sábado, 5 de março de 2022

Esta Vida Não é Para Poetas - PARTE III

 PARTE III




CAPITULO IX

 

A tua cabeça está suspensa nesses dedos longos,

Enquanto a tua alma definha nessa jaula dourada!

E os teus desejos vagueiam sem nunca estarem prontos,

Agarrados e estrangulados nessa fina gravata

Que tão pouco te define mas aos poucos te mata.

 

E a tua voz fica rouca de tão pouco ser usada,

Enquanto a tua mente rica murcha, de tão recalcada!

Então essa gravata aperta a garganta do homem

Que de olhos baixos vê pouco mais que a calçada…

E não vê que de tudo o que seria, optou por ser nada.

 

 

 

Sinto algo a picar-me o pescoço, mas não levanto a cabeça. Tenho medo de erguer o olhar e encarar o mundo que me espera. Não quero ir para a reunião que me aguarda. Não quero enfrentar as acusações válidas do cliente emigrante que confiou em mim o seu dinheiro. Não quero ver o e-mail do trabalho a exigir mais números sem me dar a fórmula certa. Mas algo me pica o pescoço. Este mal-estar não é nada comparado com a reunião que me aguarda. Vou enfrentar sozinho o cliente. Todos os chefes têm outras reuniões muito importantes àquela hora. Vou enfrentar o problema sozinho e vou ganhar a mesma merda no final do mês. Algo me pica o pescoço. Mas não é tão incomodo como será a minha noite mal dormida, depois de uns olhares reprovadores do cliente e talvez algumas agressões verbais. Eu mereço aquelas agressões. Mas não as mereço sozinho. Quem as merece mais do que eu tem outras reuniões importantes àquela hora e irá dormir muito bem a sua noite. E no final do mês receberá o triplo do meu ordenado e ainda ajudas de custo aumentadas da realidade. Finalmente ergo o braço e a minha mão procura o que me pica o pescoço. Um papel mal rasgado e amarrotado nos limites. Uns rabiscos que se compõem num poema que me descreve como eu nunca fui capaz de me ver. Sou eu naquele papel. Aquelas palavras são feitas de mim e para mim. Como me sabe bem aquele poema.

Guardo o papel amarrotado na algibeira e vou para a reunião.

- O Sr. Azevedo chegou. – A voz feminina do outro lado do auscultador dita a minha sentença para os próximos longos minutos. Aperto o primeiro botão da camisa e ajusto melhor a gravata. Inspiro tanto ar que me dói o peito. Pego no fino dossier, e dirijo-me ao gabinete de atendimento.

- Boa tarde Sr. Azevedo! – Estendo-lhe a mão. – Que prazer revê-lo!

Sentámo-nos ruidosamente. O cheiro a alfazema do ambientador arde-me no nariz, e sinto uma vontade enorme de sair dali a correr.

- Monsieur Cardoso! Marquei este rendez-vous consigo, porque não estou nada contente.

Os olhos pequenos e papudos do Sr. Azevedo estão mais brilhantes do que nunca. Ele mexe-se de uma forma estranha rebolando a larga cintura de uma lado para o outro da cadeira. Sinto o cheiro fétido e doce do seu suor que transborda pela t-shirt alternando os tons de verde de forma grotesca.

- Então Sr. Azevedo. Qual o motivo desse descontentamento? – Peço silenciosamente um milagre.

- Então estas notícias? Não acha que é preocupante? Fico a saber pela televisão que o meu banco está a falir, acha isto normal? Nunca recebi um telefonema do banco por causa deste problema… - O tom ascendente da sua voz magoa-me os ouvidos e o ego. Estou habituado a que os meus clientes me vejam como um bom gestor. Nunca fui posto em causa… Não sei lidar com aqueles olhos que faíscam acusações ainda caladas.

- As notícias estão empolgadas, Sr. Azevedo.

- Ó homem! Olhe para aqui. – Ele abana-me um papel à frente da cara criando uma frescura que me cai bem. - Eu fiz uma aplicação com oitenta mil euros e tinha juros todos os seis meses. E não recebi o juro destes últimos seis meses. Devia ter sido este mês mas não entrou na minha conta.

