segunda-feira, 7 de março de 2022

 

PARTE IV



CAPITULO XIII

 

Tantos olhos te rodeiam

E não enxergam a alvorada!

Tantas bocas que perguntam,

Tantas mãos que procuram,

Mas de ti não esperam nada!

 

Tanto mundo que exige

A tanto mundo que cumpre

Tantas regras que aflige

A todos, menos a ti

Sujeito que ninguém corrige!

 

És poesia que ninguém recita!

És uma tosca filigrana!

És sorriso que palpita,

No coração do mundo,

Uma repreensão tirana!...

 

Olham-te, e fingem não ver-te!

Porque tu és o reflexo comum,

De tudo o que não diverte!

E em ti cabe todo o mundo

Sem que caibas em mundo nenhum!

 

 


Li e era eu! Eu estava ali em letras, exposto num papel de jornal. Estava estendido em versos na beira desperdiçada ao lado dos anúncios. Olhei para aquele pedaço de jornal como se olhasse para um espelho, e vi o meu reflexo tão claro que não me restaram dúvidas da minha existência. Eu vi-me. Mas mais do que isso. Alguém me viu também. Depois de vários meses na rua deixamos de acreditar na nossa existência. Somos fantasmas que assombramos a cidade. Somos sombras de um purgatório. Somos uma moldura penal para os crimes da sociedade. E tal como qualquer eterno arguido, a sociedade não nos olha. Não nos enfrenta. Não nos deseja. Não nos vê. E consegue um alheamento total de nós. E o alheamento é de tal forma eficaz que a sociedade passa por cima de mim sem me ver e sem tropeçar. Mas hoje alguém me viu. E pela primeira vez em muito meses não me sinto invisível. Estes olhos viram para lá do vagabundo, do sem teto, do marginal, do sem-abrigo… Viu o que a minha alma alcança. “Tantos olhos te rodeiam / e não enxergam a alvorada!”. Os olhos que me viram sabem que para lá desta miséria física eu tenho tempo. Eu vejo a alvorada. Eu conheço o pior e só eu posso desejar o melhor. Sem filtros ou interesses. Porque quem não tem nada, não teme nada, não tem interesses ou medos. E alcança o estado mais puro da alma. Aquele estado que observa e absorve o que de pior há na humanidade. O único estado em que sentimos os extremos da bondade e da maldade. E só Deus e um vagabundo sabem como é difícil viver neste estado puro de desgraça. E os únicos recursos que restam a um marginal para lhe turvar estas visões tão claras do mundo encontram-se no fundo de uma garrafa ou na ponta de uma seringa.

Eu gosto desta clarividência, por isso nunca me refugiei numa garrafa vulgar de tinto ou na ilusão de um chuto. Mas não sou capaz de criticar quem o faça… Não são esses que desgraçam a humanidade apesar de serem os marginalizados.

Alguém me viu. Agora sinto o peso de ter sido visto sem ter visto. Quem terá sido? Será que eu o vi também? O que será que ele viu para além do vagabundo que tem tempo para ver a alvorada, mas de quem “não esperam nada”? Estou demasiado sujo. Esta consciência do meu aspeto enche-me de vergonha. Uma vergonha há muito esquecida. Uma vergonha que não era permitida ser sentida, mas que me invadia o peito sem qualquer tipo de pudor. E este cheiro putrefacto que me acompanha há dias de repente torna-se insuportável. Tenho de tomar um banho e arranjar outras roupas.

