PARTE
IV
CAPITULO
XIII
Tantos olhos te rodeiam
E não enxergam a alvorada!
Tantas bocas que
perguntam,
Tantas mãos que procuram,
Mas de ti não esperam
nada!
Tanto mundo que exige
A tanto mundo que cumpre
Tantas regras que aflige
A todos, menos a ti
Sujeito
que ninguém corrige!
És
poesia que ninguém recita!
És
uma tosca filigrana!
És
sorriso que palpita,
No
coração do mundo,
Uma
repreensão tirana!...
Olham-te,
e fingem não ver-te!
Porque
tu és o reflexo comum,
De
tudo o que não diverte!
E
em ti cabe todo o mundo
Sem
que caibas em mundo nenhum!
Li
e era eu! Eu estava ali em letras, exposto num papel de jornal. Estava
estendido em versos na beira desperdiçada ao lado dos anúncios. Olhei para
aquele pedaço de jornal como se olhasse para um espelho, e vi o meu reflexo tão
claro que não me restaram dúvidas da minha existência. Eu vi-me. Mas mais do
que isso. Alguém me viu também. Depois de vários meses na rua deixamos de
acreditar na nossa existência. Somos fantasmas que assombramos a cidade. Somos
sombras de um purgatório. Somos uma moldura penal para os crimes da sociedade.
E tal como qualquer eterno arguido, a sociedade não nos olha. Não nos enfrenta.
Não nos deseja. Não nos vê. E consegue um alheamento total de nós. E o
alheamento é de tal forma eficaz que a sociedade passa por cima de mim sem me
ver e sem tropeçar. Mas hoje alguém me viu. E pela primeira vez em muito meses
não me sinto invisível. Estes olhos viram para lá do vagabundo, do sem teto, do
marginal, do sem-abrigo… Viu o que a minha alma alcança. “Tantos olhos te
rodeiam / e não enxergam a alvorada!”. Os olhos que me viram sabem que para lá
desta miséria física eu tenho tempo. Eu vejo a alvorada. Eu conheço o pior e só
eu posso desejar o melhor. Sem filtros ou interesses. Porque quem não tem nada,
não teme nada, não tem interesses ou medos. E alcança o estado mais puro da alma.
Aquele estado que observa e absorve o que de pior há na humanidade. O único
estado em que sentimos os extremos da bondade e da maldade. E só Deus e um
vagabundo sabem como é difícil viver neste estado puro de desgraça. E os únicos
recursos que restam a um marginal para lhe turvar estas visões tão claras do
mundo encontram-se no fundo de uma garrafa ou na ponta de uma seringa.
Eu
gosto desta clarividência, por isso nunca me refugiei numa garrafa vulgar de
tinto ou na ilusão de um chuto. Mas não sou capaz de criticar quem o faça… Não
são esses que desgraçam a humanidade apesar de serem os marginalizados.
Alguém
me viu. Agora sinto o peso de ter sido visto sem ter visto. Quem terá sido?
Será que eu o vi também? O que será que ele viu para além do vagabundo que tem
tempo para ver a alvorada, mas de quem “não esperam nada”? Estou demasiado
sujo. Esta consciência do meu aspeto enche-me de vergonha. Uma vergonha há
muito esquecida. Uma vergonha que não era permitida ser sentida, mas que me
invadia o peito sem qualquer tipo de pudor. E este cheiro putrefacto que me
acompanha há dias de repente torna-se insuportável. Tenho de tomar um banho e
arranjar outras roupas.
Vou
ao balneário público. Vou. Mas vou pelo caminho mais longo sem consciência de
que optei por este caminho de livre vontade. Vou. Mas vou devagar, simulando
uma pressa na minha alma que não se apagará até ter o corpo limpo. Vou. Mas vou
como um vagabundo. E enquanto vou, um fio de água limpa e esquecida lavra-me um
rego na face, como se lavrasse um sulco na memória. E outro fio e outro sulco…
Choro, um choro desconhecido. Já me tinha esquecido de como se chora e de
repente todo o meu corpo chora. A minha garganta aperta-se, a minha barriga
murcha treme, os meus olhos grandes diminuem, e os meus lábios curvam-se. Sinto
toda esta transformação em mim. Toco na face e sinto a ponta dos dedos húmidas
das minhas próprias lágrimas. As mesmas que estavam esgotadas. As mesmas que
tal como todo o mundo me tinham abandonado. E então percebi que no mesmo dia em
que alguém me sentiu, voltei a ter lágrimas. Porque nenhum ser humano consegue
produzir emoções sem estímulos, e o abandono priva-nos de todo o tipo de
estímulos. Eu estava abandonado e apático, mas voltei a ser sentido e a ser
estimulado… E agora choro como qualquer outro ser humano. Porque a sociedade
pode tirar-nos a casa, o dinheiro, a comida, o estímulo, até mesmo a dignidade…
Mas ninguém nos rouba a humanidade… E a humanidade é o que nos torna todos
iguais. Pela primeira vez em muito tempo não me senti diminuído. Sou tanto como
os outros. Apesar de ser “poesia que ninguém recita”, eu sou… Existo. E esta
existência ninguém me tira.
