quinta-feira, 10 de março de 2022

 

PARTE V


 

CAPITULO XVI

 

“Que fazes da vida?

Como te sustentas?

Com essa pele manchada?

Esse corpo furado?

Pobres pais a quem atentas…

É com certeza bêbado!

Se não mesmo drogado!”

 

Esta música brota,

De um murmúrio com cheiro

A mentes de bosta!

E tu passas alheio,

Às bocas lavadas,

Às cabeças penteadas,

Daqueles que se dão ao respeito!

 

A tua pele baça

Coberta de arco-íris

É teimosa em colorir

Este nevoeiro denso,

Teimoso em partir!

Que deixa as mentes em suspenso!

E a humanidade sem sorrir!

 


A comichão na cabeça avisou-me de um corpo alheio ao meu. Sabia que estava ali, antes mesmo de levantar o braço para lhe chegar. Cheguei-lhe! O papel, afundado nas minhas rastas, era perfumado e desinteressante como se pertencesse a uma antiga dama. Mas a letra era bruta e com personalidade, própria de um vagabundo. Aquele papel não era nem de um nem de outro. Era meu. Era música. Era eu. Gostei de saber que alguém denominava as minhas imensas tatuagens de arco-íris. É quase poético pensar assim. A verdade é bem mais agreste. É quase comovente! Se eu aparecesse num reality show com uma história desgraçada de fazer chorar as pedras da calçada, as minhas tatuagens estariam justificadas, e seriam consideradas belas. Mas as minhas tatuagens não se destinam a tão fúteis destinos. As minhas tatuagens não servem para entreter os aborrecidos, mas sim para sacarem sorrisos aos esquecidos.

“Pobres pais a quem atentas…” Esta parte do poema faz-me gargalhar. Os meus pais orgulham-se de cada uma das minhas tatuagens. E sempre que me apanham num regresso a casa, pavoneiam-me com olhos desafiadores pelas ruas daquele pequeno lugar. Agora gostava de saber quem me descreveu naquele papel, para lhe contar a verdade. Uma verdade tão vulgar, quanto a história de qualquer um que esteja embrenhado em sobressair na vida, iludido de que concentra em si olhares invejosos, sem que na verdade alguém o veja. Gosto de histórias vulgares. De vidas vulgares. De lugares vulgares. Mas vivo para muito mais do que isso. Vivo para que esta vulgaridade seja um direito de todos e não só de alguns.

Entro naquela casa branca e baixa que me viu crescer sem bater à porta. Espreito, expectante com a reação dela. A minha mãe. A melhor do mundo.

- Uhuh! – E fico à espera da resposta que demora. – Uhuh! – Insisto e percorro a sala com os olhos. Continua tudo no lugar certo. A mesa de jantar redonda para que todos usufruam de todos. O sofá pequeno e desconfortável para que não se torne apetecível à preguiça. Uma televisão demasiado grande para aquele espaço, é o único pecado permitido. Ao meu pai. O melhor do mundo.

- Quem está aí? – A voz quente e segura de uma mãe ecoa pelo corredor e eu corro ao seu encontro. Ela está a sair do seu quarto com um pano na mão. O pano voa para longe, enquanto os seus braços se abrem para mim. E naquele abraço cabe um mundo inteiro.

- Gui! Meu pequeno Gui! Que surpresa boa meu amor!

Sou eu. Sim. Eu sou o seu amor. O amor deles. O meu pai quando me vir também dirá o mesmo “meu amor”. Sou tatuado, furado, com rastas que me chegam à cintura… E sou amado. Que antagonismo difícil de aceitar por “mentes de bosta”.

- Como é que estás aqui, filho? Devias ter-me avisado! Teria feito aquele arroz de marisco que tu adoras! Deves estar cansado. Queres um cafezinho? Ou talvez prefiras um chá de camomila e mel? A tua tia Rosalinda trouxe ontem daqueles biscoitos de milho que tu adoras… Onde é que está a tua mala? Vai lá buscar a tua roupa para por a lavar! Quanto tempo ficas desta vez?

Sorri! Já que não consigo falar, sorrio-lhe a cada nova pergunta, afirmação, constatação. Ela fica feliz com o meu sorriso.

