terça-feira, 1 de março de 2022

Esta Vida não é para Poetas - PARTE II

 

PARTE II

 


CAPITULO V

 

Ofendes-me quando pavoneias assim a tua beleza

Sem saberes usar a curva educada dos teus lábios!

Quando piscas esses olhos de maresia arrastados,

Alongados em conquistas de olhares ávidos…

 

O poder de Deus uniu-se no teu reflexo

Mas a sua bondade esvaiu-se na arrogância

Desse teu ar de superioridade sem nexo,

Nessa tua altivez fútil, nessa tua fragrância!

 

Lembro-te que essa tua beleza infinita

É curta e perece no tempo que avança!

E é tão só o que a tua alma reflete no mundo

Que te trará a tempestade ou a bonança!

 

 

Releio o poema deixado da minha mala. Como me conhece mal este poema. Não sei quem teve o atrevimento de o colocar na minha mala. Algum cabrão a quem não dei importância. Porque a humanidade é assim. Acham que tudo o que é belo deve ser de fácil acesso. Isto é só alguém que me quer foder a cabeça, mas hoje é impossível tirar-me a serenidade. Sou bonita e depois? Pensando melhor isto é coisa de gaja. Alguma balofa que quer despejar a sua frustração de indesejada em cima de mim. Ah! Mas comigo não! Comigo não! Até parece que eu tenho culpa de ser assim.

A primavera chegou cedo, ainda bem. Já estou a correr debaixo deste sol matutino há vinte e cinco minutos. Não estou satisfeita. Sinto-me muito cansada e vou ter de parar. Estou em pior forma do que imaginava. Estive demasiado tempo parada. Vou recomeçar a correr três vezes por semana até recuperar o ritmo. Devia ter frequentado o ginásio durante o inverno, mas nunca gostei de ginásio. Transpirar num espaço fechado cria uma intimidade com os outros que dispenso. E depois, tenho de levar com os olhares babados dos homens e com os olhares maldosos das mulheres. Não estou para isso.

Faço o resto do caminho a caminhar calmamente. Vou fechando os olhos por longos períodos. Posso fazê-lo porque já conheço demasiado bem cada pedra da calçada de basalto e granito. Nunca tropeço em nada. Assim a andar de olhos fechados com o sol a aquecer-me o rosto sinto-me leve, sinto-me eu. Sem qualquer tipo de repulsa por aquilo que me espera logo à noite.

Chego ao meu apartamento e sorrio. É meu. Comprei-o com o meu dinheiro. Sem créditos ou favores. Fico sempre admirada com a fachada judaica. O basalto escuro trabalhado, abraçando as janelas de vidro miúdo e que se destaca, num racismo disfarçado, do branco limpo das paredes. Lembra-me este mundo hipócrita onde as diferenças convivem mas não se misturam. Subo as escadas a saltitar até ao segundo e último andar. Quando abro a porta ouço o telefone a tocar sobre a mesa lacada de branco e com uns rendilhados rococós. Descalço os sapatos e coloco-os na sapateira da entrada, trocando-os por umas pantufas confortáveis. Corro três passos até ao telefone teimoso.

- Estou! – É a Tina! Que chata. Sempre atenciosa e preocupada. Sempre sedenta de viver a minha vida. – Não Tina, hoje não posso! – Sei que ela não se vai contentar com aquela recusa sem justificação. Vai tentar ludibriar-me de forma a contar-lhe os meus planos para esta noite. Não tenho paciência para ouvi-la. É melhor dar-lhe já a justificação antes que a minha paciência se esgote. – Vou trabalhar. E agora tenho de me arranjar. Sabes como tenho de estar perfeita. – Ela ainda não está totalmente satisfeita. Tenho de acrescentar mais alguma informação. E sei exatamente que informação é que poderá acalmá-la. – Hoje é um secretário de estado.

Pronto desligou satisfeita. Não me perguntou o nome. Nunca pergunta. Sabe bem que eu vivo do segredo. E nunca, mas nunca violo este princípio. Da minha boca ninguém sabe nada sobre os meus clientes.

