PARTE
VII
CAPITULO
XXII
A ferrugem desse portão
Na tua mão delicada,
Cola na pele a promessa
De uma alma superada
Sem ter tempo nem pressa!
O ranger da entrada,
Em território santo,
Desperta o teu olhar
Na morte fotografada
Sem calor, amor ou pranto!
E flutuas, como um
fantasma,
Por entre o silêncio que
jaz!
Na tua boca o tormento
De esconder, para além da
paz,
Algum tipo de sofrimento!
E cada túmulo é o reflexo
Daquilo que queres ver,
Da esperança que já não
sentes,
Do que sabes mas que
mentes,
Do que vive para não morrer!
O
papel perfumado jazia ali. No meu jazigo preferido. Naquele jazigo que me
desperta sonhos, lembranças do que devia ter vivido, mas nunca vivi. Estava
ali. Simplesmente ali. Aberto para mim e para o meu entendimento. Li, e só de
ler soube que era meu. Peguei no papel perfumado sem o remorso dos ladrões e
guardei-o entre a pele do meu seio e a licra do seu suporte. Olhei a fotografia
do jazigo pela última vez. A pele branca denunciava uns olhos encovados, e uma
magreza extrema fazia adivinhar uma doença prolongada. Talvez fosse aquela. Bem
podia ser aquela. Eu queria que fosse aquela.
O
poeta daquele poema sabe que procuro entre os mortos um pedaço de mim. Um
pedaço que vejo refletido em cada túmulo. Não tive mãe. Não tive pai. Mas tive
muita gente. Daquele tipo de gente que não cria as memórias certas. Sinto-me
vandalizada. Sinto que as minhas lembranças me foram roubadas. Quero lembrar o
cheiro quente de um bolo de banana acabado de fazer. Mas falta-me o momento
para recordar. Quero fechar os olhos e sentir o abraço apertado de boas vindas
depois de um dia de escola. Mas a inexistência desse ato gera um vazio enorme
no meu peito. Quero poder dar aos meus filhos um amor maternal e velho, que tal
como um anel de família, passa de geração em geração. Mas a minha herança
emocional perdeu-se no momento em que fui abandonada. No momento em que alguém
não me quis. E eu fiquei apenas com a ignorância do porquê? Gosto de pensar que
fui desejada, mas que a morte me separou do meu destino feliz e confortável.
Hoje sou apenas uma mulher que ama como pode, sem receitas, nem ensinamentos.
A
única hora livre, que tenho durante a semana, esgota-se naqueles dez minutos em
que vagueio no cemitério. E depois volto para o meu quotidiano. Vou buscar o
meu filho mais novo ao infantário e apanho os meus gémeos, que já frequentam a
escola primária. Por fim vou depressa para casa para receber a minha filha mais
velha que chega na urbana depois de um dia de aulas no secundário. Faço questão
de ter a casa sempre perfumada por um lanche acabado de fazer. O cheiro de
biscoitos de canela e leite ou de um bolo de laranja. Por vezes faço panquecas
com doce… Quando vejo os meus quatro filhos, sentados a comer, peço,
silenciosamente, que eles se lembrem destes momentos quando forem mais velhos.
Beijo-os muito. Sou chata na opinião deles. Sou branda na opinião do meu
marido. Sou incompleta na minha opinião.
O
chefe da casa só chega quando a mesa já está posta para o jantar. Não me atrevo
a iniciar esta refeição sem ele chegar a casa. Não quero que os meus filhos
registem uma memória de uma mesa incompleta. A mesa está posta com um tacho de
ferro no meio e um aroma a arroz de marisco que antecipa o prazer da primeira
garfada. São oito horas e o chefe de família não chega. Ainda tenho de ajudar
os gémeos a terminar os trabalhos de casa. E são oito e meia. O dono da casa
não atende o telemóvel. Começo a ficar preocupada. Esta aflição nada tem que
ver com ele, mas com o facto de os meus filhos estarem com fome. São nove horas
e a minha filha mais velha já me gritou uma dúzia de vezes.
-
És tola ou fazes-te? – Ela atira-me aquelas palavras temperadas com algumas
gotas de saliva. – Ele deve estar para aí a divertir-se com alguma loura e tu,
aí especada, sem conseguires sequer decidir dar comida aos teus filhos sem a
presença dele.
-
Oh filha tem calma! Vamos esperar só mais um bocadinho!
Os
gémeos estão quase a dormir no sofá… E ainda têm trabalhos de casa para fazer.
E o pai deles que não chega.
-
Vamos para a mesa meninos!
As
palavras saem da minha boca como se não fossem minhas. As crianças correm para
a mesa e a refeição começa com uma das cabeceiras vazia. Um dia eles vão
lembrar-se que o pai faltou naquele dia, naquela mesa, naquele momento. Será
que se sentirão menos amados por isso? Mastigo para dar o exemplo aos meus
filhos mas tenho o estomago apertado. Eles parecem não notar o meu desconforto
ou a falta do pai. Comem, riem, falam do seu dia, como se a ausência de quem
lhes proporciona aquele conforto não fosse importante. Percebo que estão mais
animados do que é costume. Os gémeos, que nunca falam à mesa, já contaram em
versão dupla o episódio da Maria, que levou com a bola no meio da cara e que
ficou tão deformada que parecia o Quasímodo. A minha filha mais velha vai
soprando comentários depreciativos ao dia dos irmãos, convencida de que o facto
de ser uma pré adolescente lhe confere um estatuto mais interessante de
vivências.
O
meu marido chega com o silêncio. Os miúdos já estão todos deitados. A cozinha
arrumada. E eu estou sentada no sofá à espera que ele chegue. Ele entra na sua
casa hirto e dispensa-me com um beijo leve no cimo da cabeça. Apresso-me a
explicar-lhe que já jantamos, mas que tenho um prato para ele guardado dentro
do forno. Corro para a cozinha. E ele atinge-me o ego com a recusa da minha
comida.
-
Já jantei! Podes é preparar-me um banho de banheira.
