechassem e sonhassem com um futuro promissor contrário a todas as previsões que mentes limitadas pudessem intuir.
    Quando o dia amanheceu, o frio foi o primeiro sinal físico que Ana sentiu e só depois o beijo carinhoso de Maria que a mirava com uns olhos inchados e vermelhos denunciadores de algum tempo de sofrimento. O momento da despedida começara e Ana sentiu um aperto no ventre. A criança que transportava mexia-se fazendo com que a sua barriga ondulasse provocando uma gargalhada nervosa nas duas irmãs. Aquela criança era uma dádiva naquela família e ninguém se atrevia sequer a sentir o contrário.
    As primeiras rotinas fizeram-se num silêncio penoso que carregava preocupações e expectativas, desejos e receios. Ana despediu-se de cada divisão da casa e com uns olhos secos de sofrimento que contrariavam o coração. Saiu para o pátio de terra batida absorvendo pela última vez o terreno dianteiro onde o milho verde lhe acenava. Glória chegou mesmo na altura em que fechavam o portão exterior.
    Foram todos na velha camioneta. Ana sentia-se grata pela família que Deus lhe tinha dado. Contaram-se história, recordaram-se momentos que não precisavam de ser verbalizados para evitar o seu esquecimento. Discutiram vivamente o futuro de Maria, concordando em uníssono que não passava pelo trabalho duro da terra. Maria descrevia-se como uma futura mulher independente que abusaria do batom, provocando uma gargalhada geral, mal entendida pelos restantes passageiros que miravam com um desdém maldoso aquela família pouco resignada á vergonha que os assombrava.
    O cais borbulhava uma vida colorida em passagens apressadas de encomendas de última hora, os últimos conselhos e os últimos abraços sentidos. O barco de Ana já se encontrava atracado, mas o embarque ainda tardava. Luzia afagava-lhe o rosto como se o quisesse memorizar para além do olhar. José sentia uma dormência nos olhos e um aperto na garganta por saber que estava abrir mão da sua menina. Maria e Glória apoderaram-se de cada braço da irmã e falavam as duas ao mesmo tempo, arrancando promessas de cartas frequentes e uma visita no Verão. João mantinha-se ao lado da esposa apoiando a cunhada prenha e solteira sem vergonhas e com um orgulho próprio por fazer parte daquele pequeno mundo familiar. Ana recebia aquelas atenções sem embaraços aproveitando todas elas como forma de compensar os próximos meses. Os seus olhos passeavam de cara em cara recolhendo o máximo de memórias para seu consolo futuro, quando pousaram ao acaso na figura de Francisco. Ele continuava alto e com uma aspecto poderoso envergando um fato impecavelmente vincado, coberto por um sobretudo muito sofisticado que lhe caia de uma forma agradavelmente desleixada. Ana sentiu que o seu coração parava. O seu ventre deu um salto ao reconhecer o progenitor. Ele estava acompanhado por uma mulher alta e esguia de cabelo preto lustroso curto que lhe emoldurava uma cara redonda e atrevida. Trocavam pequenas carícias dando-lhes um toque casual. Aquela mulher transpirava um ar citadino e sofisticado com o qual Ana não podia competir. Envergava uma camisola justa que lhe evidenciava uns seios redondos e promissores que se esvaiam numa cintura fina. A saia favorecia-lhe a curva das ancas e tronava-a mais esguia com umas curvas perfeitas. A maquiagem tornava-lhe os seus traços doces e perfeitos como se fosse uma boneca de porcelana. Agora percebia de uma forma cruel que não tinha significado nada para Francisco. Ela era apenas uma conquista interessante, que lhe causou a adrenalina da caça.
- Estás bem Ana? – Glória percebeu o motivo daquele olhar longínquo.
- Estou! Não te preocupes!
- Aquele filho-da-mão! Eu havia de lá ir e obrigá-lo a ter alguma dignidade nas ventas. – José sentia a raiva fervilhar-lhe nas veias. A filha cometeu um erro e está a pagar um preço cruel. Aquele canalha cometeu o mesmo erro e anda a namoriscar com uma bisca qualquer.
- Tem calma pai! Este é um momento nosso. Não vamos estragar a nossa despedida! – Ana tentava transmitir uma tranquilidade que não sentia. Neste exacto momento sentia-se principalmente humilhada. Mas queria aproveitar os últimos minutos com aqueles que verdadeiramente lhe interessam.
    Maria lia indignação no olhar de todos quando miravam de soslaio Francisco. Sabia que todos tinham vontade de o magoar de alguma forma, mas eram adultos e tinham de ser ponderados. Mas ela era apenas uma criancinha. E as criancinhas podem fazer coisas que os adultos não podem… Afinal são apenas crianças. E com esta razão do seu lado, Maria dirigiu-se ao jovem médico sem que a família percebesse a sua falta e puxou-lhe suavemente a manga do sobretudo. Francisco desviou o olhar por cima do seu ombro e a primeira sensação que teve foi a imagem de Ana nos seus olhos. O aperto que sentiu no peito fê-lo apertar o colarinho da camisa. E antes que a sua mente pudesse desenvolver mais alguma ideia, Francisco deparou-se com a segunda sensação. Uma dor aguda na canela resultante de um pontapé demasiado certeiro para uma miúda de onze anos que neste momento corria a sorrir de prazer para junto da irmã. Maria sentia-se vingada.
    Francisco não conseguia desviar os olhos de Ana. E sentiu um pouco de desilusão ao ver que ela não estava com um ar de sofrimento. Este era um pensamento egoísta, mas magoava-o muito pensar que ela já não sofria por ele. A barriga dela era exibida descaradamente e acertou-lhe como uma flecha. Ela era forte e determinada, o tipo de mulher que não se rendia facilmente, com um riso fácil que lhe atingia a alma. E ele sentia saudades dela. Sentia tantas saudades dela. Porque é que as coisas não eram simples? Porque é que as pessoas tinham de julgar tão facilmente? Ele sabia que era a sua reputação que estava em jogo e na altura não podia arriscar. Mas talvez as pessoas pudessem ver as coisas de forma diferente. Se ele fizesse parecer um acto heróico da sua parte, munido por um grande amor, as pessoas talvez se rendessem a uma linda história de amor e ainda sairia com a sua imagem reforçada… Para além de poder ficar com a sua Ana. Num impulso provocado por esta corrente de esperanças, Francisco dirigiu-se ao seu futuro num passo determinado.
- Ana! – Francisco sentiu que a emoção de a ter ali tão perto de si lhe transtornava as ideias. O seu olhar continuava quente, e ela mordiscava o lábio inferior de uma forma ingenuamente sedutora. – Posso falar contigo?
- Eu tenho um barco para apanhar e estou a despedir-me da minha família! – Ana foi mais dura do que imaginou que conseguiria e sentiu um formigueiro de trinfo invadir-lhe as entranhas quando viu um brilho de espanto e receio traspassar o olhar de Francisco.
- Como assim? Vais ao Faial? – Francisco começou a sentir o seu coração acelerar o ritmo cardíaco de uma forma louca e as suas mãos ficaram dormentes.
- Não! Vou mudar-me para a Terceira! – Ana sorriu-lhe condescendentemente. Francisco agarrou-lhe os braços com uma força excessiva e deixou que o medo se reflectisse sem vergonha nos seus olhos baços e lacrimejantes.
- Não podes! Não quero que vás!
- Estás a ser ridículo Francisco! – Ana começava a não sentir-se tão segura, mas tinha de ser forte. Ela não quer um futuro com uma pessoa fraca que vive em função dos pensamentos e julgamentos alheios. Ela quer alguém que olhe para ela e que esqueça o resto do mundo. Ela quer alguém capaz de enfrentar a humanidade para defendê-la. Ela quer alguém que viva para ela em primeiro lugar e que disfrute do resto do mundo ao seu lado. Se Francisco fosse capaz disso… então ela não hesitaria.
- Por favor não vás Ana! Eu imploro-te! – Francisco deixou que o desespero rolasse pelas suas faces e a voz apertada se soltasse. – Fica comigo Ana. Vamos enfrentar isto juntos! Eu já pensei em tudo! Eu achava que as pessoas iam julgar-me apontar-me o dedo, mas podemos transformar isto numa história de amor. Vamos derreter os corações destas gentes com a nossa história e depois todos vão aceitar a nossa relação… Para mim é mais do que claro que tu me mereces… Que estás à altura de alguém como eu, independentemente do que os outros dizem…
    Aquelas palavras magoaram mais Ana do que todas as atitudes ou falta delas até àquele momento. Ana encheu o peito e mostrou uma dignidade que ficou gravada na memória, no coração, na alma de Francisco…
- Largue-me doutor Francisco! – Francisco deixou cair as mãos alheio às nódoas negras que deixara impressas nos braços de Ana. – Tu estás equivocado nesse teu raciocínio. Não sou eu que não estou à tua altura. És tu que não me mereces. – Francisco levou algum tempo a processar aquelas palavras. Ana pegou-lhe na mão a pousou-a sobre a sua barriga. A resposta àquele toque foi um pequeno pontapé, como se tivesse reconhecido o progenitor.
- Apresento-te o meu filho! Aquele que tu ajudaste a gerar! – Ana afastou novamente a mão de Francisco E abraçou-o sem remorsos. Afinal ele não era o culpado. Ele amava-a e ela sabia que sim, mas se uma forma que não servia na vida dela. Francisco apertou Ana nos braços sem perceber bem o que se estava a passar, até ao momento em que Ana lhe sussurrou ao ouvido.
- Adeus Francisco! Eu amo-te, mas tu és demasiado fraco para mim…
    Francisco sentiu o seu mundo ruir e a dor do entendimento instalou-se desconfortavelmente no seu peito. Os seus olhos não se desviaram daquela criatura que tinha movido os alicerces da sua vida enquanto ela se despedia de uma família humilde que a apoiava com uma capacidade superior que ele não soubera ter. Ana subiu para o barco e debruçou-se acenando pela última vez àqueles que ela amava. Francisco não desviou o olhar na esperança de merecer um último aceno que não lhe foi dedicado.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

