PARTE
VI
CAPITULO
XIX
Vê o que te é devido ver!
Sem entraves ou vergonhas!
Que do saco das cegonhas
Veio quem de verdade quer ver
Tudo que és capaz de ser!
Sê o que te é devido ser
Para quem o teu útero pariu!
Mesmo o outro que sorriu
Não se compara no ser
Daquele que te quer ter!
Tê o que te é devido ter!
O amor que Deus te der
Os outros não vão aumentá-lo
Quando muito vão tirá-lo
Antes que consigas ver!
Esfrego
a palma enrugada da minha mão no papel A4 que encontrei amarrotado dentro da
minha mala. Parece uma bola improvisada de basquete que alguém tentou encestar
com sucesso na minha velha mala de pele, antes preta e agora apenas sem cor. Já
não troco de mala há muito tempo. Já não compro uma mala há muito tempo. Já não
tenho uma vaidade há muito tempo. Estou perdida nos meus pensamentos. Tão
perdida nos meus pensamentos que já nem sinto, já nem ouço, já nem vejo os meus
sentimentos. Estou aqui como estou, vivendo como posso, movendo-me como se
estivesse ativada por um controle remoto. Li o que o papel me dizia. Li cada
palavra que aquele papel me dizia. Li cada mensagem que aquele papel me dizia.
E só depois de ler, olhei para o que estava escrito. Um poema. E só depois de
olhar é que vi! Vi e chorei, porque há muito tempo que não queria ver. Neste
momento, continuo a reler aquele poema escrito atabalhoadamente numa folha
amarrotada como se fosse um cábula. Uma cábula cuja serventia é lembrar-me do
que estava esquecido para o meu grande teste final. Volto a reler. Sei que já
consegui ver o poema e finalmente começo a senti-lo. Paro! Tenho os olhos
turvos com o regresso daqueles sentimentos em turbilhão. E as memórias. Ai as
memórias são o alimento dos sentimentos. E são tantos. E são tantas. E o meu
peito de tão vazio murchou. Murchou tanto que agora falta espaço para tantos e para
tantas. Falta-me o ar. Choro em soluços. Falta-me o ar. Eu peço a Deus que o
meu peito volte a expandir para o tamanho incomensurável que tinha quando o
Zeca nasceu. Mas o meu peito murchou. E agora é pequeno para tantos
sentimentos, para tantas memórias. Pouso o papel em segurança, longe das minhas
lágrimas, para que o poema não zombe mais de mim. Aquele papel agora liso e
leve mostrou-me que a verdade não tem peso. O que nos pesa é o engano, o que é
falso, o que não tem valor. A verdade é simples e leve. Mas os olhares alheios
são brutos. Os julgamentos são pesados. Os dedos apontados são tiros certeiros
num peito cheio. E são tantos os dedos. E são tantos os tiros. Que o peito
murcha! E as memórias voam para longe, levando consigo os sentimentos.
Ouço
uma musicalidade vinda da porta. Tum tum tum! Primeiro pensei que o meu coração
tivesse voltado a bater. Mas não. Era o punho firme de alguém que me queria
ver. Arrastei-me até à porta. Na verdade não queria abri-la. Não queria
contacto com ninguém naquele momento. Mas todos ou qualquer um saberiam que estou
em casa. E depois? O que pensariam? O meu falecido marido ter-me-ia dito “Que
se lixem!” e o seu olhar desafiador ter-me-ia derretido até ao mais íntimo de
mim. Não inventei, nem supus esta atitude do Júlio. Trata-se de uma memória longínqua
que voltou embrulhada no meio de todas as outras. Uma memória doce e marota.
Uma memória de há dez ou quinze anos atrás. Ou talvez mais. Deixei de contar o
tempo quando perdi as memórias! Já não éramos propriamente novos. E eu estava
chateada porque alguém me tinha preguntado se o Zeca já tinha arranjado
finalmente uma namorada. Ele estava a terminar o curso nessa altura e nunca lhe
tinha conhecido uma namorada. Nunca demonstrou interesse em nenhuma rapariga. E
eu no fundo sabia que alguma coisa de errada se passava com o meu filho. Mas
ele era tão inteligente. Bom aluno. A terminar o curso de engenharia mecânica
com distinção. Mas isso não era suficiente para apagar o olhar daquela mulher
que me perguntava pela namorada do Zeca. Nada era suficiente para acalmar a
chama maldosa que via nos olhares quando falavam da vida amorosa do meu Zeca.