Fico
ofendida, mas não me atrevo a dizê-lo, nem a demonstrá-lo. Sorriu-lhe e mostro toda
a minha felicidade em poder preparar-lhe aquele pequeno prazer do banho.
Tempero a água morna com sais cheirosos. Acendo duas velas na beira da banheira
e abro a porta da casa de banho para ele entrar. Esqueci-me de colocar, em cima
do banco, um roupão de banho lavado. Bolas! Fico nervosa. Não sei se devo
entrar de mansinho e pousar o roupão, ou se não devo interrompê-lo agora. Fico
ali, a balançar-me naquele dilema. Não quero provocar a sua fúria. Ele está na
casa de banho que fica mesmo ao lado do quarto da minha filha mais velha. Tenho
de tomar a decisão certa. Levo ou não levo o roupão?
Levo!...
CAPITULO
XXIII
Explodiu
um enxame de abelhas dentro do meu ouvido. O meu olho direito não foca bem a
imagem, pelo que prefiro mantê-lo fechado. Todo este estrago apenas com o banco
de madeira maciça que repousa inocente ao lado da banheira. É claro que não
devia ter interrompido o banho dele. Mas que raio é que eu tinha na cabeça?
Nada. Agora tenho um alto que vai levar dias a baixar. Arrasto-me pelo chão da
casa de banho, tentando sair do campo de visão do chefe da casa, de forma a não
perturbá-lo mais. Do lado de fora daquela divisão, estico o meu braço e fecho a
porta sem fazer barulho. Encosto-me à porta imaculada e, finalmente, respiro.
Assim que abro as minhas vias aéreas um soluço solta-se. Tapo imediatamente a
boca e fico quieta pedindo a Deus que ele não tenha ouvido. Levanto-me sem
fazer barulho e em bicos de pés refugiu-me na noite escura. Não acendo a luz do
alpendre. Não quero que ele saiba que estou ali. E então, só então, é que eu
choro. Um choro sufocado para não ser ouvida. Um choro que me estrangula a
garganta teimosa em abrir-se. Um choro que não me é permitido, mas que eu não
consigo evitar. O amor dói. Vem escrito em todos os livros entendidos na
matéria. Está escarrapachado nas redes sociais de toda a gente. É do senso
comum. O amor dói. Mas é melhor ter amor do que não ter. Eu não o sinto. Sou
casada com um homem há quase quinze anos e não sinto amor. Mentira. Eu sinto
amor. Amor pelo meu marido. Um amor incomensurável pelos meus filhos. Mas sinto
apenas o amor que sai de mim. Não sinto o amor que entra em mim. Como se nenhum
amor me fosse dirigido. Nenhum amor é lançado na minha direção. É claro que eu sei
que os meus filhos me amam. E por sabê-lo tão bem, sei que o problema está em
mim. Sou como uma daquelas que pessoas que não sente dor física. Não quer dizer
que não estejam a receber o tormento que provoca a dor, ou que não são capazes
de provocar dor. Mas não a sentem quando lhe é dirigida. Eu sou assim com o
amor. Queria tanto sentir o amor que me é dirigido, com a mesma intensidade com
que sinto as ofensas. Mas fui criada num ambiente estéril de amor e agora não o
sinto.
O
poema invade os meus pensamentos. “E flutuas, como um fantasma, / Por entre o
silêncio que jaz / Na tua boca o tormento / De esconder para além da paz /
Algum tipo de sofrimento!”. É exatamente assim que me sinto depois de cada
agressão. O silêncio é o melhor refúgio que conheço para conseguir manter este
sonho de paz, que me custou tanto a conseguir. Vale a pena tapar a boca aos
gritos que podem perturbar a paz da minha família. Vale a pena estrangular a
minha garganta de modo a garantir um ambiente calmo para os meus filhos. Vale a
pena esconder o sofrimento, para que os meus meninos sintam apenas a segurança
do amor. Neste ambiente de família, que tanto sonhei, não consigo perceber
exatamente o papel das agressões no funcionamento do amor. Tolero-as, porque sempre
as sofri. A diferença é que antes eu entendia o contexto das agressões. A
ausência total de amor era uma porta aberta para as agressões. Mas num ambiente
de família? Num ambiente de amor? Não percebo as agressões. Mas aceito-as.
-
Sara! Sara! Onde é que te meteste?
A
voz dele fere o meu ouvido bom. Sinto todo o meu corpo retesar-se ao som
daquela voz autoritária. O medo paralisa-me e tenho de invocar todas as minhas
forças para me mexer. Quando era miúda paralisei uma vez! E aprendi a lição.
Nunca devemos paralisar quando estamos sob as ordens de um agressor.
-
Já vou!
Entro
no quarto abraçada pelos meus próprios braços. Tenho as articulações dos dedos
brancas, resultado da imensa força que estou a colocar neles.
-
Chamaste-me?
-
Sim. Onde raio é que te meteste?
-
Estava apenas a tirar carne do congelador para amanhã!
A
cozinha era a minha melhor aliada nas pequenas mentiras. Sabia que ele não ia
verificar a veracidade do que dizia sempre que usava a cozinha como pretexto. A
cozinha não era o seu domínio. Quase nunca entrava na cozinha. Quando tinha
fome ou sede, mandava-me ir buscar o que quer que precisasse. Mas ele não
entrava na cozinha.
-
Desculpa lá ter-te atirado o banco com tanta força!
O
seu corpo alto e bem talhado aproximou-se de mim. Eu tremi. A sua mão grande
pousou suavemente no meu rosto. Fechei os olhos quando senti o contacto quente
daquele gesto.
-
Eu sei que a culpa não é tua. Tiveste uma infância largada no mundo, e uma
adolescência sem eira nem beira. Não tens culpa de não saber estar. De não
teres classe. De não perceberes quando é que estás a ser inconveniente.
Abri
os meus olhos e fitei-o. Tudo o que ele estava a dizer era verdade. Mas aquela
verdade, dita pela boca dele, magoava-me mais do que um estalo na cara.
