domingo, 6 de novembro de 2011

CAPÍTULO IX - Na Base da Montanha

CAPÍTULO IX

O casamento de Glória diminuiu a intensidade da maledicência que ensombrava a relação de Ana com o jovem médico. A vila retraiu a língua por escassos dias face à evidência que a presença de Fátima no casamento transmitia. No entanto, nas povoações pequenas não se pode contar com um esquecimento prolongado, principalmente quando o mexerico assenta numa certa verdade que o revigoriza como um fungo num ambiente húmido.
As vinhas transbordam a abundância de cachos gordos que garantirão muitas alegrias daqueles que se regalarem com o seu vinho e angelica. Também Ana sente a antecipação de uma certa embriaguez que a acompanha sempre que tem uma oportunidade escassa de ver o seu Francisco. Ele enviou-lhe uma mensagem escrita por Glória marcando um encontro no meio das vinhas. Ana recordava com um sorriso desdenhoso os conselhos da irmã mais velha quando lhe estendeu o bilhete adivinhando o seu conteúdo.
- Tem cuidado Ana! Não te esqueças que o facto de estares apaixonada por ele e possivelmente seres retribuída nesse sentimento, não te dá o direito de ocupares um lugar oficial na vida dele… Os sentimentos não significam necessariamente compromisso.
Ana ouviu sem interiorizar a preocupação daquelas palavras sábias.
- Ai estou tão feliz! Não vejo o Francisco a sós desde as festas do Senhor Espírito Santo… Estou farta de recados dobrados em pedaços de papel amarrotado… - Ana ondulava a sua felicidade numa melodia silenciosa que a fazia rodopiar.
O coração de Ana descompassou-se quando viu Francisco aproximar-se, desviando os ramos voluntariosos das vinhas que se espreguiçavam viçosamente sobre os currais negros de basalto. Francisco atrapalhava-se com o caminho sinuoso que tinha de enfrentar para chegar ao seu destino e Ana permitia-se olhá-lo gulosamente absorvendo cada movimento do seu cabelo leve e gracioso que brincava ao sabor da aragem permitindo que os olhos risonhos ficassem completamente descobertos. O corpo alto e esbelto tornava-se cada vez mais desejado por aquela humilde rapariga que vivia aquele momento com uma intensidade exagerada que lhe turvava as ideias. Francisco aproximou-se de Ana e ofereceu-lhe o seu melhor sorriso. Encostou timidamente a palma da sua mão à dela e deixou que os seus dedos se entrelaçassem. A ansiedade que antecedera aquele encontro tronava cada gesto cerimonioso e a antecipação de uns momentos a sós exaltava-se em cavalgadas loucas dentro dos seus peitos.
- Olá doutor! – Ana cumprimentou-o ainda com os olhos fechados depois de saborear um leve encostar de lábios.
- Que saudades Ana! – Francisco apertava-a como se o aconchego daquele abraço não fosse suficiente para dissipar a ausência, daquele corpo, tão sentida nas suas entranhas. – Isto é uma loucura… Mas eu amo-te! E sinto-me desnorteado quando não te vejo… não te toco… não de sinto.
Ana baixou todas as suas guardas e receios perante aquela declaração emitida por entre beijos intensos e sussurros que lhe arrepiavam a pele. Francisco deitou o corpo rendido de Ana no meio das vinhas sem deixar que um único milímetro de espaço se intrometesse entre eles. Ana fechou os olhos e deixou-se disfrutar da sensação que a boca de Francisco desferia no seu pescoço. A sua pele eriçou-se no contacto quente do hálito do jovem médico junto ao seu ouvido. A mão de Francisco acariciava-lhe a cintura, subindo sobre o seu seio e demorando-se deliciosamente. A sua blusa foi lhe retirada com a meiguice dos anjos, sem que os olhares se largassem durante esse acto. Ana tremia quando desabotoou a camisa do seu amado e os seus olhos deliciaram-se com a visão de um tronco nu coberto com uma suave penugem clara que Ana deixou passear entre os seus dedos. Ana sentiu a inútil protecção que só a combinação lhe oferecia e no momento em que esta lhe roçou a pele desligando-se dela, Ana sentiu a sua pele em contacto com a pele de Francisco e deixou descair a cabeça para trás numa afirmação de certeza do passo que estava prestes a dar. Francisco deixou a ponta dos seus dedos percorrer o corpo perfeito de Ana demorando-se neste acto, devorando com os seus olhos inebriados a cova do pescoço daquela menina mulher. Os seus seios redondos e firmes demasiado morenos para os requisitos da moda transtornavam-lhe as ideias. A barriga dura apresentava-se com uma suavidade doce ao seu contacto e Francisco perdeu-se naquele corpo tão desejado. O seu nome foi gemido numa voz estrangulada pelo prazer quando os corpos se fundiram e Ana acreditou terem fundido as suas almas numa só.
