PARTE
V
CAPITULO
XVI
“Que fazes da vida?
Como te sustentas?
Com essa pele manchada?
Esse corpo furado?
Pobres pais a quem
atentas…
É com certeza bêbado!
Se não mesmo drogado!”
Esta música brota,
De um murmúrio com cheiro
A mentes de bosta!
E tu passas alheio,
Às bocas lavadas,
Às cabeças penteadas,
Daqueles que se dão ao
respeito!
A tua pele baça
Coberta de arco-íris
É teimosa em colorir
Este nevoeiro denso,
Teimoso em partir!
Que deixa as mentes em
suspenso!
E a humanidade sem
sorrir!
A
comichão na cabeça avisou-me de um corpo alheio ao meu. Sabia que estava ali,
antes mesmo de levantar o braço para lhe chegar. Cheguei-lhe! O papel, afundado
nas minhas rastas, era perfumado e desinteressante como se pertencesse a uma
antiga dama. Mas a letra era bruta e com personalidade, própria de um
vagabundo. Aquele papel não era nem de um nem de outro. Era meu. Era música.
Era eu. Gostei de saber que alguém denominava as minhas imensas tatuagens de
arco-íris. É quase poético pensar assim. A verdade é bem mais agreste. É quase
comovente! Se eu aparecesse num reality show com uma história desgraçada de
fazer chorar as pedras da calçada, as minhas tatuagens estariam justificadas, e
seriam consideradas belas. Mas as minhas tatuagens não se destinam a tão fúteis
destinos. As minhas tatuagens não servem para entreter os aborrecidos, mas sim
para sacarem sorrisos aos esquecidos.
“Pobres
pais a quem atentas…” Esta parte do poema faz-me gargalhar. Os meus pais
orgulham-se de cada uma das minhas tatuagens. E sempre que me apanham num
regresso a casa, pavoneiam-me com olhos desafiadores pelas ruas daquele pequeno
lugar. Agora gostava de saber quem me descreveu naquele papel, para lhe contar
a verdade. Uma verdade tão vulgar, quanto a história de qualquer um que esteja
embrenhado em sobressair na vida, iludido de que concentra em si olhares
invejosos, sem que na verdade alguém o veja. Gosto de histórias vulgares. De
vidas vulgares. De lugares vulgares. Mas vivo para muito mais do que isso. Vivo
para que esta vulgaridade seja um direito de todos e não só de alguns.
Entro
naquela casa branca e baixa que me viu crescer sem bater à porta. Espreito,
expectante com a reação dela. A minha mãe. A melhor do mundo.
-
Uhuh! – E fico à espera da resposta que demora. – Uhuh! – Insisto e percorro a
sala com os olhos. Continua tudo no lugar certo. A mesa de jantar redonda para
que todos usufruam de todos. O sofá pequeno e desconfortável para que não se
torne apetecível à preguiça. Uma televisão demasiado grande para aquele espaço,
é o único pecado permitido. Ao meu pai. O melhor do mundo.
-
Quem está aí? – A voz quente e segura de uma mãe ecoa pelo corredor e eu corro
ao seu encontro. Ela está a sair do seu quarto com um pano na mão. O pano voa
para longe, enquanto os seus braços se abrem para mim. E naquele abraço cabe um
mundo inteiro.
-
Gui! Meu pequeno Gui! Que surpresa boa meu amor!
Sou
eu. Sim. Eu sou o seu amor. O amor deles. O meu pai quando me vir também dirá o
mesmo “meu amor”. Sou tatuado, furado, com rastas que me chegam à cintura… E
sou amado. Que antagonismo difícil de aceitar por “mentes de bosta”.
-
Como é que estás aqui, filho? Devias ter-me avisado! Teria feito aquele arroz
de marisco que tu adoras! Deves estar cansado. Queres um cafezinho? Ou talvez
prefiras um chá de camomila e mel? A tua tia Rosalinda trouxe ontem daqueles
biscoitos de milho que tu adoras… Onde é que está a tua mala? Vai lá buscar a
tua roupa para por a lavar! Quanto tempo ficas desta vez?
Sorri!
Já que não consigo falar, sorrio-lhe a cada nova pergunta, afirmação,
constatação. Ela fica feliz com o meu sorriso.