Vou ao balneário público. Vou. Mas vou pelo caminho mais longo sem consciência de que optei por este caminho de livre vontade. Vou. Mas vou devagar, simulando uma pressa na minha alma que não se apagará até ter o corpo limpo. Vou. Mas vou como um vagabundo. E enquanto vou, um fio de água limpa e esquecida lavra-me um rego na face, como se lavrasse um sulco na memória. E outro fio e outro sulco… Choro, um choro desconhecido. Já me tinha esquecido de como se chora e de repente todo o meu corpo chora. A minha garganta aperta-se, a minha barriga murcha treme, os meus olhos grandes diminuem, e os meus lábios curvam-se. Sinto toda esta transformação em mim. Toco na face e sinto a ponta dos dedos húmidas das minhas próprias lágrimas. As mesmas que estavam esgotadas. As mesmas que tal como todo o mundo me tinham abandonado. E então percebi que no mesmo dia em que alguém me sentiu, voltei a ter lágrimas. Porque nenhum ser humano consegue produzir emoções sem estímulos, e o abandono priva-nos de todo o tipo de estímulos. Eu estava abandonado e apático, mas voltei a ser sentido e a ser estimulado… E agora choro como qualquer outro ser humano. Porque a sociedade pode tirar-nos a casa, o dinheiro, a comida, o estímulo, até mesmo a dignidade… Mas ninguém nos rouba a humanidade… E a humanidade é o que nos torna todos iguais. Pela primeira vez em muito tempo não me senti diminuído. Sou tanto como os outros. Apesar de ser “poesia que ninguém recita”, eu sou… Existo. E esta existência ninguém me tira.

Chego ao balneário público de cabeça erguida.

- Toma! – Uma mulher de formas redondas e faces vermelhas, descaradamente desdentada atira-me uma tolha de forma a evitar qualquer outro contacto mais próximo. E então a minha cabeça erguida descai um pouco. – Entra aí e toma um banho que bem precisas. Muito gostam vocês de acumular porcaria… Valha-nos Deus! Depois deita essas roupas inúteis naquele caixote cinzento para serem queimadas e tira roupa nova daquele armário de madeira. E vê lá se não enches a roupa nova de esterco…

A cada palavra disparada por aquela boca rosada sentia-me diminuir. Todo o meu corpo se encolheu até que voltei a recolher-me na minha própria insignificância já tão confortavelmente conhecida. Voltei a ser nada…

A água escorreu deliberadamente pelo meu corpo frágil. Esfreguei-me com convicção. Usei três vezes sabão nos meus cabelos gastos e finalmente o cheiro a limpo sobrepôs-se ao cheiro nauseabundo. Escolhi a roupa do armário com cuidado.

Tinham uns sapatos pouco usados que eram exatamente o meu número. Fiquei satisfeito. As calças um pouco largas foram adaptados com ajuda de um cinto improvisado e uma camisola de lã aqueceu-me o corpo e a alma. Levei mais duas camisolas e um casaco dentro da mochila de forma a proteger-me do frio da noite. Já fora do balneário senti-me perdido pela primeira vez. Olhei à minha volta e tudo me pareceu imenso. Não me atrevia a escolher uma direção. Não queria deambular só porque sim. Não queria que o tempo passasse por mim sem ser notado. Atravessei a rua e sentei-me num banco de jardim a olhar uma estátua alta com uns braços descabidamente longos que se fundiam num círculo perfeito, como se abraçasse o mundo. E de novo a minha barriga flácida tremeu numa convulsão de recordações. Também eu já abracei o mundo. Numa noite longínqua. Uma noite separada de mim em vinte e três anos. Uma noite chuvosa em que relâmpagos iluminavam o céu, enquanto aquele rosto perfeito iluminava a minha vida. Fui um dia pai. E nesse dia, também eu abracei o mundo.

  

CAPITULO XIV

 

Estou limpo, mas ainda me sinto imundo. O meu cabelo abundante confunde-se com um esfregão palha d’aço emaranhado e usado. Nem consigo passar os dedos por entre os fios de cabelo. De repente sinto necessidade de cortar o cabelo e fazer a barba longa e áspera. Também as minhas unhas precisam de ser cortadas. Conto as moedas que me restam. Só tenho dinheiro para um galão e uma sandes de manteiga. Não posso desperdiçar. Aquelas moedas escuras podem ser o meu sustento de hoje. Vagueio pelas ruas e olho em volta à procura de uma solução, que parece impossível. Mas esta impossibilidade não me faz parar e resignar-me, pelo contrário continuo a procurar alguma coisa… Ainda nem sei bem o quê, mas aquela insistência em arranjar uma solução impossível arranca um sorriso dos meus lábios crespados. Esperança… Onde é que andavas? E tal como um bom pai recebe em casa o filho pródigo, eu abri os braços, inspirei fundo e recebi novamente, no meu espírito, a esperança perdida. Mantive os olhos fechados por alguns segundos. Não sei precisar quantos. Mas foi um tempo precioso de reconciliação com sentimentos. E quando voltei a abrir os olhos e o ferimento da claridade passou, tinha uma montra vintage na minha frente que anunciava a “Barbearia Leandro” com um logotipo de um vulto elegante sem feições marcado apenas por um bigode revirado, um laço papillon e uns suspensórios… Não tinha nada em comum com aquela imagem imaculada de elegância. Ali dentro não era o meu lugar. Aquele não era o meu mundo… Mas agora eu tinha a esperança dentro de mim, e sem medo abri a porta que chiou anunciando a minha presença. Um rapaz com um corte de cabelo impecável e um bigode revirado sorriu-me como se visse em mim um ser igual. Convidou-me a entrar e dirigiu-se a mim sem qualquer tipo de preconceito.

