terça-feira, 15 de março de 2022

 

PARTE VII

 


CAPITULO XXII

 

A ferrugem desse portão

Na tua mão delicada,

Cola na pele a promessa

De uma alma superada

Sem ter tempo nem pressa!

 

O ranger da entrada,

Em território santo,

Desperta o teu olhar

Na morte fotografada

Sem calor, amor ou pranto!

 

E flutuas, como um fantasma,

Por entre o silêncio que jaz!

Na tua boca o tormento

De esconder, para além da paz,

Algum tipo de sofrimento!

 

E cada túmulo é o reflexo

Daquilo que queres ver,

Da esperança que já não sentes,

Do que sabes mas que mentes,

Do que vive para não morrer!

 

O papel perfumado jazia ali. No meu jazigo preferido. Naquele jazigo que me desperta sonhos, lembranças do que devia ter vivido, mas nunca vivi. Estava ali. Simplesmente ali. Aberto para mim e para o meu entendimento. Li, e só de ler soube que era meu. Peguei no papel perfumado sem o remorso dos ladrões e guardei-o entre a pele do meu seio e a licra do seu suporte. Olhei a fotografia do jazigo pela última vez. A pele branca denunciava uns olhos encovados, e uma magreza extrema fazia adivinhar uma doença prolongada. Talvez fosse aquela. Bem podia ser aquela. Eu queria que fosse aquela.

O poeta daquele poema sabe que procuro entre os mortos um pedaço de mim. Um pedaço que vejo refletido em cada túmulo. Não tive mãe. Não tive pai. Mas tive muita gente. Daquele tipo de gente que não cria as memórias certas. Sinto-me vandalizada. Sinto que as minhas lembranças me foram roubadas. Quero lembrar o cheiro quente de um bolo de banana acabado de fazer. Mas falta-me o momento para recordar. Quero fechar os olhos e sentir o abraço apertado de boas vindas depois de um dia de escola. Mas a inexistência desse ato gera um vazio enorme no meu peito. Quero poder dar aos meus filhos um amor maternal e velho, que tal como um anel de família, passa de geração em geração. Mas a minha herança emocional perdeu-se no momento em que fui abandonada. No momento em que alguém não me quis. E eu fiquei apenas com a ignorância do porquê? Gosto de pensar que fui desejada, mas que a morte me separou do meu destino feliz e confortável. Hoje sou apenas uma mulher que ama como pode, sem receitas, nem ensinamentos.

A única hora livre, que tenho durante a semana, esgota-se naqueles dez minutos em que vagueio no cemitério. E depois volto para o meu quotidiano. Vou buscar o meu filho mais novo ao infantário e apanho os meus gémeos, que já frequentam a escola primária. Por fim vou depressa para casa para receber a minha filha mais velha que chega na urbana depois de um dia de aulas no secundário. Faço questão de ter a casa sempre perfumada por um lanche acabado de fazer. O cheiro de biscoitos de canela e leite ou de um bolo de laranja. Por vezes faço panquecas com doce… Quando vejo os meus quatro filhos, sentados a comer, peço, silenciosamente, que eles se lembrem destes momentos quando forem mais velhos. Beijo-os muito. Sou chata na opinião deles. Sou branda na opinião do meu marido. Sou incompleta na minha opinião.

O chefe da casa só chega quando a mesa já está posta para o jantar. Não me atrevo a iniciar esta refeição sem ele chegar a casa. Não quero que os meus filhos registem uma memória de uma mesa incompleta. A mesa está posta com um tacho de ferro no meio e um aroma a arroz de marisco que antecipa o prazer da primeira garfada. São oito horas e o chefe de família não chega. Ainda tenho de ajudar os gémeos a terminar os trabalhos de casa. E são oito e meia. O dono da casa não atende o telemóvel. Começo a ficar preocupada. Esta aflição nada tem que ver com ele, mas com o facto de os meus filhos estarem com fome. São nove horas e a minha filha mais velha já me gritou uma dúzia de vezes.

- És tola ou fazes-te? – Ela atira-me aquelas palavras temperadas com algumas gotas de saliva. – Ele deve estar para aí a divertir-se com alguma loura e tu, aí especada, sem conseguires sequer decidir dar comida aos teus filhos sem a presença dele.

- Oh filha tem calma! Vamos esperar só mais um bocadinho!

Os gémeos estão quase a dormir no sofá… E ainda têm trabalhos de casa para fazer. E o pai deles que não chega.

- Vamos para a mesa meninos!

As palavras saem da minha boca como se não fossem minhas. As crianças correm para a mesa e a refeição começa com uma das cabeceiras vazia. Um dia eles vão lembrar-se que o pai faltou naquele dia, naquela mesa, naquele momento. Será que se sentirão menos amados por isso? Mastigo para dar o exemplo aos meus filhos mas tenho o estomago apertado. Eles parecem não notar o meu desconforto ou a falta do pai. Comem, riem, falam do seu dia, como se a ausência de quem lhes proporciona aquele conforto não fosse importante. Percebo que estão mais animados do que é costume. Os gémeos, que nunca falam à mesa, já contaram em versão dupla o episódio da Maria, que levou com a bola no meio da cara e que ficou tão deformada que parecia o Quasímodo. A minha filha mais velha vai soprando comentários depreciativos ao dia dos irmãos, convencida de que o facto de ser uma pré adolescente lhe confere um estatuto mais interessante de vivências.

O meu marido chega com o silêncio. Os miúdos já estão todos deitados. A cozinha arrumada. E eu estou sentada no sofá à espera que ele chegue. Ele entra na sua casa hirto e dispensa-me com um beijo leve no cimo da cabeça. Apresso-me a explicar-lhe que já jantamos, mas que tenho um prato para ele guardado dentro do forno. Corro para a cozinha. E ele atinge-me o ego com a recusa da minha comida.

- Já jantei! Podes é preparar-me um banho de banheira.

Fico ofendida, mas não me atrevo a dizê-lo, nem a demonstrá-lo. Sorriu-lhe e mostro toda a minha felicidade em poder preparar-lhe aquele pequeno prazer do banho. Tempero a água morna com sais cheirosos. Acendo duas velas na beira da banheira e abro a porta da casa de banho para ele entrar. Esqueci-me de colocar, em cima do banco, um roupão de banho lavado. Bolas! Fico nervosa. Não sei se devo entrar de mansinho e pousar o roupão, ou se não devo interrompê-lo agora. Fico ali, a balançar-me naquele dilema. Não quero provocar a sua fúria. Ele está na casa de banho que fica mesmo ao lado do quarto da minha filha mais velha. Tenho de tomar a decisão certa. Levo ou não levo o roupão?

Levo!...

CAPITULO XXIII

 

Explodiu um enxame de abelhas dentro do meu ouvido. O meu olho direito não foca bem a imagem, pelo que prefiro mantê-lo fechado. Todo este estrago apenas com o banco de madeira maciça que repousa inocente ao lado da banheira. É claro que não devia ter interrompido o banho dele. Mas que raio é que eu tinha na cabeça? Nada. Agora tenho um alto que vai levar dias a baixar. Arrasto-me pelo chão da casa de banho, tentando sair do campo de visão do chefe da casa, de forma a não perturbá-lo mais. Do lado de fora daquela divisão, estico o meu braço e fecho a porta sem fazer barulho. Encosto-me à porta imaculada e, finalmente, respiro. Assim que abro as minhas vias aéreas um soluço solta-se. Tapo imediatamente a boca e fico quieta pedindo a Deus que ele não tenha ouvido. Levanto-me sem fazer barulho e em bicos de pés refugiu-me na noite escura. Não acendo a luz do alpendre. Não quero que ele saiba que estou ali. E então, só então, é que eu choro. Um choro sufocado para não ser ouvida. Um choro que me estrangula a garganta teimosa em abrir-se. Um choro que não me é permitido, mas que eu não consigo evitar. O amor dói. Vem escrito em todos os livros entendidos na matéria. Está escarrapachado nas redes sociais de toda a gente. É do senso comum. O amor dói. Mas é melhor ter amor do que não ter. Eu não o sinto. Sou casada com um homem há quase quinze anos e não sinto amor. Mentira. Eu sinto amor. Amor pelo meu marido. Um amor incomensurável pelos meus filhos. Mas sinto apenas o amor que sai de mim. Não sinto o amor que entra em mim. Como se nenhum amor me fosse dirigido. Nenhum amor é lançado na minha direção. É claro que eu sei que os meus filhos me amam. E por sabê-lo tão bem, sei que o problema está em mim. Sou como uma daquelas que pessoas que não sente dor física. Não quer dizer que não estejam a receber o tormento que provoca a dor, ou que não são capazes de provocar dor. Mas não a sentem quando lhe é dirigida. Eu sou assim com o amor. Queria tanto sentir o amor que me é dirigido, com a mesma intensidade com que sinto as ofensas. Mas fui criada num ambiente estéril de amor e agora não o sinto.

O poema invade os meus pensamentos. “E flutuas, como um fantasma, / Por entre o silêncio que jaz / Na tua boca o tormento / De esconder para além da paz / Algum tipo de sofrimento!”. É exatamente assim que me sinto depois de cada agressão. O silêncio é o melhor refúgio que conheço para conseguir manter este sonho de paz, que me custou tanto a conseguir. Vale a pena tapar a boca aos gritos que podem perturbar a paz da minha família. Vale a pena estrangular a minha garganta de modo a garantir um ambiente calmo para os meus filhos. Vale a pena esconder o sofrimento, para que os meus meninos sintam apenas a segurança do amor. Neste ambiente de família, que tanto sonhei, não consigo perceber exatamente o papel das agressões no funcionamento do amor. Tolero-as, porque sempre as sofri. A diferença é que antes eu entendia o contexto das agressões. A ausência total de amor era uma porta aberta para as agressões. Mas num ambiente de família? Num ambiente de amor? Não percebo as agressões. Mas aceito-as.