-
O teu pai foi só comprar pão. Deve estar a chegar! Nem quero acreditar que
estás aqui! O meu amor!
Lá
está. Meu amor. Ela também é o meu amor. E ela sabe-o bem. Naquela casa não há
sentimentos escondidos ou mal entendidos. Falamos sempre de tudo o que nos
convém. Respeitamos sempre os silêncios e as palavras de cada um. Ali aprendi
que não vale a pena ter ouvidos se não ouvimos. Antes do amor vem o respeito.
Não existe o segundo sem o primeiro. Seria como uma casa sem alicerces.
-
Que algazarra é esta? – A voz de trovão do meu pai surge para lá da ombreira da
porta da cozinha. Quando entra e os seus olhos me encontram, todo ele se
ilumina. Atira o saco do pão para cima do balcão e abre os seus braços magros
para mim! Outro abraço!
-
Oh rapaz! Ainda nos matas do coração! Que surpresa boa! Quanto tempo ficas
desta vez, meu amor!
Lá
está! Meu amor! Que palavra linda. Que sentimento gigante. Gosto muito do verbo
amar. Gosto particularmente do verbo amar conjugado pelos portugueses. Não
somos um povo que futilize a palavra amor. Em inglês eles amam tudo sem
distinção. “I love mommy” é dito com a mesma entoação com que dizem “I love
cofee”. Os brasileiros banalizaram o amor também. Eles amam tudo com a mesma
pronúncia. “ Eu amo andar de ónibus”, “eu amo essa blusinha aqui”, “eu amo
você, meu filho”! Mas o português… Ah! O português não usa o verbo amar com
facilidade. Quando o fazem é com uma consciência limpa e cheia de certezas. Enxovalhamos
mais facilmente as divindades banalizando o verbo adorar, do que a pessoa
amada. Um “amo-te” é um som pesado, quase visceral que sai das profundezas do
ser. E depois de dito desta forma pouco musical, “amo-te”, flutua acima de nós
e dança, e balança-se no nosso entendimento até nos atingir como um raio de
luz.
-
Vou ficar quase dois meses!
-
Que bom filho! Já não me lembro do que é ter-te tanto tempo em casa! – A minha
mãe finalmente senta-se no banco alto do mesão da cozinha e faz-nos companhia
no café.
-
Então, e porque é que vais ficar tanto tempo desta vez?
-
O Zeca convidou-me para padrinho do casamento dele!
-
Ah! Não estava nada à espera disso! É verdade que sempre foram amigos. Mas
depois tu foste embora e ele ficou por cá com os amigos de sempre e outros
novos amigos… - de repente a boca calou o que a mente lembrou. E os olhos da
minha mãe abriram-se quando ela percebeu o porquê daquele convite ter chegado a
mim.
O
Zeca é homossexual e vai casar-se numa pequena aldeia habitada por “mentes de
bosta”. Sou amigo do Zeca desde sempre. Não me lembro da minha existência sem a
existência do Zeca. Em crianças, no infantário, o Zeca trocava a bola pela
casinha das bonecas. Usava saltos altos com a mesma facilidade com que os
outros rapazes usavam chuteiras de pitons. Lembro-me de num determinado momento
ter vergonha do Zeca. Não queria que ele me tocasse. Sempre que ele se
aproximava de mim olhava por cima do ombro, certificando-me que ninguém me
associaria às suas mariquices. Mas porque raio é que ele se portava assim,
abanando-se muito mais do que era preciso, encolhendo as pernas como um maricas
e usando as mãos sempre que falava? Um certo dia, devíamos ter uns nove senão
mesmo dez anos, e eu estava a jogar à bola com os outros rapazes, fingindo
ignorar as raparigas que passavam, mas certificando-me que manipulava a bola
com estilo, de forma a conseguir um olhar feminino mais demorado. O Zeca aproximou-se
do campo e acenou para mim. Senti todo o meu corpo ficar rígido. Os olhares
desaprovadores dos outros meninos muito machos eram dedos apontados ao meu
peito e as risotas e comentários baixos disparados pelas suas bocas eram balas
no meu estomago. “Vai ter com o teu amiguinho”, “Olha a tua mulher está a
chamar-te”, “Beijo, beijo, beijo”… A cada palavra o veneno da vergonha ebulia
no meu peito subindo até à minha garganta inchada e pincelando as minhas
bochechas de manchas vermelhas. Corri para o Zeca, agarrei-lhe o peito pela
camisola de lã desbotada e dei-lhe duas caneladas. Larguei-o de seguida e
ofendi-o.
