sábado, 12 de novembro de 2011

CAPÍTULO X - Na Base da Montanha

    CAPÍTULO X


- Ai que Deus nos acuda! Ana! Maria! – Glória corria forçando uma respiração sôfrega que resultava do cansaço imposto ao seu corpo e da aflição sofrida pela perda que sentia.
Maria foi a primeira a surgir-lhe no âmbito de visão e quando viu a irmã mais velha com uma olhar esbugalhado de dor com as faces molhadas por umas lágrimas gordas e escorregadias abriu-lhe os seus pequenos braços e amparou-lhe o sofrimento.
- Chora minha querida! Chora tudo! – Maria embalava-a com um carinho extremoso.
- Oh Maria! – Glória endireitou-se. Afinal de contas ela é que era a adulta daquela relação. E casada. Ela é que teria de assumir os pesares que aquela noticia teria. – A Fátima… Ela não… Ela foi… ela…
- Morreu! – Foi Maria a conseguir verbalizar aquele acontecimento tão temido quanto esperado. As duas irmãs abraçaram-se e choraram. Ambas sabiam que era este o desejo da amiga, mas esta certeza não diminuía a dor da perda.
Francisco entrou pela porta dos Ferreira com a notícia gravada nas olheiras escuras que se evidenciavam sem sequer lembrar as regras de boa educação que lhe pediam para bater à porta.
- Glória! Onde está a Ana? – Francisco juntou-se e partilhou daquelas lágrimas.
- Já sabes Francisco? – Glória esqueceu as cautelas que aquele jovem médico lhe costumava provocar e abraçou-o. A dor é o único sentimento que detém em si mesmo a capacidade magnífica de aproximar pessoas opostas, de baixar defesas e de criar afinidades. Mais nenhum sentimento tem esta capacidade. Dor é sinónima de sofrimento. Dor é um sentimento que carrega uma conotação negativa e que tem em si a magia de amolecer corações e transformar desprezos em solidariedade.
- Já sei Glória! E nem sei bem o que pensar… Mas no que toca a sentimentos, eu estou de rastos… A Fátima era uma pessoa especial… Era como se ela não pertencesse a este mundo. Eu sempre olhei-a como se olha para uma divindade que brilha demasiado para ser devidamente apreciada neste mundo…
- A Ana deve estar na atafona a arrumar as bilhas do leite… Vais lá tu dar-lhe a notícia?
Francisco entrou na atafona de pedra escura e encostou-se à ombreira permitindo-se uma pequena consolação olhando Ana a arrumar as bilhas brilhantes com uma saia rodada azul e uma camisa justa que lhe acentuava as formas. O cabelo apanhado por um lenço escapava-se rebeldemente dando-lhe um ar mais sedutor.
- Olá! – Ana virou-se devagar temendo que os seus olhos não correspondessem à figura que a sua mente estava neste momento a fazer corresponder à voz que acabava de ouvir.
- Francisco! – Ana correu de encontro ao seu amado e atirou-se para os seus braços. O abraço firme procurava um consolo que Ana imediatamente percebeu. – O que se passa Francisco?
- A Fátima… - As palavras mudas foram gritadas num gemido de choro, e os braços que se entrelaçavam não foram suficientes para amparar a tristeza.