Respiro fundo. Cá vamos nós. Explicar-lhe que aquele tipo de aplicação não é um depósito a prazo. Que o juro é estimado com base em fatores económico financeiros como a variação de alguns índices europeus que neste momento não cumprem os requisitos necessários para haver lugar a pagamento de juros. Que tudo isto estava escrito no contrato que o senhor assinou. Só não lhe digo que quando ele assinou o contrato me “esqueci” de referir tudo isto.

- Mas então quero tirar o dinheiro desse depósito. – Atira-me ele já com um nível de voz alterado.

- Receio que não o possa fazer. A aplicação só termina daqui a dois anos e não permite liquidação antecipada.

Respiro fundo para o próximo passo.

- Então, é como se eu não tivesse esse dinheiro… Só o volto a ter aqui a dois anos… Até lá esse dinheiro é vosso. E na televisão dizem que este banco vai falir entretanto… - O senhor Azevedo começa a transpirar ainda mais. As gotas de suor que lhe enfeitavam a testa são agora rios de água que escorrem pelo pescoço do homem. Tenho medo que lhe dê alguma coisa. Mas não é justo acalmá-lo com falsidades. Mas também não posso atirar-lhe com a verdade. Que esta instituição está pela rua da amargura. Que quando o nosso presidente recusou as linhas de crédito disponibilizadas pelas entidades europeias com o argumento de que a nossa instituição, ao contrário das outras, não precisava, que tínhamos ótimos rácios, que éramos a instituição financeira mais sólida do país, era tudo mentira. Eu soube que a verdade era mais profunda e negra como um oceano calmo e azul na superfície, mas perigoso e escuro nas suas profundezas. Eu soube que a intenção era manter longe das nossas contas todo e qualquer tipo de fiscalização. O presidente não queria auditores estatais ou europeus a vasculhar os resultados financeiros, as contas aldrabadas, os dinheiros já desviados e salvaguardados em paraísos fiscais. A bomba vai rebentar ainda esta semana. Mas os chefes estão em reuniões fictícias muito importantes, em vez de estarem junto dos clientes para acalmá-los. Os clientes são cães farejadores. Pressentem o sismo mesmo antes de a terra tremer. Sou eu que estou aqui sozinho a enfrentar o Sr. Azevedo. O homem tem razão e eu limito-me a sufocá-lo ainda mais. Não sei se existirá dinheiro daqui a dois anos. Esta aplicação não tem qualquer tipo de garantia.

- Vou dar-lhe um conselho de amigo Sr. Azevedo. – Afasto a cadeira elegante forrada a pele da mesa de vidro. – Pode fazer um resgate do seu dinheiro, mas terá uma penalização. Já fiz aqui a simulação. Se fizer hoje o resgate receberá setenta e dois mil quinhentos e vinte e um euros. Juntando os juros que já recebeu desde o início do contrato, não perde dinheiro…

- Está a gozar comigo? – A voz exaltada do Sr. Azevedo atingiu-me como um soco na garganta e a minha maçã-de-adão subiu e desceu com dificuldade. Não estou a gozar. Este assunto não me suscita qualquer tipo de graça.

- Infelizmente não estou. Faça o que lhe digo e para a semana estará a agradecer-me.

 

O Sr. Azevedo saiu pálido. Ele percebeu o conselho que lhe dei. Ele olhou nos meus olhos e leu-me a alma. Eu sei que ele viu em mim o gestor honesto que ele conhecia. Ele percebeu que eu estava a ir contra as indicações e diretivas dos meus superiores. Coloquei-o à frente dos interesses do banco. E no fim daquela conversa difícil senti-me respeitado.