Entro no quarto e deixo-me cair sobre o meu novo colchão ortopédico fixando o candeeiro que nasce do centro de um florão de gesso. Aquele pormenor do teto trabalhado foi a certeza de que aquela seria a minha casa. Aquelas folhas de acanto talhadas em gesso transportam-me para o barroco. Transportam-me para outra era, para outra história, para outra vida.

Como ousa aquele poema ofender-me, insinuando que não sei sorrir. “Ofendes-me quando pavoneias assim a tua beleza / Sem saberes usar a curva educada dos teus lábios!”. Como aquele poema me conhece mal. Eu sei sorrir. Esta noite vou fartar-me de sorrir, e o homem que comprou a minha noite vai elogiar-me o sorriso. Puta que pariu quem escreveu esta merda de poema.

Vou vestir o meu melhor vestido e colocar o meu melhor batom. Vou calçar os meus saltos altos mais delicados e vou pavonear-me à frente deste poema de letra inchada e disforme. Vou deixar na sua folha enrugada a marca encarnada dos meus lábios sedutores e roçá-lo no meu pescoço perfumado com odores quentes e caros. E vou sair fechando a porta atrás de mim e deixando-o trancado sem o privilégio da minha presença.

 

 

CAPITULO VI

 

Ele está no bar do hotel de costas a beber um whisky velho. Assim que ultrapasso a porta ele vira-se e encara-me com um meio sorriso. É sempre assim. Ele pressente a minha aproximação. É o meu cliente mais antigo e fiel. Foi o meu primeiro cliente. Há exatamente dez anos atrás. Quando eu não passava de uma pós adolescente de coração partido que colocava todas as minhas forças naqueles meus vinte e seis anos como se nunca os fosse ultrapassar. Era uma mulher bonita na altura. Não tão bonita como sou agora. Mas convenhamos, o dinheiro é um excelente aliado da beleza.

- Estás deslumbrante! – Os seus olhos brilham sempre que me vê. Mas noto-lhe as rugas que se apertam nos cantos dos olhos. Os cabelos claros que começam a rarear logo acima da testa. Os lábios cada vez menos definidos que se finam numa linha suave. Ele envelhece, enquanto eu rejuvenesço com o dinheiro dele e dos da laia dele.

- Também não me pareces mal. – Ofereço-lhe o meu melhor sorriso acompanhado de um olhar sedutor. Sento-me no banco alto ao lado dele e cruzo a perna deixando que a racha do vestido deixe visível o torneado suave da minha coxa. O meu foco está todo nele. Nem olhei em volta para ver quem está presente. É assim que mantenho os meus clientes. Eles precisam de exibir-me de forma a sentirem-se potentes. E um homem só se sente potente quando exibe um carro topo de gama cujo registo de propriedade é só seu. Ou uma mulher bonita que apesar de todos os olhares ávidos que a rodeiam, foca-se apenas nele. Ele sim. Olha em volta para ter a certeza de que é invejado.

A maior parte das vezes a minha noite termina com o jantar. Quando o desejo de exibição do meu cliente já está satisfeito, porque este tipo de gente excita-se mais com a inveja que provoca nos outros do que com uma boa noite de sexo. É assim que estou a fazer o meu pé-de-meia. Vivo da vaidade alheia, e enriqueço com o meu silêncio discreto e podre, mantido pelo medo e pela quantia certa de dinheiro.

- Vamos jantar? – Pergunto-lhe, tentando desfazer-me discretamente da sua mão que trepa pela minha perna.