Estava azeda com aquilo. A dizer barbaridades. E o Júlio pegou em mim e
despiu-me devagar com um sorriso malandro nos olhos. E eu cedi, entre o prazer
e uns risinhos envergonhados. Alguém bateu à porta naquele exato momento. Tum
tum tum! Alonguei o braço para pegar no meu vestido largado, ali, sem pudor.
Ele encarou-me e disse-me “Que se lixem!”. Eu gaguejei “ Mas sabem que estamos
em casa!”. Tum tum tum! Ele piscou-me o olho prometedor e repetiu “Que se
lixem!”. Eu ri-me, encantada com aquela sugestão. Estiquei mais o braço,
agarrei no vestido e fui abrir a porta. Tal como fiz agora.
CAPITULO
XX
-
Olá Maria Rita! Vim aqui trazer-te um doce de abóbora que fiz ontem!
A
Zulmira entrou mesmo antes de receber um convite formal para entrar. Eu sabia
bem o motivo daquela visita. Já tinha recebido outras tantas visitas iguais. E
abri sempre a porta. Só não abri a porta ao responsável por todas aquelas
súbitas visitas. Ao culpado. Ao meu filho! Peguei no frasco de doce e arrumei-o
junto a todas as outras dádivas das outras visitas. Em breve terei a despensa
cheia. Quase sorri perante esta ideia. Mas os meus lábios estão ressequidos de
todo este amargo que me domina a boca.
-
Obrigada Zulmira! Deve estar delicioso!
A
Zulmira sentou-se na cadeira que lhe pareceu melhor escolha. Sentou-se na
cozinha como se fizesse parte da família. Antes de se sentar encheu a cafeteira
de água e carregou no botão para que fervesse. Fê-lo como se fosse da família.
Quando o meu Zeca veio cá a casa entregar-me o convite de casamento, sentou-se
na sala como se fosse visita.
-
Então o teu rapaz vai casar?
Lá
estava aquele olhar luminoso, desesperado por ver-me assumir o meu falhanço
como mãe! Aquele prazer mal escondido que esperava ser alimentado pelas minhas
palavras. Tinha poucas palavras para aquela conversa. Não daria o prazer que
aqueles olhos exigiam.
-
Sabes tanto quanto eu!
Os
olhos não estavam satisfeitos com aquela resposta. Levantei-me para preparar o
chá. Quando peguei na cafeteira com a água a escaldar, tive vontade de verter
aquele líquido a ferver pela cabeça abaixo daquela mulher. Cheguei mesmo a
fechar os olhos e ver claramente a sua pele a desfazer-se e a escorrer pela
bochecha e pelo queixo, deixando-a disforme. Abanei a cabeça para afastar
aqueles pensamentos. Há muito tempo que não pensava. Mas aquele poema despertou
alguma coisa em mim “Vê o que te é devido ver!”. Eu via maldade naquele momento.
E via culpa. Até então via toda a culpa no meu Zeca. Mas agora via a culpa nos
olhos daquela mulher a quem abri a porta como se fosse da família. Ela só gosta
de chá de camomila, por causa dos nervos. Fiz chá preto!
-
Com quem é que ele vai casar?
-
Não sei. Não conheço!
Os
olhos continuam famintos da minha fraqueza!
-
É verdade que vai casar com outro homem?
As
minhas entranhas revolvem-se. A voz do Júlio que andava calada desde a sua
morte surgiu junto do meu ouvido doce e compreensiva “Que se lixem!”.
-
Sim!
Os
olhos continuam glutões!
-
E conheces esse rapaz? É alguém conhecido? Já não vejo o Zeca há alguns anos.
Deve ser alguém lá da capital, não?
Sinto
as minhas pupilas tremerem como se estivesse a chocar uma enxaqueca. E a voz
marota do Júlio a desafiar-me “Que se lixem!”.
-
Não conheço o outro rapaz, mas é capaz de ele ser conhecido de alguém. Não
acredito que tenha passado a existir apenas para servir o Zeca!
O
sarcasmo na minha voz surpreendeu-me. Baixei os olhos antes que ela pudesse ver
o meu atrevimento! E a voz do Júlio “Que se lixem!”. E as palavras do poema “Sê
o que te é devido ser”.