A casa do presidente da câmara sofria de uma languidez crónica que se gelava num silêncio de morte. O Sr. Joaquim estava prostrado no sofá sem que qualquer acção se evidenciasse no seu corpo, sem que qualquer expressão lhe trespassa-se as feições, sem que qualquer pensamento lhe ocupasse a mente. Só uma dor aguda lhe infernizava o peito pesado e lhe inutilizava todo o resto do seu ser. A esposa trancara-se no quarto da filha velando e uivando a dor que aquele cadáver lhe provocava. A senhora Alice não permitiu que ninguém velasse o corpo. Não abria a porta a quem queria prestar uma última homenagem ou a quem simplesmente queria partilhar rezas de pesar. Alice acariciava as faces exangues da filha e chorava enquanto murmurava o quanto a amava e que tudo correria bem.
- Estás a ver o que te acontece quando não ouves o que te digo? – Alice murmurava uma meiguice e uma ternura que Fátima teria agradecido em vida.
A casa respirava uma angústia e um vazio partilhado por um casal distante em espírito que deixou passar um par de dias sem distinguir o dia da noite, chorando para além da exaustão e gritando para além do que a voz permitia. O pesar que desabara naquele tecto pesaria toneladas durante um tempo indefinido e deixaria marcas íntimas no interior daqueles seres como tatuagens decrépitas que nunca mais libertam uma pele saudável.
A Igreja encheu-se de gentes negras que envergavam a postura do momento sem fingimentos. Fátima era o tipo de pessoa que reunia o respeito de todos. Era uma daquelas pessoas raras sobre as quais as más-línguas se apaziguam e os invejosos se retraem, sem que as maledicências convenientes tenham capacidade de permanecer nas mentes maldosas. Os perversos eram incapazes de verbalizar um comentário depreciativo sobre aquela menina quase angelical. Os mentirosos retraiam falsas verdades sobre aquele ser quase místico. A sua pele pálida, o seu sorriso bondoso, o seu olhar humilde era um amaciador de almas para quem tivesse o privilégio de ser merecedor de tal. Neste mundo imenso, em que transborda acções e sentimentos, amores e rancores, pensamentos e desejos, dores e alegrias, guerras e fomes, abandonos e necessidades, Deus colocou na base daquela imensa montanha rodeada por mar um ser incrível que não soube ser devidamente apreciado em vida e cuja morte pesava sobre tantos corações.
O padre Inácio pousava os seus olhos no caixão fechado em frente ao altar e sentia cada palavra de homenagem que prestava àquela jovem. Era do conhecimento geral que Fátima tinha posto fim à sua vida de forma prematura, privando o seu corpo de comida e água. No senso comum de uma pequena comunidade, o serviço religioso não é prestado àqueles que de forma ingrata terminam com a vida que Deus tão generosamente lhes deu. Mas nenhuma voz verbalizou este facto. Nenhum coração sentiu que Fátima não era merecedora do perdão eterno. E numa última oração em voz alta, uma ilha chorou e rezou pela salvação daquela alma.
- Parem!... Parem tudo! – A senhora Alice saiu do seu lugar e com os olhos a rebolarem sobre si cambaleava até ao caixão que guardava o corpo da filha. Caiu desajeitadamente e levantou-se, enxugou as lágrimas com a manga do vestido preto e uivando o nome da filha ajoelhou-se em frente ao caixão. Acariciou-o sem pressas e repetiu vezes sem conta que não deixaria que nada de mal lhe acontecesse… Que ela não precisava de ter medo… que estaria sempre com ela… Que a protegeria sempre… A plateia calou-se num silêncio tumular e os corações encheram-se daquele pesar. Um frio trespassou cada ser que assistia àquela cena e todas as peles se arrepiaram em uníssono. Ana chorou e apertou a mão de Glória que sentia que lhe arrancavam uma parte das entranhas.