- O teu pai foi só comprar pão. Deve estar a chegar! Nem quero acreditar que estás aqui! O meu amor!

Lá está. Meu amor. Ela também é o meu amor. E ela sabe-o bem. Naquela casa não há sentimentos escondidos ou mal entendidos. Falamos sempre de tudo o que nos convém. Respeitamos sempre os silêncios e as palavras de cada um. Ali aprendi que não vale a pena ter ouvidos se não ouvimos. Antes do amor vem o respeito. Não existe o segundo sem o primeiro. Seria como uma casa sem alicerces.

- Que algazarra é esta? – A voz de trovão do meu pai surge para lá da ombreira da porta da cozinha. Quando entra e os seus olhos me encontram, todo ele se ilumina. Atira o saco do pão para cima do balcão e abre os seus braços magros para mim! Outro abraço!

- Oh rapaz! Ainda nos matas do coração! Que surpresa boa! Quanto tempo ficas desta vez, meu amor!

Lá está! Meu amor! Que palavra linda. Que sentimento gigante. Gosto muito do verbo amar. Gosto particularmente do verbo amar conjugado pelos portugueses. Não somos um povo que futilize a palavra amor. Em inglês eles amam tudo sem distinção. “I love mommy” é dito com a mesma entoação com que dizem “I love cofee”. Os brasileiros banalizaram o amor também. Eles amam tudo com a mesma pronúncia. “ Eu amo andar de ónibus”, “eu amo essa blusinha aqui”, “eu amo você, meu filho”! Mas o português… Ah! O português não usa o verbo amar com facilidade. Quando o fazem é com uma consciência limpa e cheia de certezas. Enxovalhamos mais facilmente as divindades banalizando o verbo adorar, do que a pessoa amada. Um “amo-te” é um som pesado, quase visceral que sai das profundezas do ser. E depois de dito desta forma pouco musical, “amo-te”, flutua acima de nós e dança, e balança-se no nosso entendimento até nos atingir como um raio de luz.

- Vou ficar quase dois meses!

- Que bom filho! Já não me lembro do que é ter-te tanto tempo em casa! – A minha mãe finalmente senta-se no banco alto do mesão da cozinha e faz-nos companhia no café.

- Então, e porque é que vais ficar tanto tempo desta vez?

- O Zeca convidou-me para padrinho do casamento dele!

- Ah! Não estava nada à espera disso! É verdade que sempre foram amigos. Mas depois tu foste embora e ele ficou por cá com os amigos de sempre e outros novos amigos… - de repente a boca calou o que a mente lembrou. E os olhos da minha mãe abriram-se quando ela percebeu o porquê daquele convite ter chegado a mim.

O Zeca é homossexual e vai casar-se numa pequena aldeia habitada por “mentes de bosta”. Sou amigo do Zeca desde sempre. Não me lembro da minha existência sem a existência do Zeca. Em crianças, no infantário, o Zeca trocava a bola pela casinha das bonecas. Usava saltos altos com a mesma facilidade com que os outros rapazes usavam chuteiras de pitons. Lembro-me de num determinado momento ter vergonha do Zeca. Não queria que ele me tocasse. Sempre que ele se aproximava de mim olhava por cima do ombro, certificando-me que ninguém me associaria às suas mariquices. Mas porque raio é que ele se portava assim, abanando-se muito mais do que era preciso, encolhendo as pernas como um maricas e usando as mãos sempre que falava? Um certo dia, devíamos ter uns nove senão mesmo dez anos, e eu estava a jogar à bola com os outros rapazes, fingindo ignorar as raparigas que passavam, mas certificando-me que manipulava a bola com estilo, de forma a conseguir um olhar feminino mais demorado. O Zeca aproximou-se do campo e acenou para mim. Senti todo o meu corpo ficar rígido. Os olhares desaprovadores dos outros meninos muito machos eram dedos apontados ao meu peito e as risotas e comentários baixos disparados pelas suas bocas eram balas no meu estomago. “Vai ter com o teu amiguinho”, “Olha a tua mulher está a chamar-te”, “Beijo, beijo, beijo”… A cada palavra o veneno da vergonha ebulia no meu peito subindo até à minha garganta inchada e pincelando as minhas bochechas de manchas vermelhas. Corri para o Zeca, agarrei-lhe o peito pela camisola de lã desbotada e dei-lhe duas caneladas. Larguei-o de seguida e ofendi-o.