-
Vais ao casamento? Eu cá não ia! Nunca se viu uma coisa assim. Dois homens
juntos! Que Deus Nosso Senhor nos livre de tal coisa! Ai se o meu Rogério desse
para isso eu dava-lhe tanta porrada naquele lombo até ele se embeiçar por uma
rapariga. Mas hoje em dia é tudo assim. Todos podem tudo. Uma pouca-vergonha é
o que é! E anda uma mãe a criar um filho para isso! Agradeço todos os dias o
meu Rogério que é um homem de verdade. Até já me deu o primeiro neto!
As
memórias soltaram-se e os sentimentos emergiram à tona do meu peito novamente
inchado. E toda eu era fogo! E toda eu era eu! E toda eu era mãe! E toda eu era
o que me era devido ser!
-
Sai da minha casa e é já! Nunca mais, mas nunca mais te atrevas a comparar o
tolo do teu Rogério que tem o cérebro do tamanho de uma ervilha com o meu Zeca
que é muito mais homem do que todos os teus homens juntos… Rua! E nunca mais te
atrevas a olhar na minha direção ou na direção do meu filho. E se alguma vez te
atreveres a olhar para ele, verga-te, porque não estás à altura dele! Rua! Já! Sai
da minha casa! Sai daqui para fora e nunca mais voltes! Vai! E leva contigo
esse veneno todo! Rua! E nunca mais te atrevas a olhar para mim ou para o meu
Zeca, velha azeda! Rua!
O
frasco de doce atingiu a calçada da entrada da minha casa. Fiquei ali a ver os
salpicos cor de laranja antes de encarar os vizinhos que tinham saído ao
encontro dos gritos. Teria gritado assim tanto? Fiquei paralisada por uns
segundos. Talvez uns minutos. Ninguém, se atreveu a mover. Ninguém olhou para
mim com curiosidade ou troça. Apenas com surpresa. A vizinha da frente, uma
solteirona que nunca me dirigiu mais do que duas palavras juntas começou a aplaudir
e riu alto. Muito alto. Eu voltei a encolher os ombros, colei novamente o
estomago às costas, baixei o queixo e os olhos e voltei para dentro da minha
casa, da minha concha! Assim que fechei a porta nas minhas costas olhei em
frente para o vazio e fiquei à espera de chorar. Mas não chorei! Então esperei
que a vergonha e o arrependimento me tomassem de assalto! Mas nenhum dos dois
apareceu. Fiquei ali. E pela primeira vez desde a morte do Júlio senti-me
livre. Abri os braços e dancei como se estivesse novamente num bailinho de São
João arrastada pela música e pelo seu corpo forte. “Que se lixem!”.
CAPITULO
XXI
Abri
os olhos e fixei um ponto imaginário no teto. Estava escuro, porque ainda não
era dia, ou porque só havia noite em mim. Olhei para o relógio para me
certificar qual das verdades era mais verdadeira. Ainda era noite. Fechei os
olhos e chamei o sono, como se ele me obedecesse. Não me ligou nenhuma. Mas
continuei a desejar o sono, apesar de ele me desafiar e de não cumprir com a
expectativa que colocava nele. O Zeca também me desafiou. Defraudou todas as
expectativas que coloquei nele. E eu deixei de o desejar! Mas desejo o sono,
apesar de não me ser nada. Sinto falta do sono. E sinto falta do Zeca. Dos seus
olhos brilhantes em busca de aprovação nos meus. Como naquele dia em que ele
terminou a lista de prendas que queria pelo natal. Pediu uma barbie não sei das
quantas e o carro da barbie e mais não sei o quê da barbie. Andava na escola
primária. E ali com a lista estendida para mim, não vi um menino cheio de
esperança na generosidade do pai natal. “Achas que me portei bem este ano,
mamã?”. Os seus olhos brilhavam e os meus endureciam a cada palavra daquela
lista. “Que raio de rapaz és tu? A pedir bonecas? Tens de pedir é carros ou
legos ou uma bola!”. Não vi que ele encolhia a cada palavra minha, assim como
ele não via que eu encolhia a cada olhar de gozo que nos lançavam na rua. “Mas
eu não gosto de brincar com essas coisas! Gosto de brincar com as barbies da
Vanessa!”. O som do estalo soou antes de eu perceber que a palma da minha mão
estava a latejar de dor. O seu rosto vermelho brilhava polido por lágrimas e
ranho e eu fiquei ali sem ser capaz de abraçar o meu próprio filho. O Júlio
chegou e abriu os seus braços para ele. Limpou-lhe as lágrimas e o ranho na
manga da sua própria blusa. Pegou na lista caída no chão e beijando o filho lá
o foi consolando. Ele viu aquilo que eu não tinha visto na lista. Aquilo que só
agora consigo ver. Disse-lhe que ele era um bom menino e que era o melhor aluno
da sua sala. Disse-lhe que a lista estava escrita com uma letra muito bem-feita
e sem erros, e que o pai natal ia ficar muito feliz por receber a carta dele.
