domingo, 27 de novembro de 2011

CAPÍTULO XI - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XI




     As paredes de basalto transpiravam o negrume do silêncio penoso que pairava sobre a casa dos Ferreira. As vivências iam e vinham sem serem percebidas ou sequer apreciadas. O céu acompanhava o luto que se sentia forrando-se de nuvens pesadas e prometedoras de dilúvios. Maria sentia uma inspiração doce nesta penumbra e trabalhava mais do que o segredo permitia. A sua vocação ultrapassara o deslumbre dos chapéus a partir do momento em que uma senhora muito fina lhe apareceu à porta da escola e com um sorriso manchado pelo tabaco pediu-lhe que colocasse uns apliques nuns sapatos. Maria achou aquele pedido ridículo, mas ao observar aquela mulher distinta, alta com o cabelo curto e que vestia calças como se fosse um homem, Maria percebeu que não se tratava de uma conterrânea das ilhas. A conversa que tiveram de seguida confirmou-lhe a teoria.
- Minha querida! Vi alguns dos teus chapéus e tens um talento divino na pontinha desses teus dedos…
- Obrigada! – Maria não conseguia desviar o olhar do cabelo louro quase branco daquela mulher.
- Pensei que me pudesses fazer o mesmo a uns sapatos que trago aqui. – A mulher tinha uma pronúncia estranha, como se enrolasse a língua. – É tão difícil encontrar coisas bonitas nesta ilha. Quando vi o chapéu que tu fizeste para a minha cunhada, abriu-se uma fresta de luz nesta ilha insipida.
- Não estou a perceber… - Maria sentia-se baralhada e ao mesmo tempo deslumbrada. Gostava sinceramente daquelas calças verdes que se alargavam nas ancas acentuando as formas de uma forma descarada.
- Eu vivo no Canadá há mais de dez anos, querida! Vim passar dois meses aqui porque a minha mãe está muito doente e eu queria vê-la antes de ela partir. – A mulher encostou-se ao muro e tirou um cigarro exageradamente comprido. Acendeu-o com uma naturalidade imprópria numa mulher e deliciou-se com uma passa lenta que resultou num vapor soprado pelos seus lábios escarlate. – Já me tinha esquecido de como esta terra adormeceu. O resto do mundo palpita rock´n roll, e brilha com a electricidade. A televisão é uma realidade irrefutável em cada lar… E o que é que acontece aqui? Esta ilha morreu num tempo atrasado e enterrou com ela as suas gentes sofridas…
    Maria não percebeu nada do que aquela senhora dizia, mas sentiu quase fisicamente que o seu lugar no mundo não era ali. A mulher entregou-lhe uma revista e os olhos de Maria devoraram uma moda linda, em que a silhueta da mulher era valorizada por corpetes justos e metros de tecido nas saias que caiam abundantes até ao tornozelo. As cores misturavam-se harmoniosamente e a maquiagem tornava as expressões femininas angelicais. Os acessórios tinham tanta importância como a própria roupa e abusavam no glamour. Era aquilo que Maria queria fazer… Aceitou com prazer transformar uns sapatos simples pretos em algo merecedor de ser apreciado…
    Maria sentia o coração palpitar-lhe de ansiedade, pois já terminara a escola. O exame da quarta classe já estava feito há meses, e ela sabia que os pais estavam a ser condescendentes, mas a verdade irrefutável é que a sua vida de campo começaria em breve. Ela conseguia sentir isso em todos os poros da sua alma e refutava este destino com todas as suas forças. Estava na hora de ela tomar uma decisão demasiado importante para uma menina de onze anos. E ela precisava de apoio… Mas este passo teria de esperar um pouco mais. A preocupação daquela casa centrava-se agora em Ana. O seu coração sangrava sempre que olhava para a irmã e lhe lia tristeza no olhar. Não era uma tristeza passageira, mas uma tristeza que estava gravada na sua alma… O funeral de Fátima já havia sido há mais de um mês e Ana nunca mais proferiu uma palavra que não fosse monossilábica.
    Maria entrou no quarto que ambas partilhavam e encontrou a irmã deitada sobre a cama comum encolhida e abraçada à barriga molhando a colcha de retalhos com lágrimas gordas e silenciosas. Maria sentiu um medo que lhe subiu pela espinha e lhe arrepiou a nuca. Algo não estava bem e ela não sabia o que fazer… Sentia que Ana precisava de ajuda urgentemente. Os seus gestos hábeis e o seu raciocínio fluido gelaram pela primeira vez… Maria não sabia como lidar com o desconhecido. Alguma coisa de negativa se estava a passar, mas sem conseguir detectar o problema, Maria não sabia como resolvê-lo e saiu a correr sem pensar. Correu para um colo que sempre a acolheu… Correu para casa da irmã mais velha e só parou quando aquele abraço tão conhecido a recebeu.