- Sara! Sara! Onde é que te meteste?

A voz dele fere o meu ouvido bom. Sinto todo o meu corpo retesar-se ao som daquela voz autoritária. O medo paralisa-me e tenho de invocar todas as minhas forças para me mexer. Quando era miúda paralisei uma vez! E aprendi a lição. Nunca devemos paralisar quando estamos sob as ordens de um agressor.

- Já vou!

Entro no quarto abraçada pelos meus próprios braços. Tenho as articulações dos dedos brancas, resultado da imensa força que estou a colocar neles.

- Chamaste-me?

- Sim. Onde raio é que te meteste?

- Estava apenas a tirar carne do congelador para amanhã!

A cozinha era a minha melhor aliada nas pequenas mentiras. Sabia que ele não ia verificar a veracidade do que dizia sempre que usava a cozinha como pretexto. A cozinha não era o seu domínio. Quase nunca entrava na cozinha. Quando tinha fome ou sede, mandava-me ir buscar o que quer que precisasse. Mas ele não entrava na cozinha.

- Desculpa lá ter-te atirado o banco com tanta força!

O seu corpo alto e bem talhado aproximou-se de mim. Eu tremi. A sua mão grande pousou suavemente no meu rosto. Fechei os olhos quando senti o contacto quente daquele gesto.

- Eu sei que a culpa não é tua. Tiveste uma infância largada no mundo, e uma adolescência sem eira nem beira. Não tens culpa de não saber estar. De não teres classe. De não perceberes quando é que estás a ser inconveniente.

Abri os meus olhos e fitei-o. Tudo o que ele estava a dizer era verdade. Mas aquela verdade, dita pela boca dele, magoava-me mais do que um estalo na cara.

- Mas o que importa é, que de entre todas as mulheres que eu podia ter escolhido, eu escolhi-te a ti.

Aquele elogio não me satisfaz.

- Agora vem cá! E vamos esquecer o assunto!

Tenho o ouvido a zumbir. O olho direito dói-me. Se não puser gelo agora ficará inchado no dia seguinte. O toque dele neste momento enoja-me. Olho-o nos olhos e ofereço-lhe um sorriso permissor.

 

CAPITULO XXIV

 

O dia amanhece calmo, mas a minha alma está inquieta. Levanto-me e desço para a cozinha. Começo a preparar o pequeno-almoço. Tostas de queijo e café preto para o chefe da casa. Monto a mesa no terraço. Quando está bom tempo, ele gosta de tomar o pequeno-almoço em paz no terraço. Pouco depois ele desce, seguro naquele fato que o favorece. Só acordo as crianças depois da saída dele. Ele não gosta do reboliço das manhãs das crianças. Fica stressado e o dia não lhe corre bem. Olho para o relógio. Ele já devia ter saído há dez minutos, mas continua ali sentado, com a caneca de café na mão, a olhar para o infinito. Se não acordar já os miúdos, vão chegar tarde à escola. Já adiantei tudo o que podia ter adiantado. Os lanches estão prontos. As torradas dentro do forno para não arrefecerem. O leite em cada copo. Só falta o chefe da casa sair. Mas ele não sai. E já passa quase vinte minutos da hora de acordar as crianças. Começo a ficar nervosa.

- Bom dia mãe. Esqueceste-te de nos acordar?

 A minha filha mais velha encosta-se na ombreira da portada que dá para o terraço. Está despenteada e abre a boca num bocejo. Olho para o chefe da casa que fechou os lábios numa fina linha horizontal. Não está contente.

- Não me esqueci. Estava só aqui a fazer companhia ao teu pai.

- Os teus filhos precisam mais de ti agora do que ele. Ele já é adulto. Pode muito bem levantar o seu próprio prato da mesa e colocá-lo dentro da máquina de lavar louça, como as pessoas normais fazem.

Ele levantou-se e deu um passo rápido na direção da minha filha. Corri para colocar o meu corpo entre os dois. Na minha filha não. É proibido. Ninguém lhe pode tocar daquela forma. Na minha filha não. Nenhum dos dois recuou. A minha menina quase adolescente que tinha menos dois palmos de altura do que o chefe da casa estava ali, de peito feito, a enfrentá-lo. Coitada. Ela não sabe que o agressor ganha sempre. Ainda não sabe. Eu vou garantir que ela nunca saberá.

- Ah! Ela está naquela idade da adolescência!

Solto um risinho nervoso tentando disfarçar o que não tem disfarce possível.

- Pois é papá! Estou naquela idade difícil! Será muito mais fácil quando chegar à idade adulta e arranjar um homem que me ponha um olho à belenenses.

O meu corpo voou com a força do empurrão da mão aberta do homem da casa, enquanto a palma da outra mão livre estalou contra a bochecha rosada da minha filha. Ouvi o meu próprio grito. Levantei-me como se tivesse molas e corri como se fosse feita de vento. Agarrei-o por trás e puxei-o com toda a minha força. Não era suficiente. Era fraca. Não era eu o agressor. O agressor é que ganha sempre.

- Sai daqui! Vai para o teu quarto já!

A minha filha obedeceu ao pai. Virou costas e fugiu com a mão na cara e as lágrimas nos olhos.

Ele virou-se para mim e concentrou-se em mim. Fiquei aliviada.

- Que merda de trabalho é que fazes em casa com os meus filhos?

Um estalo da cara.

- Estás a criá-los como se fossem umas bestas… Uns animais sem educação, como tu.

Um soco no estomago.

- Eu bem devia ter adivinhado que tu nunca darias conta do recado. Onde raio é que eu tinha a cabeça para ter filhos com uma rameira como tu?

Um pontapé na canela esquerda.

- Anda um gajo a matar-se a trabalhar e tu que só tens de educar os nossos filhos e tratar da casa, fazes uma merda de um trabalho destes?

Uma joelhada na virilha.

Não posso cair no chão. Eu sei o que acontece se cair no chão! Só quando ele tiver esgotado as suas forças é que posso deixar-me cair. Até lá tenho que aceitar os golpes, proteger a cabeça e manter-me de pé.

- É assim que me queres atingir? Através dos meus próprios filhos, sua putéfia desgraçada?

As costas da sua mão atropelam o meu ouvido dorido.

Ele grita palavras que não entendo. O meu ouvido começou novamente a zumbir. O meu olho voltou a desfocar. Vou cair. Mas ainda não posso cair. Coloco a minha cabeça entre os meus braços e deixo-me cair. O agressor ganha sempre.

 

CAPITULO XXV

 

O meu corpo não responde. Tenho de levar os miúdos à escola, mas não consigo levantar-me. O zumbido no ouvido. O olho direito desfocado. A narina esquerda não respira. Mexo devagar as pontas dos dedos das mãos, um por um. Mexo os dedos dos pés, um por um. Mexo a cabeça e os ombros. O que mais me dói é a zona das costelas. Provavelmente tenho alguma partida. Inspiro profundamente. Expiro devagar. Se alguma das costelas está partida, não está a prejudicar os pulmões. Faço, então, um esforço sobre-humano para me levantar. Fico de joelhos. Já falta menos. Levanto o meu olhar desfocado procurando um apoio. E encontro os olhos de todos os meus filhos. A minha filha tem o pequenote ao colo, e os gémeos choram enquanto se aproximam de mim devagar. Vejo o medo nos seus rostos. Eles não podem ter medo. Não é assim que quero que os meus filhos vivam. Eles só devem sentir amor. Só devem experienciar coisas maravilhosas para que um dia as possam recordar e voltar a vivê-las com os seus próprios filhos. Tenho de criar essa herança na minha família. Uma herança longa que passe de geração em geração. Só devem recordar abraços quentes e lanches cheirosos. Devem brincar muito, e rir muito, e rodopiar muito. Devem viver felizes. Não quero ver aquele medo no rosto deles. Não quero ver o meu medo refletido no rosto deles.

Abro os meus braços e os gémeos refugiam-se em mim. Eu sou o porto seguro deles. E estou a falhar. Não vejo nenhuma alegria neles. Apenas terror. Eu sei que sou capaz de criar amor. De criar seres humanos capazes de recordar uma infância feliz. Capazes de multiplicarem o amor que lhes vou dar como se fosse sementes.

A minha filha mais velha toma as rédeas da situação. Senta o pequenote no chão. Ajuda-me a levantar e deita-me no sofá. Leva os mais novos todos para o andar superior enquanto dá ordens aos irmãos fingindo ser um sargento com uma falsa alegria.

- A mamã precisa de descansar. Quem consegue escolher a roupa mais bonita para levar para a escola?

Sobem todos num grande alarido. Perco a noção do tempo. Fecho os olhos, só por um segundo, mas sinto que o meu corpo todo se desliga naquele ato de fechar os olhos e a minha mente liga-se a memórias antigas.