- Deixa-me da mão para fora que eu não sou
maricas como tu!
Todos
se riram enquanto o Zeca se levantou humilhado e fugiu a chorar. Para meu grande
espanto não senti alívio por me livrar dele. Pelo contrário o veneno que enchia
o meu peito agora revolvia o meu estomago. Vomitei. E não consegui voltar ao
jogo. Fui para casa com a desculpa de que estava doente. Assim que entrei em
casa a minha mãe correu para mim e acolheu-me naquele abraço imenso e só então
percebi que tinha vontade de chorar. Eu não queria bater em ninguém, eu só
queria chorar. Mas fiz tudo errado. Bati em vez de chorar. Contei à minha mãe
entre soluços o que tinha acontecido. Então ela levou-me para a cozinha e em
vez de castigar-me por ter batido no Zeca, ela ofereceu-me uma caneca de
chocolate quente.
-
Porque é que bateste no Zeca?
Fiquei
calado por uns segundos. Ela esperou pela minha resposta. Na minha casa ninguém
responde pelos outros.
-
Porque ele é marica. - Respondi numa voz frágil.
- E tu és baixo para tua idade. Pensa melhor
na tua resposta. Porque é que bateste no Zeca?
Eu não sei o que ela queria ouvir. Estava
confuso.
-
Todos chamam o Zeca de maricas. E ele brinca com bonecas. Ele porta-se como se
fosse uma rapariga. Mas não é. Ele é um rapaz.
A minha mãe beijou o topo da minha cabeça e
percebi que se estava a formar uma ideia na minha alma capaz de justificar
todas as dúvidas que me ensombravam.
-
Então o Zeca foi ao campo de futebol para falar contigo, e tu em vez de ouvires
o que ele tinha para te dizer, bateste-o?
Respondi um sim envergonhado.
-
Sabes o que o Zeca te queria dizer? - Abanei a cabeça negativamente sem nunca
fixar os olhos da minha mãe.
-
Queres saber? Ou preferes não saber de nada que esteja relacionado com o Zeca?
Não
respondi. Não fui capaz de encontrar uma resposta imediata. A minha mente
estava assoberbada de emoções. Sentia-me envergonhado pelo que tinha feito ao
Zeca. Sentia medo do que os outros ficariam a pensar se eu não tivesse feito
aquilo ao Zeca.
-
Sabes, meu amor, estás a ficar cada vez mais crescido. Quando eras bebé apenas
comias o que eu te dava. Não podias escolher entre sopa de cenoura ou sopa de
tomate. Comias apenas no momento em que eu decidia que devias comer e a
quantidade que eu decidia. Mas agora já estás a ficar um homenzinho e já
escolhes o que queres comer, a quantidade, e pedes-me comida mesmo quando não
te estou a dar, certo?
-
Porque estou a crescer. Jã não sou um bebé!
-
Exatamente! Estás a crescer! E com o crescimento vem a responsabilidade. Sabes
o que significa responsabilidade?
-
Mais ou menos! Não sei explicar! – Não queria dar parte fraca, uma vez que a
minha mãe estava a assumir que já era grande.
-
Responsabilidade é quando podemos escolher. Quando escolhes és responsável por
tudo o que resultar da tua escolha. Se escolheres comer muitos doces de uma
vez, és responsável pela dor de barriga que tiveres depois, percebes?
-
Sim. Se não estudar sou responsável por ter não satisfaz no teste.
-
Isso mesmo!
Lembro-me
que a minha mãe abraçou-me naquele momento. Pensei que fosse por estar contente
com a minha resposta. Mas hoje sei que estava a preparar-me para a
responsabilidade da decisão que tomaria naquele momento.
-
Então Gui tens uma importante decisão e serás o único responsável por ela.
Queres ser amigo do Zeca, mesmo sabendo que será difícil ser amigo dele? Ou preferes
afastar-te dele e não pensares mais no assunto?