- Maria! O que se passa? Em que embrulhadas te meteste desta vez? – Glória afagava-lhe as costas, acalmando-lhe as tremuras. Quando a rapariga parou de tremer começou a gaguejar.
- Oh Glória! Eu nem sei qual é o problema… Mas a Ana está com um problema grave… Ela não me disse nada… Mas eu sei… Eu sei Glória… Não sei como sei, mas sei… Percebes o que te digo?
    Glória beijou a testa da irmã mais nova e resolveu ir averiguar esta preocupação.
    Quando abriram a porta do quarto, ambas as raparigas apressaram-se nos actos. Ana vomitava freneticamente tentando acertar dentro de um bacio, mas sem grande sucesso. Maria apressou-se a ir buscar toalhas, enquanto Glória lhe segurava a cabeça trémula. Quando Ana finalmente acabou, começou a chorar desalmadamente para grande incómodo de Glória qua a embalava nos seus braços.
- O que é que se passa contigo Ana? Não pode ser só tristeza pela morte de Fátima… Também não acredito que seja só a ausência de Francisco que te provoque isso… O que se passa contigo? – Ana sentiu uma pontada no ventre quando a irmã mencionou a nome de Francisco. Desde o funeral que não sabe nada de Francisco. O sentimento de abandono domina-lhe a mente e o peito. É assim que Ana se sente abandonada por quem devia ampará-la nas situações difíceis. A falta de apoio que sentiu naquela igreja gelou-lhe a alegria e com o baixar de olhos e afastamento de Francisco, Ana sentiu a dor da desilusão.
- Ai Glória! – Ana agarrou-se aquelas irmãs como se fossem as suas bóias num naufrágio. – O que vai ser de mim?
- O mundo não acabou só porque tiveste um desgosto amoroso! – Maria queria lançar alguma racionalidade a toda aquela emoção numa tentativa frustrada de se sentir em terreno mais confortável.
- Eu estou grávida!
    As irmãs sentiram a chapada da compreensão com uma violência mal disfarçada. A mente bloqueia os raciocínios necessários até aos mais fluentes de ideias e o coração cala as palavras de consolo aos mais caridosos, quando uma compreensão tão dolorosa atravessa o espírito. O que seria de uma rapariga grávida e mãe solteira naquela ilha. Nunca mais receberia um cumprimento de um vizinho. Nunca mais entraria numa igreja. Nunca mais sobreviveria sem a caridade dos familiares mais próximos. Nunca mais poderia levantar um olhar de orgulho. Nunca mais poderia elevar um ar de dignidade… E doía… Doía muito esta compreensão de um futuro infeliz numa criatura que tanto se ama… No seio de uma família unida como aquela, a infelicidade de um elemento era a condenação de todos.
- Temos de contar aos pais! – Maria sentia-se desorientada. Apetecia-lhe pegar na irmã e fugir dali. Levá-la para um sítio onde não fosse alvo de nenhum tipo de malvadez. Onde a pudesse proteger de todos os olhares de condenação, de todos os comentários murmurados, de todos os juízos de valor…
    Aquela observação de Maria pairava na mente das três irmãs. Tinham realmente de contar aos pais. Mas como? Ana lembrou-se de quando ainda era miúda e roubava laranjas na quinta dos vizinhos. Tratava-se de um fruto que os pais não tinham nas suas terras e que era muito invejado por ela e pela irmã pela sua doçura. As duas infiltravam-se nas terras alheias e colhiam as melhores laranjas, embrulhando-as no avental. Uma tarde fria, o consolo de um sol suave de Outubro deliciava-as tanto quanto a antecipação daquele fruto sumarento escorrendo-lhes pelos cantos da boca. José que já desconfiava esperava-as à saída da terra do vizinho e apanhou-as em flagrante. Roubar era um pecado enorme. Era a pior transgressão que se podia cometer numa terra em que tudo resultava de muito trabalho. E o que elas acabavam de fazer era um desrespeito pelo trabalho alheio. Perante a severidade de José, Ana sentiu-se encolher e a humilhação de ir devolver as laranjas ao vizinho confessando o roubo e pedindo perdão por tal acção atingiu-lhe o orgulho como uma flecha ferindo-lhe a dignidade de uma forma que ela julgou ser a pior de todas. Até este exacto momento. Os actos com consequências passageiras têm respostas passageiras, mas desta vez ela cometeu um acto que a acompanharia para o resto de seu ser. Tinha acabado de gravar na própria testa um rótulo que jamais a largaria. Podia esforçar-se por ser uma mulher digna. Podia trabalhar que nem uma perdida. Podia ajudar o próximo como se houvesse amanhã que seria para todo o sempre a rameira que engravidou de um qualquer. Seria sempre o mau exemplo a seguir. Serviria de lição humilhante aos mais novos. Seria sempre vista como uma má companhia. Uma acção, um acto de amor seria interpretado e julgado para o resto da sua vida, porque as mentes pequenas não têm capacidade de ver para além das grandes acções. Se durante a sua vida alguém praticar uma boa acção gigante então é de certeza um bom homem, mas se tiver o azar de num determinado momento praticar uma má acção então é má pessoa. As mentes limitadas não têm a capacidade de ler o quotidiano das pessoas, de interpretar as acções. As mentes diminutas julgam rápida e eficazmente, marcando o tipo de pessoa como se marca o gado, para todo o sempre. E viver com um juízo de valor proveniente de mentes fracas é um preço demasiado elevado e murcha as almas grandiosas cheias de potencial, cheias de sonhos e vontades. Transforma uma linha de horizonte longa, onde um céu mágico se funde com um mar terrestre, num minúsculo ponto insignificante e limita tudo o que de grandioso poderia fluir de uma alma perdida.