Volto a ter treze anos. Estou enclausurada nesta instituição há exatamente seis anos. É a terceira casa que conheço. Quando tinha quatro anos, e a idade provável para adoção já estava ultrapassada sem que nunca ninguém me quisesse, saí da minha primeira casa, uma instituição demasiado grande para tão pouco uso, e fui entregue a uma família de acolhimento. Lembro-me apenas de uma mulher muito grande com um cabelo preto obsessivamente despenteado. Lembro-me de sentir que passava muito tempo sem ver ninguém e que sentia permanentemente fome. Lembro-me das três divisões da casa estarem sempre imundas. Lembro-me de sair para brincar na rua, voltar a entrar em casa, dormir e acordar, sem que visse a mulher. Lembro-me de abrir o frigorífico e todos os armários em busca de alguma coisa que fizesse desaparecer aquela dor permanente na minha barriga. Lembro-me de ser maior do que quando ali cheguei. Lembro-me do dia em que entraram duas senhoras cheirosas na casa acompanhadas por polícias, bombeiros e médicos. Lembro-me do corpo pesado da senhora da casa ser levado numa maca branca para a ambulância. Lembro-me de estarem todos com muita pressa. Mas do que me lembro melhor, é do momentos em que uma senhora com uma bata branca pegou em mim e beijou a minha testa, encostou-me ao seu peito e eu senti o calor das suas lágrimas misturarem-se com o meu cabelo. Fechei os olhos e fui tão feliz naquele momento. Pensei mesmo que aquela senhora ficaria comigo. Mas ela entregou-me às outras senhoras cheirosas e apenas fê-las prometer, em vão, que eu ficaria bem. Nesse dia, eu fazia sete anos. Aquela senhora de bata branca foi a única prenda de aniversário que alguma vez tive. E durou apenas uns minutos. No dia em que fiz sete anos saí da minha segunda casa para a minha terceira casa. Uma casa demasiado grande e fria. Mas pelo menos dão-me comida nas horas certas. Descobri que devia ter frequentado a escola durante o último ano. Nem sabia o que era uma escola. Mas quando entrei pela primeira vez naquela escola primária, o meu coração sorriu. A professora era nova e meiga. Estava sempre colada a ela em busca de um carinho, de um elogio, de um mimo. Era uma boa aluna. Não podia correr o risco de desiludir aquela professora. Foi minha professora durante toda a escola primária. Cada dia daqueles quatro anos eu desejei, com todas as forças, que ela me desejasse também. Mas como todos os outros, quando chegou o dia da despedida deu-me um abraço, um beijo na testa, as suas lágrimas misturaram-se com o meu cabelo e por fim fez a diretora da instituição prometer, em vão, que eu ficaria bem.

Durante dois anos deambulei sem sentido entre a escola preparatória e a instituição. Era um robot que fazia tudo o que me mandavam. Já não era tão boa aluna. Já não tinha uma professora nova e meiga. Então, num dia incerto localizado nos meus treze anos, fui levada a um hospital acompanhada por uma funcionária da instituição. Era das poucas funcionárias que nunca me tinha batido. Mas também nunca olhava na minha direção. Não falamos durante todo o caminho. Estava numa idade em que “me ia tornar mulherzinha”. Esta foi a expressão exata, que a diretora usou quando me chamou ao seu gabinete, para me dizer que eu iria ao médico. Estava farta de saber que em breve iria ter o período. Não percebia aqueles eufemismos para falar do que já sabia. Entramos no hospital demasiado branco. Aquela claridade magoou-me as vistas. Estava habituada às paredes da instituição escuras e húmidas, e às paredes da escola cobertas de grafitis e obscenidades. Sentamo-nos nuns bancos frios e desconfortáveis à espera. Quando a porta do consultório se abriu, vi um senhor pobre em cabelo, mas rico em dentes. Ele sorriu e disse o meu nome. A funcionária levantou-se e fez-me sinal para que a seguisse. O médico com os dentes demasiado salientes dispensou a funcionária. “A Sara já é quase uma adulta. Já tem idade para entrar sozinha e tirar qualquer dúvida que possa ter!”. A funcionária voltou a sentar-se no banco frio e desconfortável, e eu gostei logo daquele médico. Queria muito agradá-lo. Queria que ele gostasse de mim. Ele começou por fazer perguntas sentado na sua secretária e escrevendo no computador, enquanto eu lhe dava respostas vagas. Quando me perguntou se já tinha tido relações sexuais, corei. Mas ele com o seu sorriso gigante, que me fazia questionar se era humanamente possível ter tantos dentes dentro de uma única boca, disse-me para não ficar envergonhada. Afinal de contas entre médico e paciente não há vergonhas, não há medos, nem inibições. Então, eu abanei a cabeça. Nunca tinha tido relações. Ele sorriu mais. Fez-me muitas perguntas íntimas, desconfortáveis. Levantou-se e tirou a minha camisola sem qualquer meiguice. Depositou a sua mão papuda sobre o meu seio e perguntou-me se alguém já me tinha tocado ali, daquela forma. A sua mão massajava devagar o meu seio. Permaneci calada. Era um contacto humano. Gostava que me tocassem. Que me abraçassem! Não queria que o calor da sua mão se afastasse de mim. Então ele beliscou-me o mamilo com força e eu abri os olhos e soltei um grito. Ele riu-se e voltou a perguntar-me se alguém já me tinha tocado nas mamas. Abanei a cabeça. Nunca ninguém me tinha tocado assim. Ele voltou a sorrir com aqueles dentes todos. Fez-me sinal para que me levantasse. Mandou-me tirar as calças e as cuecas. Fiquei imóvel. Ele encostou-se à secretária a olhar para mim. Para as minhas mamas nuas. Como não obedeci, ele aproximou-se, encostou o seu corpo anafado ao meu e desapertou os botões das minhas calcas de ganga. Puxou-as para baixo juntamente com as cuecas. Ficaram presas nos meus joelhos. Ele afastou-se e eu despi-as desajeitadamente e com pressa. Queria que ele se aproximasse de mim novamente. Queria muito que ele me abraçasse. Já não era abraçada há muito tempo. Como se ouvisse o meu pedido silencioso ele aproximou-se de mim e abraçou-me. A sua respiração era apressada e fazia-me cócegas no ouvido. Mas não me atrevi a mexer. Estava a ser abraçada. As palmas da sua mão contra a minha pele eram um aquecimento para a minha alma. Então, ele afastou-se e mandou-me deitar na marquesa. Aquela interrupção do abraço deixou-me desconfortável e inquieta. No entanto, obedeci. Faria qualquer coisa para ter outro abraço. Deitei-me na marquesa. Ele colocou uma das minhas pernas num suporte e depois afastou a outra perna e colocou-a noutro suporte, deixando-me assim exposta e com frio. Será que haveria mais algum abraço? Tocou-me onde nunca imaginei ser tocada. Abriu-me ainda mais. Expôs-me ainda mais. E observou. Perguntou-me novamente se já alguém me tinha tocado ali. Abanei a cabeça. Nunca ninguém me tinha tocado ali. Então, ele tocou. Primeiro com meiguice e depois esfregou a sua mão como se estivesse a limpar um espelho embaciado. Tirou uma máquina fotográfica da gaveta e fotografou onde nunca ninguém me tinha tocado. Fotografou de vários ângulos. Com os seus dedos a abrirem o que estava fechado. E depois de repente atirou a máquina fotográfica para cima da poltrona, desapertou o cinto das suas calças, e baixou-as com uma pressa aflitiva. Depois só senti a dor aguda e a insistência bruta e selvagem. Olhei para ele, assustada. Ele arfava e estava muito vermelho. Os seus olhos estavam revirados como se ele estivesse possuído por algum demónio. Os movimentos eram repetidos e rasgavam-me as entranhas. Já não lhe via os dentes. Já não sentia calor humano. Já não era abraçada. Só queria que aquilo acabasse. Fechei os olhos com muita força e pedi que aquilo acabasse depressa. Então, como se as minhas preces fossem ouvidas ele caiu em cima de mim cansado e as minhas entranhas murcharam finalmente como uma esponja cheia de água depois de ser espremida. Sem olhar para mim atirou-me um rolo de papel higiénico e mandou-me vestir. Obedeci devagar. Sentia dores onde nunca tinha sido tocada. Fiquei paralisada quando vi um fio se sangue no papel higiénico, mas não me atrevi a perguntar. Sentei-me novamente de frente para ele com a secretária a separar-nos. Disse-me que estava tudo bem comigo. Que o sangue que tinha visto era mais ou menos o que aconteceria em breve quando fosse menstruada. Fiquei mais aliviada por saber que era normal. Depois levantou-se, e eu levantei-me também. Ele olhou para mim, durante uns momentos, e perguntou qual a parte da consulta que me tinha agradado mais. Eu sorri. Estava feliz porque ele queria saber o que me fazia feliz. Ele importava-se com a minha vontade. Então disse-lhe que tinha gostado muito dos abraços. Ele prometeu-me que teria muitos abraços desde que não contasse o que tinha acontecido na consulta. Eu prometi o meu silêncio, e ele cumpriu o prometido. Abraçou-me durante uns longos minutos. E eu fiquei feliz.

Entregou-me à funcionária. Deu-me mais um abraço, um beijo na testa e fê-la prometer, em vão, que eu ficaria bem.

Foi o princípio de muitos abraços.

