domingo, 27 de fevereiro de 2022

Esta Vida não é para poetas - Parte I


 

Esta vida Não é

Para poetas



              Maria Gaspar 

PARTE I

 

CAPITULO I

 

A vida sorrirá invisível aos olhos murchos

Que vagueiam vazios no horizonte baço!

E o tempo esconde, num novo maço,

A fumaça expulsa dos lábios gorduchos

Que rouba em tudo o que vivo o melhor pedaço!...

 

A vida, ridícula, continua sorrindo

Uma esperança falsa que me palpita,

Uma consciência esquecida de mim,

Perdida no desafio deste mundo que me fita

E para quem perco sempre um feliz fim!...

 

A vida recorda-me que já passou o sorriso!

Aquele que agora me fita no retrovisor,

Aquele que me recorda em tom de aviso

Que a vida passou calma, cheia e precisa

E que eu permaneci intacta na fumaça vazia!...

 

O poema anónimo atingiu-me como um soco seco no centro do estômago e do ego. Olho para a televisão sem som e vejo uns personagens pálidos a tremer de frio debaixo de uma chuva torrencial. A janela larga de madeira pintada contraria a cena, deixando entrar os últimos raios de sol. Foi um dia quente de Outono. Foi um dia igual aos outros… Se não fosse este poema misterioso. Sentada na poltrona velha e conhecedora das formas redondas do meu corpo, solto uma nuvem de fumo por entre os lábios gorduchos. Como o poema me conhece bem… Este poema largado na minha secretária de trabalho. Este poema escondido no meio dos papéis do dia. Este poema que estava à espera do fim de expediente para se revelar. O seu autor é-me completamente desconhecido. Apenas identifico uma caligrafia cuidada, descaída para a frente como se tivesse pressa de avançar. Uma caligrafia que me desafia com aqueles “A” redondos como se fossem a minha cara cheia… Com os “L” e “T” longos e elegantes teimando na lembrança de quem já fui.

Faço um esforço de memória. Quem é que esteve hoje no cartório? Mas nenhum dos clientes me levanta suspeitas. Aliás não me lembro de quase nenhum deles. Não costumo encarar as pessoas de frente. Tive uma escritura de hipoteca. Para além do gerente do banco, esteve um casal. Não me lembro deles. Não gosto de encarar os jovens casais que compram a sua primeira casa. Não gosto daquela luz radiante que me ofusca. Não gosto dos olhares cúmplices carregados de promessas de umas malandrices próximas e de um longo compromisso. Não gosto… de mentiras. Também fiz duas procurações, mas eram apenas uns velhotes que tinham até dificuldade na assinatura. Não me lembro das testemunhas. Já não costumo encarar as pessoas de frente…

Os raios de sol desapareceram. Já só faltam três horas para dormir. Ainda bem. Apago o terceiro cigarro sem me importar com o cheiro que fica entranhado no tecido da poltrona. É o mesmo cheiro bafiento das cortinas e do tapete gasto que cobre o soalho de madeira riscado. Levanto-me da poltrona depois de duas tentativas de balanço. Sinto uma dor terrível nas costas que me tem acompanhado ao longo dos últimos meses. Mas não quero ir ao médico. A última vez que uma dor me fez ir ao médico ganhei um cancro e perdi tudo o resto.

Arrasto os pés inchados que esgaçam as pantufas em sofrimento pelo corredor e obrigo-me a tomar um banho. Já não meto o corpo debaixo de água há dois dias. Tenho mesmo de tomar banho hoje. Mas custa-me alçar a perna pesada sobre o rebordo sujo da banheira. A água quente alivia-me a dor nas costas e deixo-me ficar ali debaixo daquela cascata. “Uma consciência esquecida de mim”. Como me conhece bem aquele poema. Há menos de quatro anos eu era outra pessoa. Com apenas trinta e dois anos tinha o meu cartório notarial, onde era e ainda sou notária. É a única coisa que me resta dessa outra vida. Mas até aqui já não sou eu. Lembro-me de me levantar sempre cheia de vida. Não saía à rua sem estar cheirosa com o cabelo longo e escuro esticado. Tinha os olhos grandes em que bastava colocar um rímel nas longas pestanas para ficar com um olhar sedutor. O Luís gostava dos meus olhos e o do meu rabo. Desfaço imediatamente o sorriso que se formou na minha cara como se fosse um espasmo. Não devo prender-me ao passado. Só me faz mal. Pelo menos foi o que o psicólogo me disse. Mas eu fui tão feliz no passado…