 - Deixa-me da mão para fora que eu não sou maricas como tu!

Todos se riram enquanto o Zeca se levantou humilhado e fugiu a chorar. Para meu grande espanto não senti alívio por me livrar dele. Pelo contrário o veneno que enchia o meu peito agora revolvia o meu estomago. Vomitei. E não consegui voltar ao jogo. Fui para casa com a desculpa de que estava doente. Assim que entrei em casa a minha mãe correu para mim e acolheu-me naquele abraço imenso e só então percebi que tinha vontade de chorar. Eu não queria bater em ninguém, eu só queria chorar. Mas fiz tudo errado. Bati em vez de chorar. Contei à minha mãe entre soluços o que tinha acontecido. Então ela levou-me para a cozinha e em vez de castigar-me por ter batido no Zeca, ela ofereceu-me uma caneca de chocolate quente.

- Porque é que bateste no Zeca?

Fiquei calado por uns segundos. Ela esperou pela minha resposta. Na minha casa ninguém responde pelos outros.

- Porque ele é marica. - Respondi numa voz frágil.

 - E tu és baixo para tua idade. Pensa melhor na tua resposta. Porque é que bateste no Zeca?

 Eu não sei o que ela queria ouvir. Estava confuso.

- Todos chamam o Zeca de maricas. E ele brinca com bonecas. Ele porta-se como se fosse uma rapariga. Mas não é. Ele é um rapaz.

 A minha mãe beijou o topo da minha cabeça e percebi que se estava a formar uma ideia na minha alma capaz de justificar todas as dúvidas que me ensombravam.

- Então o Zeca foi ao campo de futebol para falar contigo, e tu em vez de ouvires o que ele tinha para te dizer, bateste-o?

 Respondi um sim envergonhado.

- Sabes o que o Zeca te queria dizer? - Abanei a cabeça negativamente sem nunca fixar os olhos da minha mãe.

- Queres saber? Ou preferes não saber de nada que esteja relacionado com o Zeca?

Não respondi. Não fui capaz de encontrar uma resposta imediata. A minha mente estava assoberbada de emoções. Sentia-me envergonhado pelo que tinha feito ao Zeca. Sentia medo do que os outros ficariam a pensar se eu não tivesse feito aquilo ao Zeca.

- Sabes, meu amor, estás a ficar cada vez mais crescido. Quando eras bebé apenas comias o que eu te dava. Não podias escolher entre sopa de cenoura ou sopa de tomate. Comias apenas no momento em que eu decidia que devias comer e a quantidade que eu decidia. Mas agora já estás a ficar um homenzinho e já escolhes o que queres comer, a quantidade, e pedes-me comida mesmo quando não te estou a dar, certo?

- Porque estou a crescer. Jã não sou um bebé!

- Exatamente! Estás a crescer! E com o crescimento vem a responsabilidade. Sabes o que significa responsabilidade?

- Mais ou menos! Não sei explicar! – Não queria dar parte fraca, uma vez que a minha mãe estava a assumir que já era grande.

- Responsabilidade é quando podemos escolher. Quando escolhes és responsável por tudo o que resultar da tua escolha. Se escolheres comer muitos doces de uma vez, és responsável pela dor de barriga que tiveres depois, percebes?

- Sim. Se não estudar sou responsável por ter não satisfaz no teste.

- Isso mesmo!

Lembro-me que a minha mãe abraçou-me naquele momento. Pensei que fosse por estar contente com a minha resposta. Mas hoje sei que estava a preparar-me para a responsabilidade da decisão que tomaria naquele momento.

- Então Gui tens uma importante decisão e serás o único responsável por ela. Queres ser amigo do Zeca, mesmo sabendo que será difícil ser amigo dele? Ou preferes afastar-te dele e não pensares mais no assunto?