-Sim. – Saímos do bar com a palma da sua mão pousada no fundo das minhas costas. Encaminhamo-nos para o carro. Ele corre para me abrir a porta. O mesmo homem, que trata o seu povo com uma altivez presunçosa, corre para me abrir a porta do carro. Quase solto uma gargalhada, mas detenho-me a tempo. O povo respeita demasiado esta classe de patetas que diz governar o país. Esta mesma classe que toma a seu cargo uma nação, uma população, um território sem nunca lhe sentir o pulso. Existem políticos sérios. Já tive o privilégio de os conhecer. Esses que de forma muito educada fazem sentir-me pequena e insignificante. E quanto mais me percebem, mais se afastam graciosamente de mim e daqueles que me contratam. São aqueles que não sussurram em eventos, porque o que têm para dizer fazem-no em voz alta e de cabeça erguida. E eu admiro-os. E eles ignoram-me. Quando digo à minha família que o país deveria colocar a decisão de escolher os nossos governantes na minha mão, eles riem-se. Coitados. Não sabem nada. Não percebem que eu conheço-os como ninguém. Não me perco em curvares respeitosos diante deles. Eu sei quem é bom e quem não é. As suas palavras enganadoramente sábias para o povo, são vazias para mim. Se eu tivesse esse poder de escolher, tínhamos um país muito mais rico, seguro e transparente. Mas não tenho esse poder. E como não posso fazer nada em relação a isso, então junto-me a eles. Eles desviam fundos públicos e eu desvio-lhes fundos privados. Mas faço-o muito mais honestamente, porque não engano ninguém. Nem a minha família. A minha amiga Tina chama-me acompanhante de luxo. Sou uma prostituta. Esse é o nome certo da minha profissão. Vendo a minha companhia e por vezes o meu corpo. Sou a gestora da minha própria empresa e tenho orgulho dos meus próprios resultados económicos. Todos nós somos vendedores de nós próprios. Vendemo-nos numa entrevista de emprego exibindo todas as nossas melhores qualidades ao comprador. Vendemo-nos ao namorado, dando-lhe graxa suficiente até ele nos levar ao altar ou engravidar-nos. Vendemo-nos na praia, quando encolhemos a barriga e colocamos a mão disfarçadamente ao lado das coxas escondendo a celulite de forma a conseguir alguns olhares gulosos. Vendemo-nos na associação de pais exibindo a nossa criança sempre limpa e asseada com uma nova tecnologia na mão que deixará todos de queixo caído. Vendemo-nos quando colocamos umas sandálias douradas com um salto agulha de nove centímetros que nos alonga as pernas e atormenta os pés. Mas há aqueles que se vendem por pouco e há aqueles que se vendem pelo preço certo. Eu vendo-me por um preço sempre acima do meu verdadeiro valor. Não existem descontos ou promoções na minha empresa. Não existem clientes negociadores. Um bom empresário é aquele que vende o seu produto sem que ninguém questione o seu preço. Eu sou uma excelente empresária.

O restaurante tem um ambiente de luxo e luxuria. É um restaurante onde se leva a amante, mas nunca a mulher. É o melhor restaurante, porque estes patetas mimam melhor as amantes do que as mulheres. Mas no fim de contas são as esposas que lhes suportam as misérias das doenças, que lhes cheiram os peidos e o suor, que acordam com o mau hálito, que suportam as meias mal cheirosas. Elas tratam de todos estes horrores para que eles cheguem impecáveis até mim. E eu sou a privilegiada que os recebo sempre cheirosos e galantes, que sou levada aos melhores restaurantes e acordo nos melhores hotéis. Recebo prendas caras para além do pagamento pelos meus serviços. No meu trabalho recebo horas extraordinárias que não faço, prémios de incentivo pelo que não produzo e ajudas de custo em viagens de lazer.

- Estive fora demasiado tempo. Peço desculpa. – Ele olha-me e eu sei que ele está a ser sincero. Como se eu tivesse sentido a sua falta. Apetece-me rir novamente, mas o meu olhar demonstra o contrário.

- Pareceu-me uma eternidade… Mas eu percebo que és um homem muito ocupado. – Lanço-lhe um olhar sedutor. – Eu percebo que a tua presença seja muito desejada por muitas e diversas pessoas.

O seu ego enche ao ritmo do seu peito… E é assim. Tal qual como me dizia a minha avó, “é com festas e bolos que se enganam os tolos”.