- Então o que vai ser hoje?

Fiquei pasmado e sem palavras a olhar para aquele rapaz alto e magro de pele clara com uns óculos antigos e um sorriso fácil. Será que ele estava a falar comigo? Não via ele que eu sou apenas um vagabundo? Não saberá ele que não é assim que se fala com gente da minha laia? Mas a esperança permanecia dentro de mim.

- Eu queria cortar o cabelo, mas…

No momento em que puxei das minhas míseras moedas, o rapaz estendeu o seu braço direito e colou a palma da sua mão nas minhas costas. Voltei a fechar os olhos e deixei-me conduzir. Contacto humano… como é caloroso aquele ponto exato onde duas partes de corpos diferentes se tocam. Como os nervos de todo um corpo se abrem para receber aquele calor. Aquele encostar da palma da sua mão no fundo das minhas costas equivaleu a dezenas de abraços que tinha em falta. Uma lágrima… E depois outra. Voltei a chorar pela segunda vez naquele dia. O rapaz continuou a guiar-me pela barbearia, como se não tivesse percebido que chorava. Talvez não tenha visto… Mas com toda a certeza sentiu na palma da sua mão a minha tremura e o meu soluço final.

Sentou-me numa cadeira confortável e inclinou a minha cabeça para trás. Molhou o meu cabelo com cuidado e perguntou-me se a água estava boa. Abanei a cabeça em afirmação e deixei que cuidassem de mim como já há muito tempo não acontecia. Atirarem-nos uma moeda para o chão não é cuidar… Enviarem-nos os restos do pão que o filho mimado não comeu, não é cuidar… Atirarem-nos conselhos para deixarmos as ruas como quem atira óleo a ferver, não é cuidar… Aquilo que aquele rapaz estava a fazer por mim era cuidar.

- Como é que quer cortar o cabelo?

Estava agora equilibrado em cima de um banco de frente para um espelho iluminado que refletia sem piedade exatamente aquilo que sou. De repente fiquei envergonhado. Não conseguia enfrentar o meu olhar acusador refletido naquele espelho imaculado. Perdi a voz.

- Talvez devêssemos começar por fazer a barba, o que acha?

Olhei de soslaio para o espelho e enfrentei a caridade daquele rapaz.

- Não tenho dinheiro.

Foi tudo o que consegui dizer.

- Oh meu amigo! Hoje é meu convidado. Ainda não tinha percebido?

Senti um baque no peito… E depois outro… Como se houvesse um punho que batesse insistentemente exigindo que eu lhe abrisse a porta. E eu abri a porta do meu peito para aceitar ajuda.

- É muita bondade sua!

- Vou sentar-me aqui ao seu lado um bocadinho, enquanto decide o seu novo look. – Sentou-se ao meu lado e piscou-me um olho cúmplice. – Sabe de uma coisa meu amigo? Isto está a ser muito mais fácil para mim do que para si. Eu, nesta ajuda que lhe estou a oferecer, só tenho que fazer em si aquilo que faço todos os dias noutras pessoas. A única diferença é o pagamento… Os outros pagam-me em dinheiro, e o senhor vai pagar-me em emoções. Para si é que é difícil perceber que precisa de ajuda… Para si é que é difícil estender a mão pedindo ajuda sem saber o que lhe vão oferecer. A sua mão estendida contém em si um risco maior do que qualquer ação vendida em bolsa. Sempre que estende a sua mão não sabe o que vai receber. A sua intenção é receber ajuda, mas o que realmente é depositado na palma da sua mão só Deus e o senhor é que sabem… O senhor é que corre o risco sempre que vira a palma da sua mão para a luz. Quem deposita alguma coisa na sua mão, seja bom ou seja mau, não corre risco nenhum. Hoje o senhor correu o risco de estender a palma da sua mão para mim, sem saber o que receberia em troca. Eu vou pegar na sua mão, fechá-la dedo por dedo e recolhê-la, porque hoje eu não quero que corra riscos. Hoje somos apenas dois homens, aqui e agora sem medos ou pressões. Vamos apenas usufruir da companhia de cada um de nós.