Não
respondi. Não fui capaz. Era muita responsabilidade. Fui para o meu quarto e
adormeci a pensar no Zeca. No que ele estaria a sentir. Como é que ele
conseguia viver com tantas humilhações, quando eu nem conseguia aguentar as
provocações tolas resultantes de um simples acenar de um amigo? Imaginei como
seria difícil ser o Zeca. Imaginei como seria ainda mais difícil ser o Zeca sem
um amigo. E foi a primeira vez que me coloquei plenamente no lugar do outro.
Foi a primeira vez que o veneno abandonou as minhas entranhas, e então a magia
apoderou-se de mim como o efeito da mordedura da aranha no Peter Parker. Soube
que era essa magia que alimentava os heróis. Mais tarde soube o nome deste ato
de nos colocarmos na pele dos outros: Altruísmo. A minha palavra preferida.
A
partir daquele dia fui amigo declarado do Zeca. Protetor. Defensor. Se ele
queria brincar com bonecas então que o deixassem brincar com bonecas. E nesta
luta pelo Zeca recebi a segunda grande lição da minha vida. Para proteger o
Zeca comecei a fazer o que o Zeca gostava. Sentava-me com ele a vê-lo vestir bonecas
e sentia-me entediado. Os meus olhos brilhavam sempre que via a bola de futebol
rolar pelo campo, mas o meu orgulho fazia-me recusar ceder à tentação de jogar
com aqueles que chamavam maricas ao Zeca. E comecei a sentir a magia
transformar-se novamente em veneno. Comecei a sentir-me triste e sem vontade
para sair de casa. Até ao dia, em que o Zeca foi à minha casa, disse-me que não
queria ser mais meu amigo e deixou-me ali desarmado. Um herói sem causa.
-
O que se passa Gui? – Perguntou o meu pai.
-
O Zeca disse-me que já não somos mais amigos.
O
meu pai olhou para mim espantado.
-
E sabes porque é que ele fez isso?
Não
sabia. Não sabia mesmo. Eu protegi-o sempre de ataques verbais e físicos dos
outros meninos. Certifiquei-me de que ele podia brincar como queria sem ser
importunado. Eu sei que fui um bom amigo. Porque será que ele não me queria
como amigo?
-
Eu estava sempre com ele. Quando os meninos o queriam bater, eu defendia-o
sempre. Não deixava que ninguém lhe chamasse nomes. Enfrentei o José quando ele
despejou cocó de porco em cima dele e toda a escola se riu. Até o ajudei a
limpar-se… Passei a sentar-me ao lado dele na sala de aula para que nenhum bilhete
maldoso lhe chegasse às mãos. Arranquei as bolotas da própria mão do Ernesto e
disparei-as para a suas pernas para ele ver se era bom. Ah! Ele nunca mais
atirou bolotas para as pernas do Zeca.
-
Foste realmente um bom amigo! E achas que o Zeca é um bom amigo para ti?
-
Claro que sim! Ajuda-me a estudar! E até melhorei as notas. Está sempre a
dizer-me para ir jogar à bola com os outros, mas eu não posso?
-
Não podes porquê? – Foi nesta pergunta que se formou a primeira ruga nas
feições do meu pai. Uma ruga que nunca mais se apagou. Uma ruga que nasceu
entre as sobrancelhas e para ali ficou.
-
Porque quem joga à bola são os mesmos meninos que tratam mal o Zeca. Não quero
trocar o Zeca por eles.
-
Sabes Gui, acho que acabei de descobrir o porquê dessa atitude do Zeca. O Zeca
é realmente um bom amigo. Ele está a libertar-te.
-
Como assim?
-
Tu abdicaste de tudo aquilo que te fazia feliz para tomares conta de um bom
amigo. Isso é louvável. Mas deixa de ser uma coisa boa quando te anulas. Em
qualquer tipo de relação, seja de amizade, seja amorosa, seja de pais e filhos,
quando houver a nulidade de uma das partes, então só existe metade do amor. E
metade de amor, não é amor!
-
Mas eu pensei que estava a ser um bom amigo.
-
E estavas! E podes continuar a ser. Pensa com o pai. Quando sais de casa até
voltares fazes alguma coisa que tu gostes. Ou estás sempre dependente do Zeca?
-
Mas ele precisa que eu o proteja. E se eu jogar à bola com os outros, eles vão
pensar que eu prefiro estar com eles do que com o Zeca? E o Zeca vai sentir-se
novamente sozinho.