-
Mas o que importa é, que de entre todas as mulheres que eu podia ter escolhido,
eu escolhi-te a ti.
Aquele
elogio não me satisfaz.
-
Agora vem cá! E vamos esquecer o assunto!
Tenho
o ouvido a zumbir. O olho direito dói-me. Se não puser gelo agora ficará inchado
no dia seguinte. O toque dele neste momento enoja-me. Olho-o nos olhos e ofereço-lhe
um sorriso permissor.
CAPITULO
XXIV
O
dia amanhece calmo, mas a minha alma está inquieta. Levanto-me e desço para a
cozinha. Começo a preparar o pequeno-almoço. Tostas de queijo e café preto para
o chefe da casa. Monto a mesa no terraço. Quando está bom tempo, ele gosta de
tomar o pequeno-almoço em paz no terraço. Pouco depois ele desce, seguro
naquele fato que o favorece. Só acordo as crianças depois da saída dele. Ele
não gosta do reboliço das manhãs das crianças. Fica stressado e o dia não lhe
corre bem. Olho para o relógio. Ele já devia ter saído há dez minutos, mas
continua ali sentado, com a caneca de café na mão, a olhar para o infinito. Se
não acordar já os miúdos, vão chegar tarde à escola. Já adiantei tudo o que
podia ter adiantado. Os lanches estão prontos. As torradas dentro do forno para
não arrefecerem. O leite em cada copo. Só falta o chefe da casa sair. Mas ele
não sai. E já passa quase vinte minutos da hora de acordar as crianças. Começo
a ficar nervosa.
-
Bom dia mãe. Esqueceste-te de nos acordar?
A minha filha mais velha encosta-se na
ombreira da portada que dá para o terraço. Está despenteada e abre a boca num
bocejo. Olho para o chefe da casa que fechou os lábios numa fina linha
horizontal. Não está contente.
-
Não me esqueci. Estava só aqui a fazer companhia ao teu pai.
-
Os teus filhos precisam mais de ti agora do que ele. Ele já é adulto. Pode
muito bem levantar o seu próprio prato da mesa e colocá-lo dentro da máquina de
lavar louça, como as pessoas normais fazem.
Ele
levantou-se e deu um passo rápido na direção da minha filha. Corri para colocar
o meu corpo entre os dois. Na minha filha não. É proibido. Ninguém lhe pode
tocar daquela forma. Na minha filha não. Nenhum dos dois recuou. A minha menina
quase adolescente que tinha menos dois palmos de altura do que o chefe da casa
estava ali, de peito feito, a enfrentá-lo. Coitada. Ela não sabe que o agressor
ganha sempre. Ainda não sabe. Eu vou garantir que ela nunca saberá.
-
Ah! Ela está naquela idade da adolescência!
Solto
um risinho nervoso tentando disfarçar o que não tem disfarce possível.
-
Pois é papá! Estou naquela idade difícil! Será muito mais fácil quando chegar à
idade adulta e arranjar um homem que me ponha um olho à belenenses.
O
meu corpo voou com a força do empurrão da mão aberta do homem da casa, enquanto
a palma da outra mão livre estalou contra a bochecha rosada da minha filha.
Ouvi o meu próprio grito. Levantei-me como se tivesse molas e corri como se
fosse feita de vento. Agarrei-o por trás e puxei-o com toda a minha força. Não
era suficiente. Era fraca. Não era eu o agressor. O agressor é que ganha
sempre.
-
Sai daqui! Vai para o teu quarto já!
A
minha filha obedeceu ao pai. Virou costas e fugiu com a mão na cara e as
lágrimas nos olhos.
Ele
virou-se para mim e concentrou-se em mim. Fiquei aliviada.
-
Que merda de trabalho é que fazes em casa com os meus filhos?
Um
estalo da cara.
-
Estás a criá-los como se fossem umas bestas… Uns animais sem educação, como tu.
Um
soco no estomago.
-
Eu bem devia ter adivinhado que tu nunca darias conta do recado. Onde raio é
que eu tinha a cabeça para ter filhos com uma rameira como tu?
Um
pontapé na canela esquerda.
-
Anda um gajo a matar-se a trabalhar e tu que só tens de educar os nossos filhos
e tratar da casa, fazes uma merda de um trabalho destes?
Uma
joelhada na virilha.
Não
posso cair no chão. Eu sei o que acontece se cair no chão! Só quando ele tiver
esgotado as suas forças é que posso deixar-me cair. Até lá tenho que aceitar os
golpes, proteger a cabeça e manter-me de pé.
-
É assim que me queres atingir? Através dos meus próprios filhos, sua putéfia
desgraçada?
As
costas da sua mão atropelam o meu ouvido dorido.
Ele
grita palavras que não entendo. O meu ouvido começou novamente a zumbir. O meu
olho voltou a desfocar. Vou cair. Mas ainda não posso cair. Coloco a minha
cabeça entre os meus braços e deixo-me cair. O agressor ganha sempre.
CAPITULO
XXV
O
meu corpo não responde. Tenho de levar os miúdos à escola, mas não consigo
levantar-me. O zumbido no ouvido. O olho direito desfocado. A narina esquerda
não respira. Mexo devagar as pontas dos dedos das mãos, um por um. Mexo os
dedos dos pés, um por um. Mexo a cabeça e os ombros. O que mais me dói é a zona
das costelas. Provavelmente tenho alguma partida. Inspiro profundamente. Expiro
devagar. Se alguma das costelas está partida, não está a prejudicar os pulmões.
Faço, então, um esforço sobre-humano para me levantar. Fico de joelhos. Já
falta menos. Levanto o meu olhar desfocado procurando um apoio. E encontro os
olhos de todos os meus filhos. A minha filha tem o pequenote ao colo, e os
gémeos choram enquanto se aproximam de mim devagar. Vejo o medo nos seus
rostos. Eles não podem ter medo. Não é assim que quero que os meus filhos
vivam. Eles só devem sentir amor. Só devem experienciar coisas maravilhosas
para que um dia as possam recordar e voltar a vivê-las com os seus próprios
filhos. Tenho de criar essa herança na minha família. Uma herança longa que
passe de geração em geração. Só devem recordar abraços quentes e lanches
cheirosos. Devem brincar muito, e rir muito, e rodopiar muito. Devem viver
felizes. Não quero ver aquele medo no rosto deles. Não quero ver o meu medo
refletido no rosto deles.