- A Maria tem razão! Eu vou contar aos pais! – Ana sentia no carinho das irmãs um apoio incondicional que merecia ser respeitado. – Vou só arranjar-me… E encontro-me convosco na cozinha daqui a pouco.
- Vê se colocas um ar apresentável, porque estás deplorável. – Glória tentou esboçar um sorriso de provocação que foi entendido mas não correspondido.
    Ana lavou a cara e mirou-se longamente no pequeno espelho que tinha pendurado na parede do quarto. Passou a mão suavemente pela barriga e percebeu que começava a amar o ser que se desenvolvia nas suas entranhas. Sentiu-se mais corajosa do que alguma vez se lembrava e preparou-se para dar um grande desgosto às pessoas que mais amava no mundo.
    As irmãs estavam sentadas em bancos baixos encostadas à janela, aproveitando a luz do dia para remendarem meias grossas de lã. Aqueles pares de olhos colaram-se ao rosto calmo de Ana e esperaram pelos acontecimentos com todos os músculos em alerta prontos para reagir em sua defesa.
- Pai! Mãe! – Ana tinha um ar solene, quase angelical, como se fosse proferir uma boa nova. – Eu estou grávida!
    Não houve remedeios naquela abordagem, nem nenhum discurso que suavizasse a gravidade daquela declaração. Ana não era assim. Não minimizava o que era grande e não aumentava o que era insignificante. Luzia levou as mãos à cabeça e libertou uma ladainha de murmúrios. José muito mais eficaz abordou o assunto com a seriedade exigida e uma frieza falsa, enquanto a sua alma chorava pelo destino cruel que estava reservado à sua menina.
- Quem é o pai dessa criança? – Perguntou José sabendo já a resposta.
- Francisco! – Ana mostrou-se tão seca na abordagem quanto o pai. Parecia que ambos estavam a medir forças e os olhos nunca se descruzaram.
- Pelo que tenho visto depois do funeral de Fátima, não me parece que vocês continuem tão envolvidos em sentimentalismos! – Esta apreciação foi dolorosa para os ouvidos de Ana e um tremer no seu olhar denunciou o que José pretendia. Ele queria incutir algum sofrimento na filha. Não por vingança daquilo que ela o estava a fazer sentir, mas para que ela nunca mais voltasse a expor-se daquela forma. Quando se erra deve-se sentir o erro da forma mais dolorosa possível. Só assim esse mesmo erro serve de defesa para o futuro.
- O Francisco ainda não sabe. – Ana recuperou a frieza no olhar.
    Luzia assistia àquela conversa aparentemente calma sem acreditar naquilo que via. Ela levantou-se do seu lugar assim que encontrou forças e dirigiu-se à filha com as faces rubras de indignação. Pegou-lhe nos braços e abanou-a como se ela fosse uma boneca de trapos, enquanto deixava que a sua voz libertasse toda a dor e frustração que lhe trespassava o espirito.
- Sabes o que fizeste rapariga?! Tu desgraçaste-te… Deitaste a tua vida, a tua juventude no lixo… Oh Ana o que vai ser de ti? – E assim se verbalizara o receio de todos. O que seria de Ana?
- Pára com isso mulher! – José finalmente baixou as defesas e chorou juntamente com a mulher. – Vamos amanhã logo de manhã a casa do Dr. Bruno e veremos como corre a conversa.

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