A noite acabou num quarto de hotel, para minha infelicidade. Tinha esperança que ele se despedisse de mim fora do restaurante como acontecia tantas outras vezes. Mas hoje ele queria mais. Queria tudo. Percebi isso quando ele colocou discretamente o maço de notas dentro da minha mala. Nunca confirmava o pagamento. Nunca havia troco. Era como se essa transação não existisse. Sabia tudo sobre a intimidade daquele homem e isso repugnava-me. Mas também sabia como terminar depressa o serviço criando sempre a ilusão de que tinha sido igualmente satisfatório para mim. A noite só terminava de manhã. Nunca me ia embora depois do serviço. E assim criava-se a ilusão de que se tratava de uma conquista verdadeira. Acordava sempre primeiro para que o cliente nunca me visse exatamente como sou. Quando ele acordou eu tinha o roupão imaculado vestido e os meus cabelos longos num desalinho que me favorecia. Tomamos um duche juntos e saímos como uma verdadeiro casal… Até ao próximo pagamento.


CAPITULO VII

 

Apanho um táxi até a casa. A chave nunca abre a porta à primeira como se tivesse alguma personalidade. Tenho de puxar a maçaneta um pouco para fora e de seguida levantá-la até ouvir o estalido.

- Olá Graça! – A voz masculina e descontraída apanhou-me desprevenida. Não reconheci logo o rosto que a acompanhava. Depois com surpresa cumprimentei-o sem grande entusiasmo.

- Olá! Não estava à espera de te ver aqui. – Tentava recordar-me do seu nome, mas sem sucesso.

- Pois! Vim apenas por dois dias para uma formação.

- Ah! – Abri a porta mostrando intenção de dar aquela conversa por encerrada.

- Queres tomar um café? Tenho de fazer tempo até à hora de almoço. Podíamos pôr a conversa em dia.

Senti-me gaguejar pela primeira vez em muitos anos. Já não sabia o que era tomar um café com um homem sem estar a ser paga para isso. Queria desfazer-me daquela obrigação que sentia para aceitar o convite.

- Não estou propriamente vestida para um café! – E abri os braços mostrando o meu elegante vestido de noite que me favorecia todas as formas. Ele não desceu o seu olhar. Não me pereceu propriamente deslumbrado. Aquela indiferença magoou-me.

- Então sobe e veste uma coisa pratica num instante. Assim até damos uma caminhada e tomamos café numa esplanada. Está um dia lindo! – Encostou-se na parede apoiado apenas num pé e cruzando os braços, adotando uma posição de espera. Subi obedientemente. Sentia-me estranha, mas ao mesmo tempo empolgada.

Zé Miguel! O nome atingiu-me como uma bofetada. Tínhamos saído algumas vezes, logo após o meu drama romântico e antes de entrar nesta vida. Era um rapaz desleixado com uns caracóis mal aparados e que usava umas camisolas sempre demasiado grandes. Era biólogo marinho e exibia a sua profissão nos meus modos, no seu cheiro, no seu aspeto. E agora após uma dezena de anos mantinha o mesmo ar descontraído, como se não houvesse nada no mundo que o afetasse, mas apresentava-se de uma forma mais cuidada. Vesti umas calças de ganga justas que me favoreciam o rabo e uma camisola de algodão larga que descaía do lado direito deixando o ombro um pouco à mostra. Olhei-me ao espelho e apanhei o cabelo num rabo-de-cavalo impecável. Sorri satisfeita com o meu aspeto. Desci as escadas a saltitar como já não fazia há muito tempo e quando abri a porta e o encarei os meus lábios alongaram-se naturalmente sem qualquer tipo de esforço. O poema esbofeteou-me a memória sem dó nem piedade. Esta era a curva dos meus lábios, a verdadeira curva dos meus lábios que já não usava há muito tempo. Há demasiado tempo.

- Estou pronta!

Ele sorriu-me e desencostou-se da parede. Atravessamos a rua para o passeio mais largo e começamos a andar sem pressa.

- Há quantos anos é que não nos víamos Graça?

- Há pelo menos 10 anos…

- Pois… Deve ser mais ou menos isso!

- É isso de certeza. Não me esqueço daquela altura… Foste um grande apoio.