Disse-lhe, “Se existe alguém neste mundo merecedor destas prendas, és tu meu
amor!”.
Acordei
sobressaltada do outro lado da cama. Daquele lado que não era meu. Acordei do
lado da cama que pertence ao Júlio. O lado que tem estado imaculado desde a sua
morte. Saltei da cama como se fosse um gato usando uma nova vida. E vi a cama
toda revolta. Toda usada. Apressei-me a puxar a roupa para cima. Não queria ver
aquela imagem da cama toda usada por mim. Só por mim. Fiz a cama
meticulosamente como fazia sempre. Olhei para a cama feita e insatisfeita com o
resultado passei a palma áspera da minha mão alisando os altos que ainda
conseguia ver. Dei um passo atrás e inspecionei o meu próprio trabalho. Pronto.
Estava perfeito! Fiquei ali com a cabeça descaída sobre o ombro esquerdo. A
cama estava realmente bem-feita. A colcha lisa escondia bem os lençóis usados e
amarrotados. Que imagem bonita! Que mentira perfeita. A verdade dos lençóis
usados, emaranhados, amarrotados estava camuflada pela beleza enganadora de uma
colcha imaculada. O que pensariam de mim se entrassem no meu quarto e encontrassem
a cama naquele estado quase idílico? O que pensariam de mim se entrassem no meu
quarto e encontrassem a cama exatamente com a revolta que tinha há apenas dez
minutos atrás? Sou exatamente a mesma pessoa antes e depois de a cama estar
feita. Mas o julgamento dos outros faria de mim aquilo que não sou. Eu julguei
o meu filho. E ele passou a ser aquilo que não era. Um ser humano desprezível,
sem valores, ingrato. Uma aberração da natureza! Um mariconço tolo! Um
paneleiro! Não quero lembrar-me de mais nomes que lhe tenha atirado como se
fossem bolas de canhão. Cada nome foi um falso julgamento. O Zeca era um menino
maravilhoso. Sempre preocupado com os outros. Chegou a terminar a sua amizade
com o Gui, o único amigo que o defendia de todas as humilhações, para que ele
não sofresse. Sempre foi esforçado. Bom aluno. Exemplar no comportamento para
com os outros. E sempre me foi grato… E isto é que me dói nesta hora em que eu
vejo o que me é devido ver. Em que eu sou o que me é devido ser. Só me falta
ter novamente o que me é devido ter. Como aquele poema é mais sensato do que
eu!
Vesti
a primeira roupa que os meus dedos alcançaram e saí sem sequer comer ou lavar
os dentes. As memórias assaltavam-me as entranhas e ocupavam todo o meu ser.
Por vezes tive de parar porque os meus olhos ficavam bloqueados no passado. No
cachorrinho mal tratado que o Zeca trouxe para casa. Tratou-o com um carinho
que nunca tinha presenciado. Como é que posso ter esquecido o Tobias? O cão era
feio, desdentado com um pelo ralo e grosso como um esfregão da louça. Mas o
Zeca olhava-o com um amor infinito e o cão retribuía toda a doçura no olhar.
Até o cão foi capaz de amar o Zeca. Eu que era mãe só via o problema. Os
olhares. Os cochichos. Os outros definiram a minha vida. Como é que eu me
deixei manietar desta forma? Devo um olhar doce ao Zeca. Devo muitos olhares
doces ao Zeca. Não sei se ainda vou a tempo de pagar a minha divida. Mas vou
fazer de todo o tempo que me resta moeda de pagamento para amortizar esta
divida de amor que acumulei ao longo dos anos.