Chego
ao balneário público de cabeça erguida.
-
Toma! – Uma mulher de formas redondas e faces vermelhas, descaradamente
desdentada atira-me uma tolha de forma a evitar qualquer outro contacto mais
próximo. E então a minha cabeça erguida descai um pouco. – Entra aí e toma um
banho que bem precisas. Muito gostam vocês de acumular porcaria… Valha-nos
Deus! Depois deita essas roupas inúteis naquele caixote cinzento para serem
queimadas e tira roupa nova daquele armário de madeira. E vê lá se não enches a
roupa nova de esterco…
A
cada palavra disparada por aquela boca rosada sentia-me diminuir. Todo o meu
corpo se encolheu até que voltei a recolher-me na minha própria insignificância
já tão confortavelmente conhecida. Voltei a ser nada…
A
água escorreu deliberadamente pelo meu corpo frágil. Esfreguei-me com
convicção. Usei três vezes sabão nos meus cabelos gastos e finalmente o cheiro
a limpo sobrepôs-se ao cheiro nauseabundo. Escolhi a roupa do armário com
cuidado.
Tinham
uns sapatos pouco usados que eram exatamente o meu número. Fiquei satisfeito.
As calças um pouco largas foram adaptados com ajuda de um cinto improvisado e
uma camisola de lã aqueceu-me o corpo e a alma. Levei mais duas camisolas e um
casaco dentro da mochila de forma a proteger-me do frio da noite. Já fora do
balneário senti-me perdido pela primeira vez. Olhei à minha volta e tudo me
pareceu imenso. Não me atrevia a escolher uma direção. Não queria deambular só
porque sim. Não queria que o tempo passasse por mim sem ser notado. Atravessei
a rua e sentei-me num banco de jardim a olhar uma estátua alta com uns braços
descabidamente longos que se fundiam num círculo perfeito, como se abraçasse o
mundo. E de novo a minha barriga flácida tremeu numa convulsão de recordações.
Também eu já abracei o mundo. Numa noite longínqua. Uma noite separada de mim
em vinte e três anos. Uma noite chuvosa em que relâmpagos iluminavam o céu,
enquanto aquele rosto perfeito iluminava a minha vida. Fui um dia pai. E nesse
dia, também eu abracei o mundo.
CAPITULO
XIV
Estou
limpo, mas ainda me sinto imundo. O meu cabelo abundante confunde-se com um
esfregão palha d’aço emaranhado e usado. Nem consigo passar os dedos por entre
os fios de cabelo. De repente sinto necessidade de cortar o cabelo e fazer a
barba longa e áspera. Também as minhas unhas precisam de ser cortadas. Conto as
moedas que me restam. Só tenho dinheiro para um galão e uma sandes de manteiga.
Não posso desperdiçar. Aquelas moedas escuras podem ser o meu sustento de hoje.
Vagueio pelas ruas e olho em volta à procura de uma solução, que parece
impossível. Mas esta impossibilidade não me faz parar e resignar-me, pelo
contrário continuo a procurar alguma coisa… Ainda nem sei bem o quê, mas aquela
insistência em arranjar uma solução impossível arranca um sorriso dos meus
lábios crespados. Esperança… Onde é que andavas? E tal como um bom pai recebe
em casa o filho pródigo, eu abri os braços, inspirei fundo e recebi novamente,
no meu espírito, a esperança perdida. Mantive os olhos fechados por alguns
segundos. Não sei precisar quantos. Mas foi um tempo precioso de reconciliação
com sentimentos. E quando voltei a abrir os olhos e o ferimento da claridade
passou, tinha uma montra vintage na minha frente que anunciava a “Barbearia
Leandro” com um logotipo de um vulto elegante sem feições marcado apenas por um
bigode revirado, um laço papillon e uns suspensórios… Não tinha nada em comum
com aquela imagem imaculada de elegância. Ali dentro não era o meu lugar.