Ele não me deu aquele sorriso condescendente que eu esperava. Ele riu-se alto.

- Estás a ver como eu estava certo? O tempo passou e tu sobreviveste.

Ri-me também. Era a primeira vez que me ria do que me tinha acontecido. Tentava nunca voltar àquela época que me havia definido. O sol aquecia-me os ombros e senti vontade de fechar os olhos… Mas pela primeira vez em muitos anos não estava sozinha.

- Então e o que tens feito? – A pergunta que eu receava merecia uma resposta assertiva.

- Tenho vivido um dia de cada vez! – Os carros passavam por nós vagarosamente e sentia os olhares fixarem-se em mim expectantes do que diria de seguida.

- Que misteriosa! – Os seus dedos longos e magros agitaram-se à minha frente como se ele fosse fazer um qualquer truque de magia. – Eu dou aulas na Universidade do Algarve. Foi a única maneira que arranjei de continuar a fazer investigação sem correr aqueles riscos que todos os investigadores bolseiros correm. Andava sempre num vai e vem de projetos, numa preocupação constante quando se aproximava o fim das bolsas de investigação. Agora posso fazê-lo com mais calma.

- Continuas um apaixonado pelo mar. – Senti-me sorrir novamente de forma gratuita sem aquela arrogância de que o poema me culpava.

- O que é da vida se não vivermos as nossas paixões?

Eu sabia a resposta àquela pergunta, mas calei-a bem dentro de mim. Fechei-lhe a porta na cara quando ela estava prestes a sair. Tranquei-a e amordacei-a. A resposta àquela pergunta era a minha vida. Não tenho uma única paixão. Não sou apaixonada pela minha profissão. Não me apaixono pelo dia que me espera. Não sou apaixonada pela comida controlada que como. Não tenho bons amigos que me apaixonem gratuitamente. Sou bela e não me sinto apaixonada por mim. Por esta pele que exige de mim um cuidado constante de hidratação. Por estas formas que dominam a minha alimentação e torturas físicas constantes. Vivo sem sentir e o pouco que sinto não vivo.

- A respeito de paixões vou casar-me este Verão.

Aquela notícia amargou-me a boca e tive de engolir em seco antes de falar.

- A sério? Parabéns!

A chegada à esplanada salvou-me da gaguez. Sentia-me realmente magoada, mas não percebia porquê. Aquele homem nunca me causou qualquer palpitar mais forte, apesar de todas as suas tentativas há dez anos atrás. Aproveitei-me dele para recuperar o meu ego e foi só isso. Ele apareceu-me como uma luz na altura mais difícil da minha vida e apaziguou um pouco a dor da rejeição. Surgiu no fim da minha relação com o senhor cabrão. Uma relação que durou três anos. Uma relação diária e cultivada. Uma relação que comemorou datas e dias de São Valentim. Uma relação que me excitou e irritou na mesma medida. Uma relação como tantas outras relações que conduzem ao altar. Até ao dia em que o vi beijar outra mulher. Uma mulher robusta de cabelo crispado e demasiado escuro, com os seus braços curtos a envolverem-no sabiamente. Um beijo no meio da rua da cidade dele. Não era a minha cidade, mas era o meu homem. E eu estava ali, estrangeira, para surpreendê-lo… E fui surpreendida. Não o confrontei logo. Sentei-me num banco de jardim coberta pela vergonha e pela sombra de uma grande árvore. E chorei. Voltei para a minha cidade, para o meu canto, para as minhas coisas e recebi-o como sempre no dia marcado. E então no meu mundo confrontei-o. Gritei. Apontei-lhe o dedo. Acusei-o… E por fim, quando li indiferença no seu olhar… Implorei… Lembro-me das suas palavras exatas e esclarecedoras que me deixaram mergulhada em dúvidas. “Desculpa se te levei a pensar em algo mais. A verdade é que isto já durava há demasiado tempo. Eu vou casar-me este verão”. Mas ainda encontrei forças para refutar aquelas palavras, para implorar um pouco mais. Então ele agarrou-me os braços e fitou-me como se faz com uma criança ou com uma louca. “ Oh Graça! Tu não és propriamente o tipo de mulher com quem um homem queira casar! Uma mulher tão bonita só causa problemas. E como diz a minha mãe, uma melancia tão doce nunca é comida por uma só boca”. E foi nesse exato momento que eu morri.