CAPÍTULO XII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XII



    O dia amanheceu na frieza que acompanhava a despedida de José e Luzia quando saíram de casa para ir à vila. A caminhada adivinhava-se longa e o silêncio que se instalou entre o casal tornou o caminho mais difícil. A preocupação com o futuro da filha pesava-lhes mais do que qualquer humilhação que aquela situação poderia significar. Os olhos miraram sem apreciar da forma merecida as pontas negras da vila que se alongavam em braços de magma adormecido por entre o mar preguiçoso que se baloiçava sem sentido acariciando desajeitadamente aquele manto negro, e penetrava descaradamente as reentrâncias que se perdiam em grutas fundas de mistérios e águas.
    A porta do médico da vila apresentou-se à frente dos Ferreira num pronúncio de dificuldade, como se houvesse uma chuva permanente que lhes molhava a alma e lavava a esperança.
- Bom dia Luzia! Como está José? – Clemência recebeu o casal inesperado com uma cordialidade educada apesar de os seus olhos sinceros terem transmitido a surpresa de uma forma bastante clara.
- Desculpe incomodá-la, mas temos uma conversa muito importante para ter convosco. – José cumprimentou a dona da casa com um embaraço que denunciava uma conversa difícil. – O Dr. Bruno está?
- Sim! Está na sala! Entrem! Estejam à vontade. – Clemência conduziu as visitas até à sala onde foram calorosamente recebidos por Bruno que sentado no sofá folheava pela enésima vez o “Monte dos Vendavais”.
    Depois de estarem todos confortavelmente sentados nas poltronas forradas de veludo e com um chá fumegante servido num conjunto de porcelana delicado, José iniciou a conversa sem delongas.
- O Francisco não está em casa? – José sentia-se ansioso e só queria resolver aquele assunto o mais rápido possível.
- O Francisco foi passear com uma colega de faculdade que veio passar uns dias connosco. Eles eram muito amigos e a rapariga veio matar saudades do meu rapaz. – O Dr. Bruno falava com a despreocupação dos inocentes, sem perceber o efeito que as suas palavras provocavam na disposição dos convidados.
- Devíamos ter esta conversa na presença do Francisco, mas visto que ele está muito ocupado vou falar convosco. – José fixou os olhos do Dr. Bruno e foi eficaz na transmissão das suas ideias. – A minha Ana está grávida do vosso rapaz.
    O silêncio que se seguiu foi o necessário para assimilar a informação. Clemência foi a primeira a falar. Doía-lhe o coração pela rapariga, mas ela tinha que proteger o seu próprio filho. Já dizia o ditado “filho da minha filha meu neto é, o filho do meu filho é ou não é?”.
- Tenho de falar com o meu filho! Só ele pode confirmar essa vossa afirmação. Se o que me dizem é verdade, então voltaremos a conversar para agirmos da melhor forma possível.
- Mas… - Luzia queria contrapor. Dizer que a sua filha não mentia. Toda a gente sabia que eles tinham tido um romance… Ela foi acusada disso publicamente… Mas quando Luzia se preparava para defender a filha, José mandou-a calar, pegou-lhe no braço e levantou-se em jeito de despedida. Com o queixo erguido José dignificou-se:
- Não precisamos de enganar ninguém para assumirmos os nossos problemas familiares. Sempre fomos uma família humilde, mas justa nos sentimentos. Dentro da minha casa ninguém entra por obrigação. Ninguém se deita na mesma cama por obrigação. Ninguém ama por obrigação… - Estas palavras atingiram a carência afectiva de Clemência de uma forma cruel e a consciência do Dr. Bruno que percebeu o recado. Ele olhava para Clemência e continuava a sentir o mesmo repúdio da obrigação que sentiu no primeiro dia em que se casou. E recebeu de Clemência o mesmo olhar esperançoso e enganado de que um dia a faísca do amor lhe saltaria do coração e seriam eternamente felizes.
    O regresso a casa foi feito sem a altivez que caracterizou José naquela conversa. Os ombros descaíram e os olhos focaram as pedras do caminho sem se erguerem uma única vez. As lágrimas finalmente soltaram-se face ao entendimento cruel de que a filha seria mãe sem ter um marido que a apoiasse. A dor de suportar a dor de um filho tem proporções inesgotáveis no peito de um pai. Ele encontraria uma solução para a filha e protegê-la-ia custasse o que custasse, porque a sua menina não merecia uma condenação prematura e solitária por um acto tolo praticado a dois.
    Os dias passaram-se sem que Francisco desse noticias. Os olhos de Ana despregaram-se finalmente da porta de entrada e a esperança libertou-se das suas ânsias. A realidade mostrou-se num misto de culpa e medo, e a penitência era aguardada ao mesmo ritmo da barriga. Ana não queria a clausura que o destino obrigava. Ela queria deixar de lado as tristezas e os pesares e queria sentir em sentimentos nobres e humanos a felicidade da maternidade. Ela era responsável por uma nova vida e queria gritar este feito em alegrias coloridas. Não é justo calar os movimentos carinhosos que ela sente desenvolverem-se dentro de si num luto permanente, como se a sua criança não fosse digna de todas as maravilhas que Deus colocou à disposição de todos. O sol é uma maravilha que se exibe ao mundo sem restrições. O arco-íris surge tranquilamente para que qualquer par de olhos se posse deslumbrar. A felicidade dela não vai ser engolida por um punhado de gente. Ela recusa fechar-se às maravilhas do mundo dentro de amarguras que ela não sente. O seu intimo quer absorver uma vida de possibilidades, um futuro de decisões, um rumo de hipóteses, porque a magia de viver é fazê-lo tendo sempre o privilégio da escolha e a surpresa do resultado.
    A ceia era engolida sem ser saboreada e Maria tagarelava coisas sem sentido numa tentativa frustrada de ter as antigas conversas em que todos falavam ao mesmo tempo e há muito caladas em suspiros e resignações. Ana interrompeu-a sem aviso provocando o levantar de olhos tão desejado por Maria.
- Eu não vou ficar nesta ilha! – Ana foi frontal na sua comunicação, não deixando que dúvidas sobre a sua decisão pudessem prevalecer sobre as suas certezas. – Recuso-me a ser enterrada viva nas infelicidades que esta gente me reserva.
- E vais para onde? Não sejas tonta! – José não queria mais palermices naquela casa.
- Vou para a Terceira! Inscrevi-me para fazer o exame de admissão para a escola do magistério primário. Vou fazer o exame e vou estudar. Vou ser professora primária e sustentar-me a mim e ao meu filho sem ter que me vergar a vergonhas impostas por quem não tem qualquer poder de decisão na minha vida!
- Não sejas ingrata com esta terra! Foi aqui que te criaste e agora queres recusar as tuas origens? – Luzia não suportava a ideia da filha sozinha e desamparada noutra terra que nem conhecem.
- Eu acho que ela tem toda a razão! – Maria viu uma réstia de esperança que começava a dominar-lhe a mente. A sua alma começava a abrir-se a novas possibilidades como se o escuro já não fosse tão escuro, as perspectivas palpitavam em esperanças e o seu coração voltou a rezar e a ansiar uma felicidade que parecia perdida.
- E como é que pretendes fazer isso, Ana? – José era mais cauteloso naquele assunto. Gostava muito de poder partilhar da esperança das filhas, mas a verdade é que ele tinha acabado de casar uma filha e de lhe oferecer um terreno. Neste momento não tinha recursos para pagar os estudos da filha.
- Vou para a Terceira fazer o exame que é daqui a 15 dias e depois trabalho lá como mulher-a-dias ou mesmo nos campos para pagar o curso. Não tenho medo do trabalho… E vou lutar com todas as minhas forças e vou ser uma vencedora, porque eu não nasci para me vergar com esta facilidade que me querem impor… - José sentiu como se lhe tivessem dado um murro no estômago. Ele queria muito ajudar, mas não podia ir roubar para proporcionar à filha um caminho que nem sabia se resultaria. Para além de que lhe era insuportável imaginar a sua filha sozinha numa terra desconhecida a dar à luz um filho ilegítimo.
- Mesmo que te queira ajudar, a verdade é que estamos sem dinheiro para essas aventuras. – José abordou o assunto sem rodeios da forma que o caracterizava, directa e eficaz.
    Ana calou-se por uns momentos. Teria de pensar melhor. Não poderia chegar à terceira sem ter algum dinheiro para os primeiros meses, pois teria de pagar a renda de um quarto e viver dignamente até começar a receber algum dinheiro do seu trabalho. Também tinha consciência de que no seu estado não seria fácil arranjar quem lhe desse trabalho… Mas não desistiria da ideia. O preço a pagar pela desistência era demasiado alto.
- Toma Ana! Acho que tens aqui o suficiente para poderes começar uma nova vida! – Maria surgiu na cozinha com um embrulho de pano verde atado nas pontas por um cordão. Ninguém reparara sequer que ela se tinha ausentado da mesa e os olhares curiosos depositavam-se no conteúdo que aquele embrulho traria.
- O que é isto, Maria? – Ana abriu o embrulho sem pressas e sem expectativas, mas quando visualizou o conteúdo os seus olhos arregalaram-se num misto de surpresa e gratidão… As lágrimas embrulhavam-se com os soluços num misto de reconhecimento por um gesto tão nobre de uma menina de onze anos capaz de um altruísmo desconhecido pelas gentes daquela terra. – Mas não posso aceitar. – Ana sabia que aquele era o dinheiro que ela poupava religiosamente há mais de uma ano proveniente dos seus trabalhos como modista.
- Onde é que foste arranjar este dinheiro? – Luzia levantou-se a arrancou o embrulho das mão de Ana. – Como é que tinhas este dinheiro todo? Luzia sentia uma fusão de desconfiança e medo da resposta que ouviria.
- É do meu trabalho! – José não pode deixar de sorrir, reconhecendo naquela pequena herdeira a sua própria altivez. O nariz empinado realçado pelas sardas que brilhavam um orgulho descarado e a linha fina dos seus finos lábios não se destorcia em intimidações.
- E que trabalho vem a ser esse? – Pergunta José mais divertido com a situação do que chateado. Ele confia cegamente nas filhas e conhece o carácter que ele ajudou a criar em cada uma das três. Mesmo na sua Ana ele não é capaz de a julgar, porque não é capaz de diminuir todo o ser de uma pessoa a um único acto.
- Eu faço chapéus… e tenho muitas clientes e senhoras de bom gosto que me encomendam. E eu faço-os… E elas pagam-me.
    Luzia deixa-se cair no banco assimilando aquela novidade. O estudo exagerado a que a filha se submetia fechada no quarto começava a fazer sentido. Qual estudo qual carapuça!
    Maria explicou a sua repulsa à vida do campo e mostrou de forma convincente que tinha arranjado uma alternativa rentável. Pediu e choramingou uma oportunidade que já estava dada desde o momento que ela mostrou o seu trabalho brilhante com a tiara de flores que segurou o véu de Glória. Os pais reconheceram-lhe todo o mérito e o abraço que partilharam com Maria fez desabrochar toda a união e apoio que se vivia dentro daquelas humildes paredes.