-
Para seres amigo do Zeca não tens de afastar-te desses miúdos. Podes jogar à
bola com eles e fazê-los saberem que és amigo do Zeca. Sabes? Nós temos vários
círculos invisíveis à nossa volta. Temos um círculo que ocupa apenas este
espaço. – O meu pai rodou os braços à volta da cintura formando um pequeno
círculo imaginário. – E neste círculo estão as pessoas que mais amas. No meu
caso és tu e a mãe. Depois temos um círculo um pouco mais alargado em que estão
as pessoas que ainda amas com um bocadinho menos de intensidade. No meu caso
está o resto da família e alguns amigos. E depois tens outro círculo ainda mais
alargado onde estão conhecidos, colegas de trabalho e outros… E por aí fora.
Podes ter a quantidade de círculos que quiseres. O que importa é quem colocas
dentro de cada um deles. Tu és sempre o centro do círculo e quanto mais
alargado é o círculo mais afastada de ti está a circunferência do mesmo.
O
Zeca definiu a minha essência como pessoa. Ele nem sabe disso. Ou talvez saiba
e por isso depois de tantos anos afastados, tenha pensado em mim para padrinho.
Foi por causa do Zeca que decidi ser altruísta antes de ser médico.
CAPITULO
XVII
Quinze
dias nesta casa e já devo ter engordado uns três quilos. Penso nas crianças que
deixei para trás. O meu corpo está ali a alimentar-se de comida e de amor, para
que depois possa ser alimento para os outros. A minha pele baça, coberta de
arco-íris, é teimosa em colorir o nevoeiro denso daqueles que não têm cores. Falta
uma semana para o casamento. Vou encurtar a minha estadia. A minha alma está
inquieta com o sofrimento daqueles que deixei. Sou um médico sem fronteiras.
Neste momento o meu coração está no Sudão do Sul. O meu coração bate dentro do
peito de crianças que foram usadas como soldados. Crianças cuja retina já
absorveu mais maldade do que Jesus Cristo perdoou na cruz. Não perco tempo a
pedir a divindades. Não acredito em nada do que me foi ensinado na catequese.
Neste meu embalo de descrença, já transporto os meus pais, que sofrem com os
meus desabafos, ignorando que os poupo aos maiores terrores. O ser humano não é
uma tábua rasa. É impossível nascer sem nada e adquirir tanta maldade apenas
numa vida. É impossível descrer nos monstros para lá do Bojador. Os monstros
existem em abundância. “Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além
da dor.” Existe uma Terra esquecida por todos e lembrada apenas por monstros
que nela habitam. Existe uma incomensurável maldade que ocupa tanto espaço, mas
tanto espaço, que é impossível sentir outra coisa qualquer. É impossível sentir
amor. É impossível sentir compaixão. É até mesmo impossível sentir dor! Este
extremo de maldade, só pode encolher perante um oposto igualmente poderoso. Mas
o oposto da maldade existe em número muito menos significativo. Para cada quilo
de maldade existe apenas um grama de bondade. E esta falta de proporção é
resultado consciente de uma humanidade inteira. Não nascemos tábuas rasas.
Nascemos egocêntricos, tal como fomos concebidos, dentro de um útero que não
partilhamos.
-
Gui! Estás pronto? – A voz do Zeca range fininho por entre as dobradiças da
porta.
-
Entra Zeca! Estou só a calçar os sapatos!
O
Zeca aparece à porta do meu quarto conhecedor do caminho, de cada canto e de
cada emoção daquela casa. Encosta-se à ombreira da porta a olhar para mim. Eu
levanto-me e recebo-o num abraço apertado.
-
Que saudades que eu tinha tuas! – Zeca enxuga uma lágrima. Sempre foi de água
fácil nos olhos. Questiono-me, quanto tempo levaria o Zeca a esgotar as
lágrimas no Sudão do Sul? Eu esgotei-as em dois dias. – Estás tão crescido! E
colorido!
A
gargalhada do Zeca tinha perdido o tom agudo de que me lembrava. Era agora
rouca e esgotava-se numa uma tosse tabágica.
-
Então? Como é que está o noivo? Ou és a noiva?