Não respondi. Não fui capaz. Era muita responsabilidade. Fui para o meu quarto e adormeci a pensar no Zeca. No que ele estaria a sentir. Como é que ele conseguia viver com tantas humilhações, quando eu nem conseguia aguentar as provocações tolas resultantes de um simples acenar de um amigo? Imaginei como seria difícil ser o Zeca. Imaginei como seria ainda mais difícil ser o Zeca sem um amigo. E foi a primeira vez que me coloquei plenamente no lugar do outro. Foi a primeira vez que o veneno abandonou as minhas entranhas, e então a magia apoderou-se de mim como o efeito da mordedura da aranha no Peter Parker. Soube que era essa magia que alimentava os heróis. Mais tarde soube o nome deste ato de nos colocarmos na pele dos outros: Altruísmo. A minha palavra preferida.

A partir daquele dia fui amigo declarado do Zeca. Protetor. Defensor. Se ele queria brincar com bonecas então que o deixassem brincar com bonecas. E nesta luta pelo Zeca recebi a segunda grande lição da minha vida. Para proteger o Zeca comecei a fazer o que o Zeca gostava. Sentava-me com ele a vê-lo vestir bonecas e sentia-me entediado. Os meus olhos brilhavam sempre que via a bola de futebol rolar pelo campo, mas o meu orgulho fazia-me recusar ceder à tentação de jogar com aqueles que chamavam maricas ao Zeca. E comecei a sentir a magia transformar-se novamente em veneno. Comecei a sentir-me triste e sem vontade para sair de casa. Até ao dia, em que o Zeca foi à minha casa, disse-me que não queria ser mais meu amigo e deixou-me ali desarmado. Um herói sem causa.

- O que se passa Gui? – Perguntou o meu pai.

- O Zeca disse-me que já não somos mais amigos.

O meu pai olhou para mim espantado.

- E sabes porque é que ele fez isso?

Não sabia. Não sabia mesmo. Eu protegi-o sempre de ataques verbais e físicos dos outros meninos. Certifiquei-me de que ele podia brincar como queria sem ser importunado. Eu sei que fui um bom amigo. Porque será que ele não me queria como amigo?

- Eu estava sempre com ele. Quando os meninos o queriam bater, eu defendia-o sempre. Não deixava que ninguém lhe chamasse nomes. Enfrentei o José quando ele despejou cocó de porco em cima dele e toda a escola se riu. Até o ajudei a limpar-se… Passei a sentar-me ao lado dele na sala de aula para que nenhum bilhete maldoso lhe chegasse às mãos. Arranquei as bolotas da própria mão do Ernesto e disparei-as para a suas pernas para ele ver se era bom. Ah! Ele nunca mais atirou bolotas para as pernas do Zeca.

- Foste realmente um bom amigo! E achas que o Zeca é um bom amigo para ti?

- Claro que sim! Ajuda-me a estudar! E até melhorei as notas. Está sempre a dizer-me para ir jogar à bola com os outros, mas eu não posso?

- Não podes porquê? – Foi nesta pergunta que se formou a primeira ruga nas feições do meu pai. Uma ruga que nunca mais se apagou. Uma ruga que nasceu entre as sobrancelhas e para ali ficou.

- Porque quem joga à bola são os mesmos meninos que tratam mal o Zeca. Não quero trocar o Zeca por eles.

- Sabes Gui, acho que acabei de descobrir o porquê dessa atitude do Zeca. O Zeca é realmente um bom amigo. Ele está a libertar-te.

- Como assim?

- Tu abdicaste de tudo aquilo que te fazia feliz para tomares conta de um bom amigo. Isso é louvável. Mas deixa de ser uma coisa boa quando te anulas. Em qualquer tipo de relação, seja de amizade, seja amorosa, seja de pais e filhos, quando houver a nulidade de uma das partes, então só existe metade do amor. E metade de amor, não é amor!

- Mas eu pensei que estava a ser um bom amigo.

- E estavas! E podes continuar a ser. Pensa com o pai. Quando sais de casa até voltares fazes alguma coisa que tu gostes. Ou estás sempre dependente do Zeca?

- Mas ele precisa que eu o proteja. E se eu jogar à bola com os outros, eles vão pensar que eu prefiro estar com eles do que com o Zeca? E o Zeca vai sentir-se novamente sozinho.