O poema conhece-me mal, não foi o poder de Deus que se uniu no meu reflexo, mas a marca do diabo. O meu aspeto marcou o meu futuro com um ferro mergulhado nos brasidos do inferno. Estou marcada por esta maldita beleza que me estigma e que me define… E para lá deste rosto bonito, deste corpo definido, destes movimentos elegantes? Não resta nada. Não é arrogância, é vazio. Não é altivez, é sobrevivência. Não é indiferença, é conformismo.

- Nunca te imaginei casado! – Acompanhei esta afirmação com o meu olhar mais sedutor. Não pude evitar. Queria sentir-me novamente desejada por aquele homem desengonçado. Não por paixão, mas por despeito.

Ele nem reparou no meu esforço e pediu dois cafés e uma água das pedras.

- Como assim? Sempre quis constituir família.

- Não sabia! – Debrucei-me um pouco sobre a mesa. Não queria ser assim com ele, mas havia algo mais forte, uma teimosia qualquer que queria reclamar a sua atenção.

- Mas basta de falar de mim… E tu? O que fazes da vida? Estás feliz? – Ele bebericou o café, mas deve tê-lo achado quente porque afastou logo a chávena dos lábios húmidos.

- Sou prostituta. - Todo o meu corpo se retesou. Os meus olhos abriram-se de surpresa pelas minhas palavras. Não sabia como tinha dito aquilo em voz alta. E fixei-me em todos os movimentos dele tentando ler-lhe os pensamentos. Ele pousou a chávena muito calmamente e olhou-me sem qualquer expressão.

- Mas das caras…

Que raio de comentário era aquele? Devia ler-lhe espanto nas feições, e depois deste espanto devia conseguir ver a repulsa. Mas em vez disso ele olhava-me com curiosidade e algo mais que não conseguia adivinhar. Endireitei-me na cadeira e vesti o meu rosto sereno, os meus movimentos lentos e controlados e o meu sorriso sedutor.

- Das muito caras! – Sorri-lhe e bati um pouco as pestanas. Ele riu alto e depois da ofensa ri-me também. Ri alto. Ri de mim mesma.

- Não vale a pena tentares seduzir-me com esses olhares e meios sorrisos, porque eu sou um teso. No limite posso pagar-te o café.

Finalmente relaxei e senti-me como não me sentia há muito tempo. Não passei a mão pelo rabo-de-cavalo com intuito de o manter longo e liso. Não contraí os músculos da barriga para mantê-la dura e lisa. Não cruzei a perna, levantando um pouco a coxa para exibi-la. Não estiquei o peito do pé para parecer mais elegante. Apenas inspirei e finalmente curvei as costas, alonguei os cotovelos sobre a mesa e não me importei se estava a impressionar alguém.

- Porque é que vais casar com essa mulher? – Levantei o olhar das minhas mãos e vi o seu rosto surpreendido.

- Porque tive uma relação que seguiu o seu curso natural.

-Ah! Que romântico! – Senti-me um pouco vingada naquela afirmação.

- Sabes o que eu acho Graça? O casamento é a coisa menos romântica do mundo… - Agora fui eu que o olhei surpreendida. – E quando as pessoas o fazem tendo apenas como base de sustentação o romance, então o casamento tem tudo para dar errado. O casamento deve ser encarado tal como ele é. Vamos construir um futuro com uma pessoa que será nossa companheira… Mão dos nossos filhos… Que terá muitas vezes olheiras e o cabelo sujo. Que arrota e se peida na nossa casa. Que terá momentos de mau humor excruciantes. Que nos chamará todos os nomes que conhece. Que nos afagará quando estivermos tristes. Que nos cuidará quando estivermos doentes. Que nos incentivará quando nos faltarem as forças. É a pessoa que notará a nossa falta, que assistirá e testemunhará os nossos feitos. Neste mundo sobrelotado é aquela pessoa que vai assistir à tua vida, às tuas misérias e às tuas vitórias.