Aquele não era o meu mundo… Mas agora eu tinha a esperança dentro de mim, e sem
medo abri a porta que chiou anunciando a minha presença. Um rapaz com um corte
de cabelo impecável e um bigode revirado sorriu-me como se visse em mim um ser
igual. Convidou-me a entrar e dirigiu-se a mim sem qualquer tipo de preconceito.
-
Então o que vai ser hoje?
Fiquei
pasmado e sem palavras a olhar para aquele rapaz alto e magro de pele clara com
uns óculos antigos e um sorriso fácil. Será que ele estava a falar comigo? Não
via ele que eu sou apenas um vagabundo? Não saberá ele que não é assim que se
fala com gente da minha laia? Mas a esperança permanecia dentro de mim.
-
Eu queria cortar o cabelo, mas…
No
momento em que puxei das minhas míseras moedas, o rapaz estendeu o seu braço
direito e colou a palma da sua mão nas minhas costas. Voltei a fechar os olhos
e deixei-me conduzir. Contacto humano… como é caloroso aquele ponto exato onde
duas partes de corpos diferentes se tocam. Como os nervos de todo um corpo se
abrem para receber aquele calor. Aquele encostar da palma da sua mão no fundo
das minhas costas equivaleu a dezenas de abraços que tinha em falta. Uma
lágrima… E depois outra. Voltei a chorar pela segunda vez naquele dia. O rapaz
continuou a guiar-me pela barbearia, como se não tivesse percebido que chorava.
Talvez não tenha visto… Mas com toda a certeza sentiu na palma da sua mão a
minha tremura e o meu soluço final.
Sentou-me
numa cadeira confortável e inclinou a minha cabeça para trás. Molhou o meu
cabelo com cuidado e perguntou-me se a água estava boa. Abanei a cabeça em afirmação
e deixei que cuidassem de mim como já há muito tempo não acontecia.
Atirarem-nos uma moeda para o chão não é cuidar… Enviarem-nos os restos do pão
que o filho mimado não comeu, não é cuidar… Atirarem-nos conselhos para
deixarmos as ruas como quem atira óleo a ferver, não é cuidar… Aquilo que
aquele rapaz estava a fazer por mim era cuidar.
-
Como é que quer cortar o cabelo?
Estava
agora equilibrado em cima de um banco de frente para um espelho iluminado que
refletia sem piedade exatamente aquilo que sou. De repente fiquei envergonhado.
Não conseguia enfrentar o meu olhar acusador refletido naquele espelho
imaculado. Perdi a voz.
-
Talvez devêssemos começar por fazer a barba, o que acha?
Olhei
de soslaio para o espelho e enfrentei a caridade daquele rapaz.
-
Não tenho dinheiro.
Foi
tudo o que consegui dizer.
-
Oh meu amigo! Hoje é meu convidado. Ainda não tinha percebido?
Senti
um baque no peito… E depois outro… Como se houvesse um punho que batesse
insistentemente exigindo que eu lhe abrisse a porta. E eu abri a porta do meu
peito para aceitar ajuda.
-
É muita bondade sua!
-
Vou sentar-me aqui ao seu lado um bocadinho, enquanto decide o seu novo look. –
Sentou-se ao meu lado e piscou-me um olho cúmplice. – Sabe de uma coisa meu
amigo? Isto está a ser muito mais fácil para mim do que para si. Eu, nesta
ajuda que lhe estou a oferecer, só tenho que fazer em si aquilo que faço todos
os dias noutras pessoas. A única diferença é o pagamento… Os outros pagam-me em
dinheiro, e o senhor vai pagar-me em emoções. Para si é que é difícil perceber
que precisa de ajuda… Para si é que é difícil estender a mão pedindo ajuda sem
saber o que lhe vão oferecer. A sua mão estendida contém em si um risco maior
do que qualquer ação vendida em bolsa. Sempre que estende a sua mão não sabe o
que vai receber. A sua intenção é receber ajuda, mas o que realmente é
depositado na palma da sua mão só Deus e o senhor é que sabem… O senhor é que
corre o risco sempre que vira a palma da sua mão para a luz. Quem deposita
alguma coisa na sua mão, seja bom ou seja mau, não corre risco nenhum. Hoje o
senhor correu o risco de estender a palma da sua mão para mim, sem saber o que
receberia em troca. Eu vou pegar na sua mão, fechá-la dedo por dedo e
recolhê-la, porque hoje eu não quero que corra riscos. Hoje somos apenas dois
homens, aqui e agora sem medos ou pressões. Vamos apenas usufruir da companhia
de cada um de nós.