Voltei à minha secretária inundada de papeis. Acedi ao meu e-mail e arrependi-me logo de seguida. Tinha seis e-mails novos enviados na última hora. Todos eles a exigirem que evitássemos o resgate das aplicações financeiras e que ainda as convertêssemos em ações do banco. Mas esta gente será estúpida? Somos dirigidos por um bando de incompetentes. Tenho quinze anos desta vida e nunca vi um ato de gestão inteligente. Entrei para a banca na altura da guerra dos créditos imobiliários. Para conseguirmos fazer um crédito sobrevalorizávamos de tal forma o imóvel que o cliente comprava casa, mobília, carro e ainda restava para umas obras de melhoria. Baixávamos perigosamente os spreads anulando qualquer lucro. Enquanto eu me preguntava para quê tanto trabalho, os nossos dirigentes juravam-nos que esta era a fórmula certa para o sucesso. Depois veio a crise do imobiliário. Os créditos deixaram de ser pagos. As casas não valiam o suficiente para cobrir as dívidas. O banco começou a ficar com bens imóveis e com as despesas de manutenção, impostos, condomínios, etc. E antes de chegarmos à tão desejada meta começamos a corrida no sentido inverso. Vamos pagar juros altos a quem liquidar crédito. Vamos captar dinheiro pagando juros altíssimos, enquanto a Euribor cai a pique. Voltei a perguntar para quê todo este trabalho. Mas os dirigentes voltam a garantir que agora sim, estamos no caminho certo… E agora entramos numa terceira fase em que estamos cansados de tanto correr e percebemos que nem estamos na competição certa.

- Meu amigo! – Sinto uma palmadinha nas costas que acompanha o cumprimento verbal.

- Então chefe? – Respondo sem me levantar. Apetece-me perguntar como correu a reunião que tão oportunamente acabou assim que o Sr. Azevedo saiu.

- Eu é que pergunto, então? – O seu sorriso malicioso provoca-me uma náusea e as palavras do poema, “a tua alma definha nessa jaula dourada”, reacendem uma velha chama que pensei esquecida. – Como foi com o Sr. Azevedo? Foi difícil convencê-lo?

Aquela certeza de que eu tinha conseguido converter a aplicação do homem em ações aumentou o prazer da notícia que tinha para lhe dar.

- Não chefe. Na verdade até foi bastante fácil a reunião.

Ele encheu-se de importância e eu deixei que o seu ego aumentasse mais um bocadinho.

- Bom trabalho Cardoso! É assim mesmo. Eu sabia que farias um bom trabalho. Nunca me falhas. Vou já mandar um e-mail ao diretor a dizer que a sucursal já tem números feitos.

- Que números chefe? – Perguntei eu numa inocência falsa. E então dei-lhe o golpe com uma satisfação quase psicótica. – O Sr. Azevedo resgatou o dinheiro.

Os seus olhos esbugalhados foram uma bênção para o meu dia.

- Estás a brincar comigo? O homem resgatou o dinheiro mesmo com a penalização que tinha? E tu deixaste?

- Ele preferiu a penalização ao risco de perda total do dinheiro.

- Mas é para isso que te pagam… Para convenceres os clientes… Mas que merdas que tu me saíste. – E aqui está… A facilidade com que passamos de bestial a bestas numa fração de minuto. E tem sido com esta coerência que as nossas chefias nos têm conduzido. Apetece-me rir… Rir não… Gargalhar. Mas ele continua no seu devaneio. – És um conas de merda…

Endireitei a cadeira e enfrentei aquele olhar esgazeado pela primeira vez. Então, senti que a porta da jaula dourada se tinha escancarado.

- Talvez se o chefe me tivesse acompanhado na reunião como lhe pedi, as coisas tivessem sido diferentes…

Fui interrompido por uivos animalescos. A minha jaula abriu-se e a dele fechou-se. Parecia um animal enjaulado a andar de um lado para o outro sem qualquer tipo de objetivo.

- Mas que raio de incompetente me saíste… Agora precisas que faça o teu trabalho, é? Se não sabes desempenhar a tua função de gestor desampara-me a loja… - E acompanhei a última afirmação com um movimento de lábios conhecedor. – Existem milhares que dariam o cú e as calças para ocupar o teu lugar.

Levanto-me dando aquela conversa por encerrada.

- Até amanhã! – Atiro, enquanto arrumo o telemóvel no bolso do casaco.

- O quê? Já vais embora??? – O meu chefe tinha as faces vermelhas de raiva como se tivesse num round muito avançado de pugilismo, e os punhos cerrados afirmavam esta minha visão. – Escusavas de ter vindo!