- Para seres amigo do Zeca não tens de afastar-te desses miúdos. Podes jogar à bola com eles e fazê-los saberem que és amigo do Zeca. Sabes? Nós temos vários círculos invisíveis à nossa volta. Temos um círculo que ocupa apenas este espaço. – O meu pai rodou os braços à volta da cintura formando um pequeno círculo imaginário. – E neste círculo estão as pessoas que mais amas. No meu caso és tu e a mãe. Depois temos um círculo um pouco mais alargado em que estão as pessoas que ainda amas com um bocadinho menos de intensidade. No meu caso está o resto da família e alguns amigos. E depois tens outro círculo ainda mais alargado onde estão conhecidos, colegas de trabalho e outros… E por aí fora. Podes ter a quantidade de círculos que quiseres. O que importa é quem colocas dentro de cada um deles. Tu és sempre o centro do círculo e quanto mais alargado é o círculo mais afastada de ti está a circunferência do mesmo.

O Zeca definiu a minha essência como pessoa. Ele nem sabe disso. Ou talvez saiba e por isso depois de tantos anos afastados, tenha pensado em mim para padrinho. Foi por causa do Zeca que decidi ser altruísta antes de ser médico.

 

CAPITULO XVII

 

Quinze dias nesta casa e já devo ter engordado uns três quilos. Penso nas crianças que deixei para trás. O meu corpo está ali a alimentar-se de comida e de amor, para que depois possa ser alimento para os outros. A minha pele baça, coberta de arco-íris, é teimosa em colorir o nevoeiro denso daqueles que não têm cores. Falta uma semana para o casamento. Vou encurtar a minha estadia. A minha alma está inquieta com o sofrimento daqueles que deixei. Sou um médico sem fronteiras. Neste momento o meu coração está no Sudão do Sul. O meu coração bate dentro do peito de crianças que foram usadas como soldados. Crianças cuja retina já absorveu mais maldade do que Jesus Cristo perdoou na cruz. Não perco tempo a pedir a divindades. Não acredito em nada do que me foi ensinado na catequese. Neste meu embalo de descrença, já transporto os meus pais, que sofrem com os meus desabafos, ignorando que os poupo aos maiores terrores. O ser humano não é uma tábua rasa. É impossível nascer sem nada e adquirir tanta maldade apenas numa vida. É impossível descrer nos monstros para lá do Bojador. Os monstros existem em abundância. “Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor.” Existe uma Terra esquecida por todos e lembrada apenas por monstros que nela habitam. Existe uma incomensurável maldade que ocupa tanto espaço, mas tanto espaço, que é impossível sentir outra coisa qualquer. É impossível sentir amor. É impossível sentir compaixão. É até mesmo impossível sentir dor! Este extremo de maldade, só pode encolher perante um oposto igualmente poderoso. Mas o oposto da maldade existe em número muito menos significativo. Para cada quilo de maldade existe apenas um grama de bondade. E esta falta de proporção é resultado consciente de uma humanidade inteira. Não nascemos tábuas rasas. Nascemos egocêntricos, tal como fomos concebidos, dentro de um útero que não partilhamos.

- Gui! Estás pronto? – A voz do Zeca range fininho por entre as dobradiças da porta.

- Entra Zeca! Estou só a calçar os sapatos!

O Zeca aparece à porta do meu quarto conhecedor do caminho, de cada canto e de cada emoção daquela casa. Encosta-se à ombreira da porta a olhar para mim. Eu levanto-me e recebo-o num abraço apertado.

- Que saudades que eu tinha tuas! – Zeca enxuga uma lágrima. Sempre foi de água fácil nos olhos. Questiono-me, quanto tempo levaria o Zeca a esgotar as lágrimas no Sudão do Sul? Eu esgotei-as em dois dias. – Estás tão crescido! E colorido!

A gargalhada do Zeca tinha perdido o tom agudo de que me lembrava. Era agora rouca e esgotava-se numa uma tosse tabágica.

- Então? Como é que está o noivo? Ou és a noiva?

Rimos juntos. Não havia constrangimento entre nós. Porque quando não existe preconceito, é impossível existir ofensa.