Abro
os meus braços e os gémeos refugiam-se em mim. Eu sou o porto seguro deles. E
estou a falhar. Não vejo nenhuma alegria neles. Apenas terror. Eu sei que sou
capaz de criar amor. De criar seres humanos capazes de recordar uma infância
feliz. Capazes de multiplicarem o amor que lhes vou dar como se fosse sementes.
A
minha filha mais velha toma as rédeas da situação. Senta o pequenote no chão.
Ajuda-me a levantar e deita-me no sofá. Leva os mais novos todos para o andar
superior enquanto dá ordens aos irmãos fingindo ser um sargento com uma falsa
alegria.
-
A mamã precisa de descansar. Quem consegue escolher a roupa mais bonita para
levar para a escola?
Sobem
todos num grande alarido. Perco a noção do tempo. Fecho os olhos, só por um
segundo, mas sinto que o meu corpo todo se desliga naquele ato de fechar os
olhos e a minha mente liga-se a memórias antigas.
Volto
a ter treze anos. Estou enclausurada nesta instituição há exatamente seis anos.
É a terceira casa que conheço. Quando tinha quatro anos, e a idade provável
para adoção já estava ultrapassada sem que nunca ninguém me quisesse, saí da
minha primeira casa, uma instituição demasiado grande para tão pouco uso, e fui
entregue a uma família de acolhimento. Lembro-me apenas de uma mulher muito
grande com um cabelo preto obsessivamente despenteado. Lembro-me de sentir que
passava muito tempo sem ver ninguém e que sentia permanentemente fome. Lembro-me
das três divisões da casa estarem sempre imundas. Lembro-me de sair para
brincar na rua, voltar a entrar em casa, dormir e acordar, sem que visse a
mulher. Lembro-me de abrir o frigorífico e todos os armários em busca de alguma
coisa que fizesse desaparecer aquela dor permanente na minha barriga. Lembro-me
de ser maior do que quando ali cheguei. Lembro-me do dia em que entraram duas
senhoras cheirosas na casa acompanhadas por polícias, bombeiros e médicos.
Lembro-me do corpo pesado da senhora da casa ser levado numa maca branca para a
ambulância. Lembro-me de estarem todos com muita pressa. Mas do que me lembro
melhor, é do momentos em que uma senhora com uma bata branca pegou em mim e
beijou a minha testa, encostou-me ao seu peito e eu senti o calor das suas
lágrimas misturarem-se com o meu cabelo. Fechei os olhos e fui tão feliz
naquele momento. Pensei mesmo que aquela senhora ficaria comigo. Mas ela
entregou-me às outras senhoras cheirosas e apenas fê-las prometer, em vão, que
eu ficaria bem. Nesse dia, eu fazia sete anos. Aquela senhora de bata branca
foi a única prenda de aniversário que alguma vez tive. E durou apenas uns
minutos. No dia em que fiz sete anos saí da minha segunda casa para a minha
terceira casa. Uma casa demasiado grande e fria. Mas pelo menos dão-me comida
nas horas certas. Descobri que devia ter frequentado a escola durante o último
ano. Nem sabia o que era uma escola. Mas quando entrei pela primeira vez
naquela escola primária, o meu coração sorriu. A professora era nova e meiga.
Estava sempre colada a ela em busca de um carinho, de um elogio, de um mimo.
Era uma boa aluna. Não podia correr o risco de desiludir aquela professora. Foi
minha professora durante toda a escola primária. Cada dia daqueles quatro anos
eu desejei, com todas as forças, que ela me desejasse também. Mas como todos os
outros, quando chegou o dia da despedida deu-me um abraço, um beijo na testa,
as suas lágrimas misturaram-se com o meu cabelo e por fim fez a diretora da
instituição prometer, em vão, que eu ficaria bem.
Durante
dois anos deambulei sem sentido entre a escola preparatória e a instituição.
Era um robot que fazia tudo o que me mandavam. Já não era tão boa aluna. Já não
tinha uma professora nova e meiga. Então, num dia incerto localizado nos meus
treze anos, fui levada a um hospital acompanhada por uma funcionária da
instituição. Era das poucas funcionárias que nunca me tinha batido. Mas também
nunca olhava na minha direção. Não falamos durante todo o caminho. Estava numa
idade em que “me ia tornar mulherzinha”. Esta foi a expressão exata, que a
diretora usou quando me chamou ao seu gabinete, para me dizer que eu iria ao
médico. Estava farta de saber que em breve iria ter o período. Não percebia
aqueles eufemismos para falar do que já sabia. Entramos no hospital demasiado
branco. Aquela claridade magoou-me as vistas. Estava habituada às paredes da
instituição escuras e húmidas, e às paredes da escola cobertas de grafitis e
obscenidades. Sentamo-nos nuns bancos frios e desconfortáveis à espera. Quando
a porta do consultório se abriu, vi um senhor pobre em cabelo, mas rico em
dentes. Ele sorriu e disse o meu nome. A funcionária levantou-se e fez-me sinal
para que a seguisse. O médico com os dentes demasiado salientes dispensou a
funcionária. “A Sara já é quase uma adulta. Já tem idade para entrar sozinha e
tirar qualquer dúvida que possa ter!”. A funcionária voltou a sentar-se no
banco frio e desconfortável, e eu gostei logo daquele médico. Queria muito
agradá-lo. Queria que ele gostasse de mim. Ele começou por fazer perguntas
sentado na sua secretária e escrevendo no computador, enquanto eu lhe dava
respostas vagas. Quando me perguntou se já tinha tido relações sexuais, corei.