domingo, 27 de novembro de 2011

CAPÍTULO XI - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XI




     As paredes de basalto transpiravam o negrume do silêncio penoso que pairava sobre a casa dos Ferreira. As vivências iam e vinham sem serem percebidas ou sequer apreciadas. O céu acompanhava o luto que se sentia forrando-se de nuvens pesadas e prometedoras de dilúvios. Maria sentia uma inspiração doce nesta penumbra e trabalhava mais do que o segredo permitia. A sua vocação ultrapassara o deslumbre dos chapéus a partir do momento em que uma senhora muito fina lhe apareceu à porta da escola e com um sorriso manchado pelo tabaco pediu-lhe que colocasse uns apliques nuns sapatos. Maria achou aquele pedido ridículo, mas ao observar aquela mulher distinta, alta com o cabelo curto e que vestia calças como se fosse um homem, Maria percebeu que não se tratava de uma conterrânea das ilhas. A conversa que tiveram de seguida confirmou-lhe a teoria.
- Minha querida! Vi alguns dos teus chapéus e tens um talento divino na pontinha desses teus dedos…
- Obrigada! – Maria não conseguia desviar o olhar do cabelo louro quase branco daquela mulher.
- Pensei que me pudesses fazer o mesmo a uns sapatos que trago aqui. – A mulher tinha uma pronúncia estranha, como se enrolasse a língua. – É tão difícil encontrar coisas bonitas nesta ilha. Quando vi o chapéu que tu fizeste para a minha cunhada, abriu-se uma fresta de luz nesta ilha insipida.
- Não estou a perceber… - Maria sentia-se baralhada e ao mesmo tempo deslumbrada. Gostava sinceramente daquelas calças verdes que se alargavam nas ancas acentuando as formas de uma forma descarada.
- Eu vivo no Canadá há mais de dez anos, querida! Vim passar dois meses aqui porque a minha mãe está muito doente e eu queria vê-la antes de ela partir. – A mulher encostou-se ao muro e tirou um cigarro exageradamente comprido. Acendeu-o com uma naturalidade imprópria numa mulher e deliciou-se com uma passa lenta que resultou num vapor soprado pelos seus lábios escarlate. – Já me tinha esquecido de como esta terra adormeceu. O resto do mundo palpita rock´n roll, e brilha com a electricidade. A televisão é uma realidade irrefutável em cada lar… E o que é que acontece aqui? Esta ilha morreu num tempo atrasado e enterrou com ela as suas gentes sofridas…
    Maria não percebeu nada do que aquela senhora dizia, mas sentiu quase fisicamente que o seu lugar no mundo não era ali. A mulher entregou-lhe uma revista e os olhos de Maria devoraram uma moda linda, em que a silhueta da mulher era valorizada por corpetes justos e metros de tecido nas saias que caiam abundantes até ao tornozelo. As cores misturavam-se harmoniosamente e a maquiagem tornava as expressões femininas angelicais. Os acessórios tinham tanta importância como a própria roupa e abusavam no glamour. Era aquilo que Maria queria fazer… Aceitou com prazer transformar uns sapatos simples pretos em algo merecedor de ser apreciado…
    Maria sentia o coração palpitar-lhe de ansiedade, pois já terminara a escola. O exame da quarta classe já estava feito há meses, e ela sabia que os pais estavam a ser condescendentes, mas a verdade irrefutável é que a sua vida de campo começaria em breve. Ela conseguia sentir isso em todos os poros da sua alma e refutava este destino com todas as suas forças. Estava na hora de ela tomar uma decisão demasiado importante para uma menina de onze anos. E ela precisava de apoio… Mas este passo teria de esperar um pouco mais. A preocupação daquela casa centrava-se agora em Ana. O seu coração sangrava sempre que olhava para a irmã e lhe lia tristeza no olhar. Não era uma tristeza passageira, mas uma tristeza que estava gravada na sua alma… O funeral de Fátima já havia sido há mais de um mês e Ana nunca mais proferiu uma palavra que não fosse monossilábica.
    Maria entrou no quarto que ambas partilhavam e encontrou a irmã deitada sobre a cama comum encolhida e abraçada à barriga molhando a colcha de retalhos com lágrimas gordas e silenciosas. Maria sentiu um medo que lhe subiu pela espinha e lhe arrepiou a nuca. Algo não estava bem e ela não sabia o que fazer… Sentia que Ana precisava de ajuda urgentemente. Os seus gestos hábeis e o seu raciocínio fluido gelaram pela primeira vez… Maria não sabia como lidar com o desconhecido. Alguma coisa de negativa se estava a passar, mas sem conseguir detectar o problema, Maria não sabia como resolvê-lo e saiu a correr sem pensar. Correu para um colo que sempre a acolheu… Correu para casa da irmã mais velha e só parou quando aquele abraço tão conhecido a recebeu.
- Maria! O que se passa? Em que embrulhadas te meteste desta vez? – Glória afagava-lhe as costas, acalmando-lhe as tremuras. Quando a rapariga parou de tremer começou a gaguejar.
- Oh Glória! Eu nem sei qual é o problema… Mas a Ana está com um problema grave… Ela não me disse nada… Mas eu sei… Eu sei Glória… Não sei como sei, mas sei… Percebes o que te digo?
    Glória beijou a testa da irmã mais nova e resolveu ir averiguar esta preocupação.
    Quando abriram a porta do quarto, ambas as raparigas apressaram-se nos actos. Ana vomitava freneticamente tentando acertar dentro de um bacio, mas sem grande sucesso. Maria apressou-se a ir buscar toalhas, enquanto Glória lhe segurava a cabeça trémula. Quando Ana finalmente acabou, começou a chorar desalmadamente para grande incómodo de Glória qua a embalava nos seus braços.
- O que é que se passa contigo Ana? Não pode ser só tristeza pela morte de Fátima… Também não acredito que seja só a ausência de Francisco que te provoque isso… O que se passa contigo? – Ana sentiu uma pontada no ventre quando a irmã mencionou a nome de Francisco. Desde o funeral que não sabe nada de Francisco. O sentimento de abandono domina-lhe a mente e o peito. É assim que Ana se sente abandonada por quem devia ampará-la nas situações difíceis. A falta de apoio que sentiu naquela igreja gelou-lhe a alegria e com o baixar de olhos e afastamento de Francisco, Ana sentiu a dor da desilusão.
- Ai Glória! – Ana agarrou-se aquelas irmãs como se fossem as suas bóias num naufrágio. – O que vai ser de mim?
- O mundo não acabou só porque tiveste um desgosto amoroso! – Maria queria lançar alguma racionalidade a toda aquela emoção numa tentativa frustrada de se sentir em terreno mais confortável.
- Eu estou grávida!