- Sou a noiva. Vou casar-me vestida de branco com um raminho de laranjeira, pura e virgem como vim ao mundo!

Rimos mais alto.

- Onde é que vamos? Achei estranho fazeres a despedida de solteiro às quatro da tarde.

- É surpresa!

- Eu é que devia preparar-te surpresas para a tua despedida de solteiro.

- Eu sei. Mas tenho a certeza absoluta de que não acertarias no tipo de strippers que me agradam…

Voltamos ao riso fácil. O Zeca enroscou o seu braço no meu. O seu cocuruto ficava apenas um centímetro acima do meu ombro, pelo que lhe depositei um beijo no topo da cabeça. Saímos assim de braço dado. Lembrei-me da música cantada pelo António Zambujo “Eu quero passar contigo de braço dado / E a rua toda de olho arregalado”. E foram realmente muitos os olhos arregalados, as cabeças balançantes em negação, os murmurinhos baixos e pouco educados.

- Sabias que as pessoas dizem à boca pequena que não és médico?

- Sei! Mas sinceramente é um saber que não me ocupa lugar!

- A culpa não é das pessoas! Essa incerteza que dá largas à imaginação é como um brufen durante o período. Alivia as dores. O mexerico e desconforto que provocas na aldeia é melhor para as tristezas desta gente do que um arraial de S. João!

 

- Acho interessante que as pessoas acreditem mais na minha coragem pare encher o corpo de tatuagens dolorosas, do que na minha capacidade para tirar um curso. Sinceramente sinto-me lisonjeado! E tu? Estás feliz com o casamento?

- Sim! Neste momento é o que faz sentido. Encontrei o parceiro certo. – As palavras certas ergueram-se no ar, enquanto o olhar se manteve preso no chão.

 - Hum! Então qual é o mas?

- Tu conheces-me mesmo bem. Pena nunca me ter apaixonado por ti.

Rimos um riso caridoso.

- A minha mãe! O mas é a minha mãe!

- A Dona Maria Rita? Então porquê?

O Zeca falou daquilo que eu sabia pouco. De como a mãe já não o olhava de frente. De como não o felicitou pelo noivado. De como não participa nos preparativos do casamento. Nem sequer confirmou a sua presença na cerimónia. O mais provável é que nem apareça. Não falam mais do que umas poucas monossílabas. Não tomam refeições juntos. Não riem juntos. Não choram juntos. Não amam juntos!

Depois de meia hora dentro do carro e depois de meia hora de um monólogo do Zeca falando acerca daquilo que eu tão pouco sabia, chegamos ao destino. Saímos do carro e encontramo-nos com o noivo do Zeca que eu ainda não conhecia. Era baixo e um pouco anafado, com um riso largo e generoso. Abraçamo-nos como os maricas se abraçam. Abraçamo-nos como as mulheres se abraçam. Abraçamo-nos como qualquer homem se abraça! Fiquei surpreendido por ver que alguns dos companheiros, para aquela despedida de solteiro, eram os antigos agressores do Zeca. Eram os colegas de quem eu o protegia. Estava feliz por reaver os antigos companheiros da bola. Mas fiquei mais feliz por vê-los na despedida de solteiro do Zeca. O tempo é um bom remédio para as mentes que procuram o interruptor. Acabam sempre por conseguir acender a luz. Estavam todos a conspirar e senti que era o único que não sabia o que se passava. Estacamos em frente a uma loja que tinha um letreiro com um “Atreve-te” impresso e uma única montra tapada por uma cortina preta. Entramos, e então senti a minha boca abrir-se numa exclamação muda. Não me restava qualquer dúvida. Estava numa loja de tatuagens. Tenho experiência suficiente para saber quando estou dentro de uma. Todos os molhares estavam depositados em mim e senti-me o noivo.

- Tcharan! – Zeca abriu os braços como um mágico quando apresenta o resultado de um truque de magia.

- Não estou a perceber! Vais fazer uma tatuagem na tua despedida de solteiro? – A minha mente procurava um resultado lógico para aquela equação. Eu, que tinha o corpo todo tatuado, estava dentro de uma loja de tatuagens. Não é uma coisa estranha. Mas estava acompanhado por pessoas com peles virgens, que não se adequam àquele ambiente.