Nesse passado, eu exibia as formas certas, o peso certo, e a sensualidade certa. Era graciosa e desejada pelos olhares fugazes que me acompanhavam. Era realmente uma mulher bonita. “Exótica como uma cigana”. Era assim que a voz quente e sussurrada do Luís me descrevia.

Há quatro anos atrás vivia na mesma casa que vivo hoje. Mas era uma casa alegre, cheia de vida que cheirava a alfazema. As janelas abertas deixavam os espaços iluminados e as cores vivas davam uma alegria contagiante. A poltrona era verde água com uns pormenores rococós, que agora estão partidos e o verde-água aproxima-se de um castanho esverdeado.

A minha companhia era um namorado em vez de dois gatos persas com nomes de gente. Namorava com o Luís desde a faculdade e pensava que seriamos uma dupla infalível até ao fim dos nossos dias.

Naquele dia fatídico eu saí do Cartório e fui diretamente para o salão paroquial encontrar-me com o Luís. Era quinta-feira. Era dia de danças de salão. E nós dançávamos rumba como ninguém. Sentia-me leve e ria-me sem limitações. Ria só porque sim. E rodopiava, balançava-me para ele enquanto ele revirava os olhos embaraçado.

- Foste buscar o resultado dos exames? – Perguntou-me com uma fingida despreocupação.

- Vou a seguir. O médico ligou-me e pediu-me para lá ir às oito. – Senti o seu corpo ficar rígido nos movimentos. A dança já não fluía.

- Então vou contigo.

Foi este o momento. O maldito momento em que os meus tormentos começaram. Se eu soubesse o que sei hoje não teria ido buscar aqueles resultados. Mas eu não sabia. Havia muitas coisas que eu não sabia. E assim sem saber fomos ao consultório do médico para ouvir a minha sentença.

A água esfriou. O cilindro generoso deixou sair a última gota de água quente e com ela foram-se as lembranças.

 

 


CAPITULO II

 

O despertador tocou pontualmente às sete e trinta. Já estava acordada. Estou sempre acordada antes do despertador. Rebolo sobre mim mesma e pouso os pés no chão. Visto o robe mas não o fecho. Já não me serve há muito tempo. Mas recuso-me a trocá-lo. Como o resto das bolachas de baunilha rançosas que estão depositadas na mesinha de cabeceira. Sabem a doce e mofo. Mas é o doce que me preenche. Visto-me sem escolher a roupa. Qualquer coisa serve para vestir nesta fase. Uma fase que nunca mais passa. Calço umas sabrinas, mas reparo que os meus pés parecem bolas dentro daquele calçado delicado. É a primeira vez que reparo nisso. Uso as sabrinas todos os dias e nunca reparei no volume dos meus pés que transbordam. Descalço-me, abro a porta da sapateira e retiro uns sapatos rasos mostarda com um fecho de velcro que se adapta ao meu tamanho. Olho, novamente, para os pés. Sinto-me melhor. Quase esboço um sorriso de satisfação, mas reprimo-o a tempo.

O dia está claro e calmo com uma ligeira aragem de Outono a refrescar-me a cara. É quinta-feira. Resolvo percorrer a pé o quilómetro e meio que separa a minha casa do cartório. Não o faço há pelo menos quarto anos. Mas faço-o hoje. E faço-o sozinha. Sinto-me quase orgulhosa de mim. Mantenho a cabeça baixa para não ter de encarar os outros transeuntes. A avenida larga está restaurada. Nunca tinha reparado nos bancos de madeira novos que convidam a um descanso, a uma leitura simples ou a olhar o mar sem pressa. Os barcos alvos balançam na marina, enquanto estrangeiros espreguiçam-se nas suas proas. Tudo está no lugar certo. Tudo, menos eu. O poema volta a preencher-me “ E a vida ridícula continua sorrindo / uma esperança falsa que me palpita”…