Este último ataque foi como a chegada de oxigénio aos pulmões de um quase afogado. Senti-me inchar de qualquer coisa e virei-me para ele percebendo pela primeira vez a sua pequenez.

- Sabe de uma coisa? O meu horário de saída é dezasseis e trinta. E já são quase dezassete e trinta. Todos estes anos eu trabalhei de forma gratuita para o banco. Aliás paguei para trabalhar, porque se saísse a horas não teria de pagar um prolongamento do horário da escola para a minha filha. Quinze anos de horas diárias gratuitas de trabalho. Para chegar a esta altura e ter de salário base oitocentos e cinquenta euros? Para ser mandado por quem só vem abrir e fechar a sucursal? Para ser maltratado desta forma baixa? – Puxei do meu dedo indicador como se fosse uma arma perigosa e espetei-o no peito murcho do meu chefe. - Eu tenho uma carteira de milhões. O lucro da minha carteira dá para pagar todas as despesas desta sucursal. Tenho aqui mais três gestores com lucros parecidos. Não somos nós que estamos a prejudicar o banco. São parasitas como você que é sustentado pelo nosso trabalho, que ganha três ou quatro vezes mais do que eu, que não acrescenta um cêntimo de lucro a esta instituição, que estão a afundar esta empresa. – Baixei o dedo criminoso, tirei a gravata que tanto me oprimia e ainda lhe disse com o meu queixo elevado bem acima da sua cabeça lisa e lustrada. – Um bom chefe não é aquele que faz frente aos subordinados, mas aquele que tem a capacidade de enfrentar os superiores.

Virei costas e senti que as minhas pernas tremiam. Avancei devagar para a porta sem que nenhum som se atrevesse a romper aquele silêncio perturbador. Senti todos os olhos colados nas minhas costas. E, quando chegava à porta de saída senti o burburinho dos outros colegas que arrumavam as suas coisas para me acompanharem naquela saída.

“E os teus desejos vagueiam sem nunca estarem prontos”. Começo a pensar nos meus desejos. Mas nenhum deles se torna evidente na minha memória. Já não sonho há muito tempo. Já não desejo há muito tempo… Há demasiado tempo. Afinal de contas quais são os momentos do meu dia que me fazem feliz? E só, então, me vem o sorriso desdentado da minha filha. Aquele sorriso que me oferece sempre que chego a casa tarde e cansado. Aquele olhar rasgado de felicidade que me dedica enquanto eu lhe deposito um beijo dispensador no cimo da cabeça. Agora sei que o seu sorriso me faz feliz. Então, se é isso que me faz feliz, porque é que só lhe dedico uns minutos do meu dia? O que é que faço com o resto do meu tempo? Faço tudo o que não me dá prazer. Faço tudo o que me afasta dos sonhos. Faço tudo o que nunca desejei para mim. E quinze anos depois de ter iniciado o meu sonho de sucesso encontro-me de olhos baixos e vejo pouco mais que a calçada… E sei que de tudo o que seria optei por ser nada.


CAPITULO X

 

Já não jantava fora com a minha mulher há muito tempo. O restaurante é sossegado e tem um ambiente escurecido que cria uma cumplicidade entre nós, já há muito esquecida. Ela tem o cabelo preso num coque perfeito e os seus olhos parecem maiores e mais brilhantes do que me lembrava. Gosto dos seus lábios assim rosados e do vestido preto colado àquele corpo disponível apenas para mim. Gosto da sensação de poder beijá-la só porque sim. Um prazer que só me pertence a mim. A conversa gira à volta de recordações antigas. Viajamos para um tempo de estudante, para o tempo em que comecei a cortejá-la. Vivemos as emoções do primeiro beijo ao som da balada da despedida, imóveis no meio das capas negras da Sé Velha. Voltámos a planear o casamento e a desejar as férias em família. Iríamos fazer um interrail de mochila às costas e com um ritmo só nosso. Demorar-nos-íamos uma eternidade no Louvre, e não deixaríamos escapar uma única diversão na Disneylândia. Mergulharíamos sem pressa no mediterrâneo transparente em Côte d’Azur e fugiríamos da Máfia pelas ruas de Trapani. Eu morder-lhe-ia o pescoço em Bucareste e tremeríamos no silêncio das auroras boreais no norte da Noruega…

Encho-lhe novamente o copo com aquele tinto sedoso e no meio de um sorriso cúmplice percebo que as nossas recordações, os nossos sonhos, toda aquela conversa animada remonta a tempos antigos. Como se nos últimos anos não houvessem sonhos, sorrisos e risos… Como se não estivéssemos a criar recordações, mas apenas rotinas. A gravata que não estava a usar voltou a apertar-me o pescoço, e então perguntei-lhe sem sorrisos.