 

CAPITULO XXVI

 

Já não sinto o zumbido no ouvido e as nódoas negras já se podem disfarçar. Fiz uma tarte de maçã, para oferecer à minha vizinha da frente, como forma de agradecimento por ter levado os meus filhos todos às respetivas escolas. Naquele dia fatídico, a minha filha mais velha pediu à vizinha que os levasse, por favor, à escola, porque a mãe estava doente em casa. A vizinha apenas cedeu com um sorriso bondoso e levou todos os meus filhos às respetivas escolas. Ligou-me perto da hora de almoço e ofereceu-se para ir buscá-los no fim do dia. Aceitei de bom grado aquele gesto sem pensar bem no que estava a fazer. Só queria estar deitada de olhos fechados pelo máximo de tempo possível. Mas quando chegou a hora em que ela trouxe os meus filhos, ela viu-me como eu não queria ser vista. Lembrei-me do meu aspeto repugnante. O olhar dela, demasiado aberto, lembrou-me desse meu aspeto repugnante. Ela entregou-me os miúdos. Deu-me um abraço forte. Senti as suas lágrimas misturarem-se com o meu cabelo, e fez as crianças prometerem, em vão, que eu ficaria bem.

Tenho de ir a casa dela, garantir que ela me vê, como realmente sou. Uma mãe dedicada, com uma família feliz e uma casa cheia de amor. Vou levar-lhe a tarte de maçã que cheira maravilhosamente e ainda está quente. Ela esquecerá com toda a certeza a Sara do outro dia. Levei mais tempo a disfarçar o que resta das nódoas negras, com uma maquilhagem impecável, do que a fazer a tarte. Mas o resultado vale a pena.

Ela abriu a porta, depois de a campainha replicar duas vezes, e reparei que toda a sua boca era admiração.

- Olá vizinha! Trago-lhe aqui uma tarte de maçã. Ainda está quentinha!

Ela pegou na tarte sem sequer olhá-la. Os seus olhos estavam colados em mim, e comecei a sentir-me desconfortável.

- Ainda está quente!

E os olhos mantiveram-se firmes em mim.

- É para agradecer o que fez por nós no outro dia! Se não fosse a vizinha os miúdos tinham faltado à escola. Muito obrigada!

Ela finalmente olhou para a tarte e eu finalmente relaxei os ombros.

- Claro! Tarte de maçã! Que bom! Adoro tarte de maçã! Aliás gosto de tudo o que é doce e engorda.

Soltou uma gargalhada nervosa.

- Entra! Vamos provar esta tarte juntas!

- Oh! Não sei se é boa ideia! Tenho ainda de tratar da roupa e lavar os tapetes e tratar da casa para estar tudo pronto quando os miúdos chegarem a casa. Sabe como é?

Mas ela não sabia. Não sabia como era importante ter tudo preparado para quando a família chegasse a casa. A casa dela era uma confusão. Como se um vulcão de roupa tivesse entrado em erupção em plena sala de estar. O corredor tinha pequenos brinquedos de todas as cores e feitios. Legos, braços de bonecas sem as bonecas, skates, bolas e bolinhas… Quando cheguei à cozinha a desarrumação tomou outra dimensão. Havia louça por lavar dentro da pia. O mesão estava sujo e com demasiadas coisas que pertenciam ao frigorífico por ali espalhadas.

- Vou fazer um café. Ou preferes um chá?

A voz dela arrancou-me da minha admiração. Como é que ela podia aparentar estar feliz com a casa naquele caos?

- Prefiro um café preto sem açúcar.

Com um único movimento de braço ela empurrou um número elevado de coisas para o lado fazendo espaço para colocar a tarte e duas chávenas de café fumegantes.

- O teu nome é Sara, certo?

Abanei a cabeça, confirmando, enquanto bebericava o café. Era surpreendentemente bom. Melhor do que o meu.

- Hum! O café é tão bom!

- O mérito é todo da cafeteira!

Rimos. Era uma nova sensação! Rir com outra mulher. Gostei tanto da sensação que esqueci por momentos a desordem que reinava à nossa volta.

- Somos vizinhas há tanto tempo e nunca nos tínhamos falada para além daqueles cumprimentos habituais.

Concordei com ela.

- Temos de começar a fazer isto mais vezes!

Concordei com ela.

- Esta tarte está mesmo uma delícia!

Concordei com ela.

- Pareces estar melhor!

Concordei com ela!

- Ainda estou a recuperar. Foi uma queda feia!

Ela não concordou comigo.

- Estava a pôr roupa na máquina para lavar e devia ter detergente no chão, e escorreguei!

Ela não concordou comigo.

- Sara! Eu sei que tipo de ferimentos eram aqueles. Eu sou, quer dizer fui, durante muitos anos assistente social numa associação que ajudava mulheres vítimas de violência doméstica.

Enfiei o que restava da minha tarte na boca, enchendo-a demasiado e apressei as despedidas. Tinha de ir embora. Tinha deixado uma sopa ao lume. Mas devíamos voltar a tomar um café num outro dia qualquer. Outro dia qualquer. Não aquele dia. Outro dia qualquer.

Adeus.

 

CAPITULO XXVII

 

Comecei a reparar no quotidiano da vizinha desarrumada. O marido devia ser médico. Entrava sempre em casa com uma bata branca enrolada no braço, e numa das vezes tinha um estetoscópio esquecido pendurado do pescoço. Tinham dois filhos em idade escolar. Aquele chefe de família chegava a casa e brincava muitas vezes com os filhos no jardim. A vizinha desarrumada levava-lhes sumos frescos ou água em copos grandes e deitavam-se todos sobre o relvado a conversar. O chefe de família parecia não se importar com a casa desarrumada. Mas o que realmente me tocou foram os abraços constantes entre aquele chefe de família e os filhos. E os beijos apressados e apaixonados entre ele e a vizinha desarrumada. Seriam felizes? Seriam mais felizes do que a minha família?

Os meus filhos estavam todos na sala imaculada. A mais velha estava com o telemóvel na mão a teclar freneticamente. Os gémeos estavam a ver desenhos animados cada um com um brinquedo na mão. Apenas um brinquedo era autorizado, para que não houvessem brinquedos desarrumados quando o chefe da nossa casa chegasse. O mais novo estava sentado numa espreguiçadeira a saborear um brinquedo que já havia pertencido aos irmãos. Nenhum deles ria alto. Os risos estridentes vinham da casa da vizinha desarrumada.

- Então, meninos? Querem ir brincar no jardim?

Queria ouvir as gargalhadas estridentes dos meus filhos.

- Podemos?

Os gémeos tinham-se manifestado em uníssono.

- Claro que podemos! Vamos todos!

Fomos para o jardim. Senti o cheiro da relva cortada e inspirei-o como se quisesse guardar no olfato aquele memória que iria criar com os meus filhos. Assim que chegamos ao jardim, eles sentaram-se a olhar para mim. Senti-me um pouco desiludida. Pensei que eles começassem a rebolar na erva e a rir.

- Então, mamã? Vamos brincar a quê?

Aquela pergunta desmoronou toda a minha esperança numa nova memória futura. Os filhos da vizinha desarrumada nunca tinham feito aquela pergunta. Apenas chegavam ali, brincavam, abraçavam os pais, puxavam as camisolas uns dos outros e atiravam-se ao chão. Mas ninguém perguntava aquilo. Percebi que os meus filhos não sabiam brincar. Não consegui evitar. Chorei!

- Não chores mãe! Mas tens de perceber que não estamos habituados a vir aqui para fora. Tu tens regras para tudo. Para teres tudo perfeito para quando o papá chega a casa. E agora trazes-nos para aqui e dizes, brinquem… Temos de saber as regras primeiro! O que é que não podemos fazer. Quantos brinquedos podemos ter em cada mão. Se podemos sujar esta roupa… Sei lá… Essas coisas todas!

A minha filha mais velha acabou de me dar uma tareia. Fiquei ali a olhar para ela. Desde quando é que ela tinha tanta sabedoria? Desde quando é que ela tinha aquele tipo de clarividência? Desde quando é que ela sabia tanto sobre não ser livre?

O chefe da casa chegou mais cedo. Ainda estamos sentados no jardim. Enxuguei o que restava das minhas lágrimas e uma nova esperança tomou conta de mim. Acenei ao chefe da casa para que se juntasse a nós. Vi-o sair do carro com o fato perfeito e a gravata um pouco larga, indicando o fim de um dia de trabalho. Não correu para nós. Então incentivei os nossos filhos a correrem para ele. Eles levantaram-se sem perceberem bem o que deviam fazer. Aquela falta de confiança, de intimidade entre pai e filhos incomodou-me. Então, levantei-me e fui ao encontro do chefe de família.

- Vamos todos dar um grande abraço ao papá.

O chefe da casa sorriu! E deu umas palmadinhas cordiais nas costas de cada um dos filhos, como se eles fossem sócios na empresa. Então, os gémeos, entusiasmados com aquela nova permissão do pai, começaram a trepar por ele acima, e caíram os três ao chão. Eu ri alto. Eu parei de rir alto, assim que os meus olhos se cruzaram com os olhos do chefe da casa. Ele levantou-se atabalhoadamente e começou a sacudir as calças. Entrou em casa a resmungar e a distanciar os filhos com a mão como quem enxota galinhas. Os gémeos ficaram a olhar para mim perdidos, sem perceberem bem se tinham feito o que era esperado deles ou não. A minha filha mais velha pegou no irmão mais novo e entrou em casa abanando a cabeça e resmungando entredentes! E eu olhei para a casa da vizinha desarrumada. Naquele silêncio uma rajada suave de vento trouxe o som dos gritos felizes de duas crianças que brincavam sem limites de felicidade.