Mas ele com o seu sorriso gigante, que me fazia questionar se era humanamente
possível ter tantos dentes dentro de uma única boca, disse-me para não ficar envergonhada.
Afinal de contas entre médico e paciente não há vergonhas, não há medos, nem
inibições. Então, eu abanei a cabeça. Nunca tinha tido relações. Ele sorriu
mais. Fez-me muitas perguntas íntimas, desconfortáveis. Levantou-se e tirou a minha
camisola sem qualquer meiguice. Depositou a sua mão papuda sobre o meu seio e
perguntou-me se alguém já me tinha tocado ali, daquela forma. A sua mão
massajava devagar o meu seio. Permaneci calada. Era um contacto humano. Gostava
que me tocassem. Que me abraçassem! Não queria que o calor da sua mão se
afastasse de mim. Então ele beliscou-me o mamilo com força e eu abri os olhos e
soltei um grito. Ele riu-se e voltou a perguntar-me se alguém já me tinha
tocado nas mamas. Abanei a cabeça. Nunca ninguém me tinha tocado assim. Ele
voltou a sorrir com aqueles dentes todos. Fez-me sinal para que me levantasse.
Mandou-me tirar as calças e as cuecas. Fiquei imóvel. Ele encostou-se à
secretária a olhar para mim. Para as minhas mamas nuas. Como não obedeci, ele
aproximou-se, encostou o seu corpo anafado ao meu e desapertou os botões das
minhas calcas de ganga. Puxou-as para baixo juntamente com as cuecas. Ficaram
presas nos meus joelhos. Ele afastou-se e eu despi-as desajeitadamente e com
pressa. Queria que ele se aproximasse de mim novamente. Queria muito que ele me
abraçasse. Já não era abraçada há muito tempo. Como se ouvisse o meu pedido
silencioso ele aproximou-se de mim e abraçou-me. A sua respiração era apressada
e fazia-me cócegas no ouvido. Mas não me atrevi a mexer. Estava a ser abraçada.
As palmas da sua mão contra a minha pele eram um aquecimento para a minha alma.
Então, ele afastou-se e mandou-me deitar na marquesa. Aquela interrupção do
abraço deixou-me desconfortável e inquieta. No entanto, obedeci. Faria qualquer
coisa para ter outro abraço. Deitei-me na marquesa. Ele colocou uma das minhas pernas
num suporte e depois afastou a outra perna e colocou-a noutro suporte,
deixando-me assim exposta e com frio. Será que haveria mais algum abraço?
Tocou-me onde nunca imaginei ser tocada. Abriu-me ainda mais. Expôs-me ainda
mais. E observou. Perguntou-me novamente se já alguém me tinha tocado ali.
Abanei a cabeça. Nunca ninguém me tinha tocado ali. Então, ele tocou. Primeiro
com meiguice e depois esfregou a sua mão como se estivesse a limpar um espelho
embaciado. Tirou uma máquina fotográfica da gaveta e fotografou onde nunca
ninguém me tinha tocado. Fotografou de vários ângulos. Com os seus dedos a
abrirem o que estava fechado. E depois de repente atirou a máquina fotográfica
para cima da poltrona, desapertou o cinto das suas calças, e baixou-as com uma pressa
aflitiva. Depois só senti a dor aguda e a insistência bruta e selvagem. Olhei
para ele, assustada. Ele arfava e estava muito vermelho. Os seus olhos estavam
revirados como se ele estivesse possuído por algum demónio. Os movimentos eram
repetidos e rasgavam-me as entranhas. Já não lhe via os dentes. Já não sentia
calor humano. Já não era abraçada. Só queria que aquilo acabasse. Fechei os
olhos com muita força e pedi que aquilo acabasse depressa. Então, como se as
minhas preces fossem ouvidas ele caiu em cima de mim cansado e as minhas
entranhas murcharam finalmente como uma esponja cheia de água depois de ser
espremida. Sem olhar para mim atirou-me um rolo de papel higiénico e mandou-me
vestir. Obedeci devagar. Sentia dores onde nunca tinha sido tocada. Fiquei
paralisada quando vi um fio se sangue no papel higiénico, mas não me atrevi a
perguntar. Sentei-me novamente de frente para ele com a secretária a separar-nos.
Disse-me que estava tudo bem comigo. Que o sangue que tinha visto era mais ou
menos o que aconteceria em breve quando fosse menstruada. Fiquei mais aliviada
por saber que era normal. Depois levantou-se, e eu levantei-me também. Ele
olhou para mim, durante uns momentos, e perguntou qual a parte da consulta que
me tinha agradado mais. Eu sorri. Estava feliz porque ele queria saber o que me
fazia feliz. Ele importava-se com a minha vontade. Então disse-lhe que tinha gostado
muito dos abraços. Ele prometeu-me que teria muitos abraços desde que não
contasse o que tinha acontecido na consulta. Eu prometi o meu silêncio, e ele
cumpriu o prometido. Abraçou-me durante uns longos minutos. E eu fiquei feliz.
Entregou-me
à funcionária. Deu-me mais um abraço, um beijo na testa e fê-la prometer, em
vão, que eu ficaria bem.
Foi
o princípio de muitos abraços.
CAPITULO
XXVI
Já
não sinto o zumbido no ouvido e as nódoas negras já se podem disfarçar. Fiz uma
tarte de maçã, para oferecer à minha vizinha da frente, como forma de
agradecimento por ter levado os meus filhos todos às respetivas escolas. Naquele
dia fatídico, a minha filha mais velha pediu à vizinha que os levasse, por favor,
à escola, porque a mãe estava doente em casa. A vizinha apenas cedeu com um
sorriso bondoso e levou todos os meus filhos às respetivas escolas. Ligou-me
perto da hora de almoço e ofereceu-se para ir buscá-los no fim do dia. Aceitei
de bom grado aquele gesto sem pensar bem no que estava a fazer. Só queria estar
deitada de olhos fechados pelo máximo de tempo possível. Mas quando chegou a
hora em que ela trouxe os meus filhos, ela viu-me como eu não queria ser vista.