    As irmãs sentiram a chapada da compreensão com uma violência mal disfarçada. A mente bloqueia os raciocínios necessários até aos mais fluentes de ideias e o coração cala as palavras de consolo aos mais caridosos, quando uma compreensão tão dolorosa atravessa o espírito. O que seria de uma rapariga grávida e mãe solteira naquela ilha. Nunca mais receberia um cumprimento de um vizinho. Nunca mais entraria numa igreja. Nunca mais sobreviveria sem a caridade dos familiares mais próximos. Nunca mais poderia levantar um olhar de orgulho. Nunca mais poderia elevar um ar de dignidade… E doía… Doía muito esta compreensão de um futuro infeliz numa criatura que tanto se ama… No seio de uma família unida como aquela, a infelicidade de um elemento era a condenação de todos.
- Temos de contar aos pais! – Maria sentia-se desorientada. Apetecia-lhe pegar na irmã e fugir dali. Levá-la para um sítio onde não fosse alvo de nenhum tipo de malvadez. Onde a pudesse proteger de todos os olhares de condenação, de todos os comentários murmurados, de todos os juízos de valor…
    Aquela observação de Maria pairava na mente das três irmãs. Tinham realmente de contar aos pais. Mas como? Ana lembrou-se de quando ainda era miúda e roubava laranjas na quinta dos vizinhos. Tratava-se de um fruto que os pais não tinham nas suas terras e que era muito invejado por ela e pela irmã pela sua doçura. As duas infiltravam-se nas terras alheias e colhiam as melhores laranjas, embrulhando-as no avental. Uma tarde fria, o consolo de um sol suave de Outubro deliciava-as tanto quanto a antecipação daquele fruto sumarento escorrendo-lhes pelos cantos da boca. José que já desconfiava esperava-as à saída da terra do vizinho e apanhou-as em flagrante. Roubar era um pecado enorme. Era a pior transgressão que se podia cometer numa terra em que tudo resultava de muito trabalho. E o que elas acabavam de fazer era um desrespeito pelo trabalho alheio. Perante a severidade de José, Ana sentiu-se encolher e a humilhação de ir devolver as laranjas ao vizinho confessando o roubo e pedindo perdão por tal acção atingiu-lhe o orgulho como uma flecha ferindo-lhe a dignidade de uma forma que ela julgou ser a pior de todas. Até este exacto momento. Os actos com consequências passageiras têm respostas passageiras, mas desta vez ela cometeu um acto que a acompanharia para o resto de seu ser. Tinha acabado de gravar na própria testa um rótulo que jamais a largaria. Podia esforçar-se por ser uma mulher digna. Podia trabalhar que nem uma perdida. Podia ajudar o próximo como se houvesse amanhã que seria para todo o sempre a rameira que engravidou de um qualquer. Seria sempre o mau exemplo a seguir. Serviria de lição humilhante aos mais novos. Seria sempre vista como uma má companhia. Uma acção, um acto de amor seria interpretado e julgado para o resto da sua vida, porque as mentes pequenas não têm capacidade de ver para além das grandes acções. Se durante a sua vida alguém praticar uma boa acção gigante então é de certeza um bom homem, mas se tiver o azar de num determinado momento praticar uma má acção então é má pessoa. As mentes limitadas não têm a capacidade de ler o quotidiano das pessoas, de interpretar as acções. As mentes diminutas julgam rápida e eficazmente, marcando o tipo de pessoa como se marca o gado, para todo o sempre. E viver com um juízo de valor proveniente de mentes fracas é um preço demasiado elevado e murcha as almas grandiosas cheias de potencial, cheias de sonhos e vontades. Transforma uma linha de horizonte longa, onde um céu mágico se funde com um mar terrestre, num minúsculo ponto insignificante e limita tudo o que de grandioso poderia fluir de uma alma perdida.
- A Maria tem razão! Eu vou contar aos pais! – Ana sentia no carinho das irmãs um apoio incondicional que merecia ser respeitado. – Vou só arranjar-me… E encontro-me convosco na cozinha daqui a pouco.
- Vê se colocas um ar apresentável, porque estás deplorável. – Glória tentou esboçar um sorriso de provocação que foi entendido mas não correspondido.
    Ana lavou a cara e mirou-se longamente no pequeno espelho que tinha pendurado na parede do quarto. Passou a mão suavemente pela barriga e percebeu que começava a amar o ser que se desenvolvia nas suas entranhas. Sentiu-se mais corajosa do que alguma vez se lembrava e preparou-se para dar um grande desgosto às pessoas que mais amava no mundo.
    As irmãs estavam sentadas em bancos baixos encostadas à janela, aproveitando a luz do dia para remendarem meias grossas de lã. Aqueles pares de olhos colaram-se ao rosto calmo de Ana e esperaram pelos acontecimentos com todos os músculos em alerta prontos para reagir em sua defesa.
- Pai! Mãe! – Ana tinha um ar solene, quase angelical, como se fosse proferir uma boa nova. – Eu estou grávida!
    Não houve remedeios naquela abordagem, nem nenhum discurso que suavizasse a gravidade daquela declaração. Ana não era assim. Não minimizava o que era grande e não aumentava o que era insignificante. Luzia levou as mãos à cabeça e libertou uma ladainha de murmúrios. José muito mais eficaz abordou o assunto com a seriedade exigida e uma frieza falsa, enquanto a sua alma chorava pelo destino cruel que estava reservado à sua menina.
- Quem é o pai dessa criança? – Perguntou José sabendo já a resposta.
- Francisco! – Ana mostrou-se tão seca na abordagem quanto o pai. Parecia que ambos estavam a medir forças e os olhos nunca se descruzaram.
- Pelo que tenho visto depois do funeral de Fátima, não me parece que vocês continuem tão envolvidos em sentimentalismos! – Esta apreciação foi dolorosa para os ouvidos de Ana e um tremer no seu olhar denunciou o que José pretendia. Ele queria incutir algum sofrimento na filha. Não por vingança daquilo que ela o estava a fazer sentir, mas para que ela nunca mais voltasse a expor-se daquela forma. Quando se erra deve-se sentir o erro da forma mais dolorosa possível. Só assim esse mesmo erro serve de defesa para o futuro.
- O Francisco ainda não sabe. – Ana recuperou a frieza no olhar.
    Luzia assistia àquela conversa aparentemente calma sem acreditar naquilo que via. Ela levantou-se do seu lugar assim que encontrou forças e dirigiu-se à filha com as faces rubras de indignação. Pegou-lhe nos braços e abanou-a como se ela fosse uma boneca de trapos, enquanto deixava que a sua voz libertasse toda a dor e frustração que lhe trespassava o espirito.
- Sabes o que fizeste rapariga?! Tu desgraçaste-te… Deitaste a tua vida, a tua juventude no lixo… Oh Ana o que vai ser de ti? – E assim se verbalizara o receio de todos. O que seria de Ana?
- Pára com isso mulher! – José finalmente baixou as defesas e chorou juntamente com a mulher. – Vamos amanhã logo de manhã a casa do Dr. Bruno e veremos como corre a conversa.