- Rosa! – Levo apenas uns segundos a processar aquela voz fina e alegre. – Oh! Rosa! Que bom ver-te…

Os braços magros e murchos abrem-se para mim, e sem perceber como, sinto-me rodeada por aquele abraço. Deixo-me abraçar. Já não era abraçada há muito tempo… Há demasiado tempo. Fecho os olhos e mato aquela saudade íntima de ser mimada. Faço um esforço de memória para me lembrar da última vez que fui abraçada. Acho que foi no hospital. No último tratamento. Sim, foi nesse momento, em que o médico se despediu de mim com um abraço emocionado e depois atrapalhado, uma vez que continuei com os meus braços caídos, inertes. Quando nos afastamos fito corajosamente o olhar curioso daquela velhota que um dia foi minha professora de dança. Nossa professora de dança… Minha e do Luís.

- Olá Senhora Mimi!

Não sei o que dizer mais. Desaprendi a conversar. Desaprendi a socializar. Desaprendi a amar. Desaprendi a ser humana. Desaprendi o que levei uma vida inteira a aprender.

- Há quanto tempo minha querida! Tenho tentado ligar-te para saber de ti… - O resto daquela constatação é calada por educação. Mas eu sei o que lhe vai no pensamento. “Nunca atendeste ou respondeste aos telefonemas”. Atrevo-me a fitá-la, mas em vez de olhos acusadores, encontro apenas doçura. E como me magoa aquela doçura, aquele sorriso brando aquela dentadura que se expõe para mim. Entrelaça o seu braço caridoso no meu e muda o seu rumo de caminhada para me acompanhar. Quero afastá-la, mas em vez disso aceito a sua companhia.

– Então conta-me lá! Como é que tu estás?

O que será que ela quer que lhe diga? Que estou bem? Devo responder assim para lhe aliviar a preocupação? Para que não sinta pena de mim? Para que não se sinta obrigada a ouvir as minhas misérias? É com esta mentira que devo socializar com as pessoas que me abordam? É com esta falsidade que devo manter as amizades? É com hipocrisia que devo alimentar as minhas relações?

- Estou bem! Obrigada por perguntar.

Ela estaca e com a sua mão livre puxa-me o rosto de forma a encará-la.

- Rosa Maria! Não te atrevas a mentir-me… - Os olhos doces tornaram-se cinzentos. – Não quero cá respostas politicamente corretas. Apertou-me o braço com a sua mão pequena e frágil e depois da reprimenda continuou a andar, olhando agora em frente. – Estás a falar comigo. Caramba…

Eu não sei lidar com esta porta que ela me abriu. Posso dizer simplesmente que abro os meus olhos todas as manhãs, mas não acordo para a vida. Posso dizer-lhe que o meu frigorífico está empanturrado com manteigas e queijos gordos, presuntos e linguiças, chocolates e chantilly. Que neste momento uso a roupa que a minha mãe usou depois dos seus sessenta anos, quando o seu corpo esguio se alargou, porque tenho medo de entrar numa loja e descobrir qual o tamanho da minha roupa.

- Estou livre do cancro há mais de um ano. Terminou essa luta. Agora é ir vigiando para ver se não volto a ter…

Mimi ouviu-me e permaneceu calada por uns segundos, que me angustiaram. Seria aquela a resposta que ela esperava?

- É bom ouvir isso! Livraste-te daquela maldita doença.

Atravessamos para o outro lado da avenida na passadeira. Com Mimi não poderia ser de outra forma. Era uma pessoa regrada em tudo o que fazia. Todo o seu dia obedecia a um plano anteriormente elaborado. Desde a roupa que vestia impecavelmente, até à pesagem e manutenção das calorias e nutrientes de cada refeição.

- E de resto?

Que resto? Isso é muito vago. Tudo o que está fora do tema doença é muita coisa para ser falada. Vamos falar do tempo ou do trabalho. Da minha vizinha que arranjou um namorado vinte anos mais novo. Da miséria política e económica em que o país está mergulhado. Mas Rosa sabia que aquele “resto” restringia-se apenas ao Luís.