O
Júlio nunca viu o problema do Zeca. Sempre pensei que ele não queria ver. Que
era a sua forma ingénua de lidar com aquele problema. Lembro-me, que um dia, o
Zeca estava a brincar com o meu serviço de chá. Zanguei-me. Gritei. Zanguei-me
novamente. Ameacei-o, que se partisse uma única peça daquele serviço de chá,
lhe arrancaria as orelhas. Um serviço de chá que estava fechado desde o meu
casamento. Um serviço de chá inútil, que encontrou a sua utilidade na minha
fúria contra o Zeca. Mandei-o ir jogar à bola como os outros rapazes. Virei a
minha fúria para o Júlio. Mandei-o ensinar o filho a ser homem. Mandei-os aos
dois para a rua jogar à bola. O Júlio pegou na mão frágil do Zeca e levou-o
para a rua. Hoje sei, que ele fez o que mandei, não para me obedecer, mas para afastá-lo
de mim. Da minha fúria. Quando o meu coração desacelerou e consegui respirar
novamente de forma regular sem expelir saliva, dobrei a roupa que tinha tirado
do estendal. Arrumei-a de forma perfeita nas gavetas. O trabalho quotidiano e
chato que me cansava até às olheiras não era um problema. O Zeca era. E depois
fui para a rua vê-los jogar à bola. Debaixo da ombreira da porta da cozinha
vi-os deitados na relva a falar de estrelas e constelações. Não jogavam à bola.
O Zeca ensinava ao pai como encontrar a estrela Polar e depois seguir o rasto
das estrelas até formar a Ursa Menor. Mostrou-lhe a Ursa Maior e a Cassiopeia.
O Júlio deu-lhe um beijo na cabeça “Fico impressionado com as coisas que tu
sabes”, “Mas saber muitas coisas não é muito importante para a mamã, pois não?”.
CAPITULO
XXII
Guardo
o poema dentro da pochete dourada. Não sou capaz de enfrentar a verdade sem
aquela cábula perto de mim. Nestes últimos dias, fiz tudo o que devia ter feito
para o meu grande teste final. Sinto-me preparada, apesar do pulsar do meu
coração mostrar-me o contrário. Nunca estamos verdadeiramente preparados para
dar a primeira face ao estalo da vida. Darei todas as faces que existem em mim
para ter uma oportunidade. A primeira oportunidade de ser mãe. Agora sei que
fui eu quem me privou dessa oportunidade. Vivi escrava do pensamento alheio,
submissa de dedos que apontam, refém da aprovação dos outros. Daqueles que não
interessam. Daqueles que nunca olharam para mim em busca de aprovação. Mas eu
olhava-os em busca de aprovação. Eu era o Zeca dos outros. E era os outros do
Zeca.
Perfumei
o pescoço com um perfume antigo. Um perfume que guardei depois do Zeca sair de
casa para ir para a faculdade. Era um aroma que o Zeca gostava. Sempre que
sentia aquele cheiro beijava-me o pescoço para poder cheirá-lo melhor. Ou
fingia querer cheirar o perfume para me beijar o pescoço. Eu ralhava sempre.
Mas no fundo gostava daquele ritual. E poupava o perfume para as ocasiões em
que o Zeca estaria em casa. Hoje vou usar o perfume e ter esperança no ritual.
Chego
ao hotel e um senhor muito alto e um pouco desengonçado encaminha-me para a
piscina. Será que ele também tem o problema? Será que os convidados são todos
daquele género? Começo a ter medo. Opto por descer as escadas, em vez de
escolher o elevador, adiando assim a minha chegada à zona de recção dos
convidados. Logo que empurro a porta envidraçada vejo pessoas. Como as outras
pessoas! Simplesmente pessoas. De todas as idades e feitios. Casais normais e
alguns poucos dos outros. Pessoas…
-
Maria Rita! Que bom que já chegaste! Estava a ficar nervosa por não te ver
aqui. Não conheço muita gente e os que conheço são os amiguinhos dos nossos
rapazes! Não me querem por perto, como quando eram miúdos, lembras-te?
A
mãe do Gui olhava-me como se fosse normal eu estar ali. Ela estava ali. E era
normal. Finalmente alonguei os meus lábios num sorriso. Há muito que tinha
retirado o elástico que prendia o meu sorriso. Mas aquele elástico invisível
estava de volta e sorria e ria alternadamente. Estava nervosa. Não sabia bem o
que fazer. Não sabia bem o que os outros esperavam que eu fizesse.
-
Desculpa! Estou muito nervosa!
-
Claro que estás! Afinal de conta és a mãe do noivo!