Foi isso que fiz. Estabeleci tantas regras em busca da família feliz, que acabei por limitar a felicidade dos meus próprios filhos. Como podemos saber a dimensão da felicidade se temos o nosso campo limitado por arame farpado. Em vez de sermos felizes dentro daquele campo minado, somos ignorantes sobre a dimensão da própria felicidade.

O chefe da casa não estava feliz com aquela receção. E fez questão de o demonstrar quando se recusou a jantar na nossa presença. Mas também não se prejudicou com fome. Apenas exigiu que lhe servisse o jantar no escritório, de forma a colocar a sua cabeça de novo em ordem. Eu não fazia ideia de como era perturbador, para ele, ver que eu não era capaz de manter a ordem dentro da nossa casa. Estraguei-lhe o resto do dia. Queira Deus que isto não o perturbe no dia seguinte, causando-lhe um stresse desnecessário. Será que era muito difícil manter os miúdos dentro de casa limpos e asseados sem grandes alaridos?

Deixei-o sozinho no escritório com o seu jantar e só depois fui dar comida aos meus filhos. Todos eles tinham percebido que tínhamos saído fora do limite do arame farpado e estavam nervosos. Tentei mostrar uma calma aparente, mas que não os contagiou.

- O papá não vai jantar?

Um dos gémeos deu voz á dúvida de todos os irmãos.

- Não vês que o senhor todo o poderoso não ficou feliz. Ele lá quer saber dos nossos beijos ou abraços. O nó perfeito da gravata é mais importante do que nós!

- Não digas isso, filha! O vosso pai gosta muito de vocês. Apenas está com dor de cabeça.

A minha filha olhou-me com uns olhos marejados de raiva. Atirou o seu prato sobre a mesa sujando a toalha de linho.

- Dor de cabeça? Mas qual dor de cabeça? Achas que nós somos tolos? Tens a casa limpa arejada e cheia de luz e a cabeça cheia de merda!

- Não fales assim!

A minha garganta largou uma voz estrangulada e pouco autoritária.

- Falo como bem me apetecer? Tenho andado calada a fingir que não vejo. Mas vejo tudo. Esse cabrão que é meu pai enche-te de porrada, e não é por causa da dor de cabeça. É porque ele não presta. Tem dinheiro aos magotes, mas tu tens de apresentar o recibo das compras para ele controlar o troco que tens de lhe dar. Não tens direito sequer a um cartão de crédito. Andas com as moedinhas contadinhas. Enquanto as amantes dele andam a cheirar a Chanel. Estou farta de viver neste meio cheio de hipocrisias.

- Mas nós amamos-te muito! A ti e aos teus irmãos!

A minha voz sumiu-se naquele furacão, abafada pelo choro dos gémeos e os gritos do meu mais novo. A minha filha estava tão vermelha que não lhe reconheci o olhar inocente que costumava a ter. E ela não viu que estava a cavar um buraco fundo nos medos dos irmãos. Nos meus próprios medos.

- Amor? Tu vives no meio do medo como um porco vive no meio do esterco! E o pai sabe lá o que é amor. A única coisa que sinto realmente nesta casa é medo e ódio. E pena. Tenho muita pena de ti!

A minha filha finalmente chorou. Sucumbiu a um choro histérico, que atraiu o chefe da casa como um abutre é atraído pela carne putrefata.

- Andas a passar todos os limites. A tua mãe é uma fraca que não tem mão em ti. Mas comigo tu não brincas!

Os olhos do chefe de família estavam abertos de esperança num novo confronto. Voltei a ganhar forças quando o vi a cavalgar na direção da nossa filha. Deu-lhe uma chapada que a fez cair. A segunda chapada em poucos dias. Estava tudo a fugir do meu controlo. Os gémeos choraram ainda mais alto e correram para a irmã caída no chão. Ele voltou a levantar a mão para os meus filhos.

- Os meus filhos não!

O meu grito desumano foi uma forma de ser escutada. Ele olhou na minha direção surpreendido. E eu bati-lhe com a cadeira na lateral da sua face perfeita. Ele desequilibrou-se mas não caiu. Os seus olhos faiscaram uma nova felicidade. Tinha a desculpa perfeita para fazer o que mais gostava. Agredir-me sem limites.

- Leva os teus irmãos para cima, para o teu quarto e tranca a porta.

A minha filha mais velha não precisou de segunda ordem. Vi-a parar no primeiro degrau da escada e olhar para mim, vacilante, a chorar. Já não tinha raiva nos seus olhos. Apenas medo. Os seus lábios moveram-se silenciosamente só para mim “Amo-te mãe”

Ali havia amor! Fiquei feliz. Ensinei alguém a amar! E pela primeira vez senti o amor que me é dirigido!

O meu maxilar estalou com o soco estridente. Desta vez ele não começou devagar. Não seria de forma ascendente. Ele faria uso máximo da sua força. Só me resta proteger a cabeça. O agressor ganha sempre.

 

 

CAPITULO XXVIII

 

Acordo deitada sobre o meu próprio sangue já seco. O meu cabelo está empapado. Olho através da janela dupla e vejo que é noite. Senti o extremo mais oblíquo da dor, e só nesse angulo agudo, onde nenhum ser humano cabe, é que fui capaz de ver tudo com uma clarividência própria de um estado superior. Eu sabia exatamente o que tinha de fazer. Peguei numa faca pequena mas pontiaguda e flagelei a minha própria pele. Não senti dor. Apenas alívio. Estava naquele lugar onde nenhum ser humano cabe. Onde já não há espaço para mais nada. Não existe espaço para o medo, ou para a dor. Não há espaço para memórias ou dúvidas. Todo o espaço é preenchido apenas por uma certeza.

Não choro. O meu peito não foi feito para soluçar! Agora sei disso!

Subo a escada encoberta pela escuridão e pelo silêncio. Vou ao quarto da minha filha mais velha. Acordo-a.

- Vamos sair daqui filha!

- Mas para onde é que vamos?

- Confia em mim querida! Vamos para onde nenhum mal nos possa alcançar.

Acordamos os gémeos e o meu mais novo. O silêncio é nosso aliado. Entramos todos no meu carro. Dou a cada um dos meus filhos um pacote de leite achocolatado. Eles não jantaram. Bebem sofregamente até à última gota sem questionar o verdadeiro conteúdo daquele pacote. Confiam em mim cegamente. Mas infelizmente estamos num mundo onde o medo é mais forte do que a confiança. Onde o ódio é mais sentido do que o amor. Onde o agressor ganha sempre.

Os meus filhos adormecem no banco traseiro. Os gémeos nas suas cadeiras como as cabeças encostadas como se ainda estivessem dentro do meu útero. A minha filha mais velha com o mais novo no colo, ambos de boca aberta e com uma respiração profunda. Aperto o botão certo para abrir o portão da garagem. Ligo o motor do carro e saio. Quando viro a esquina da rua olho pelo retrovisor e vejo pela última vez a casa onde depositei todas as minhas esperanças. Ali ficaram as memórias que ninguém recordaria. Ali ficou a minha tentativa de criar uma herança de amor, que passasse de geração em geração como um anel antigo de família. Ali ficou todo o meu medo e terror. Mas eu consegui gerar uma semente de amor. E essa eu levo comigo, dentro daquele carro.

O porto velho está escuro. A rampa de dá acesso ao mar está livre de barcos. Mas eu não quero a rampa. Coloco o carro na posição certa. Beijo cada um dos meus filhos e acaricio as suas faces rosadas. Murmuro um amo-te no ouvido de cada uma deles. Ofereço-lhes a minha última lágrima. E acelero em direção ao futuro.

 

 


CAPITULO XXIX

 

Estão todos chocados com aquele cenário de horror. Uma mãe com os seus quatro filhos. Mortos. Afogados. Dentro do carro. Mas o que provoca a bílis daqueles homens grandes e vividos é o corpo martirizado da mulher e o poema tatuado pela ponta afiada de uma faca no seu tronco nu.

 

Sempre que a lua se apaga

E o nevoeiro se acende,

O brilho da alma não rende

O corpo dorido em chaga!

E a vontade apertada no peito

Provoca o choro dos desalmados,

Aqueles que nunca amados

Cavalgam as dores a eito!

Nesta correria de vivências

O meu metabolismo é lento,

Porque recito poesia sem pressa!

Eu não quero o amor em gorjetas!

Finalmente, aceito o que interessa!

Esta vida não é para poetas!

 

    FIM

                                                                                                        Maria Gaspar

domingo, 13 de março de 2022

 

PARTE VI


 

CAPITULO XIX

 

Vê o que te é devido ver!

Sem entraves ou vergonhas!

Que do saco das cegonhas

Veio quem de verdade quer ver

Tudo que és capaz de ser!

 

Sê o que te é devido ser

Para quem o teu útero pariu!

Mesmo o outro que sorriu

Não se compara no ser

Daquele que te quer ter!

 

Tê o que te é devido ter!

O amor que Deus te der

Os outros não vão aumentá-lo

Quando muito vão tirá-lo

Antes que consigas ver!