- De resto continua tudo na mesma.

- Aquele canalha nunca mais deu sinais de vida?

- Não! – Menti. Ele bateu na minha porta há dois meses atrás a dizer que precisava de dinheiro. Não o disse assim. Elaborou um discurso muito convincente sobre os nossos bens, e tendo em conta que eu fiquei com tudo, era justo que ele recebesse o pagamento de metade desses bens. Não me consegui lembrar de nada que ele tivesse adquirido. A casa, a mobília, o carro tudo era meu. Até a televisão e o portátil que comprámos juntos, fui eu que paguei. Mas não tinha forças para contestar. Limitei-me a passar o cheque. - Ao menos isso! Que o diabo o leve! – A velhota dirigiu-me um olhar maroto e culpado que acompanhou o sorriso maldoso, como se tivesse cometido um doce pecado. Não lhe resisti ao sorriso e sorri de volta. “A vida sorrirá invisível aos olhos murchos / Que vagueiam vazios no horizonte baço!”

Atravessámos o pequeno jardim público e os meus olhos ergueram-se até à ponta da Araucária gigante. Em miúda imaginava que aquela mesma Araucária era uma pirâmide expulsa do Egipto por ser diferente das outras pirâmides rudes de pedra. A sua beleza verde e elegante provocou a ira das outras pirâmides secas e arrogantes e agora ela estava ali simplesmente bela e rejeitada.

- Devias vir dançar logo à noite… - Mimi lançou aquele desafio sem sequer fitar-me. Apenas lançou-o naquela sua voz monocórdica e doce com a segurança de que seria bom.

- Hoje?

- Porque não? – Não foi o convite que me fez aceitar. Não foi a suavidade e generosidade de Mimi que me deixou com vergonha de recusar. Não foi por educação que aceitei o convite. Foi a pena que vi nos olhos e nos lábios condescendentes daquela velhota. Foi o facto de eu suscitar aquele tipo de compaixão nela que me fez aceitar. Que me fez reagir.

“Perdida no desafio deste mundo que me fita /E para quem perco sempre um feliz fim!...”. Como este poema me conhece bem. Como me sinto fraca e tola quando me vejo pelos olhos dos outros. Não quero ser esta pessoa triste que os outros veem. Não quero despertar condescendência ou compaixão nos outros, mas sim paixão e admiração. Não quero ser a fã, mas sim o ídolo.

Entrei no cartório e dirigi-me automaticamente para o meu gabinete. Tinha a agenda toda organizada por uma das minhas administrativas. Folheio os documentos que dormem na mesa com medo de encontrar algo mais que me descreva. Não quero que me vejam como eu sou neste momento. Eu sou assim, mas esta não sou eu. Então, não encontrando nada entre os papéis, encontrei algo perturbador na minha memória recente. Entrei no cartório de cabeça baixa. Lancei um bom dia baixo e pouco convincente sem levantar os olhos do chão. Não encarei as pessoas. Elas devolveram-me o cumprimento, mas sem grande convicção, como se eu não valesse um cumprimento radioso e sorridente pela manhã.

Levantei-me da minha cadeira imponente de pele. Voltei a sair do meu gabinete passando pela sala de trabalho onde estavam as duas administrativas. Elas calaram-se como resultado da minha presença. Senti os seus olhares queimarem-me, mas não levantei os olhos do chão. Levantei a parte móvel do balcão fazendo um senhor idoso afastar-se para me dar passagem. E finalmente saí. Encostada à parede sinto o meu coração palpitar algo novo. Uma qualquer vontade. Como aquele poema me conhece bem. Tiro um cigarro da algibeira e acendo-o. Sinto-me relaxar e deixo-me levar naquela “fumaça vazia”. Quero entrar no meu cartório de outra forma. É o meu cartório. Sou eu que devo dominar quem o frequenta e não o contrário. São os outros que entram ali, naquele espaço a precisar de mim… Mas porque raio é que sou eu a despertar pena nos outros dentro do meu espaço? Do meu cartório?