Rimos
juntos. Não havia constrangimento entre nós. Porque quando não existe
preconceito, é impossível existir ofensa.
-
Sou a noiva. Vou casar-me vestida de branco com um raminho de laranjeira, pura
e virgem como vim ao mundo!
Rimos
mais alto.
-
Onde é que vamos? Achei estranho fazeres a despedida de solteiro às quatro da
tarde.
-
É surpresa!
-
Eu é que devia preparar-te surpresas para a tua despedida de solteiro.
-
Eu sei. Mas tenho a certeza absoluta de que não acertarias no tipo de strippers
que me agradam…
Voltamos
ao riso fácil. O Zeca enroscou o seu braço no meu. O seu cocuruto ficava apenas
um centímetro acima do meu ombro, pelo que lhe depositei um beijo no topo da
cabeça. Saímos assim de braço dado. Lembrei-me da música cantada pelo António
Zambujo “Eu quero passar contigo de braço dado / E a rua toda de olho
arregalado”. E foram realmente muitos os olhos arregalados, as cabeças
balançantes em negação, os murmurinhos baixos e pouco educados.
-
Sabias que as pessoas dizem à boca pequena que não és médico?
-
Sei! Mas sinceramente é um saber que não me ocupa lugar!
-
A culpa não é das pessoas! Essa incerteza que dá largas à imaginação é como um
brufen durante o período. Alivia as dores. O mexerico e desconforto que
provocas na aldeia é melhor para as tristezas desta gente do que um arraial de
S. João!
-
Acho interessante que as pessoas acreditem mais na minha coragem pare encher o
corpo de tatuagens dolorosas, do que na minha capacidade para tirar um curso.
Sinceramente sinto-me lisonjeado! E tu? Estás feliz com o casamento?
-
Sim! Neste momento é o que faz sentido. Encontrei o parceiro certo. – As
palavras certas ergueram-se no ar, enquanto o olhar se manteve preso no chão.
- Hum! Então qual é o mas?
-
Tu conheces-me mesmo bem. Pena nunca me ter apaixonado por ti.
Rimos
um riso caridoso.
-
A minha mãe! O mas é a minha mãe!
-
A Dona Maria Rita? Então porquê?
O
Zeca falou daquilo que eu sabia pouco. De como a mãe já não o olhava de frente.
De como não o felicitou pelo noivado. De como não participa nos preparativos do
casamento. Nem sequer confirmou a sua presença na cerimónia. O mais provável é
que nem apareça. Não falam mais do que umas poucas monossílabas. Não tomam
refeições juntos. Não riem juntos. Não choram juntos. Não amam juntos!
Depois
de meia hora dentro do carro e depois de meia hora de um monólogo do Zeca
falando acerca daquilo que eu tão pouco sabia, chegamos ao destino. Saímos do
carro e encontramo-nos com o noivo do Zeca que eu ainda não conhecia. Era baixo
e um pouco anafado, com um riso largo e generoso. Abraçamo-nos como os maricas
se abraçam. Abraçamo-nos como as mulheres se abraçam. Abraçamo-nos como
qualquer homem se abraça! Fiquei surpreendido por ver que alguns dos
companheiros, para aquela despedida de solteiro, eram os antigos agressores do
Zeca. Eram os colegas de quem eu o protegia. Estava feliz por reaver os antigos
companheiros da bola. Mas fiquei mais feliz por vê-los na despedida de solteiro
do Zeca. O tempo é um bom remédio para as mentes que procuram o interruptor.
Acabam sempre por conseguir acender a luz. Estavam todos a conspirar e senti
que era o único que não sabia o que se passava. Estacamos em frente a uma loja
que tinha um letreiro com um “Atreve-te” impresso e uma única montra tapada por
uma cortina preta. Entramos, e então senti a minha boca abrir-se numa
exclamação muda. Não me restava qualquer dúvida. Estava numa loja de tatuagens.
Tenho experiência suficiente para saber quando estou dentro de uma. Todos os
molhares estavam depositados em mim e senti-me o noivo.
-
Tcharan! – Zeca abriu os braços como um mágico quando apresenta o resultado de
um truque de magia.