Lembrei-me do meu aspeto repugnante. O olhar dela, demasiado aberto, lembrou-me
desse meu aspeto repugnante. Ela entregou-me os miúdos. Deu-me um abraço forte.
Senti as suas lágrimas misturarem-se com o meu cabelo, e fez as crianças
prometerem, em vão, que eu ficaria bem.
Tenho
de ir a casa dela, garantir que ela me vê, como realmente sou. Uma mãe dedicada,
com uma família feliz e uma casa cheia de amor. Vou levar-lhe a tarte de maçã
que cheira maravilhosamente e ainda está quente. Ela esquecerá com toda a
certeza a Sara do outro dia. Levei mais tempo a disfarçar o que resta das
nódoas negras, com uma maquilhagem impecável, do que a fazer a tarte. Mas o
resultado vale a pena.
Ela
abriu a porta, depois de a campainha replicar duas vezes, e reparei que toda a
sua boca era admiração.
-
Olá vizinha! Trago-lhe aqui uma tarte de maçã. Ainda está quentinha!
Ela
pegou na tarte sem sequer olhá-la. Os seus olhos estavam colados em mim, e
comecei a sentir-me desconfortável.
-
Ainda está quente!
E
os olhos mantiveram-se firmes em mim.
-
É para agradecer o que fez por nós no outro dia! Se não fosse a vizinha os
miúdos tinham faltado à escola. Muito obrigada!
Ela
finalmente olhou para a tarte e eu finalmente relaxei os ombros.
-
Claro! Tarte de maçã! Que bom! Adoro tarte de maçã! Aliás gosto de tudo o que é
doce e engorda.
Soltou
uma gargalhada nervosa.
-
Entra! Vamos provar esta tarte juntas!
-
Oh! Não sei se é boa ideia! Tenho ainda de tratar da roupa e lavar os tapetes e
tratar da casa para estar tudo pronto quando os miúdos chegarem a casa. Sabe
como é?
Mas
ela não sabia. Não sabia como era importante ter tudo preparado para quando a
família chegasse a casa. A casa dela era uma confusão. Como se um vulcão de
roupa tivesse entrado em erupção em plena sala de estar. O corredor tinha
pequenos brinquedos de todas as cores e feitios. Legos, braços de bonecas sem
as bonecas, skates, bolas e bolinhas… Quando cheguei à cozinha a desarrumação
tomou outra dimensão. Havia louça por lavar dentro da pia. O mesão estava sujo
e com demasiadas coisas que pertenciam ao frigorífico por ali espalhadas.
-
Vou fazer um café. Ou preferes um chá?
A
voz dela arrancou-me da minha admiração. Como é que ela podia aparentar estar
feliz com a casa naquele caos?
-
Prefiro um café preto sem açúcar.
Com
um único movimento de braço ela empurrou um número elevado de coisas para o
lado fazendo espaço para colocar a tarte e duas chávenas de café fumegantes.
-
O teu nome é Sara, certo?
Abanei
a cabeça, confirmando, enquanto bebericava o café. Era surpreendentemente bom.
Melhor do que o meu.
-
Hum! O café é tão bom!
-
O mérito é todo da cafeteira!
Rimos.
Era uma nova sensação! Rir com outra mulher. Gostei tanto da sensação que
esqueci por momentos a desordem que reinava à nossa volta.
-
Somos vizinhas há tanto tempo e nunca nos tínhamos falada para além daqueles
cumprimentos habituais.
Concordei
com ela.
-
Temos de começar a fazer isto mais vezes!
Concordei
com ela.
-
Esta tarte está mesmo uma delícia!
Concordei
com ela.
-
Pareces estar melhor!
Concordei
com ela!
-
Ainda estou a recuperar. Foi uma queda feia!
Ela
não concordou comigo.
-
Estava a pôr roupa na máquina para lavar e devia ter detergente no chão, e
escorreguei!
Ela
não concordou comigo.
-
Sara! Eu sei que tipo de ferimentos eram aqueles. Eu sou, quer dizer fui,
durante muitos anos assistente social numa associação que ajudava mulheres vítimas
de violência doméstica.
Enfiei
o que restava da minha tarte na boca, enchendo-a demasiado e apressei as
despedidas. Tinha de ir embora. Tinha deixado uma sopa ao lume. Mas devíamos
voltar a tomar um café num outro dia qualquer. Outro dia qualquer. Não aquele
dia. Outro dia qualquer.
Adeus.
CAPITULO
XXVII
Comecei
a reparar no quotidiano da vizinha desarrumada. O marido devia ser médico.
Entrava sempre em casa com uma bata branca enrolada no braço, e numa das vezes
tinha um estetoscópio esquecido pendurado do pescoço. Tinham dois filhos em
idade escolar. Aquele chefe de família chegava a casa e brincava muitas vezes
com os filhos no jardim. A vizinha desarrumada levava-lhes sumos frescos ou
água em copos grandes e deitavam-se todos sobre o relvado a conversar. O chefe
de família parecia não se importar com a casa desarrumada. Mas o que realmente
me tocou foram os abraços constantes entre aquele chefe de família e os filhos.
E os beijos apressados e apaixonados entre ele e a vizinha desarrumada. Seriam
felizes? Seriam mais felizes do que a minha família?
Os
meus filhos estavam todos na sala imaculada. A mais velha estava com o
telemóvel na mão a teclar freneticamente. Os gémeos estavam a ver desenhos
animados cada um com um brinquedo na mão. Apenas um brinquedo era autorizado, para
que não houvessem brinquedos desarrumados quando o chefe da nossa casa
chegasse. O mais novo estava sentado numa espreguiçadeira a saborear um
brinquedo que já havia pertencido aos irmãos. Nenhum deles ria alto. Os risos
estridentes vinham da casa da vizinha desarrumada.
-
Então, meninos? Querem ir brincar no jardim?
Queria
ouvir as gargalhadas estridentes dos meus filhos.
-
Podemos?
Os
gémeos tinham-se manifestado em uníssono.
-
Claro que podemos! Vamos todos!