Aquela
mulher a quem nunca ofereci amizade, e que não conseguia lembrar-me do nome
estava agora a oferecer-me o seu braço e o seu apoio invisível. Como é que eu
nunca vi as pessoas que não viam o problema do meu Zeca? Só vi as outras
pessoas. Só me ofereci às outras pessoas. Aquelas que nunca me deram nada para
além de um frasquinho de doce.
-
Ai Maria Rita! Tu estás deslumbrante! Deixa-me que te diga! Esse vestido
fica-te lindo!
Estava
mesmo deslumbrante. Nunca fui uma mulher muito bonita. Mas sempre tive a sorte
de ser magra por natureza. O tempo passou por mim, plantou rugas nos meus
olhos, fios brancos nos meus cabelos e horrores da minha mente, mas não me
deformou o corpo esguio. Nestes últimos dias tratei de mim. Arranjei as mãos e
os pés. Fui à cabeleireira. Comprei este vestido justo cor de jade, discreto e
elegante. Levei ao sapateiro os meus sapatos altos que o Júlio adorava. Sempre
que eu os calçava ele assobiava-me e mirava as minhas pernas, mostrando
segundas intenções no olhar sedutor. Senti-me vacilar, mas aquela mulher cujo
nome não me recordo, a mãe do Gui, agarrou-me e devolveu-me a segurança. Ergui
o queixo e senti uma aragem no pescoço que já não sentia há muito tempo. Eu sou
a mãe do noivo e estou aqui no meu melhor. No casamento do meu filho.
-
Olá mãe!
Um
rapaz alto bonito, mas estranho, com umas rastas que contrastavam com o fato
azul-marinho justo e de bom corte, beijou a cabeça da mulher que me
acompanhava. Chamou-a de mãe.
-
Tu és o Gui?
A
pergunta escapou-me. Não estou habituada a ser espontânea. Quase levo a mão à
boca apressada.
-
Sou sim senhora! Já não nos vemos há alguns anos. Já não tenho por hábito
invadir a sua casa para ir brincar com o Zeca!
Soltei
uma gargalhada. Que sensação boa! Estou a prolongar aquela gargalhada para lá
do aceitável. Não a quero perder de novo. Não sei onde voltar a encontrá-la.
-
Bons tempos Gui! Bons Tempos! Estás muito diferente!
-
Ele é um missionário!
A
mãe olhou para ele com um orgulho extremo quando disse aquelas palavras que eu
não tinha percebido muito bem. Seria padre de alguma dessas religiões
estranhas?
-
Agora está numa missão no Sudão do Sul, a ajudar crianças que foram usadas como
soldados. Consegue imaginar um cenário destes? Usarem crianças na guerra? Sinto
um nó no estomago só de pensar! – A mulher até se dobrou um pouco de forma a
que eu recebesse bem a sua sensação de enjoo.
-
Ah! Esse tipo de missão!
Não
sabia bem o que dizer.
-
Sim. Mesmo antes de acabar o curso, ele já sabia que queria ajudar os outros.
Tenho um orgulho enorme neste meu filho!
As
palavras imundas esbofetearam-me a memória. Então aquele é o rapaz que tem
alimentado as más-línguas. O que parece um drogado. Que não se penteia há anos.
Que nunca chegou a terminar o curso de medicina. Que só deu desgostos aos pais.
Que anda por esse mundo fora à boleia fazendo sabe Deus o quê… Não consegui
evitar e soltei a minha segunda gargalhada. Só quando parei de tremer do riso é
que vi aqueles dois pares de olhos pousados em mim.
-
Desculpem! Não sei o que se passa comigo! Então o Gui é um médico sem
fronteiras, é isso?
-
Sim! É isso mesmo!
O
rapaz de cabelo estranho e com o pescoço e mãos pincelados piscou-me o olho e
roubando-me da mãe conduziu-me para a zona de cerimónia.
-
Mas hoje não sou médico sem fronteiras! Sou o padrinho do noivo. E tenho de ir
para o altar tomar o meu lugar. Mas antes disso, quero pedir-lhe que me faça
companhia. Nada fará o Zeca mais feliz do que ver a mãe à espera dele no altar.
O
meu coração apertou-se. Aquelas pessoas viam-me como mãe de um rapaz normal.
Olhei em redor. Dezenas de pessoas, bem vestidas com copos elegantes e bebidas
de nomes difíceis nas mãos, celebrando a felicidade do meu filho. Quantos
momentos de felicidade do Zeca teria eu perdido?