- Pareces um doido a falar!

- A sociedade está assim! Varre a realidade para debaixo do tapete e expõe apenas o desejável. Andas com o rabo tremido num BMW, pavoneando-te e certificando-te de que todos te olham com inveja, mas escondes as cartas do banco a cobrar os pagamentos em falta. Convidas os amigos para jantar na tua mansão e dás-lhes uma tábua com queijos caríssimos, um faisão e lagosta, uma trufa do mais puro que existe, mas eles ignoram que comerás atum com massa o resto do mês. Os teus filhos vão para a escola munidos de caras tecnologias e a falar sete línguas, mas não sabem o que é respeito, caridade ou mesmo humanidade.

Voltei a ver o mesmo Zé inocente, que queria mudar o mundo. Que queria soldar todos os pedaços que se haviam partido em mim. Vi o mesmo rapaz que ignorava os meus revirar de olhos sempre que ele me batia à porta. Os meus bocejos dispensadores sempre que ele me pegava na mão. Os meus queixumes de dores de cabeça sempre que ele tinha algo programado para me surpreender. E no dia seguinte lá estava ele novamente disponível para mim.

- Nunca tinha pensado nas coisas assim.

- Porque tu és o resultado deste exibicionismo que afeta a nossa sociedade. Tu pavoneias a tua beleza escondendo os sacrifícios que ela te custa. Tu mostras sorrisos encantadores, mas escondes os pensamentos que os acompanham. Tu és uma montra ambulante de tudo o que não é importante. – Ele não me via. Estava balançado no seu desabafo e não me viu diminuir a cada palavra. – E deixas que outros te usem para o mesmo fim. Tu mostras a tua gargalhada, mas escondes a falta de graça. Tu mostras interesse nas palavras de quem te paga, mas escondes o tédio que te provocam. Tu elogias o que te repugna… E tu gemes e arquejas enquanto escondes a repulsa.

Finalmente encarou-me e percebeu que me tinha magoado. As lágrimas grossas e autónomas rolavam pela minha face. O meu nariz teimava em pingar e eu limpava-o num guardanapo nada absorvente.

- Desculpa Graça! Desculpa! - As suas mãos queimadas pelo sol pousaram nas minhas e aquele afago acalmou-me – Desculpa. Não ligues às minhas tolices.

- Não são tolices! São verdades… E nunca ninguém foi tão honesto comigo como tu. Obrigada por me fazeres sentir novamente.

- Hã? – Agora sim ele parecia surpreendido. Finalmente.

- Fizeste sentir-me mal comigo mesma. Sinto isso aqui dentro do meu peito. Fizeste-me chorar. Não te sei explicar… Mas já há muito tempo que não sentia nada. A minha vida estava robotizada…

O sol escondeu-se por detrás da única nuvem que vagueava no céu e o ar arrefecido eriçou-me os pelos dos braços. Foi isso ou outra coisa qualquer que me percorreu a espinha num arrepio profundo. Fechei os olhos. Os clientes da mesa ao lado levantaram-se. Ouvi um arrastar longo de uma cadeira e senti o roçar envergonhado da saia vermelha da senhora obesa que se levantava. O cheiro do café forte passou à minha esquerda acompanhado do tilintar de copos em cima de uma bandeja. O som do arfar de um cão grande aproximava-se. Continuei de olhos fechados. Gostava de estar assim. Como se o mundo fosse mais honesto nestes momentos de cegueira. Quando abri os olhos o sol voltara a brilhar e o sorriso do Zé mostrava apenas bondade. Não tinha pena de mim, nem repúdio, nem curiosidade sobre a minha intimidade.

- Porque é que pensas em casar com essa mulher e nunca pensaste em casar comigo? – Aquela resposta interessava-me. Mas o meu interesse esgotava-se na sua veracidade e ninguém seria mais honesto comigo do que o Zé. Eu precisava de saber o que há de errado comigo e de certo com as outras mulheres.