- Gostas da nossa vida?

- Não escolheria outra pessoa para me acompanhar nesta jornada… - Não foram estas palavras que responderam à minha pergunta. Foi o tom triste da sua voz e a condescendência daquelas palavras que me fizeram perceber que ela apenas aceitava a vida que tínhamos. E aceitar apenas é pouco… É muito pouco. Aquele tipo de aceitação rouba a emoção e o desejo. Esconde a vontade. Evita todas as novas possibilidades. Limita o ser e o viver… E com o passar do tempo a aceitação trona-nos submissos e restringe o infinito a uma casa, a um trabalho, a um quotidiano… E este tipo de aceitação transforma-se em sujeição. Sujeitamo-nos à vida que temos. E está errado… Não somos nós que temos que nos sujeitar à vida… É a vida que tem que me obedecer. Vou abandonar as rotinas e vou criar novas e boas recordações… Boas? Não! Excelentes recordações… Mas tenho de ter tempo para criar recordações… Tempo! Agora percebo como o tempo é importante. É no tempo que percorremos sentimentos, olhamos paisagens, inalamos cheiros, fechamos os olhos e desejamos. Tudo exige tempo. Tudo é feito com o tempo… O tempo é dos bens mais preciosos que eu tenho.

Olho em volta. As outras mesas estão todas ocupadas, por pessoas que não se olham, que não se sentem. Existem dezassete mesas ao todo. Numa mesa situada no canto estão duas mulheres que roçam os quarenta anos. A conversa entre elas flui, sem momentos de intervalo, sem que os olhos procurem pretextos para se ocuparem, sem que os seus interesses se percam em coisas alheias. Elas estão simplesmente ali a usufruir da companhia uma da outra. Talvez sejam amigas de longa data. Ou familiares. Não sei. Mas são cúmplices e estão a gastar o seu tempo de forma agradável para as duas. Bebem um gole de tinto e enchem o garfo que se demora a chegar à boca, porque aquela boca está ocupada com risos e palavras. O garfo balança-se na mão à espera de uma oportunidade para ser saboreado. Passeio o olhar pelas outras mesas, mas volto a focar-me naquela mesa do canto. Porque somos atraídos pela felicidade, e em dezassete mesas, aquela é a única que transborda felicidade.

 

CAPITULO XI

 

         Deixei a minha filha na escola como já não fazia há muito tempo. O beijo dela ainda me aquece a bochecha esquerda e ainda sinto os seus bracinhos magros a apertarem-me o pescoço certificando-se de que todos a veem abraçada ao seu pai. A sucursal não me parece tão escura e ligo o meu computador às oito e trinta em ponto. Vou cumprir rigorosamente o meu horário, mas não vou fazer mais cedências que não queira. Esta é a minha nova resolução. Cumprimento todos os colegas com um sorriso, exatamente como eles merecem. E cumprimento o meu chefe da mesma forma, mas ele não me retribui o sorriso. Estou a ligar a todos os meus clientes, antecipando assim a abordagem deles. Digo-lhes toda a verdade, apresentando todas as soluções para que possam tomar a melhor decisão. Até agora nenhum cliente quis converter a aplicação financeira em ações do banco. Todos têm resgatado o seu dinheiro, mesmo com a penalização. Mas o principal é que todos têm-me agradecido a honestidade. A semana está a chegar ao fim, e tem sido fácil cumprir o meu horário e fazer o meu trabalho sem ceder a pressões. Aprendi a importância da tecla delete para os e-mails desagradáveis da direção comercial que exigem vendas de ações do banco no aumento de capital sem se comprometerem com fórmulas mágicas para isso, mas incentivando-nos a não sermos demasiado exigentes com as regras.