-
Acho que vai querer conhecer o seu futuro genro antes da cerimónia, certo?
Não
respondi. Não fui capaz.
-
Este é o Rafael!
Estendi
a minha mão na direção daquele rapaz desconhecido, um pouco anafado e com um
sorriso gigante, num gesto mecânico.
-
Esta é a Maria Rita! A mãe do Zeca!
Senti
o meu corpo ser sugado para dentro de um abraço enorme. Submissa aceitei aquele
peito grande contra o meu e fechei os olhos agradecendo aquele abraço.
-
Que felicidade tê-la aqui! O Zeca vai ficar tão, mas tão feliz!
O
rapaz transpirava amor. Não conseguia encontrar outra descrição para ele.
-
Mãe! Oh mãe! Venha aqui! Esta é a mãe do Zeca, a Dona Maria Rita. E esta é a
minha mãe, a Esmeralda!
Ela
também me abraçou. Tinha os mesmos olhos pequenos e astutos do filho, e as
parecenças terminavam aí. Ela era loura, alta e magra com uma altivez
desmentida pela atitude.
-
Que prazer minha querida! Estou tão orgulhosa dos nossos meninos. O caminho
imaculado que fizeram até aqui. São duas almas lindas que vamos juntar nesta
cerimónia.
Sim!
Duas almas lindas! Estava quase feliz com aquele casamento. O esforço para
aceitar o problema do Zeca já não era tão penoso. Ali sentia-me aliviada.
Parecia que ninguém via o problema do Zeca.
Então
todos ocuparam o seu lugar. O Rafael com os olhos fixos no ponto mais longínquo
da carpete vermelha. A mãe dele com um lenço alerta na sua mão esquerda.
Eu
e o Gui no lado oposto, expectantes. O meu coração batia ao pé dos meus
ouvidos. O que pensaria a Zulmira se me visse ali, linda e deslumbrante de
queixo erguido casando o meu filho com outro homem? Senti os meus ombros
descaírem um pouco. A voz do Júlio murmurou “Que se lixem!”. E então a música
começou. Ave Maria de Schubert. E o Zeca entrou lindo naquele fato feito à
medida com uma gravata fina prateada e o lenço do pai na lapela. Os seus olhos
encheram-se de lágrimas quando me encarou. O seu passo apressou-se na minha
direção. Os meus pés flutuaram no ar, enquanto o seu abraço suportava todo o
meu peso. Enfiou o nariz no meu pescoço, inalou o meu perfume e beijou-me
longamente. Cumpriu-se o ritual.
Estou
ali liberta de tudo o que me pesava. Problema do Zeca? Qual problema?
CAPITULO
XXIII
Já
não vou todos os dias ao cemitério ver o Júlio. Sinto-me culpada por isso. Mas sei
que, quando me sento na beira de mármore da sua campa e lhe conto sobre tudo,
ele não quer saber da regularidade da minha visita. Conto-lhe sobre o chá que
tomei com a mãe do Gui e com a Esmeralda, ou sobre a forma como disse bem alto
“Que se lixem!” a todas as Zulmiras da minha vida. Hoje tenho mais novidades
para lhe contar. O Gui mandou-me uma carta com fotos das suas crianças. Eu e a
Esmeralda criamos uma mini fundação para angariar fundos que ajudem as suas
missões. O Zeca e o Rafael vão comprar casa. Vou passar a próxima semana com
eles para ajudá-los a escolher casa. No fundo, no fundo, sei bem, que o que
eles querem é uma semana de boa comida. Ouço o Júlio rir.
Coloco
flores novas nos vasos e guardo o poema debaixo de uma nova pedra de granito que
mandei fazer para o Júlio. A pedra tem uma inscrição dourada “Que se lixem!”.
Já não preciso do poema dentro da minha mala. Sei-o de cor. Não em palavras,
mas no seu significado geral. Agora tenho o meu amor no lugar certo. Vejo o que
me é devido ver. Sou o que me é devido ser. Tenho o que me é devido ter.
Hoje
vou finalmente deixar um poema para uma estranha. Uma mulher que vai ao
cemitério sempre no mesmo dia, à mesma hora. Não tem uma campa definida para
visitar. Apenas vagueia por entre os mortos com um olhar de esperança que se
apaga quando volta a sair do cemitério. Hoje é a sua vez de ver.
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