- Vamos todos fazer uma tatuagem! – Respondeu o noivo anafado do Zeca com os seus dentes brilhantes ainda mais expostos do que quando o conheci. – O Zeca falou-me da história das tuas tatuagens. Confesso que me levou às lágrimas. E olha que eu não sou um choramingas como o meu Zeca. Não é fácil arrancar-me uma lágrima. Mas quando o Zeca me contou a tua história, aliás as tuas histórias, confesso que chorei como um bebé.

- Mas um bebé muito fofo! – Zeca depositou um beijo leve na bochecha do noivo e nenhum dos seus antigos agressores tremeu.

Cada um escolheu um super-herói e um lugar no corpo para aplicar a tatuagem. Tínhamos quatro tatuadores à nossa disposição. Eu ainda não tinha decidido o que tatuar. Ainda estava em estado de choque. Já poucas coisas me surpreendiam. Talvez não seja verdade. Já poucas maldades me surpreendem. Mas a bondade… Ah a bondade, de tão rara, é capaz de arrancar emoções e surpresas sem fim de dentro de mim. Enquanto passava o dedo indicador pelas minhas tatuagens do braço oposto, pensei na minha primeira tatuagem. Fi-la durante a minha primeira missão. Tatuei o Pantera Negra numa posição de combate, que estimula qualquer imaginação até ao infinito para lhe dar uma história. Aquela tatuagem foi a televisão de meninos de zonas rurais de Moçambique. Meninos que morriam desidratados por causas tão simples como uma diarreia. Meninos vítimas do flagelo do VIH. Meninos malnutridos, mas que tinham tido a sorte de serem um dos sobreviventes ao parto. Aquela tatuagem fê-los sonharem pela primeira vez. Contei-lhes a história do herói T’Challa, príncipe de Wakanda, e dos seus super poderes. Aquela simples tatuagem desenvolveu tardes de brincadeira, sonhos de crianças. E esperança. Esperança de um dia todos eles serem como o Pantera Negra e lutarem pelo seu território. A partir daí, o meu corpo deu lugar à imaginação daqueles que não têm nada. Tenho super-heróis, princesas da Disney, animais falantes, sereias. Até o Rato Mickey. Tenho sonhos e esperança tatuados na pele. Vou tatuar Hansel e Gretel e contar aos meninos do Sudão do Sul que aqueles irmãos, mesmo depois de viverem no mal, conseguiram encontrar o caminho que os levava de volta para casa.

 

 

CAPITULO XVIII

 

Vou sem tempo. Porque quem tem tempo, conta-o. E quem conta o tempo, esgota-o. E então contanto todo o tempo, todos os minutos, todos os segundos, a vida é cronometrada em vez de ser vivida. Gosto de viver assim. Sem tempo, sem limites, sem destino, sem planos. A minha vida será para uso dos outros. Só assim eu faço sentido.

Continuo a pensar no poema que me ofereceram. Existem realmente preconceitos, mas que não me atingem. Nem sequer os sinto, porque nunca são mencionados na minha casa, no meu refúgio, no lugar onde carrego as minhas forças. Esses pensamentos maldosos não penetram no meio daqueles que me amam. Mas existem casas que estão infestadas de preconceitos alheios. Preconceitos que nem vivem ali. Mas alimentam-se ali. São uma praga dentro de uma casa. São o declínio de uma família. Uma família vitima desta praga, merece um poema.

Escrevi um poema. Um poema anónimo para uma mulher que conheço fisicamente desde sempre, mas cuja alma nunca me foi apresentada. Ela precisa deste poema. Deste espelho. Ela está perdida nas palavras de olhares alheios e ignora os seus próprios olhos. Tenho que lhe dizer o que uma vez um poema me disse. Que por vezes temos de passar alheios às bocas lavadas, às cabeças penteadas de quem se dá ao respeito!

E agora sim! Vou colorir o mundo e fazer a humanidade sorrir! Vou sem medo, porque o altruísmo come o medo.

Sem comentários:

Enviar um comentário