Aquele rapaz levantou-se do seu banco e fez esvoaçar sobre mim um tecido preto que pousou como um cisne gracioso sobre os meus ombros. Os seus dedos magros e ágeis inclinaram a minha cabeça para trás e de seguida fecharam-me os olhos. Primeiro a sensação da espuma espalhada pela minha barba em movimento circulares. Depois a navalha afiada em movimentos rápidos raspava o pelo crespo. Foi uma dança, uma luta, uma sinfonia que na sua última nota culminou num novo homem em frente ao espelho. Este novo homem não sorria, apenas me fitava… Tens o rosto limpo e então? Continuas com a tua vida suja. Por momentos quis bater naquele homem escuro que me fitava. Queria infligir-lhe a mesma dor que ele me infligia a mim. Mas obriguei-me a sorrir e a agradecer ao rapaz aquele trabalho formidável. A pele da minha cara estava suave e fresca em contraste com a palma da minha mão. De seguida o rapaz pegou na tesoura e cortou bocados sem nexo do meu cabelo. Só depois de ter cortado bastante é que começou a tratá-lo com respeito. Acertou as pontas… Flutuava à minha volta analisando aqui, desbastando ali e só quando pareceu satisfeito é que se afastou e pediu-me que abrisse os olhos. Vi-me e não era eu! Olhei-me e estranhei-me! Era um homem em vez de um vagabundo que ali estava. Um homem que podia ser empresário ou médico. Um homem que podia ser o que quisesse. Um homem que podia frequentar um ginásio e sair para tomar um copo com amigos. Um homem para quem as conquistas seriam fáceis. Mas o rapaz tirou a capa preta que me cobria e de repente aquele homem tinha as minhas roupas. Levei as mãos à cabeça e reparei que aquele homem tinha as minhas mãos… Aquele homem era afinal um vagabundo. Aquele homem era eu…

Levantei-me sem vontade. Não sabia o que fazer a seguir, mas queria fazer alguma coisa que não fosse sentar-me à espera de um tempo que passando nunca passa. E neste compasso de espera fingindo ter pressa para sair. Fingindo não querer incomodar mais. Fingindo ter alguma coisa fora dali para fazer. O rapaz estendeu-me a vassoura e a apanhadeira. Não me senti humilhado. Pelo contrário… Senti-me vivo, como já há muito tempo não me sentia. Aceitei aqueles artigos e varri primeiro o meu cabelo espalhado pelo chão, e depois o resto do salão. O rapaz arrumou a tesoura e o secador. Regulou o banco para a posição inicial. Atirou-me um pano e um spray para limpar superfícies. Limpei os espelhos e a bacia onde ele tinha lavado a minha cabeça e só então percebi que estava a limpar e a embalar o meu corpo numa satisfação desconhecida ao som da música de Frank Sinatra Fly Me to the Moon. Quando olhamos em volta satisfeitos, a sineta da porta tocou. Era um cliente. Um verdadeiro cliente. Ele entrava e eu tinha de sair. Não é suposto as pessoas dignas terem de levar com os indignos num lugar público, onde estão a pagar para serem servidos. Pego no meu casaco atabalhoadamente e dirijo-me para a porta tentando ser invisível, para não prejudicar o rapaz que me ajudou.

- Espere! – A voz do rapaz fez-me vacilar com os dedos colados na maçaneta. Seria para mim aquele chamamento? Olhei com esperança que fosse. – Volte aqui homem de Deus! Vá lá dentro buscar toalhas. Pode dobrá-las e repor estas duas prateleiras. Vá vamos trabalhar que está na hora dos clientes começarem a chegar.