Esfrego a palma enrugada da minha mão no papel A4 que encontrei amarrotado dentro da minha mala. Parece uma bola improvisada de basquete que alguém tentou encestar com sucesso na minha velha mala de pele, antes preta e agora apenas sem cor. Já não troco de mala há muito tempo. Já não compro uma mala há muito tempo. Já não tenho uma vaidade há muito tempo. Estou perdida nos meus pensamentos. Tão perdida nos meus pensamentos que já nem sinto, já nem ouço, já nem vejo os meus sentimentos. Estou aqui como estou, vivendo como posso, movendo-me como se estivesse ativada por um controle remoto. Li o que o papel me dizia. Li cada palavra que aquele papel me dizia. Li cada mensagem que aquele papel me dizia. E só depois de ler, olhei para o que estava escrito. Um poema. E só depois de olhar é que vi! Vi e chorei, porque há muito tempo que não queria ver. Neste momento, continuo a reler aquele poema escrito atabalhoadamente numa folha amarrotada como se fosse um cábula. Uma cábula cuja serventia é lembrar-me do que estava esquecido para o meu grande teste final. Volto a reler. Sei que já consegui ver o poema e finalmente começo a senti-lo. Paro! Tenho os olhos turvos com o regresso daqueles sentimentos em turbilhão. E as memórias. Ai as memórias são o alimento dos sentimentos. E são tantos. E são tantas. E o meu peito de tão vazio murchou. Murchou tanto que agora falta espaço para tantos e para tantas. Falta-me o ar. Choro em soluços. Falta-me o ar. Eu peço a Deus que o meu peito volte a expandir para o tamanho incomensurável que tinha quando o Zeca nasceu. Mas o meu peito murchou. E agora é pequeno para tantos sentimentos, para tantas memórias. Pouso o papel em segurança, longe das minhas lágrimas, para que o poema não zombe mais de mim. Aquele papel agora liso e leve mostrou-me que a verdade não tem peso. O que nos pesa é o engano, o que é falso, o que não tem valor. A verdade é simples e leve. Mas os olhares alheios são brutos. Os julgamentos são pesados. Os dedos apontados são tiros certeiros num peito cheio. E são tantos os dedos. E são tantos os tiros. Que o peito murcha! E as memórias voam para longe, levando consigo os sentimentos.

Ouço uma musicalidade vinda da porta. Tum tum tum! Primeiro pensei que o meu coração tivesse voltado a bater. Mas não. Era o punho firme de alguém que me queria ver. Arrastei-me até à porta. Na verdade não queria abri-la. Não queria contacto com ninguém naquele momento. Mas todos ou qualquer um saberiam que estou em casa. E depois? O que pensariam? O meu falecido marido ter-me-ia dito “Que se lixem!” e o seu olhar desafiador ter-me-ia derretido até ao mais íntimo de mim. Não inventei, nem supus esta atitude do Júlio. Trata-se de uma memória longínqua que voltou embrulhada no meio de todas as outras. Uma memória doce e marota. Uma memória de há dez ou quinze anos atrás. Ou talvez mais. Deixei de contar o tempo quando perdi as memórias! Já não éramos propriamente novos. E eu estava chateada porque alguém me tinha preguntado se o Zeca já tinha arranjado finalmente uma namorada. Ele estava a terminar o curso nessa altura e nunca lhe tinha conhecido uma namorada. Nunca demonstrou interesse em nenhuma rapariga. E eu no fundo sabia que alguma coisa de errada se passava com o meu filho. Mas ele era tão inteligente. Bom aluno. A terminar o curso de engenharia mecânica com distinção. Mas isso não era suficiente para apagar o olhar daquela mulher que me perguntava pela namorada do Zeca. Nada era suficiente para acalmar a chama maldosa que via nos olhares quando falavam da vida amorosa do meu Zeca. Estava azeda com aquilo. A dizer barbaridades. E o Júlio pegou em mim e despiu-me devagar com um sorriso malandro nos olhos. E eu cedi, entre o prazer e uns risinhos envergonhados. Alguém bateu à porta naquele exato momento. Tum tum tum! Alonguei o braço para pegar no meu vestido largado, ali, sem pudor. Ele encarou-me e disse-me “Que se lixem!”. Eu gaguejei “ Mas sabem que estamos em casa!”. Tum tum tum! Ele piscou-me o olho prometedor e repetiu “Que se lixem!”. Eu ri-me, encantada com aquela sugestão. Estiquei mais o braço, agarrei no vestido e fui abrir a porta. Tal como fiz agora.

 


CAPITULO XX

 

- Olá Maria Rita! Vim aqui trazer-te um doce de abóbora que fiz ontem!

A Zulmira entrou mesmo antes de receber um convite formal para entrar. Eu sabia bem o motivo daquela visita. Já tinha recebido outras tantas visitas iguais. E abri sempre a porta. Só não abri a porta ao responsável por todas aquelas súbitas visitas. Ao culpado. Ao meu filho! Peguei no frasco de doce e arrumei-o junto a todas as outras dádivas das outras visitas. Em breve terei a despensa cheia. Quase sorri perante esta ideia. Mas os meus lábios estão ressequidos de todo este amargo que me domina a boca.

- Obrigada Zulmira! Deve estar delicioso!

A Zulmira sentou-se na cadeira que lhe pareceu melhor escolha. Sentou-se na cozinha como se fizesse parte da família. Antes de se sentar encheu a cafeteira de água e carregou no botão para que fervesse. Fê-lo como se fosse da família. Quando o meu Zeca veio cá a casa entregar-me o convite de casamento, sentou-se na sala como se fosse visita.

- Então o teu rapaz vai casar?

Lá estava aquele olhar luminoso, desesperado por ver-me assumir o meu falhanço como mãe! Aquele prazer mal escondido que esperava ser alimentado pelas minhas palavras. Tinha poucas palavras para aquela conversa. Não daria o prazer que aqueles olhos exigiam.

- Sabes tanto quanto eu!

Os olhos não estavam satisfeitos com aquela resposta. Levantei-me para preparar o chá. Quando peguei na cafeteira com a água a escaldar, tive vontade de verter aquele líquido a ferver pela cabeça abaixo daquela mulher. Cheguei mesmo a fechar os olhos e ver claramente a sua pele a desfazer-se e a escorrer pela bochecha e pelo queixo, deixando-a disforme. Abanei a cabeça para afastar aqueles pensamentos. Há muito tempo que não pensava. Mas aquele poema despertou alguma coisa em mim “Vê o que te é devido ver!”. Eu via maldade naquele momento. E via culpa. Até então via toda a culpa no meu Zeca. Mas agora via a culpa nos olhos daquela mulher a quem abri a porta como se fosse da família. Ela só gosta de chá de camomila, por causa dos nervos. Fiz chá preto!

- Com quem é que ele vai casar?

- Não sei. Não conheço!

Os olhos continuam famintos da minha fraqueza!

- É verdade que vai casar com outro homem?

As minhas entranhas revolvem-se. A voz do Júlio que andava calada desde a sua morte surgiu junto do meu ouvido doce e compreensiva “Que se lixem!”.

- Sim!

Os olhos continuam glutões!

- E conheces esse rapaz? É alguém conhecido? Já não vejo o Zeca há alguns anos. Deve ser alguém lá da capital, não?

Sinto as minhas pupilas tremerem como se estivesse a chocar uma enxaqueca. E a voz marota do Júlio a desafiar-me “Que se lixem!”.

- Não conheço o outro rapaz, mas é capaz de ele ser conhecido de alguém. Não acredito que tenha passado a existir apenas para servir o Zeca!

O sarcasmo na minha voz surpreendeu-me. Baixei os olhos antes que ela pudesse ver o meu atrevimento! E a voz do Júlio “Que se lixem!”. E as palavras do poema “Sê o que te é devido ser”.

- Vais ao casamento? Eu cá não ia! Nunca se viu uma coisa assim. Dois homens juntos! Que Deus Nosso Senhor nos livre de tal coisa! Ai se o meu Rogério desse para isso eu dava-lhe tanta porrada naquele lombo até ele se embeiçar por uma rapariga. Mas hoje em dia é tudo assim. Todos podem tudo. Uma pouca-vergonha é o que é! E anda uma mãe a criar um filho para isso! Agradeço todos os dias o meu Rogério que é um homem de verdade. Até já me deu o primeiro neto!

As memórias soltaram-se e os sentimentos emergiram à tona do meu peito novamente inchado. E toda eu era fogo! E toda eu era eu! E toda eu era mãe! E toda eu era o que me era devido ser!

- Sai da minha casa e é já! Nunca mais, mas nunca mais te atrevas a comparar o tolo do teu Rogério que tem o cérebro do tamanho de uma ervilha com o meu Zeca que é muito mais homem do que todos os teus homens juntos… Rua! E nunca mais te atrevas a olhar na minha direção ou na direção do meu filho. E se alguma vez te atreveres a olhar para ele, verga-te, porque não estás à altura dele! Rua! Já! Sai da minha casa! Sai daqui para fora e nunca mais voltes! Vai! E leva contigo esse veneno todo! Rua! E nunca mais te atrevas a olhar para mim ou para o meu Zeca, velha azeda! Rua!

O frasco de doce atingiu a calçada da entrada da minha casa. Fiquei ali a ver os salpicos cor de laranja antes de encarar os vizinhos que tinham saído ao encontro dos gritos. Teria gritado assim tanto? Fiquei paralisada por uns segundos. Talvez uns minutos. Ninguém, se atreveu a mover. Ninguém olhou para mim com curiosidade ou troça. Apenas com surpresa. A vizinha da frente, uma solteirona que nunca me dirigiu mais do que duas palavras juntas começou a aplaudir e riu alto. Muito alto. Eu voltei a encolher os ombros, colei novamente o estomago às costas, baixei o queixo e os olhos e voltei para dentro da minha casa, da minha concha! Assim que fechei a porta nas minhas costas olhei em frente para o vazio e fiquei à espera de chorar. Mas não chorei! Então esperei que a vergonha e o arrependimento me tomassem de assalto! Mas nenhum dos dois apareceu. Fiquei ali. E pela primeira vez desde a morte do Júlio senti-me livre. Abri os braços e dancei como se estivesse novamente num bailinho de São João arrastada pela música e pelo seu corpo forte. “Que se lixem!”.