Atiro o cigarro para a estrada vazia sem sequer apagá-lo. Levanto o queixo e sinto as minhas costas protestarem. Mas são as minhas costas. São elas que têm de me obedecer e não devo ser eu a subjugar-me a elas. E entro de cabeça erguida. Olho diretamente para as minhas assistentes. A Carla engordou desde a última vez que a encarei e a Noémia cortou o cabelo.

- Bom dia! Está tudo bem por aqui? – Saco do meu melhor sorriso e vejo dois pares de olhos pousados em mim enquanto as bocas que os acompanham balbuciam qualquer coisa.

- Bom dia doutora! É bom vê-la assim bem-disposta!- Carla sempre foi a mais despachada das duas, sem entraves na língua ou nas ações e com solução para todos os problemas que surgem. Em tempos ela metralhou-me com as suas receitas para enfrentar a doença e mais tarde para enfrentar a rejeição, mas fê-lo de tal maneira que deixei de ter forças para encará-la. Deixei de ter a força que ela me exigia constantemente. Deixei de encará-la.

Noémia continuava de boca aberta. Pisco-lhe o olho. Não resisto. A mulher abana a cabeça como se quisesse acordar de um sonho qualquer.

- A que horas tenho a primeira reunião? – Pergunto-lhe tentando quebrar aquele desconforto. Mais por mim do que por ela. Quero procurar uma forma de manter aquela postura, aquele sorriso, aquela atitude. Lembro-me que devia ter colocado um rímel e um batom. De repente sinto-me diminuída. Sinto os olhares dos clientes colados em mim como se avaliassem o grau do meu sentido de ridículo. Sinto-me estupidificar e refugio-me novamente no meu gabinete sem esperar pela resposta. A minha cabeça pesada está depositada nas palmas das minhas mãos quando a porta abre devagarinho.

- Posso entrar doutora?

- Claro Noémia. Entre lá! – Endireito-me na cadeira e disfarço a lágrima que me humedece a face.

- A doutora estava… - Ela aperta os documentos contra o peito como se fossem pesados e percorre o gabinete com os olhos sem fixá-los em lugar nenhum. – Quer dizer… Já há muito tempo que não a víamos assim, tão… - Os olhos agora baixos concentravam-se no chão alcatifado. – Não estava à espera e… Não foi por mal… - Noémia não fazia sentido e mesmo assim eu compreendia-a. Ela estava ali nervosa desculpando-se por não ter reagido ao meu cumprimento, como se fosse ela a errada nesta história.

- Senta-te Noémia! – A ordem saiu da minha boca com a confiança de outros tempos e a mulher obedeceu imediatamente. Assim que se sentou na cadeira à minha frente e a sua coragem permitiu que me olhasse, ela riu alto.

- Fiquei sem ação quando a vi novamente. A velha doutora Rosa. A nossa chefe alegre e confiante. – Ela agora procurava algo nas minhas expressões faciais. Mas eu mantinha-me inerte. Aprendi a ficar assim, imóvel, estática, sem fornecer qualquer tipo de vantagem que pudesse ser usada futuramente para me magoar. – Nem sabe como tem sido difícil. Desde que a doutora adoeceu e depois aquele canalha do Luís… E a doutora foi mirrando, mirrando por dentro e engordando por fora. E eu e a Carla tivemos que assumir sozinhas a gestão do cartório, porque a doutora não reagia. Não marcava nada na agenda, não decidia nada, não entregava sequer os documentos ao contabilista. E nós fomos assumindo funções e responsabilidades que não são nossas para aliviá-la…

- Desculpe Noémia… Não tinha percebido… - Estava completamente atónita. Realmente o dia-a-dia do cartório foi-se fazendo e eu nunca questionei como é que as coisas apareciam. Como é que já tinha as escrituras preparadas em cima da minha secretária para receber os clientes. Como é que os ordenados estavam a ser pagos. Nem sequer o pagamento de impostos ou segurança social.

- Não é para se sentir culpada que lhe estou a dizer isto. – Ela aventurou-se como nunca o tinha feito até então. – Nós queremo-la de volta. Queremos que pegue naquilo que é seu e que comande a sua vida, o seu cartório… Sabe que até as suas aplicações financeiras particulares no banco nós é que temos feito? Recupere aquilo que é seu por direito.