Aquele
rapaz levantou-se do seu banco e fez esvoaçar sobre mim um tecido preto que
pousou como um cisne gracioso sobre os meus ombros. Os seus dedos magros e
ágeis inclinaram a minha cabeça para trás e de seguida fecharam-me os olhos.
Primeiro a sensação da espuma espalhada pela minha barba em movimento
circulares. Depois a navalha afiada em movimentos rápidos raspava o pelo
crespo. Foi uma dança, uma luta, uma sinfonia que na sua última nota culminou
num novo homem em frente ao espelho. Este novo homem não sorria, apenas me
fitava… Tens o rosto limpo e então? Continuas com a tua vida suja. Por momentos
quis bater naquele homem escuro que me fitava. Queria infligir-lhe a mesma dor
que ele me infligia a mim. Mas obriguei-me a sorrir e a agradecer ao rapaz
aquele trabalho formidável. A pele da minha cara estava suave e fresca em
contraste com a palma da minha mão. De seguida o rapaz pegou na tesoura e
cortou bocados sem nexo do meu cabelo. Só depois de ter cortado bastante é que
começou a tratá-lo com respeito. Acertou as pontas… Flutuava à minha volta
analisando aqui, desbastando ali e só quando pareceu satisfeito é que se
afastou e pediu-me que abrisse os olhos. Vi-me e não era eu! Olhei-me e
estranhei-me! Era um homem em vez de um vagabundo que ali estava. Um homem que
podia ser empresário ou médico. Um homem que podia ser o que quisesse. Um homem
que podia frequentar um ginásio e sair para tomar um copo com amigos. Um homem
para quem as conquistas seriam fáceis. Mas o rapaz tirou a capa preta que me
cobria e de repente aquele homem tinha as minhas roupas. Levei as mãos à cabeça
e reparei que aquele homem tinha as minhas mãos… Aquele homem era afinal um
vagabundo. Aquele homem era eu…
Levantei-me
sem vontade. Não sabia o que fazer a seguir, mas queria fazer alguma coisa que
não fosse sentar-me à espera de um tempo que passando nunca passa. E neste
compasso de espera fingindo ter pressa para sair. Fingindo não querer incomodar
mais. Fingindo ter alguma coisa fora dali para fazer. O rapaz estendeu-me a
vassoura e a apanhadeira. Não me senti humilhado. Pelo contrário… Senti-me
vivo, como já há muito tempo não me sentia. Aceitei aqueles artigos e varri
primeiro o meu cabelo espalhado pelo chão, e depois o resto do salão. O rapaz
arrumou a tesoura e o secador. Regulou o banco para a posição inicial.
Atirou-me um pano e um spray para limpar superfícies. Limpei os espelhos e a
bacia onde ele tinha lavado a minha cabeça e só então percebi que estava a
limpar e a embalar o meu corpo numa satisfação desconhecida ao som da música de
Frank Sinatra Fly Me to the Moon. Quando olhamos em volta satisfeitos, a sineta
da porta tocou. Era um cliente. Um verdadeiro cliente. Ele entrava e eu tinha
de sair. Não é suposto as pessoas dignas terem de levar com os indignos num
lugar público, onde estão a pagar para serem servidos. Pego no meu casaco
atabalhoadamente e dirijo-me para a porta tentando ser invisível, para não
prejudicar o rapaz que me ajudou.
-
Espere! – A voz do rapaz fez-me vacilar com os dedos colados na maçaneta. Seria
para mim aquele chamamento? Olhei com esperança que fosse. – Volte aqui homem
de Deus! Vá lá dentro buscar toalhas. Pode dobrá-las e repor estas duas
prateleiras. Vá vamos trabalhar que está na hora dos clientes começarem a
chegar.