 

 

CAPITULO XXI

 

Abri os olhos e fixei um ponto imaginário no teto. Estava escuro, porque ainda não era dia, ou porque só havia noite em mim. Olhei para o relógio para me certificar qual das verdades era mais verdadeira. Ainda era noite. Fechei os olhos e chamei o sono, como se ele me obedecesse. Não me ligou nenhuma. Mas continuei a desejar o sono, apesar de ele me desafiar e de não cumprir com a expectativa que colocava nele. O Zeca também me desafiou. Defraudou todas as expectativas que coloquei nele. E eu deixei de o desejar! Mas desejo o sono, apesar de não me ser nada. Sinto falta do sono. E sinto falta do Zeca. Dos seus olhos brilhantes em busca de aprovação nos meus. Como naquele dia em que ele terminou a lista de prendas que queria pelo natal. Pediu uma barbie não sei das quantas e o carro da barbie e mais não sei o quê da barbie. Andava na escola primária. E ali com a lista estendida para mim, não vi um menino cheio de esperança na generosidade do pai natal. “Achas que me portei bem este ano, mamã?”. Os seus olhos brilhavam e os meus endureciam a cada palavra daquela lista. “Que raio de rapaz és tu? A pedir bonecas? Tens de pedir é carros ou legos ou uma bola!”. Não vi que ele encolhia a cada palavra minha, assim como ele não via que eu encolhia a cada olhar de gozo que nos lançavam na rua. “Mas eu não gosto de brincar com essas coisas! Gosto de brincar com as barbies da Vanessa!”. O som do estalo soou antes de eu perceber que a palma da minha mão estava a latejar de dor. O seu rosto vermelho brilhava polido por lágrimas e ranho e eu fiquei ali sem ser capaz de abraçar o meu próprio filho. O Júlio chegou e abriu os seus braços para ele. Limpou-lhe as lágrimas e o ranho na manga da sua própria blusa. Pegou na lista caída no chão e beijando o filho lá o foi consolando. Ele viu aquilo que eu não tinha visto na lista. Aquilo que só agora consigo ver. Disse-lhe que ele era um bom menino e que era o melhor aluno da sua sala. Disse-lhe que a lista estava escrita com uma letra muito bem-feita e sem erros, e que o pai natal ia ficar muito feliz por receber a carta dele. Disse-lhe, “Se existe alguém neste mundo merecedor destas prendas, és tu meu amor!”.

Acordei sobressaltada do outro lado da cama. Daquele lado que não era meu. Acordei do lado da cama que pertence ao Júlio. O lado que tem estado imaculado desde a sua morte. Saltei da cama como se fosse um gato usando uma nova vida. E vi a cama toda revolta. Toda usada. Apressei-me a puxar a roupa para cima. Não queria ver aquela imagem da cama toda usada por mim. Só por mim. Fiz a cama meticulosamente como fazia sempre. Olhei para a cama feita e insatisfeita com o resultado passei a palma áspera da minha mão alisando os altos que ainda conseguia ver. Dei um passo atrás e inspecionei o meu próprio trabalho. Pronto. Estava perfeito! Fiquei ali com a cabeça descaída sobre o ombro esquerdo. A cama estava realmente bem-feita. A colcha lisa escondia bem os lençóis usados e amarrotados. Que imagem bonita! Que mentira perfeita. A verdade dos lençóis usados, emaranhados, amarrotados estava camuflada pela beleza enganadora de uma colcha imaculada. O que pensariam de mim se entrassem no meu quarto e encontrassem a cama naquele estado quase idílico? O que pensariam de mim se entrassem no meu quarto e encontrassem a cama exatamente com a revolta que tinha há apenas dez minutos atrás? Sou exatamente a mesma pessoa antes e depois de a cama estar feita. Mas o julgamento dos outros faria de mim aquilo que não sou. Eu julguei o meu filho. E ele passou a ser aquilo que não era. Um ser humano desprezível, sem valores, ingrato. Uma aberração da natureza! Um mariconço tolo! Um paneleiro! Não quero lembrar-me de mais nomes que lhe tenha atirado como se fossem bolas de canhão. Cada nome foi um falso julgamento. O Zeca era um menino maravilhoso. Sempre preocupado com os outros. Chegou a terminar a sua amizade com o Gui, o único amigo que o defendia de todas as humilhações, para que ele não sofresse. Sempre foi esforçado. Bom aluno. Exemplar no comportamento para com os outros. E sempre me foi grato… E isto é que me dói nesta hora em que eu vejo o que me é devido ver. Em que eu sou o que me é devido ser. Só me falta ter novamente o que me é devido ter. Como aquele poema é mais sensato do que eu!

Vesti a primeira roupa que os meus dedos alcançaram e saí sem sequer comer ou lavar os dentes. As memórias assaltavam-me as entranhas e ocupavam todo o meu ser. Por vezes tive de parar porque os meus olhos ficavam bloqueados no passado. No cachorrinho mal tratado que o Zeca trouxe para casa. Tratou-o com um carinho que nunca tinha presenciado. Como é que posso ter esquecido o Tobias? O cão era feio, desdentado com um pelo ralo e grosso como um esfregão da louça. Mas o Zeca olhava-o com um amor infinito e o cão retribuía toda a doçura no olhar. Até o cão foi capaz de amar o Zeca. Eu que era mãe só via o problema. Os olhares. Os cochichos. Os outros definiram a minha vida. Como é que eu me deixei manietar desta forma? Devo um olhar doce ao Zeca. Devo muitos olhares doces ao Zeca. Não sei se ainda vou a tempo de pagar a minha divida. Mas vou fazer de todo o tempo que me resta moeda de pagamento para amortizar esta divida de amor que acumulei ao longo dos anos.

O Júlio nunca viu o problema do Zeca. Sempre pensei que ele não queria ver. Que era a sua forma ingénua de lidar com aquele problema. Lembro-me, que um dia, o Zeca estava a brincar com o meu serviço de chá. Zanguei-me. Gritei. Zanguei-me novamente. Ameacei-o, que se partisse uma única peça daquele serviço de chá, lhe arrancaria as orelhas. Um serviço de chá que estava fechado desde o meu casamento. Um serviço de chá inútil, que encontrou a sua utilidade na minha fúria contra o Zeca. Mandei-o ir jogar à bola como os outros rapazes. Virei a minha fúria para o Júlio. Mandei-o ensinar o filho a ser homem. Mandei-os aos dois para a rua jogar à bola. O Júlio pegou na mão frágil do Zeca e levou-o para a rua. Hoje sei, que ele fez o que mandei, não para me obedecer, mas para afastá-lo de mim. Da minha fúria. Quando o meu coração desacelerou e consegui respirar novamente de forma regular sem expelir saliva, dobrei a roupa que tinha tirado do estendal. Arrumei-a de forma perfeita nas gavetas. O trabalho quotidiano e chato que me cansava até às olheiras não era um problema. O Zeca era. E depois fui para a rua vê-los jogar à bola. Debaixo da ombreira da porta da cozinha vi-os deitados na relva a falar de estrelas e constelações. Não jogavam à bola. O Zeca ensinava ao pai como encontrar a estrela Polar e depois seguir o rasto das estrelas até formar a Ursa Menor. Mostrou-lhe a Ursa Maior e a Cassiopeia. O Júlio deu-lhe um beijo na cabeça “Fico impressionado com as coisas que tu sabes”, “Mas saber muitas coisas não é muito importante para a mamã, pois não?”.

 

CAPITULO XXII

 

Guardo o poema dentro da pochete dourada. Não sou capaz de enfrentar a verdade sem aquela cábula perto de mim. Nestes últimos dias, fiz tudo o que devia ter feito para o meu grande teste final. Sinto-me preparada, apesar do pulsar do meu coração mostrar-me o contrário. Nunca estamos verdadeiramente preparados para dar a primeira face ao estalo da vida. Darei todas as faces que existem em mim para ter uma oportunidade. A primeira oportunidade de ser mãe. Agora sei que fui eu quem me privou dessa oportunidade. Vivi escrava do pensamento alheio, submissa de dedos que apontam, refém da aprovação dos outros. Daqueles que não interessam. Daqueles que nunca olharam para mim em busca de aprovação. Mas eu olhava-os em busca de aprovação. Eu era o Zeca dos outros. E era os outros do Zeca.

Perfumei o pescoço com um perfume antigo. Um perfume que guardei depois do Zeca sair de casa para ir para a faculdade. Era um aroma que o Zeca gostava. Sempre que sentia aquele cheiro beijava-me o pescoço para poder cheirá-lo melhor. Ou fingia querer cheirar o perfume para me beijar o pescoço. Eu ralhava sempre. Mas no fundo gostava daquele ritual. E poupava o perfume para as ocasiões em que o Zeca estaria em casa. Hoje vou usar o perfume e ter esperança no ritual.