- Mas faltam-me forças… - Finalmente choro e Noémia acompanha-me.

- Oh doutora! Hoje a doutora tomou iniciativa de recuperar algo. Eu reparei que não veio de carro. A doutora entrou e saiu, para voltar a entrar da forma correta. – Noémia limpou o nariz na ponta da manga da camisa. – Acha que eu não a vi lá fora da porta a fumar e a falar sozinha. A ganhar coragem para entrar de cabeça erguida?

- Reparaste nisso?

- Nós andamos preocupadas consigo há demasiado tempo. Reparamos em tudo. Só lhe quero pedir que não recue. Não volte a esconder-se nessa cortina de fumo que criou à sua volta. Por favor.

Noémia fitava-me como se esperasse uma qualquer reação minha. Como não me mexi, ela levantou-se e foi-se embora deixando-me com tudo o que ela tinha dito.




CAPITULO III

 

O salão paroquial cheirava a tinta fresca e suor quando cheguei. Estava vinte minutos atrasada. Vinte minutos foi o preço da coragem que paguei para aparecer ali naquele espaço tão íntimo. Estavam a aprender a valsa vienense. A senhora Mimi contava os tempos batendo com o seu pé minúsculo no chão, mas a última volta falhava sempre. Não rodavam todos ao mesmo tempo de forma a fazerem o angulo de noventa graus. Fechei os olhos e senti a música. Sabia exatamente o que tinha de fazer. Senti o corpo de Luís encostado ao meu e a harmonia que nos ligava sempre que dançávamos. Não eramos profissionais, mas tínhamos jeito para aquele nível de exigência. Frequentamos as aulas durante três anos e tudo começou com uma prenda do dia dos namorados. Ele ofereceu-me um jantar no centro paroquial com uma aula de tango incluída. A partir daquele dia fomos alunos exemplares. Nunca faltávamos a uma aula. Ali e depois de alguns anos de namoro descobrimos uma nova forma de intimidade igualmente satisfatória. Era como um jogo de sedução, uma corte constante, uma forma de conquista quotidiana. E assim mantínhamos a paixão acesa.

- Venha Rosa! – A senhora Mimi veio buscar-me pela mão. – Meninos! Meninos! – Como eu tinha saudades daquilo. Como eu tinha saudades da voz dela a chamar-nos meninos. Era assim que eramos tratados naquelas aulas independentemente da idade. – Esta é a Rosa e foi das melhores alunas que me passou pelas mãos.

O grupo uniu-se num olá acolhedor. Todos me sorriram.

- Tomás vem cá. – A senhora Mimi pegou na mão daquele homem alto e desengonçado e colocou-a debaixo da minha. - Hoje o teu par será a Rosa que eu já não consigo fazer nada de ti. – E dirigindo-me um olhar cúmplice. – Se conseguires fazê-lo dançar pago-te um jantar Rosa.

A valsa começou e o corpo hirto de Tomás tombava de um lado para o outro como se marchasse em vez de valsar. Ouvia-o a contar os passos “Um, dois, três… e um dois três… e um, dois três”. Ri-me. Não consegui evitar.

- Desculpe. Sou novo aqui. Mas parece que não me vou fazer velho. – O seu sorriso genuíno foi um balsamo para a minha alma. Era sem dúvidas um homem alto e bem constituído. Bem constituído é aquela fórmula mágica para dizer que alguém está acima do peso sem parecermos preconceituosos. A realidade é que Tomás era gordo. Não de uma forma exagerada, mas tinha um corpo desengonçado e largo. Os seus olhos pequenos e astutos mostravam-se concentrados nos movimentos da senhora Mimi. E os lábios fechavam-se num risco fino. Quase tive pena dele.