Não percebi de imediato o que me estava a acontecer, mas obedeci. Não tinha mais nada para fazer. E durante toda aquela tarde fiz minuciosamente tudo o que o rapaz me pediu. Coloquei as toalhas para lavar, substituindo sempre as utilizadas. Lavei e desinfetei as navalhas e escova. Limpei o chão entre cada corte de cabelo, sem nunca pronunciar uma palavra. E no final daquele dia o rapaz disse-me.

- Eu sou o Leandro, e tu?

  

CAPITULO XV

 

Estou sentado no mesmo banco de sempre, no mesmo jardim de sempre a dar comida aos pombos. O tempo arrefeceu e sinto um arrepio que pode ser do frio, mas também pode ser de antecipação. Hoje o Leandro deu-me folga para tratar de uns assuntos pendentes. Agora tenho assuntos para tratar. Quanto mais trabalhamos, mais assuntos temos para tratar. Quando vivia nas ruas o ócio engolia-me numa turbina de nada e o mundo não exigia nada de mim. Como dizia o poema “Tanto mundo que exige/ A tanto mundo que cumpre/ Tantas regras que aflige/ A todos, menos a ti/ Sujeito que ninguém corrige!”. Mas agora eu trabalho horas sem fim, dias seguidos, semanas sem folgas. Gosto da sensação de ser útil. Gosto de ganhar o máximo de dinheiro no final do mês. E o Leandro é justo com o meu trabalho, tal como eu sou justo com a compaixão que ele me dedicou, quando eu não despertava a misericórdia de ninguém. Hoje tenho um assunto importante para resolver. Trata-se apenas de um telefonema. Apenas um telefonema que me custou um dia inteiro de folga. É melhor assim. É um telefonema com muito para dizer. Um telefonema que vai expor verdades escondidas, misérias encobertas, vergonhas recentes. Um telefonema que me atormentou todos os dias em que dormi na rua durante anos. Um telefonema que me atormenta ainda mais agora que durmo na minha cama estreita e cheirosa. Vou telefonar para Moçambique, para o meu filho. Vou dizer-lhe a verdade. Aquela verdade disfarçada nos postais de Natal mentirosos que alegavam não ter tido tempo para um telefonema durante o ano devido ao trabalho em excesso. Durante todos os anos que menti, sempre me disse a mim mesmo em voz baixa que esta mentira era apenas para não magoar o meu filho, para não preocupá-lo com a verdade amarga que me gelava os ossos e me apertava o estomago. Era uma mentira caridosa para com ele… Para com ele, mas nunca para comigo… Outra mentira. Outro desvio da verdade. Ocultei-lhe a minha vida de miséria e esterco dos últimos anos para me poupar a mim. A mim e não a ele. A verdade nua a crua é que até na miséria somos egoístas. Nunca lhe contei da minha falta de dinheiro, de teto, de comida, de dignidade, porque esta verdade assumida perante o meu filho iria ser excruciantemente dolorosa para mim. Dilacerar-me-ia as entranhas do pouco orgulho que me restava. Um orgulho que se agarrava a uma mentira justificada e ampliada nuns postais de Natal cinzentos. Agora que tenho dinheiro, teto, comida e dignidade sinto-me pronto para colocar de lado o meu orgulho. Vou telefonar para Moçambique. Vou contar ao meu filho todos os meus dias de rua, de fome, de mendigo. E vou dizer-lhe que este ano não haverá postal de Natal… Eu vou a Moçambique vê-lo.

O poema está colado no interior da minha carteira. É a melhor fotografia que tenho dos meus anos de marginalidade. Lembra-me que o mundo um dia não me olhou, mas gritou-me repreensões tiranas. Nenhum grito me ajudou… O que me ajudou foi este poema silencioso, a mão quente e as palavras murmuradas do Leandro.

Hoje tenho no bolso do casaco um poema. Vi aquele que deseja ser invisível, mas para quem todos olham. Anda com a cabeça enterrada no meio dos ombros como se quisesse esconder o olhar baixo e medroso. Tem a ponta dos dedos enfiados nos bolsos dianteiros de uns jeans justos e gastos. Anda em passos curtos e delicados. Anda desinteressado de todos os olhos que se colam na sua pele tatuada. Anda com um sorriso simples e generoso. Anda com a inocência alheia dos pensamentos que ele provoca nos outros. Gosto dele. Sim! Tenho um poema para ele!

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