O sol era mais radiante do que nunca e numa cumplicidade silenciosamente entendida brilhava aquecendo os corpos dos amantes que murmuravam promessas longínquas e sorriam face ao entendimento daquele acto de entrega que acabavam de praticar. O mundo não podia conspirar contra tanta paixão. O ódio não podia subverter uma humanidade a quem lhe era dada a conhecer tanta ternura. A guerra não devia existir face a este entendimento tão reconfortante. A dor não deveria ter lugar num mesmo espaço em que se permite tão elevado nível de felicidade…
- Eu amo-te! – As palavras eram proferidas pela boca de Ana com a simplicidade com que as verdades devem ser ditas e aceites por quem está aberto a receber na sua alma este sentimento.
- Tu és o meu mundo Ana! – Francisco posou um beijo leve nos cabelos espalhados da sua companheira, mas os seus olhos brilhantes de paixão davam agora lugar a um esguio de preocupação. – O que vamos fazer Ana?
- Vamos casar… Que pergunta tão tola!
- Não é assim tão simples! O que fazemos com a Fátima?
- Não a levamos ao altar! Esta é uma certeza absoluta…
Francisco riu alto face a esta constatação marota daquele ser pequeno e falsamente frágil que estava ali ao seu lado. Ele não queria estragar a magia do momento. Mas a verdade é que lhe pesava no peito e na reputação um rompimento de noivado em que as coisas não teriam um procedimento normal. Ele gostava que Fátima o libertasse dos laços que haviam assumido e que os pais de ambos dessem a sua bênção a este rompimento do compromisso. Só assim as mentes humanas daquele pequeno lugar aceitariam de braços abertos o romance do médico da vila com uma rapariga de origens humildes. E talvez até olhassem para ele com respeito por ter feito esta escolha sem preconceitos.
- Já se está a fazer tarde! – Ana levantou-se preguiçosamente. – Eu ficaria aqui para sempre…
- E comerias uvas no próximo mês e viverias da chuva nos seguintes… - A gargalhada de ambos já não foi tão sonora, face ao entendimento comum da proximidade da despedida. O beijo profundo do adeus deixou no peito de ambos o amargo sabor da saudade, antes mesmo que os olhos penassem dessa ausência.
Ana sentia o seu espírito muito acima do seu corpo. Tinha-se entregue por amor e não por casamento e achava este acto tão romântico que lhe merecia um orgulho desmedido. As consequências desse acto não lhe pesavam na consciência. Não poderia haver consequências negativas de uma entrega tão bonita, de um acto de amor tão intenso, de uma certeza tão certa. Ela amava de corpo e alma… E que sentido teria este sentimento se fosse o mundo a impor os tempos do amor carnal e do amor espiritual. O mundo não percebe nada das vidas de cada um e as vivências individuais são demasiado individuas para serem decididas por parâmetros ou regras tolas de comportamento. Como podem os outros dizerem-lhe que ela devia esperar pelo casamento para se poder entregar daquela forma? Como é capaz uma sociedade de seres iguais privarem os seus semelhantes de tais sensações, destes momentos espontâneos repletos de alegria e com uma intensidade que não pode ser adiada? Como pode o ser-humano ser tão egoísta e maldoso que faz de uma coisa maravilhosa um acto vergonhoso? Mas que mentes perversas conduzem o entendimento geral da humanidade para longe daquilo que realmente proporciona felicidade?… uma felicidade tão completa, tão preenchida, que se não for vivida no momento em que se proporciona nunca mais poderá ser vivida naquele exacto momento…
Ana chega a casa com as faces rosadas e uns olhos febris que brilham a verdade do último par de horas de uma forma quase descarada. Glória ao perceber este estado de êxtase conduz a irmã para o quarto de forma que os pais não a vejam neste estado de graça desgrenhado.
- O que é que andaste a fazer Ana? – Glória sabia a resposta à sua pergunta, pelo que não aguardou que a boca de Ana a denunciasse. – Vou preparar-te uma pana com água quente e vais tomar um banho… Depois havemos de falar, querida. Agora tira esse sorriso palerma dos lábios, ou todos vão saber o que andaste a fazer.
Ana deixou que Glória tratasse dela, uma vez que o seu corpo recusava-se sair da dormência que o amor lhe havia proporcionado. Quando se enroscou na sua cama recebeu da irmã um beijo terno de despedida e fechou os olhos embalada numa suave melodia torneada de felicidade e sonhou com o seu futuro marido alheia ao ser que já se começava a gerar dentro de si…

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