- De onde é que vem essa pergunta agora? Tu nunca me deste sequer a oportunidade de pensar nessa hipótese! - Ele endireitou-se na cadeira de metal pouco confortável e fixou uma linha qualquer do horizonte. Talvez olhasse o mar calmo e sereno. Talvez notasse o reboliço das ondas provocadas pela entrada de uma embarcação no cais. – Naquela altura eu queria muito ter tido a possibilidade de pelo menos poder imaginar um futuro contigo. Mas tu não abriste a porta a essa possibilidade. Estavas demasiado amarga. Estavas demasiado apegada à ideia que o Sr. Cabrão tinha de ti. – Sorrimos os dois perante a lembrança daquela alcunha que partilhávamos em segredo. – Estavas tão apegada a essa ideia que começaste a adotá-la como estilo de vida. “Ah! Eu sou bonita de mais para estes tolos? Eles ainda não me viram toda produzida… Vão cair todos de cu… Quero só ver se existe algum homem que hoje não me levasse ao altar…” E as nossas conversas eram sempre conduzidas por ti para este destino… O teu aspeto e como os outros reagiam a toda essa tua beleza, a todo esse teu encanto.

Agora lembro-me claramente do momento em que deixei de sentir. Estava com o Zé no muro daquela marginal a beber um gin, quando passou o meu primeiro cliente. O Zé falava-me das estrelas e eu falava-lhe do meu brilho. Troquei um longo olhar com o atual secretário de estado e um sorriso comprometedor. O Zé, na sua ingenuidade deu-me a mão e eu permiti, mantendo o foco muito longe dele. Lembro-me de ter dito qualquer coisa de obscena em relação ao quanto eu iria explorar os homens com a minha beleza. Lembro-me de ter prometido ao Zé naquela noite que seria eu a explorar a minha própria beleza, e que nunca mais seria vítima do ego de nenhum macho. Ele falava do futuro e eu atirava-lhe com o passado. Ele falava-me em esperança e eu refutava-a com traições. Ele falava-me em sentimentos e eu afastava-o com escárnio.

Essa noite foi mais rentável do que o habitual. Estive particularmente dedicada e a gorjeta valeu a pena. Sentia-me aliviada sempre que esvaziava aqueles bolsos rotos… E assim, a vida continuava a passar por mim exatamente como eu a planeara anos antes.


CAPITULO VIII

 

A sandes de salmão fumado era mastigada lentamente e sem vontade, enquanto a minha mente pedia um hambúrguer de carne de vaca com molho inglês. Mas então afasto o meu pensamento daquela refeição insonsa e concentro-me nos meus sucessos. Comprei uma segunda casa de dois andares ao pé da praia. Modifiquei-a transformando-a em dois pequenos apartamentos que alugo a estrangeiros. Não me posso queixar da minha profissão e do meu rendimento. Sei que me rentabilizo muito acima do meu preço de mercado. Mas também sei que não será sempre assim. Absorvi o conselho do poema: “Lembro-te que essa tua beleza infinita / É curta e perece no tempo que avança! / E é tão só o que a tua alma reflete no mundo / Que te trará a tempestade ou a bonança!” Estou a preparar o meu futuro para que possa sentir-me mais feliz do que o homem que está no banco em frente. Ele tem os cotovelos pousados nos joelhos e a cabeça redonda enterrada nos longos dedos. A gravata surge por entre as pernas sugestivamente e as bochechas vermelhas enchem-se e esvaziam-se como se estivesse a ventilar.

Vou voltar a estudar. Talvez economia, uma vez que é uma área em que sei que sou particularmente boa… Ou filosofia porque sempre achei interessante… Vou inscrever-me num grupo de teatro amador e fazer amigos, porque preciso de alguém que testemunhe a minha passagem por este mundo… Mas agora vou sacudir os miolos da minha camisola de algodão verde e vou para casa arranjar-me para o próximo cliente.

Volto a olhar para o homem do banco em frente. Ele merece um poema… Talvez.

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