            - Cardoso! Pode vir ao meu gabinete por favor. – O meu chefe relembrou-se do meu nome. Já não o ouvia há quase uma semana. Não pode ser um bom presságio

            - Boa tarde! – Os meus olhos encaram mais duas chefias para além do chefe de sucursal que não retribuem o meu cumprimento.

            - Cardoso! Colocaste-nos numa situação muito delicada. Já viste o teu lugar no ranking dos gestores deste mês?

            - Já vi sim chefe.

            - E estás orgulhoso do teu lugar?

            - Não me incomoda chefe.

            Os olhos do meu chefe estreitaram-se. As veias do pescoço palpitavam uma raiva contida, enquanto as suas mãos cerradas são punhos ameaçadores. O pouco cabelo lateral que tinha estava eriçado e o pescoço esticado na minha direção quase sugeria uma mordidela. Apeteceu-se acrescentar que o hálito dele me incomodava mais do que o ranking, mas engoli a piada.

            - Estás num lugar de merda. Tu que sempre ocupaste os primeiros lugares, agora estás num lugar de merda. Não te sentes mal com isso? Esta é uma sucursal de ganhadores. Não aceito medíocres na minha equipa.

             - Sabe chefe. Realmente estive sempre muito bem posicionado nos rankings anteriores…

            - Claro que estiveste… Trabalhas comigo…

            A necessidade daquele chefe se afirmar perante os outros dois que se mantinham inertes atrás dele era quase comovente, não fosse a sua arrogância uma arma demasiado apontada a mim.

            - Mas estive sempre no topo da tabela com o meu esforço, com o meu trabalho árduo… Nunca tive a sua ajuda para nada… Agora estou no fundo da tabela e continuo sem ter a sua ajuda para nada… A diferença é que agora estou a fazer um excelente trabalho, mediado apenas pela ética e pelas normas. E estou muito mais feliz.

            - Talvez se te dedicasses um pouco mais a isto. Sabes bem que não fazes negócio com os emigrantes até à hora que te vais embora. Se queres conquistá-los tens de estar aqui até mais tarde. Ligar-lhes nas horas que são convenientes para eles.

            - E quais são essas horas?

            - Sabes que os franceses só chegam a casa por volta das oito da noite de lá… Ora são seis da tarde aqui… Mas a essa hora já cá não estás, não é Cardoso? Talvez tenha de pôr outro que cá esteja a essa hora no teu lugar.

            - O chefe disse e muito bem… Essa é a hora que o cliente está em casa. Na sua casa a usufruir da sua família. É também a minha hora de estar em casa com a minha família. Mas eu estou disposto a negociar um dia por semana para trabalhar até mais tarde e com as horas pagas. Pode decidir o dia da semana e a quantidade de horas a mais. Assim parece-me justo e ficamos todos contentes.

            O meu coração palpitava uma dor fina. O meu atrevimento era atraiçoado pelo meu medo. O medo de estar a enfrentar o diabo. Onde é que me estava a meter? Que consequências é que iria sofrer com esta minha afronta? Sentia que podia ceder à minha antiga submissão a qualquer momento, mas o meu olhar mantinha-se firme e as minhas mão pousadas sobre as minhas pernas não se atreviam a tremer.

            - Vai para o diabo que te carregue… Se continuares com essa atitude, sem saberes reter o dinheiro dos clientes, a cagares-te para as necessidades do banco, sem fazeres um sacrifício pela casa que te sustentou durante quinze anos, então não vejo qualquer utilidade em ti. Talvez deva passar este assunto para os recursos humanos.

            E assim chegamos ao ultimato. Tenho de reter dinheiro de clientes a qualquer custo e sem qualquer ética, sabendo que o banco vai entrar em falência a qualquer momento. Devo trabalhar horas sem fim sem qualquer tipo de retribuição. E fazer tudo isto apenas por medo. Ora aqui está uma forma criminosa de manipulação da pessoa. Fala-se tanto em assédio sexual no trabalho. E eu sinto-me exatamente assim. Uma vítima de assédio. Sinto-me exposto a uma forma muito baixa de chantagem. Sinto-me subvertido e corrompido na minha ética. Sinto-me encurralado e manipulado para ter uma má conduta. Sinto-me vítima de assédio laboral. E deveria existir uma moldura penal para este tipo de crime. Devia sentir-me protegido contra este tipo de ameaça. Mas sinto-me simplesmente encurralado. Exatamente como o meu agressor me queria. Encurralado e sem capacidade de me defender.