sábado, 12 de novembro de 2011

CAPÍTULO X - Na Base da Montanha

    CAPÍTULO X


- Ai que Deus nos acuda! Ana! Maria! – Glória corria forçando uma respiração sôfrega que resultava do cansaço imposto ao seu corpo e da aflição sofrida pela perda que sentia.
Maria foi a primeira a surgir-lhe no âmbito de visão e quando viu a irmã mais velha com uma olhar esbugalhado de dor com as faces molhadas por umas lágrimas gordas e escorregadias abriu-lhe os seus pequenos braços e amparou-lhe o sofrimento.
- Chora minha querida! Chora tudo! – Maria embalava-a com um carinho extremoso.
- Oh Maria! – Glória endireitou-se. Afinal de contas ela é que era a adulta daquela relação. E casada. Ela é que teria de assumir os pesares que aquela noticia teria. – A Fátima… Ela não… Ela foi… ela…
- Morreu! – Foi Maria a conseguir verbalizar aquele acontecimento tão temido quanto esperado. As duas irmãs abraçaram-se e choraram. Ambas sabiam que era este o desejo da amiga, mas esta certeza não diminuía a dor da perda.
Francisco entrou pela porta dos Ferreira com a notícia gravada nas olheiras escuras que se evidenciavam sem sequer lembrar as regras de boa educação que lhe pediam para bater à porta.
- Glória! Onde está a Ana? – Francisco juntou-se e partilhou daquelas lágrimas.
- Já sabes Francisco? – Glória esqueceu as cautelas que aquele jovem médico lhe costumava provocar e abraçou-o. A dor é o único sentimento que detém em si mesmo a capacidade magnífica de aproximar pessoas opostas, de baixar defesas e de criar afinidades. Mais nenhum sentimento tem esta capacidade. Dor é sinónima de sofrimento. Dor é um sentimento que carrega uma conotação negativa e que tem em si a magia de amolecer corações e transformar desprezos em solidariedade.
- Já sei Glória! E nem sei bem o que pensar… Mas no que toca a sentimentos, eu estou de rastos… A Fátima era uma pessoa especial… Era como se ela não pertencesse a este mundo. Eu sempre olhei-a como se olha para uma divindade que brilha demasiado para ser devidamente apreciada neste mundo…
- A Ana deve estar na atafona a arrumar as bilhas do leite… Vais lá tu dar-lhe a notícia?
Francisco entrou na atafona de pedra escura e encostou-se à ombreira permitindo-se uma pequena consolação olhando Ana a arrumar as bilhas brilhantes com uma saia rodada azul e uma camisa justa que lhe acentuava as formas. O cabelo apanhado por um lenço escapava-se rebeldemente dando-lhe um ar mais sedutor.
- Olá! – Ana virou-se devagar temendo que os seus olhos não correspondessem à figura que a sua mente estava neste momento a fazer corresponder à voz que acabava de ouvir.
- Francisco! – Ana correu de encontro ao seu amado e atirou-se para os seus braços. O abraço firme procurava um consolo que Ana imediatamente percebeu. – O que se passa Francisco?
- A Fátima… - As palavras mudas foram gritadas num gemido de choro, e os braços que se entrelaçavam não foram suficientes para amparar a tristeza.

A casa do presidente da câmara sofria de uma languidez crónica que se gelava num silêncio de morte. O Sr. Joaquim estava prostrado no sofá sem que qualquer acção se evidenciasse no seu corpo, sem que qualquer expressão lhe trespassa-se as feições, sem que qualquer pensamento lhe ocupasse a mente. Só uma dor aguda lhe infernizava o peito pesado e lhe inutilizava todo o resto do seu ser. A esposa trancara-se no quarto da filha velando e uivando a dor que aquele cadáver lhe provocava. A senhora Alice não permitiu que ninguém velasse o corpo. Não abria a porta a quem queria prestar uma última homenagem ou a quem simplesmente queria partilhar rezas de pesar. Alice acariciava as faces exangues da filha e chorava enquanto murmurava o quanto a amava e que tudo correria bem.
- Estás a ver o que te acontece quando não ouves o que te digo? – Alice murmurava uma meiguice e uma ternura que Fátima teria agradecido em vida.
A casa respirava uma angústia e um vazio partilhado por um casal distante em espírito que deixou passar um par de dias sem distinguir o dia da noite, chorando para além da exaustão e gritando para além do que a voz permitia. O pesar que desabara naquele tecto pesaria toneladas durante um tempo indefinido e deixaria marcas íntimas no interior daqueles seres como tatuagens decrépitas que nunca mais libertam uma pele saudável.
A Igreja encheu-se de gentes negras que envergavam a postura do momento sem fingimentos. Fátima era o tipo de pessoa que reunia o respeito de todos. Era uma daquelas pessoas raras sobre as quais as más-línguas se apaziguam e os invejosos se retraem, sem que as maledicências convenientes tenham capacidade de permanecer nas mentes maldosas. Os perversos eram incapazes de verbalizar um comentário depreciativo sobre aquela menina quase angelical. Os mentirosos retraiam falsas verdades sobre aquele ser quase místico. A sua pele pálida, o seu sorriso bondoso, o seu olhar humilde era um amaciador de almas para quem tivesse o privilégio de ser merecedor de tal. Neste mundo imenso, em que transborda acções e sentimentos, amores e rancores, pensamentos e desejos, dores e alegrias, guerras e fomes, abandonos e necessidades, Deus colocou na base daquela imensa montanha rodeada por mar um ser incrível que não soube ser devidamente apreciado em vida e cuja morte pesava sobre tantos corações.
O padre Inácio pousava os seus olhos no caixão fechado em frente ao altar e sentia cada palavra de homenagem que prestava àquela jovem. Era do conhecimento geral que Fátima tinha posto fim à sua vida de forma prematura, privando o seu corpo de comida e água. No senso comum de uma pequena comunidade, o serviço religioso não é prestado àqueles que de forma ingrata terminam com a vida que Deus tão generosamente lhes deu. Mas nenhuma voz verbalizou este facto. Nenhum coração sentiu que Fátima não era merecedora do perdão eterno. E numa última oração em voz alta, uma ilha chorou e rezou pela salvação daquela alma.
- Parem!... Parem tudo! – A senhora Alice saiu do seu lugar e com os olhos a rebolarem sobre si cambaleava até ao caixão que guardava o corpo da filha. Caiu desajeitadamente e levantou-se, enxugou as lágrimas com a manga do vestido preto e uivando o nome da filha ajoelhou-se em frente ao caixão. Acariciou-o sem pressas e repetiu vezes sem conta que não deixaria que nada de mal lhe acontecesse… Que ela não precisava de ter medo… que estaria sempre com ela… Que a protegeria sempre… A plateia calou-se num silêncio tumular e os corações encheram-se daquele pesar. Um frio trespassou cada ser que assistia àquela cena e todas as peles se arrepiaram em uníssono. Ana chorou e apertou a mão de Glória que sentia que lhe arrancavam uma parte das entranhas.
Alice abriu o caixão onde a filha serenamente repousava com as mãos cruzadas sobre o ventre enredando um terço de prata e vestida de noiva. Uma interjeição geral sobrevou sobre a plateia, que de queixo caído arregalou os olhos de admiração. Absorveram a cena e depois numa coreografia perfeita viraram todos os pares de olhos acusadores para um corpo demasiado pequeno para enfrentar aquela multidão. Ana sentiu o peso da acusação e procurou consolo no olhar de Francisco que baixou o seu olhar e se afastou. Os dedos apontaram-se na sua direcção e as acusações foram disparadas como flechas demasiado assertivas. Ana não distinguia qual a dor que a magoava mais. Se a perda de uma amiga… Se o peso de uma acusação colectiva… Ou se a desilusão que Francisco lhe provocara. A multidão exaltava-se com a falta de acção de Ana perante tamanha indignação. Esperavam que a rapariga abandonasse a Igreja… Mas ela permanecia ali com o queixo levantado.
- Parem com esta palhaçada no funeral da minha filha! – Joaquim encontrava-se no púlpito e a sua voz estrangulada de dor captou todos os olhares, aliviando Ana. – Mostrem algum respeito pela dor e pela perda que estou a sentir.
As mentes raciocinaram devagar e congelaram na esperança de absorverem mais palavras.
- Deixem essa rapariga em paz! – José deixou que as lágrimas rebolassem pela sua face e deixassem o seu paladar absorve-las. – Estou farto de julgamentos… De apuramentos de culpas… De falsas acusações… Querem um culpado? Estão sedentos de desgraça povo enfermo? É esta a droga para a vossa desolação? Então eu dou-vos um culpado para chacinarem em praça pública… Sou eu o culpado… Sou eu o culpado pela morte da minha filha… E sabem lá o que isto me pesa na consciência, no peito, na mente… Nunca mais terei uma noite descansada. Os meus lábios nunca mais deixaram florir um sorriso. O meu coração jamais conhecerá uma alegria. Querem conhecer as minhas misérias? Precisam delas para alimentar essa vossa ganância de sofrimento? Pois eu dou-vos a conhecer as minhas misérias e espero que se saciem com elas e rebentem… Eu sou o culpado por ver hoje enterrar o ser que mais amei na vida. Amar da forma correcta alguém em vida é uma tarefa árdua e de difícil entendimento. Mas na morte torna-se tão fácil saber como deveríamos ter amado. E este entendimento é tão cruel como a última refeição de um condenado à morte. Hoje vou-vos contar a história da minha filha. Ela era uma menina com uns valores e sentimentos muito nobres que não foram transmitidos por mim ou pela Alice. Era um ser capaz de deter em si mesma todas as virtudes humanas que Deus depositou na Terra. E só agora consigo dizê-lo em voz alta. Porquê? Porque tive uma vida demasiado ocupada para desfrutar do amor que sentia pela minha filha. A pressão social toma, na vida mundana das pessoas, uma importância desmedida e imerecida. E eu tinha uma boa posição social que deveria manter a todo o custo. Era aqui que residia a minha felicidade? Não… A minha felicidade residia nesta menina que vou enterrar… E não, nunca desfrutei desta felicidade incomensurável que estava à minha inteira disposição da forma como ela merecia ser disfrutada. A minha felicidade morava debaixo do mesmo tecto que eu… E eu todos os dias ia viver a minha vida longe dela… A Fátima amou inocente e apaixonadamente um rapaz. Um rapaz demasiado humilde para ser aceite no seio da minha família desunida e desmembrada… Um rapaz demasiado verdadeiro e que transmitia uma alegria á minha filha que eu nunca consegui… Um rapaz que a fez demasiado feliz, mas que mesmo assim não coube nos nossos requisitos… A hipocrisia que veste as atitudes humanas enoja-me neste exacto momento em que compreendo a importância das coisas… Neste exacto momento em que compreendo e não posso gozar dessa compreensão… O casamento com o médico da vila era demasiado conveniente para caber no coração puro da minha filha… E nós matámo-la com esta imposição despropositada… Manel… Manel é o rapaz com quem a minha filha queria casar… Manel é o rapaz que a minha filha amou… Manel foi o rapaz que fez a minha menina feliz… e eu rogo-lhe com toda a humildade que pode caber num só ser que receba a minha filha nos braços e a faça feliz… Com a minha bênção…
Até a mente mais obscura se rendeu àquela constatação de verdades. Alice sentiu cada palavra do marido como um punhal apontado na sua direcção e as sombras da sua consciência dominaram a sua mente que se perdeu nos remorsos e nunca mais encontrou a paz dos virtuosos.