Alice abriu o caixão onde a filha serenamente repousava com as mãos cruzadas sobre o ventre enredando um terço de prata e vestida de noiva. Uma interjeição geral sobrevou sobre a plateia, que de queixo caído arregalou os olhos de admiração. Absorveram a cena e depois numa coreografia perfeita viraram todos os pares de olhos acusadores para um corpo demasiado pequeno para enfrentar aquela multidão. Ana sentiu o peso da acusação e procurou consolo no olhar de Francisco que baixou o seu olhar e se afastou. Os dedos apontaram-se na sua direcção e as acusações foram disparadas como flechas demasiado assertivas. Ana não distinguia qual a dor que a magoava mais. Se a perda de uma amiga… Se o peso de uma acusação colectiva… Ou se a desilusão que Francisco lhe provocara. A multidão exaltava-se com a falta de acção de Ana perante tamanha indignação. Esperavam que a rapariga abandonasse a Igreja… Mas ela permanecia ali com o queixo levantado.
- Parem com esta palhaçada no funeral da minha filha! – Joaquim encontrava-se no púlpito e a sua voz estrangulada de dor captou todos os olhares, aliviando Ana. – Mostrem algum respeito pela dor e pela perda que estou a sentir.
As mentes raciocinaram devagar e congelaram na esperança de absorverem mais palavras.
- Deixem essa rapariga em paz! – José deixou que as lágrimas rebolassem pela sua face e deixassem o seu paladar absorve-las. – Estou farto de julgamentos… De apuramentos de culpas… De falsas acusações… Querem um culpado? Estão sedentos de desgraça povo enfermo? É esta a droga para a vossa desolação? Então eu dou-vos um culpado para chacinarem em praça pública… Sou eu o culpado… Sou eu o culpado pela morte da minha filha… E sabem lá o que isto me pesa na consciência, no peito, na mente… Nunca mais terei uma noite descansada. Os meus lábios nunca mais deixaram florir um sorriso. O meu coração jamais conhecerá uma alegria. Querem conhecer as minhas misérias? Precisam delas para alimentar essa vossa ganância de sofrimento? Pois eu dou-vos a conhecer as minhas misérias e espero que se saciem com elas e rebentem… Eu sou o culpado por ver hoje enterrar o ser que mais amei na vida. Amar da forma correcta alguém em vida é uma tarefa árdua e de difícil entendimento. Mas na morte torna-se tão fácil saber como deveríamos ter amado. E este entendimento é tão cruel como a última refeição de um condenado à morte. Hoje vou-vos contar a história da minha filha. Ela era uma menina com uns valores e sentimentos muito nobres que não foram transmitidos por mim ou pela Alice. Era um ser capaz de deter em si mesma todas as virtudes humanas que Deus depositou na Terra. E só agora consigo dizê-lo em voz alta. Porquê? Porque tive uma vida demasiado ocupada para desfrutar do amor que sentia pela minha filha. A pressão social toma, na vida mundana das pessoas, uma importância desmedida e imerecida. E eu tinha uma boa posição social que deveria manter a todo o custo. Era aqui que residia a minha felicidade? Não… A minha felicidade residia nesta menina que vou enterrar… E não, nunca desfrutei desta felicidade incomensurável que estava à minha inteira disposição da forma como ela merecia ser disfrutada. A minha felicidade morava debaixo do mesmo tecto que eu… E eu todos os dias ia viver a minha vida longe dela… A Fátima amou inocente e apaixonadamente um rapaz. Um rapaz demasiado humilde para ser aceite no seio da minha família desunida e desmembrada… Um rapaz demasiado verdadeiro e que transmitia uma alegria á minha filha que eu nunca consegui… Um rapaz que a fez demasiado feliz, mas que mesmo assim não coube nos nossos requisitos… A hipocrisia que veste as atitudes humanas enoja-me neste exacto momento em que compreendo a importância das coisas… Neste exacto momento em que compreendo e não posso gozar dessa compreensão… O casamento com o médico da vila era demasiado conveniente para caber no coração puro da minha filha… E nós matámo-la com esta imposição despropositada… Manel… Manel é o rapaz com quem a minha filha queria casar… Manel é o rapaz que a minha filha amou… Manel foi o rapaz que fez a minha menina feliz… e eu rogo-lhe com toda a humildade que pode caber num só ser que receba a minha filha nos braços e a faça feliz… Com a minha bênção…
Até a mente mais obscura se rendeu àquela constatação de verdades. Alice sentiu cada palavra do marido como um punhal apontado na sua direcção e as sombras da sua consciência dominaram a sua mente que se perdeu nos remorsos e nunca mais encontrou a paz dos virtuosos.

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