 

CAPITULO XII


       Passado quase meio ano sobre o bulling de que fui vítima durante vários dias naquela sucursal, sinto-me orgulhoso. O banco sobreviveu com outro nome, mas muitos clientes perderam o seu dinheiro. Fazem manifestações constantes em frente à sede do banco e Assembleia da Republica. Mas quem os devia defender tranca as portas e chama a polícia, tratando-os como ameaça pública. O ladrão é que põe trancas à porta para se defender da vítima. Orgulho-me, porque nenhum dos meus clientes faz parte destas manifestações. Nenhum deles ficou demasiadamente prejudicado. Até os que optaram por manter as aplicações financeiras não garantidas ou que compraram ações do banco, fizeram-no de forma consciente e conhecedores do risco. Neste momento continuo a trabalhar no banco com outro nome, mas estou na minha aldeia, numa sucursal pequena e com pouca expressão. Aqui não somos incomodados com números ou objetivos. Temos um volume de negócio demasiado insignificante. Às cinco da tarde saímos e tomamos sempre uma cervejinha no café da esquina, enquanto esperamos pelos filhos que atravessam a estrada para virem ao nosso encontro depois da escola.

Não tenho fácil acesso a um shopping ou ao cinema. Só temos teatro uma vez por ano, quando as associações festejam o dia mundial do teatro. Não há centros de massagens ou ginásios. Mas há muita vida e tempo. De que me servia ter tanto à minha disposição e não ter tempo. Agora tenho uma mulher com um novo brilho, mais disponível para mim, mais feliz e grávida… Porque temos tempo para isso…

Fui à grande cidade há poucos dias a uma reunião do banco. Cheguei muito antes da hora de ponta e sentei-me num banco do jardim a apreciar os condutores que passavam. Fechei os olhos por momentos e apreciei a musicalidade dos palavrões e das acusações empoladas sobre quem deixava o carro morrer na subida pouco inclinada roubando três preciosos segundos de viagem a todos os outros condutores. As crianças mais jovens viajavam nas suas cadeirinhas engolindo o último pedaço de pão e o leite de pacote ao ritmo das ordens da mãe, que prometia a si mesma ser a última vez que a sua criança tomava o pequeno-almoço dentro do carro em andamento, mas mantendo o leite achocolatado de pacote na sua lista de compras, não fosse o diabo tecê-las. Os estacionamentos eram disputados em verdadeiros duelos, como se fossem belas donzelas prometedoras da felicidade eterna e, merecedoras de tal esforço. É apenas um estacionamento… Mas quem é que me ouve? Não sinto falta de nada. Os meus antigos colegas começam a chegar muito antes da hora marcada, mas num ritmo apressado como se o tempo lhes fosse faltar. Não me viram. Não me reconheceram como um dos seus. Afinal estou sentado num banco de jardim com um jornal diário aberto na secção de desporto. Já não sou um deles. Do outro lado da rua, um sem-abrigo levanta-se preguiçosamente. Estava encostado ao quartel de bombeiros. Olho-o como mais ninguém o olha. Está sujo… Sujo não… Encardido. As faces parecem pinceladas de cores de outono contrariando a roupa leve de verão que veste. Calça umas botas demasiado pesadas para o calor que se faz sentir e a camisa adivinhava-se branca por debaixo daquela camada lustrosa. Espreguiça-se sem vergonha como se quisesse livrar-se do sono. Os seus dentes parecem brancos em contraste ao negrume que cobre a cara. Coça a barriga por debaixo da camisa… Ele intriga-me. Ele está ali e ninguém o vê. Ele existe e ninguém o sente. Sim… Ele intriga-me. Intriga-me tanto que merece um poema… Porque um dia alguém me viu e poetizou-me. E eu quero que ele saiba que naquele dia alguém o viu.

 

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