domingo, 6 de novembro de 2011

CAPÍTULO IX - Na Base da Montanha

CAPÍTULO IX

O casamento de Glória diminuiu a intensidade da maledicência que ensombrava a relação de Ana com o jovem médico. A vila retraiu a língua por escassos dias face à evidência que a presença de Fátima no casamento transmitia. No entanto, nas povoações pequenas não se pode contar com um esquecimento prolongado, principalmente quando o mexerico assenta numa certa verdade que o revigoriza como um fungo num ambiente húmido.
As vinhas transbordam a abundância de cachos gordos que garantirão muitas alegrias daqueles que se regalarem com o seu vinho e angelica. Também Ana sente a antecipação de uma certa embriaguez que a acompanha sempre que tem uma oportunidade escassa de ver o seu Francisco. Ele enviou-lhe uma mensagem escrita por Glória marcando um encontro no meio das vinhas. Ana recordava com um sorriso desdenhoso os conselhos da irmã mais velha quando lhe estendeu o bilhete adivinhando o seu conteúdo.
- Tem cuidado Ana! Não te esqueças que o facto de estares apaixonada por ele e possivelmente seres retribuída nesse sentimento, não te dá o direito de ocupares um lugar oficial na vida dele… Os sentimentos não significam necessariamente compromisso.
Ana ouviu sem interiorizar a preocupação daquelas palavras sábias.
- Ai estou tão feliz! Não vejo o Francisco a sós desde as festas do Senhor Espírito Santo… Estou farta de recados dobrados em pedaços de papel amarrotado… - Ana ondulava a sua felicidade numa melodia silenciosa que a fazia rodopiar.
O coração de Ana descompassou-se quando viu Francisco aproximar-se, desviando os ramos voluntariosos das vinhas que se espreguiçavam viçosamente sobre os currais negros de basalto. Francisco atrapalhava-se com o caminho sinuoso que tinha de enfrentar para chegar ao seu destino e Ana permitia-se olhá-lo gulosamente absorvendo cada movimento do seu cabelo leve e gracioso que brincava ao sabor da aragem permitindo que os olhos risonhos ficassem completamente descobertos. O corpo alto e esbelto tornava-se cada vez mais desejado por aquela humilde rapariga que vivia aquele momento com uma intensidade exagerada que lhe turvava as ideias. Francisco aproximou-se de Ana e ofereceu-lhe o seu melhor sorriso. Encostou timidamente a palma da sua mão à dela e deixou que os seus dedos se entrelaçassem. A ansiedade que antecedera aquele encontro tronava cada gesto cerimonioso e a antecipação de uns momentos a sós exaltava-se em cavalgadas loucas dentro dos seus peitos.
- Olá doutor! – Ana cumprimentou-o ainda com os olhos fechados depois de saborear um leve encostar de lábios.
- Que saudades Ana! – Francisco apertava-a como se o aconchego daquele abraço não fosse suficiente para dissipar a ausência, daquele corpo, tão sentida nas suas entranhas. – Isto é uma loucura… Mas eu amo-te! E sinto-me desnorteado quando não te vejo… não te toco… não de sinto.
Ana baixou todas as suas guardas e receios perante aquela declaração emitida por entre beijos intensos e sussurros que lhe arrepiavam a pele. Francisco deitou o corpo rendido de Ana no meio das vinhas sem deixar que um único milímetro de espaço se intrometesse entre eles. Ana fechou os olhos e deixou-se disfrutar da sensação que a boca de Francisco desferia no seu pescoço. A sua pele eriçou-se no contacto quente do hálito do jovem médico junto ao seu ouvido. A mão de Francisco acariciava-lhe a cintura, subindo sobre o seu seio e demorando-se deliciosamente. A sua blusa foi lhe retirada com a meiguice dos anjos, sem que os olhares se largassem durante esse acto. Ana tremia quando desabotoou a camisa do seu amado e os seus olhos deliciaram-se com a visão de um tronco nu coberto com uma suave penugem clara que Ana deixou passear entre os seus dedos. Ana sentiu a inútil protecção que só a combinação lhe oferecia e no momento em que esta lhe roçou a pele desligando-se dela, Ana sentiu a sua pele em contacto com a pele de Francisco e deixou descair a cabeça para trás numa afirmação de certeza do passo que estava prestes a dar. Francisco deixou a ponta dos seus dedos percorrer o corpo perfeito de Ana demorando-se neste acto, devorando com os seus olhos inebriados a cova do pescoço daquela menina mulher. Os seus seios redondos e firmes demasiado morenos para os requisitos da moda transtornavam-lhe as ideias. A barriga dura apresentava-se com uma suavidade doce ao seu contacto e Francisco perdeu-se naquele corpo tão desejado. O seu nome foi gemido numa voz estrangulada pelo prazer quando os corpos se fundiram e Ana acreditou terem fundido as suas almas numa só.
O sol era mais radiante do que nunca e numa cumplicidade silenciosamente entendida brilhava aquecendo os corpos dos amantes que murmuravam promessas longínquas e sorriam face ao entendimento daquele acto de entrega que acabavam de praticar. O mundo não podia conspirar contra tanta paixão. O ódio não podia subverter uma humanidade a quem lhe era dada a conhecer tanta ternura. A guerra não devia existir face a este entendimento tão reconfortante. A dor não deveria ter lugar num mesmo espaço em que se permite tão elevado nível de felicidade…
- Eu amo-te! – As palavras eram proferidas pela boca de Ana com a simplicidade com que as verdades devem ser ditas e aceites por quem está aberto a receber na sua alma este sentimento.
- Tu és o meu mundo Ana! – Francisco posou um beijo leve nos cabelos espalhados da sua companheira, mas os seus olhos brilhantes de paixão davam agora lugar a um esguio de preocupação. – O que vamos fazer Ana?
- Vamos casar… Que pergunta tão tola!
- Não é assim tão simples! O que fazemos com a Fátima?
- Não a levamos ao altar! Esta é uma certeza absoluta…
Francisco riu alto face a esta constatação marota daquele ser pequeno e falsamente frágil que estava ali ao seu lado. Ele não queria estragar a magia do momento. Mas a verdade é que lhe pesava no peito e na reputação um rompimento de noivado em que as coisas não teriam um procedimento normal. Ele gostava que Fátima o libertasse dos laços que haviam assumido e que os pais de ambos dessem a sua bênção a este rompimento do compromisso. Só assim as mentes humanas daquele pequeno lugar aceitariam de braços abertos o romance do médico da vila com uma rapariga de origens humildes. E talvez até olhassem para ele com respeito por ter feito esta escolha sem preconceitos.
- Já se está a fazer tarde! – Ana levantou-se preguiçosamente. – Eu ficaria aqui para sempre…
- E comerias uvas no próximo mês e viverias da chuva nos seguintes… - A gargalhada de ambos já não foi tão sonora, face ao entendimento comum da proximidade da despedida. O beijo profundo do adeus deixou no peito de ambos o amargo sabor da saudade, antes mesmo que os olhos penassem dessa ausência.
Ana sentia o seu espírito muito acima do seu corpo. Tinha-se entregue por amor e não por casamento e achava este acto tão romântico que lhe merecia um orgulho desmedido. As consequências desse acto não lhe pesavam na consciência. Não poderia haver consequências negativas de uma entrega tão bonita, de um acto de amor tão intenso, de uma certeza tão certa. Ela amava de corpo e alma… E que sentido teria este sentimento se fosse o mundo a impor os tempos do amor carnal e do amor espiritual. O mundo não percebe nada das vidas de cada um e as vivências individuais são demasiado individuas para serem decididas por parâmetros ou regras tolas de comportamento. Como podem os outros dizerem-lhe que ela devia esperar pelo casamento para se poder entregar daquela forma? Como é capaz uma sociedade de seres iguais privarem os seus semelhantes de tais sensações, destes momentos espontâneos repletos de alegria e com uma intensidade que não pode ser adiada? Como pode o ser-humano ser tão egoísta e maldoso que faz de uma coisa maravilhosa um acto vergonhoso? Mas que mentes perversas conduzem o entendimento geral da humanidade para longe daquilo que realmente proporciona felicidade?… uma felicidade tão completa, tão preenchida, que se não for vivida no momento em que se proporciona nunca mais poderá ser vivida naquele exacto momento…
Ana chega a casa com as faces rosadas e uns olhos febris que brilham a verdade do último par de horas de uma forma quase descarada. Glória ao perceber este estado de êxtase conduz a irmã para o quarto de forma que os pais não a vejam neste estado de graça desgrenhado.
- O que é que andaste a fazer Ana? – Glória sabia a resposta à sua pergunta, pelo que não aguardou que a boca de Ana a denunciasse. – Vou preparar-te uma pana com água quente e vais tomar um banho… Depois havemos de falar, querida. Agora tira esse sorriso palerma dos lábios, ou todos vão saber o que andaste a fazer.
Ana deixou que Glória tratasse dela, uma vez que o seu corpo recusava-se sair da dormência que o amor lhe havia proporcionado. Quando se enroscou na sua cama recebeu da irmã um beijo terno de despedida e fechou os olhos embalada numa suave melodia torneada de felicidade e sonhou com o seu futuro marido alheia ao ser que já se começava a gerar dentro de si…