Fomos
para o jardim. Senti o cheiro da relva cortada e inspirei-o como se quisesse
guardar no olfato aquele memória que iria criar com os meus filhos. Assim que
chegamos ao jardim, eles sentaram-se a olhar para mim. Senti-me um pouco
desiludida. Pensei que eles começassem a rebolar na erva e a rir.
-
Então, mamã? Vamos brincar a quê?
Aquela
pergunta desmoronou toda a minha esperança numa nova memória futura. Os filhos
da vizinha desarrumada nunca tinham feito aquela pergunta. Apenas chegavam ali,
brincavam, abraçavam os pais, puxavam as camisolas uns dos outros e atiravam-se
ao chão. Mas ninguém perguntava aquilo. Percebi que os meus filhos não sabiam
brincar. Não consegui evitar. Chorei!
-
Não chores mãe! Mas tens de perceber que não estamos habituados a vir aqui para
fora. Tu tens regras para tudo. Para teres tudo perfeito para quando o papá
chega a casa. E agora trazes-nos para aqui e dizes, brinquem… Temos de saber as
regras primeiro! O que é que não podemos fazer. Quantos brinquedos podemos ter
em cada mão. Se podemos sujar esta roupa… Sei lá… Essas coisas todas!
A
minha filha mais velha acabou de me dar uma tareia. Fiquei ali a olhar para
ela. Desde quando é que ela tinha tanta sabedoria? Desde quando é que ela tinha
aquele tipo de clarividência? Desde quando é que ela sabia tanto sobre não ser
livre?
O
chefe da casa chegou mais cedo. Ainda estamos sentados no jardim. Enxuguei o
que restava das minhas lágrimas e uma nova esperança tomou conta de mim. Acenei
ao chefe da casa para que se juntasse a nós. Vi-o sair do carro com o fato
perfeito e a gravata um pouco larga, indicando o fim de um dia de trabalho. Não
correu para nós. Então incentivei os nossos filhos a correrem para ele. Eles
levantaram-se sem perceberem bem o que deviam fazer. Aquela falta de confiança,
de intimidade entre pai e filhos incomodou-me. Então, levantei-me e fui ao
encontro do chefe de família.
-
Vamos todos dar um grande abraço ao papá.
O
chefe da casa sorriu! E deu umas palmadinhas cordiais nas costas de cada um dos
filhos, como se eles fossem sócios na empresa. Então, os gémeos, entusiasmados
com aquela nova permissão do pai, começaram a trepar por ele acima, e caíram os
três ao chão. Eu ri alto. Eu parei de rir alto, assim que os meus olhos se
cruzaram com os olhos do chefe da casa. Ele levantou-se atabalhoadamente e
começou a sacudir as calças. Entrou em casa a resmungar e a distanciar os
filhos com a mão como quem enxota galinhas. Os gémeos ficaram a olhar para mim
perdidos, sem perceberem bem se tinham feito o que era esperado deles ou não. A
minha filha mais velha pegou no irmão mais novo e entrou em casa abanando a
cabeça e resmungando entredentes! E eu olhei para a casa da vizinha
desarrumada. Naquele silêncio uma rajada suave de vento trouxe o som dos gritos
felizes de duas crianças que brincavam sem limites de felicidade.
Foi
isso que fiz. Estabeleci tantas regras em busca da família feliz, que acabei
por limitar a felicidade dos meus próprios filhos. Como podemos saber a
dimensão da felicidade se temos o nosso campo limitado por arame farpado. Em
vez de sermos felizes dentro daquele campo minado, somos ignorantes sobre a
dimensão da própria felicidade.
O
chefe da casa não estava feliz com aquela receção. E fez questão de o
demonstrar quando se recusou a jantar na nossa presença. Mas também não se
prejudicou com fome. Apenas exigiu que lhe servisse o jantar no escritório, de
forma a colocar a sua cabeça de novo em ordem. Eu não fazia ideia de como era
perturbador, para ele, ver que eu não era capaz de manter a ordem dentro da
nossa casa. Estraguei-lhe o resto do dia. Queira Deus que isto não o perturbe
no dia seguinte, causando-lhe um stresse desnecessário. Será que era muito
difícil manter os miúdos dentro de casa limpos e asseados sem grandes alaridos?
Deixei-o
sozinho no escritório com o seu jantar e só depois fui dar comida aos meus
filhos. Todos eles tinham percebido que tínhamos saído fora do limite do arame
farpado e estavam nervosos. Tentei mostrar uma calma aparente, mas que não os
contagiou.
-
O papá não vai jantar?
Um
dos gémeos deu voz á dúvida de todos os irmãos.
-
Não vês que o senhor todo o poderoso não ficou feliz. Ele lá quer saber dos
nossos beijos ou abraços. O nó perfeito da gravata é mais importante do que
nós!
-
Não digas isso, filha! O vosso pai gosta muito de vocês. Apenas está com dor de
cabeça.
A
minha filha olhou-me com uns olhos marejados de raiva. Atirou o seu prato sobre
a mesa sujando a toalha de linho.
-
Dor de cabeça? Mas qual dor de cabeça? Achas que nós somos tolos? Tens a casa
limpa arejada e cheia de luz e a cabeça cheia de merda!
-
Não fales assim!
A
minha garganta largou uma voz estrangulada e pouco autoritária.
-
Falo como bem me apetecer? Tenho andado calada a fingir que não vejo. Mas vejo
tudo. Esse cabrão que é meu pai enche-te de porrada, e não é por causa da dor
de cabeça. É porque ele não presta. Tem dinheiro aos magotes, mas tu tens de
apresentar o recibo das compras para ele controlar o troco que tens de lhe dar.
Não tens direito sequer a um cartão de crédito. Andas com as moedinhas
contadinhas. Enquanto as amantes dele andam a cheirar a Chanel. Estou farta de
viver neste meio cheio de hipocrisias.
-
Mas nós amamos-te muito! A ti e aos teus irmãos!