-
Não estou a perceber! Vais fazer uma tatuagem na tua despedida de solteiro? – A
minha mente procurava um resultado lógico para aquela equação. Eu, que tinha o
corpo todo tatuado, estava dentro de uma loja de tatuagens. Não é uma coisa
estranha. Mas estava acompanhado por pessoas com peles virgens, que não se
adequam àquele ambiente.
-
Vamos todos fazer uma tatuagem! – Respondeu o noivo anafado do Zeca com os seus
dentes brilhantes ainda mais expostos do que quando o conheci. – O Zeca
falou-me da história das tuas tatuagens. Confesso que me levou às lágrimas. E
olha que eu não sou um choramingas como o meu Zeca. Não é fácil arrancar-me uma
lágrima. Mas quando o Zeca me contou a tua história, aliás as tuas histórias,
confesso que chorei como um bebé.
-
Mas um bebé muito fofo! – Zeca depositou um beijo leve na bochecha do noivo e
nenhum dos seus antigos agressores tremeu.
Cada
um escolheu um super-herói e um lugar no corpo para aplicar a tatuagem.
Tínhamos quatro tatuadores à nossa disposição. Eu ainda não tinha decidido o
que tatuar. Ainda estava em estado de choque. Já poucas coisas me surpreendiam.
Talvez não seja verdade. Já poucas maldades me surpreendem. Mas a bondade… Ah a
bondade, de tão rara, é capaz de arrancar emoções e surpresas sem fim de dentro
de mim. Enquanto passava o dedo indicador pelas minhas tatuagens do braço
oposto, pensei na minha primeira tatuagem. Fi-la durante a minha primeira
missão. Tatuei o Pantera Negra numa posição de combate, que estimula qualquer
imaginação até ao infinito para lhe dar uma história. Aquela tatuagem foi a
televisão de meninos de zonas rurais de Moçambique. Meninos que morriam
desidratados por causas tão simples como uma diarreia. Meninos vítimas do
flagelo do VIH. Meninos malnutridos, mas que tinham tido a sorte de serem um
dos sobreviventes ao parto. Aquela tatuagem fê-los sonharem pela primeira vez.
Contei-lhes a história do herói T’Challa, príncipe de Wakanda, e dos seus super
poderes. Aquela simples tatuagem desenvolveu tardes de brincadeira, sonhos de
crianças. E esperança. Esperança de um dia todos eles serem como o Pantera
Negra e lutarem pelo seu território. A partir daí, o meu corpo deu lugar à
imaginação daqueles que não têm nada. Tenho super-heróis, princesas da Disney,
animais falantes, sereias. Até o Rato Mickey. Tenho sonhos e esperança tatuados
na pele. Vou tatuar Hansel e Gretel e contar aos meninos do Sudão do Sul que
aqueles irmãos, mesmo depois de viverem no mal, conseguiram encontrar o caminho
que os levava de volta para casa.
CAPITULO
XVIII
Vou
sem tempo. Porque quem tem tempo, conta-o. E quem conta o tempo, esgota-o. E
então contanto todo o tempo, todos os minutos, todos os segundos, a vida é
cronometrada em vez de ser vivida. Gosto de viver assim. Sem tempo, sem
limites, sem destino, sem planos. A minha vida será para uso dos outros. Só
assim eu faço sentido.
Continuo
a pensar no poema que me ofereceram. Existem realmente preconceitos, mas que
não me atingem. Nem sequer os sinto, porque nunca são mencionados na minha
casa, no meu refúgio, no lugar onde carrego as minhas forças. Esses pensamentos
maldosos não penetram no meio daqueles que me amam. Mas existem casas que estão
infestadas de preconceitos alheios. Preconceitos que nem vivem ali. Mas
alimentam-se ali. São uma praga dentro de uma casa. São o declínio de uma
família. Uma família vitima desta praga, merece um poema.
Escrevi
um poema. Um poema anónimo para uma mulher que conheço fisicamente desde
sempre, mas cuja alma nunca me foi apresentada. Ela precisa deste poema. Deste
espelho. Ela está perdida nas palavras de olhares alheios e ignora os seus
próprios olhos. Tenho que lhe dizer o que uma vez um poema me disse. Que por
vezes temos de passar alheios às bocas lavadas, às cabeças penteadas de quem se
dá ao respeito!
E
agora sim! Vou colorir o mundo e fazer a humanidade sorrir! Vou sem medo,
porque o altruísmo come o medo.
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