Chego ao hotel e um senhor muito alto e um pouco desengonçado encaminha-me para a piscina. Será que ele também tem o problema? Será que os convidados são todos daquele género? Começo a ter medo. Opto por descer as escadas, em vez de escolher o elevador, adiando assim a minha chegada à zona de recção dos convidados. Logo que empurro a porta envidraçada vejo pessoas. Como as outras pessoas! Simplesmente pessoas. De todas as idades e feitios. Casais normais e alguns poucos dos outros. Pessoas…

- Maria Rita! Que bom que já chegaste! Estava a ficar nervosa por não te ver aqui. Não conheço muita gente e os que conheço são os amiguinhos dos nossos rapazes! Não me querem por perto, como quando eram miúdos, lembras-te?

A mãe do Gui olhava-me como se fosse normal eu estar ali. Ela estava ali. E era normal. Finalmente alonguei os meus lábios num sorriso. Há muito que tinha retirado o elástico que prendia o meu sorriso. Mas aquele elástico invisível estava de volta e sorria e ria alternadamente. Estava nervosa. Não sabia bem o que fazer. Não sabia bem o que os outros esperavam que eu fizesse.

- Desculpa! Estou muito nervosa!

- Claro que estás! Afinal de conta és a mãe do noivo!

Aquela mulher a quem nunca ofereci amizade, e que não conseguia lembrar-me do nome estava agora a oferecer-me o seu braço e o seu apoio invisível. Como é que eu nunca vi as pessoas que não viam o problema do meu Zeca? Só vi as outras pessoas. Só me ofereci às outras pessoas. Aquelas que nunca me deram nada para além de um frasquinho de doce.

- Ai Maria Rita! Tu estás deslumbrante! Deixa-me que te diga! Esse vestido fica-te lindo!

Estava mesmo deslumbrante. Nunca fui uma mulher muito bonita. Mas sempre tive a sorte de ser magra por natureza. O tempo passou por mim, plantou rugas nos meus olhos, fios brancos nos meus cabelos e horrores da minha mente, mas não me deformou o corpo esguio. Nestes últimos dias tratei de mim. Arranjei as mãos e os pés. Fui à cabeleireira. Comprei este vestido justo cor de jade, discreto e elegante. Levei ao sapateiro os meus sapatos altos que o Júlio adorava. Sempre que eu os calçava ele assobiava-me e mirava as minhas pernas, mostrando segundas intenções no olhar sedutor. Senti-me vacilar, mas aquela mulher cujo nome não me recordo, a mãe do Gui, agarrou-me e devolveu-me a segurança. Ergui o queixo e senti uma aragem no pescoço que já não sentia há muito tempo. Eu sou a mãe do noivo e estou aqui no meu melhor. No casamento do meu filho.

- Olá mãe!

Um rapaz alto bonito, mas estranho, com umas rastas que contrastavam com o fato azul-marinho justo e de bom corte, beijou a cabeça da mulher que me acompanhava. Chamou-a de mãe.

- Tu és o Gui?

A pergunta escapou-me. Não estou habituada a ser espontânea. Quase levo a mão à boca apressada.

- Sou sim senhora! Já não nos vemos há alguns anos. Já não tenho por hábito invadir a sua casa para ir brincar com o Zeca!

Soltei uma gargalhada. Que sensação boa! Estou a prolongar aquela gargalhada para lá do aceitável. Não a quero perder de novo. Não sei onde voltar a encontrá-la.

- Bons tempos Gui! Bons Tempos! Estás muito diferente!

- Ele é um missionário!

A mãe olhou para ele com um orgulho extremo quando disse aquelas palavras que eu não tinha percebido muito bem. Seria padre de alguma dessas religiões estranhas?

- Agora está numa missão no Sudão do Sul, a ajudar crianças que foram usadas como soldados. Consegue imaginar um cenário destes? Usarem crianças na guerra? Sinto um nó no estomago só de pensar! – A mulher até se dobrou um pouco de forma a que eu recebesse bem a sua sensação de enjoo.

- Ah! Esse tipo de missão!

Não sabia bem o que dizer.

- Sim. Mesmo antes de acabar o curso, ele já sabia que queria ajudar os outros. Tenho um orgulho enorme neste meu filho!

As palavras imundas esbofetearam-me a memória. Então aquele é o rapaz que tem alimentado as más-línguas. O que parece um drogado. Que não se penteia há anos. Que nunca chegou a terminar o curso de medicina. Que só deu desgostos aos pais. Que anda por esse mundo fora à boleia fazendo sabe Deus o quê… Não consegui evitar e soltei a minha segunda gargalhada. Só quando parei de tremer do riso é que vi aqueles dois pares de olhos pousados em mim.

- Desculpem! Não sei o que se passa comigo! Então o Gui é um médico sem fronteiras, é isso?

- Sim! É isso mesmo!

O rapaz de cabelo estranho e com o pescoço e mãos pincelados piscou-me o olho e roubando-me da mãe conduziu-me para a zona de cerimónia.

- Mas hoje não sou médico sem fronteiras! Sou o padrinho do noivo. E tenho de ir para o altar tomar o meu lugar. Mas antes disso, quero pedir-lhe que me faça companhia. Nada fará o Zeca mais feliz do que ver a mãe à espera dele no altar.

O meu coração apertou-se. Aquelas pessoas viam-me como mãe de um rapaz normal. Olhei em redor. Dezenas de pessoas, bem vestidas com copos elegantes e bebidas de nomes difíceis nas mãos, celebrando a felicidade do meu filho. Quantos momentos de felicidade do Zeca teria eu perdido?

- Acho que vai querer conhecer o seu futuro genro antes da cerimónia, certo?

Não respondi. Não fui capaz.

- Este é o Rafael!

Estendi a minha mão na direção daquele rapaz desconhecido, um pouco anafado e com um sorriso gigante, num gesto mecânico.

- Esta é a Maria Rita! A mãe do Zeca!

Senti o meu corpo ser sugado para dentro de um abraço enorme. Submissa aceitei aquele peito grande contra o meu e fechei os olhos agradecendo aquele abraço.

- Que felicidade tê-la aqui! O Zeca vai ficar tão, mas tão feliz!

O rapaz transpirava amor. Não conseguia encontrar outra descrição para ele.

- Mãe! Oh mãe! Venha aqui! Esta é a mãe do Zeca, a Dona Maria Rita. E esta é a minha mãe, a Esmeralda!

Ela também me abraçou. Tinha os mesmos olhos pequenos e astutos do filho, e as parecenças terminavam aí. Ela era loura, alta e magra com uma altivez desmentida pela atitude.

- Que prazer minha querida! Estou tão orgulhosa dos nossos meninos. O caminho imaculado que fizeram até aqui. São duas almas lindas que vamos juntar nesta cerimónia.

Sim! Duas almas lindas! Estava quase feliz com aquele casamento. O esforço para aceitar o problema do Zeca já não era tão penoso. Ali sentia-me aliviada. Parecia que ninguém via o problema do Zeca.

Então todos ocuparam o seu lugar. O Rafael com os olhos fixos no ponto mais longínquo da carpete vermelha. A mãe dele com um lenço alerta na sua mão esquerda.

Eu e o Gui no lado oposto, expectantes. O meu coração batia ao pé dos meus ouvidos. O que pensaria a Zulmira se me visse ali, linda e deslumbrante de queixo erguido casando o meu filho com outro homem? Senti os meus ombros descaírem um pouco. A voz do Júlio murmurou “Que se lixem!”. E então a música começou. Ave Maria de Schubert. E o Zeca entrou lindo naquele fato feito à medida com uma gravata fina prateada e o lenço do pai na lapela. Os seus olhos encheram-se de lágrimas quando me encarou. O seu passo apressou-se na minha direção. Os meus pés flutuaram no ar, enquanto o seu abraço suportava todo o meu peso. Enfiou o nariz no meu pescoço, inalou o meu perfume e beijou-me longamente. Cumpriu-se o ritual.

Estou ali liberta de tudo o que me pesava. Problema do Zeca? Qual problema?

 


CAPITULO XXIII

 

 

Já não vou todos os dias ao cemitério ver o Júlio. Sinto-me culpada por isso. Mas sei que, quando me sento na beira de mármore da sua campa e lhe conto sobre tudo, ele não quer saber da regularidade da minha visita. Conto-lhe sobre o chá que tomei com a mãe do Gui e com a Esmeralda, ou sobre a forma como disse bem alto “Que se lixem!” a todas as Zulmiras da minha vida. Hoje tenho mais novidades para lhe contar. O Gui mandou-me uma carta com fotos das suas crianças. Eu e a Esmeralda criamos uma mini fundação para angariar fundos que ajudem as suas missões. O Zeca e o Rafael vão comprar casa. Vou passar a próxima semana com eles para ajudá-los a escolher casa. No fundo, no fundo, sei bem, que o que eles querem é uma semana de boa comida. Ouço o Júlio rir.

Coloco flores novas nos vasos e guardo o poema debaixo de uma nova pedra de granito que mandei fazer para o Júlio. A pedra tem uma inscrição dourada “Que se lixem!”. Já não preciso do poema dentro da minha mala. Sei-o de cor. Não em palavras, mas no seu significado geral. Agora tenho o meu amor no lugar certo. Vejo o que me é devido ver. Sou o que me é devido ser. Tenho o que me é devido ter.

Hoje vou finalmente deixar um poema para uma estranha. Uma mulher que vai ao cemitério sempre no mesmo dia, à mesma hora. Não tem uma campa definida para visitar. Apenas vagueia por entre os mortos com um olhar de esperança que se apaga quando volta a sair do cemitério. Hoje é a sua vez de ver.