domingo, 30 de outubro de 2011

CAPÍTULO VIII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO VIII
    O quotidiano da terra sobrepôs-se à alegria das festividades, e as rotinas garantidoras de uma sobrevivência digna numa ilha acabou por se instalar com a mesma naturalidade com que uma aranha aceita outro insecto na sua teia. O calor era suportável, mas a junção deste com a humidade faziam os corpos transpirarem um melaço peganhento que se agarrava descaradamente à pele daquelas gentes. Glória preparava o casamento tão desejado pelos noivos e trabalhado pelos restantes membros da família, que alimentavam o porco destinado a alimentar os convidados daquele dia.
- Estou tão feliz! – Glória tentava contagiar a amiga cada vez mais debilitada pela falta de alimento.
- Nem imaginas como eu te desejo toda a felicidade do mundo! – Fátima falava por entre um murmúrio libertado pelos lábios descarnados.
- Quero muito que estejas presente Fátima! – Glória agarra uma mão inerte e murcha e fixa aqueles olhos encovados numa face demasiado magra com um olhar esperançado. – Tu sabes que só será o dia perfeito para mim se fores tu a minha madrinha. Fizemos esta promessa quando começamos a pensar em rapazes, lembras-te?
    Fátima sorriu e soube que o momento de reencontrar o seu Manel teria de esperar mais um pouco. Este sonho que se realizaria com a sua morte foi imediatamente adiado em detrimento dos desejos da sua amiga. Pensando nisto Fátima não conseguiu evitar um sorriso. Parece irónico. Ela deseja de uma forma incomensurável deixar esta vida, as pessoas que lhe são próximas, e no entanto está a agir contra o seu desejo para dar uma alegria exactamente a uma dessas pessoas que ela pretende abandonar. Analisando friamente é este o cenário, mas a verdade é que os actos humanos acarretam cenários que nunca são tão simples ou fáceis. Cada acto humano transporta o peso das emoções dos impulsos dos raciocínios ou da falta deles... E este é um acto de amor, porque a base de uma amizade séria é o amor. Aquele amor que não tem vergonha de ser apregoado. Aquele amor que partilha tristezas, alegrias, sorrisos e confidências. Aquele amor que serve de alicerce a qualquer tipo de relação sincera. Porque sentir amizade por alguém é amar, e amar é usar de actos que intuem a felicidade do outro sem que isto signifique qualquer esforço caprichoso. E Fátima queria um último acto de amizade para com a sua amiga tão amada Glória...
Glória estava diferente. Ela sentia-se diferente. Aprendera que a sua personalidade frágil e quase apática é capaz de se evidenciar e sobrepor-se quando levada ao limite. Em cada visita semanal que tem feito a Fátima sente este novo sentimento de vitória e de imposição sedimentar-se. A D. Alice parece-lhe a cada nova visita mais pequena e insignificante, contrariando a altivez da jovem noiva. E a sensação de vitória é como a cafeína, quando ingerida nas doses certas revitaliza a alma e o corpo.
- Claro que vou! Já só faltam duas semanas... – Fátima sorri um sorriso malandro. – Dizes-me que vou ser madrinha apenas a alguns dias do casamento... Tens medo que tenha tempo de arranjar um vestido mais bonito do que o teu... – As raparigas riem gargalhadas diferentes.
De volta a casa, Glória encontra em cima da cama a pequena tera com um veu comprido comprido delineado por uma bainha de cetim branco. Glória sente um par de lágrimas rolarem-lhe pela face. É um trabalho moroso feito pela irmã mais nova e que reflecte o afecto que une as três irmãs. Glória chora um choro calmo e sentido. Não é tristeza, mas também não se trata de felicidade... Ou talvez sejam ambos os sentimentos. Um passo em frente na nossa vida significa sempre ficar mais próximo de um objectivo, mas mais distante de um apego. E o casamento é um passo demasiado comprido que a faz chegar a uma nova etapa da sua vida e afastar-se de outra etapa que lhe é tão querida. É verdade que a famíla caminha ao nosso lado durante toda a nossa vida... Mas existem várias formas de caminhar. Até aqui ela caminhou no mesmo caminho que os pais e as irmãs... Apartir daqui caminharão caminhos paralelos sem nunca se perderem de vista... Mas nunca mais será o mesmo caminho...
- Glória! Oh Glória! – Luzia entra no quarto das filhas com um olhar transtornado. Os cabelos mal apanhados arrepiavam-se fugindo da prisão dos ganchos partilhando o mesmo desalinho.
- O que se passa mãe? – Glória corre ao encontro da mãe que assim que a vê se deixa cair num banco da cozinha e desata num pranto.
- Eu vou fazer-te uma pergunta filha e não me mintas! – Luzia fixou o rosto de Glória concentrando-se em sinais que demonstrassem uma contradição às palavras que a filha pronunciaria. – A Tia Espirito Santo disse-me que corre á boca pequena na vila que a Fátima está a desfalecer de tristeza e que a culpa é da tua irmã… O que sabes tu desta história?
Os lábios de Luzia fecharam-se numa linha dura que acompanhava o olhar. O seu rosto conhecidamente alegre parecia talhado numa rocha cinzenta e Glória perante esta mãe desconhecida não sentiu abertura para rodeios.
- A nossa Ana apaixonou-se pelo filho do médico da vila, o Francisco.
- Ela quer matar-nos de vergonha? Mas que raio é que essa rapariga tem na cabeça? O rapaz tem uma noiva…
- Oh mãe! Acalma-te! – Glória rodou os ombros da mãe com os seus braços pálidos e embalou-lhe a desilusão. – Eu sei que estás desiludida com a Ana. Eu sei que a tua alma chora. Mas como uma família unida que nós somos é altura de formarmos um muro impenetrável à volta da Ana. Ela vai precisar de todo o nosso apoio e defesa para enfrentar o que aí vem. Ela não escolheu um caminho árduo porque gosta de sofrer… Ela apaixonou-se. E o Francisco retribui-lhe este sentimento.
- Ai Glória! Eu sempre rezei a Deus para que as minhas filhas tivessem uma vida humilde sem grandes sobressaltos e que soubessem viver das pequenas alegrias do dia-a-dia. As alegrias grandiosas têm preços muito altos…
As duas mulheres abraçaram-se e choraram tudo o que aquela situação merecia naquele momento, porque a partir daquele momento não haveria mais lugar para lamentações. José encostado à soleira da porta assistiu àquela conversa na sombra e partilhou daquelas lágrimas que anteviam as dificuldades de uma filha tão amada. Mas para além deste pronúncio de dias difíceis, José também chorou de gratidão pela família maravilhosa que Deus lhe tinha entregado sem que ele a tivesse escolhido.
- José! Não te senti chegar! – Luzia olhou o marido com um olhar de pedinte procurando uma gesto de apoio à decisão que acabava de tomar. Ela enfrentará tudo o que se insurgir contra a sua Ana e defenderá a sua cria como uma leoa.
José abriu os seus longos braços demasiado morenos e acolheu as duas mulheres reforçando a união daquela humilde família.
- Na vila a nossa Ana é uma víbora insensível. – José queria as cartas em cima da mesa. A partir deste momento não queria meias palavras ou falsos entendimentos. Se estavam unidos para proteger Ana, então teriam de falar no assunto abertamente. – Aqui na freguesia já começo a notar uns olhares de soslaio que deixam transparecer rancor.
- Mas a Ana não tem culpa! – Glória defendia a irmã sempre que sentia que lhe estavam a apontar o dedo.
- Eu não estou a culpar ninguém. Estou a mostrar-vos a situação tal como ela se apresenta. As pessoas são cruéis. Muito cruéis e apontar o dedo é uma ocupação preferencial das nossas gentes. Estão preparadas para os sussurros e olhares de soslaio de que vamos ser alvo a partir deste momento?
O sim uníssono surgiu a três vozes femininas sem nenhuma réstia trémula, com a segurança dos audazes. Maria juntara-se à reunião e sentia o sangue fervilhar-lhe dentro das veias numa inquietação que previa uns pares de estalos a quem se atrevesse falar mal da irmã.
O entendimento mutuo que saíra daquela cozinha ficou entrenhado na alma dos presentes e a precepção de que o casamento de Glória poderia não contar com todos os convidados foi intuido por todos, mas pronunciado por nenhum. Glória não se sentia melindrada com esse facto. Quem fizesse questão de presenciar o seu casamento sem vergonha e de a acompanhar naquele momento feliz da sua vida é porque realmente lhe interessava como pessoa. Quem não marcasse presença, então é porque não estava ali a fazer nada. Os momentos dificeis são o melhor coador de afinidades que existe.