A
minha voz sumiu-se naquele furacão, abafada pelo choro dos gémeos e os gritos
do meu mais novo. A minha filha estava tão vermelha que não lhe reconheci o
olhar inocente que costumava a ter. E ela não viu que estava a cavar um buraco
fundo nos medos dos irmãos. Nos meus próprios medos.
-
Amor? Tu vives no meio do medo como um porco vive no meio do esterco! E o pai
sabe lá o que é amor. A única coisa que sinto realmente nesta casa é medo e
ódio. E pena. Tenho muita pena de ti!
A
minha filha finalmente chorou. Sucumbiu a um choro histérico, que atraiu o
chefe da casa como um abutre é atraído pela carne putrefata.
-
Andas a passar todos os limites. A tua mãe é uma fraca que não tem mão em ti.
Mas comigo tu não brincas!
Os
olhos do chefe de família estavam abertos de esperança num novo confronto.
Voltei a ganhar forças quando o vi a cavalgar na direção da nossa filha.
Deu-lhe uma chapada que a fez cair. A segunda chapada em poucos dias. Estava
tudo a fugir do meu controlo. Os gémeos choraram ainda mais alto e correram
para a irmã caída no chão. Ele voltou a levantar a mão para os meus filhos.
-
Os meus filhos não!
O
meu grito desumano foi uma forma de ser escutada. Ele olhou na minha direção
surpreendido. E eu bati-lhe com a cadeira na lateral da sua face perfeita. Ele
desequilibrou-se mas não caiu. Os seus olhos faiscaram uma nova felicidade.
Tinha a desculpa perfeita para fazer o que mais gostava. Agredir-me sem
limites.
-
Leva os teus irmãos para cima, para o teu quarto e tranca a porta.
A
minha filha mais velha não precisou de segunda ordem. Vi-a parar no primeiro
degrau da escada e olhar para mim, vacilante, a chorar. Já não tinha raiva nos
seus olhos. Apenas medo. Os seus lábios moveram-se silenciosamente só para mim
“Amo-te mãe”
Ali
havia amor! Fiquei feliz. Ensinei alguém a amar! E pela primeira vez senti o
amor que me é dirigido!
O
meu maxilar estalou com o soco estridente. Desta vez ele não começou devagar.
Não seria de forma ascendente. Ele faria uso máximo da sua força. Só me resta
proteger a cabeça. O agressor ganha sempre.
CAPITULO
XXVIII
Acordo
deitada sobre o meu próprio sangue já seco. O meu cabelo está empapado. Olho
através da janela dupla e vejo que é noite. Senti o extremo mais oblíquo da
dor, e só nesse angulo agudo, onde nenhum ser humano cabe, é que fui capaz de
ver tudo com uma clarividência própria de um estado superior. Eu sabia
exatamente o que tinha de fazer. Peguei numa faca pequena mas pontiaguda e
flagelei a minha própria pele. Não senti dor. Apenas alívio. Estava naquele
lugar onde nenhum ser humano cabe. Onde já não há espaço para mais nada. Não
existe espaço para o medo, ou para a dor. Não há espaço para memórias ou
dúvidas. Todo o espaço é preenchido apenas por uma certeza.
Não
choro. O meu peito não foi feito para soluçar! Agora sei disso!
Subo
a escada encoberta pela escuridão e pelo silêncio. Vou ao quarto da minha filha
mais velha. Acordo-a.
-
Vamos sair daqui filha!
-
Mas para onde é que vamos?
-
Confia em mim querida! Vamos para onde nenhum mal nos possa alcançar.
Acordamos
os gémeos e o meu mais novo. O silêncio é nosso aliado. Entramos todos no meu
carro. Dou a cada um dos meus filhos um pacote de leite achocolatado. Eles não
jantaram. Bebem sofregamente até à última gota sem questionar o verdadeiro
conteúdo daquele pacote. Confiam em mim cegamente. Mas infelizmente estamos num
mundo onde o medo é mais forte do que a confiança. Onde o ódio é mais sentido
do que o amor. Onde o agressor ganha sempre.
Os
meus filhos adormecem no banco traseiro. Os gémeos nas suas cadeiras como as
cabeças encostadas como se ainda estivessem dentro do meu útero. A minha filha
mais velha com o mais novo no colo, ambos de boca aberta e com uma respiração
profunda. Aperto o botão certo para abrir o portão da garagem. Ligo o motor do
carro e saio. Quando viro a esquina da rua olho pelo retrovisor e vejo pela
última vez a casa onde depositei todas as minhas esperanças. Ali ficaram as
memórias que ninguém recordaria. Ali ficou a minha tentativa de criar uma
herança de amor, que passasse de geração em geração como um anel antigo de
família. Ali ficou todo o meu medo e terror. Mas eu consegui gerar uma semente
de amor. E essa eu levo comigo, dentro daquele carro.
O
porto velho está escuro. A rampa de dá acesso ao mar está livre de barcos. Mas
eu não quero a rampa. Coloco o carro na posição certa. Beijo cada um dos meus
filhos e acaricio as suas faces rosadas. Murmuro um amo-te no ouvido de cada
uma deles. Ofereço-lhes a minha última lágrima. E acelero em direção ao futuro.
CAPITULO
XXIX
Estão
todos chocados com aquele cenário de horror. Uma mãe com os seus quatro filhos.
Mortos. Afogados. Dentro do carro. Mas o que provoca a bílis daqueles homens
grandes e vividos é o corpo martirizado da mulher e o poema tatuado pela ponta
afiada de uma faca no seu tronco nu.
Sempre
que a lua se apaga
E
o nevoeiro se acende,
O
brilho da alma não rende
O
corpo dorido em chaga!
E
a vontade apertada no peito
Provoca
o choro dos desalmados,
Aqueles
que nunca amados
Cavalgam
as dores a eito!
Nesta
correria de vivências
O
meu metabolismo é lento,
Porque
recito poesia sem pressa!
Eu
não quero o amor em gorjetas!
Finalmente,
aceito o que interessa!
Esta
vida não é para poetas!
FIM
Maria Gaspar