Não
percebi de imediato o que me estava a acontecer, mas obedeci. Não tinha mais
nada para fazer. E durante toda aquela tarde fiz minuciosamente tudo o que o
rapaz me pediu. Coloquei as toalhas para lavar, substituindo sempre as
utilizadas. Lavei e desinfetei as navalhas e escova. Limpei o chão entre cada
corte de cabelo, sem nunca pronunciar uma palavra. E no final daquele dia o
rapaz disse-me.
-
Eu sou o Leandro, e tu?
CAPITULO
XV
Estou
sentado no mesmo banco de sempre, no mesmo jardim de sempre a dar comida aos
pombos. O tempo arrefeceu e sinto um arrepio que pode ser do frio, mas também
pode ser de antecipação. Hoje o Leandro deu-me folga para tratar de uns
assuntos pendentes. Agora tenho assuntos para tratar. Quanto mais trabalhamos,
mais assuntos temos para tratar. Quando vivia nas ruas o ócio engolia-me numa
turbina de nada e o mundo não exigia nada de mim. Como dizia o poema “Tanto
mundo que exige/ A tanto mundo que cumpre/ Tantas regras que aflige/ A todos,
menos a ti/ Sujeito que ninguém corrige!”. Mas agora eu trabalho horas sem fim,
dias seguidos, semanas sem folgas. Gosto da sensação de ser útil. Gosto de
ganhar o máximo de dinheiro no final do mês. E o Leandro é justo com o meu
trabalho, tal como eu sou justo com a compaixão que ele me dedicou, quando eu
não despertava a misericórdia de ninguém. Hoje tenho um assunto importante para
resolver. Trata-se apenas de um telefonema. Apenas um telefonema que me custou
um dia inteiro de folga. É melhor assim. É um telefonema com muito para dizer.
Um telefonema que vai expor verdades escondidas, misérias encobertas, vergonhas
recentes. Um telefonema que me atormentou todos os dias em que dormi na rua
durante anos. Um telefonema que me atormenta ainda mais agora que durmo na minha
cama estreita e cheirosa. Vou telefonar para Moçambique, para o meu filho. Vou
dizer-lhe a verdade. Aquela verdade disfarçada nos postais de Natal mentirosos
que alegavam não ter tido tempo para um telefonema durante o ano devido ao
trabalho em excesso. Durante todos os anos que menti, sempre me disse a mim
mesmo em voz baixa que esta mentira era apenas para não magoar o meu filho,
para não preocupá-lo com a verdade amarga que me gelava os ossos e me apertava
o estomago. Era uma mentira caridosa para com ele… Para com ele, mas nunca para
comigo… Outra mentira. Outro desvio da verdade. Ocultei-lhe a minha vida de
miséria e esterco dos últimos anos para me poupar a mim. A mim e não a ele. A
verdade nua a crua é que até na miséria somos egoístas. Nunca lhe contei da
minha falta de dinheiro, de teto, de comida, de dignidade, porque esta verdade
assumida perante o meu filho iria ser excruciantemente dolorosa para mim.
Dilacerar-me-ia as entranhas do pouco orgulho que me restava. Um orgulho que se
agarrava a uma mentira justificada e ampliada nuns postais de Natal cinzentos.
Agora que tenho dinheiro, teto, comida e dignidade sinto-me pronto para colocar
de lado o meu orgulho. Vou telefonar para Moçambique. Vou contar ao meu filho
todos os meus dias de rua, de fome, de mendigo. E vou dizer-lhe que este ano
não haverá postal de Natal… Eu vou a Moçambique vê-lo.
O
poema está colado no interior da minha carteira. É a melhor fotografia que
tenho dos meus anos de marginalidade. Lembra-me que o mundo um dia não me olhou,
mas gritou-me repreensões tiranas. Nenhum grito me ajudou… O que me ajudou foi
este poema silencioso, a mão quente e as palavras murmuradas do Leandro.
Hoje
tenho no bolso do casaco um poema. Vi aquele que deseja ser invisível, mas para
quem todos olham. Anda com a cabeça enterrada no meio dos ombros como se
quisesse esconder o olhar baixo e medroso. Tem a ponta dos dedos enfiados nos
bolsos dianteiros de uns jeans justos e gastos. Anda em passos curtos e
delicados. Anda desinteressado de todos os olhos que se colam na sua pele
tatuada. Anda com um sorriso simples e generoso. Anda com a inocência alheia
dos pensamentos que ele provoca nos outros. Gosto dele. Sim! Tenho um poema
para ele!
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