O dia do casamento chegou numa premonição boa transmitida por um sol radiante sustendo-se numa felicidade tão brilhante que se espalhava pelo céu não premitindo a entrada de nuvens desagradáveis naquele cenário. Assim era o casamento de Glória. As pessoas mesquinhas que haviam tido a pertinência de avançar com juízos de valor não estavam presentes. E tal como acontece aos leais, foram premiados pela sua presença com a imagem fantástica de Fátima a suposta noiva enganada e eferma com o desgosto, no altar ao lado de Glória abençoando junto com as divindades aquela união. Os olhares pasmaram perante tal facto, mas como naquela igreja pouco cheia não havia lugar a olhares maldosos, os convidados congratularam-se por não se terem enganado na confiança que depositavam naquela familia.
A missa de casamento emocionou todos quando Glória no fim da cerimónio se apoderou do púlpito e pediu a atenção dos presentes.
- Quero agradecer a todos os presentes! Sei que os que se atreveram a vir a esta cerimónio são os verdadeiros amigos da minha familia. Fico-vos eternamente grata por não nos terem virado as costas e por partilharem este momento tão importante da minha vida. Quero também agradecer à minha amiga Fátima o facto de estar aqui presente e de ser a minha madrinha de casamento.
Face ao abraço apertado das duas amigas a plateia emocionou-se e explodiu num aplauso nunca antes atrevido na casa de Deus.
- Isto é uma família de gente boa! – A tia Espirito Santo falava para a senhora do lado. – Eram incapazes de fazer mal a alguém…
- Também acho! Eu e o meu Joaquim nunca acreditamos nessa história da filha dos Ferreira querer roubar o noivo da outra pequena. É uma história muito mal contada… - A mulher baixa e redonda que fazia conversa com a tia Espírito Santo adoptou o seu ar coscuvilheiro e continuou. – Mas tens de concordar que é estranho os pais da menina Fátima não estarem presentes. Dizem que eles foram contra o facto de a rapariga ser madrinha da Glória.
- Sabes o que te digo mulher de Deus! Se as pessoas se preocupassem mais com o que se passa dentro das suas próprias paredes havia mais gente feliz… - Filomena, uma mulher prática e pouco bonita arrematou aquele diálogo que se adivinhava tornar-se maldoso. Ela própria era viúva de dois falecidos maridos e tinha o terceiro muito doente em casa. Sabia bem os prejuízos da maledicência num meio pequeno. As pessoas sabiam lá o que ela sofrera com cada uma dessas perdas. As pessoas imaginavam lá o que é antever um futuro sozinha sem um companheiro para partilhar as dores e alegrias. Podiam chamar-lhe ave de mau agoiro. Podiam acusar-lhe de matar maridos por um motivo obscuro qualquer. Mas não sabiam o que se passava de verdade dentro da sua alma. A verdade era bem mais simples do que os sussurros maldosos que lhe rondavam a reputação. Ela tinha uma sorte muito rara num meio mesquinho daqueles. Deus dera-lhe três maridos que a trataram como uma rainha com todo o respeito e amor que se podia desejar numa relação. Mas o custo destas alegrias residia na durabilidade de cada um dos homens da sua vida. Se ela tivesse tido apenas um marido que a tratasse mal, a batesse e se embebedasse como um homem a sério, ela seria então considerada uma santa senhora… Estas são as hipocrisias das mentes pequenas.
Os festejos prosseguiram num almoço animado na voz do campo. Ana sentou-se ao lado de Fátima conversando animadamente causando primeiro alguns sussurros e depois alguns alívios.
- Fátima! – Ana queria abrir-se com Fátima. Ela merecia a sua sinceridade total. – Eu queria abordar um assunto delicado contigo.
- Eu sei Ana! Vamos ter de falar acerca do Francisco.
- Sabes que nos temos encontrado algumas vezes?
- Eu sei que vocês nutrem sentimentos que são correspondidos… e nem imaginas como vos invejo.
Ana sentiu um nó na garganta. Será possível que ela esteja mesmo a sofrer por amor a Francisco? O peso da traição que sentiu assentar-lhe no peito era impossível de ser transportado.
- Basta uma palavra tua Fátima e eu afasto-me…
- Não sejas tola! O que eu quero dizer é que tenho saudades do tempo em que eu me sentia capaz de enfrentar qualquer dificuldade apenas em troca de uns momentos escapados a olhares indiscretos com o meu Manel.
- Pois! A Glória contou-me a tua história!
- E fez muito bem! Eu devia ter tido coragem para a ter contado quando o meu Manel ainda era vivo. Devia ter enfrentado todos os olhares maldosos que se atrevessem a julgar a minha felicidade ao lado de um pobre diabo. Devia ter erguido a cabeça e ter passeado de mãos dadas com o Manel por entre os sussurros que se atrevessem a criticar a moralidade desse acto. Devia tê-lo apresentado aos meus pais e jantado com ele utilizando as porcelanas da Dona Alice. Devia ter apregoado ao mundo numa voz muito mais alta do que a criticas que amava um pobre baleeiro que cheirava a peixe e que não sabia sequer ler nem escrever… - Fátima pegou na mão de Ana sem nunca olhá-la. – Sabes Ana, o mundo é muito mais cruel com os cumpridores do que com os corajosos…
- Obrigada Fátima, pelas tuas palavras.
- Eu dou-te a minha bênção para o teu namoro com o Francisco. Só gostava de ter a oportunidade de vê-lo para libertá-lo deste vínculo invisível que o liga a mim…
- Nem imaginas como me estás a fazer feliz neste exacto momento Fátima.
Ana abraçou a rapariga que a afastou num gesto que intuía a não aceitação daquele afecto.
- Não me agradeças já! Eu vou ser a tua desgraça nesta ilha Ana! E nem imaginas como lamento isso…
- Não te estou a perceber…
- Eu sou vigiada 24 horas por dia! Não vou ter a liberdade necessária para terminar este noivado com a celeridade que mereceria e que permita um tempo suficientemente digno para que possas comprometer-te com o meu actual noivo.
- Continuo sem perceber Fátima!
- Eu vou deixar esta vida em breve para poder encontrar a minha própria felicidade… Não vou poder terminar o noivado da forma conveniente. Não te vais tornar noiva de uma forma digna aos olhos desta terra… Estás preparada para o que aí vem?
Ana percebeu o que Fátima lhe estava a transmitir naquelas palavras muito sábias e visionárias. Mas o que lhe entristeceu naquele exacto momento não foi a notícia das dificuldades que passaria para ficar com o seu Francisco, mas o anúncio da morte prematura da amiga. Os seus olhos tristes animaram-se um pouco ao fixarem a felicidade da irmã mais velha rodopiando nos braços do marido trocando sussurros eternos, partilhando gestos comuns e sorrindo em uníssono numa promessa duradoura.