- Não se concentre tanto nos movimentos da Mimi. Concentre-se em mim. É comigo que está a dançar. – Encostei-me mais a ele e fixei o meu olhar no dele. Ele não desviou o seu olhar nem por um segundo. E recomecei a valsar incentivando os movimentos dele com o meu corpo, forçando-o a virar-se ao sabor da música, contando com ele os tempos e no fim da aula largámo-nos com uma cortina de suor a cobrir-nos o rosto. Eu tinha comandado. Tinha deixado que alguém me agarrasse e sentisse este pneu desconfortável que se instalou no meu abdómen, e nem por um segundo me senti mal por isso. Nem por um segundo me senti inferior ou envergonhada. Dancei. Mexi as minhas formas todas sem vergonha e deixei que alguém me sentisse. Um desconhecido. 

Vesti o meu casaco e saí. Estava frio. Não tinha vindo preparada para aquela aula e não tinha carro nem um cachecol para proteger o meu corpo quente daquele frio. Encolhi-me a aventurei-me pela rua escura, apressando o passo numa tentativa frustrada de não arrefecer.

- Quer boleia? – Um carro cinzento encostou-se a mim e só quando o vidro se abriu é que percebi de quem se tratava.

Ia recusar a oferta com uma desculpa qualquer, quando o poema me atingiu “E a vida recorda-me que já passou o sorriso! / Aquele que agora me fita no retrovisor, / Aquele que me recorda em tom de aviso / Que a vida passou calma, cheia e precisa / E que eu permaneci intacta na fumaça vazia!...”. A vida é minha. Eu é que vou marcar o ritmo da minha vivência. Eu é que vou passar pela vida, não é a vida que vai passar por mim.

- Aceito! – Entrei no carro e coloquei o cinto.

- Para onde vai? – Tomás aguardava pela resposta com o carro encostado ao passeio, em ponto morto. Eu estava dentro do carro de um desconhecido, com quem tinha acabado de dançar e nos braços de quem transpirei como se tivesse corrido a maratona.

- Para casa!

- Claro! E onde é que isso fica? – Ele riu-se descaradamente de mim.

- No cimo da rua do hospital.

O carro estava impecavelmente limpo. O ambientador de baunilha preenchia as minhas narinas de forma eficiente. De repente senti vergonha da minha casa bafienta que cheirava a mofo e a qualquer coisa pior.

- Hoje foi a melhor aula de dança que tive. – Ele olhou pelo retrovisor e fez pisca para a esquerda. – Já estava a pensar em desistir, mas a Rosa fez-me recordar o porquê de ter escolhido estas aulas.

- E porque é que escolheu estas aulas? – A minha cabeça estava concentrada apenas nas palavras dele. Estava finalmente vazia de preocupações. Não sentia qualquer pressão para impressionar ninguém ou para pelo menos não despertar pena.

- Para voltar a sentir-me vivo…

Olhei os candeeiros acesos que passavam deixando um rasto de luz. É assim que a nossa existência deve passar pelo mundo. Devemos deixar um rasto. Se vivermos bem, se cultivarmos relações, se participarmos na vida dos outros e da comunidade, o nosso rasto ficará por muito tempo. Por vezes manter-se-á por gerações. Em raríssimos casos para sempre. Mas se vivermos apenas para nós, concentrados no nosso bem-estar ou na nossa miséria, então o nosso rasto apagar-se-á com a nossa morte, ou se tivermos sorte apagar-se-á com a memória dos que nos recordam.

- Então e a Rosa? Porque é que deixou de dançar?

- Porque tive cancro da mama.

Fui seca e espontânea na resposta. Exatamente como qualquer verdade deve ser abordada. Não existem floreados ou pozinhos de perlimpimpim para dourar uma verdade cruel. É assim e pronto.

- Ah! Não sabia! Então, se voltou para as aulas é porque está melhor, certo?

Gostei daquela frontalidade. Gostei de não me sentir minimizada. Gostei de que ele não tivesse mostrado qualquer tipo de piedade.

- Sim! Estou supostamente curada e sem seios. – Não sei porque é que aquela afirmação me saiu assim. Será que estava a tentar despertar compaixão naquele ser humano? Uma compaixão pouco competente na tarefa de manter o Luís ao meu lado? Ele tentou durante um par de meses depois da primeira cirurgia. Mas a imagem daquela cicatriz horrível causava-lhe náuseas. As minhas próprias náuseas depois das sessões de quimioterapia provocavam-lhe um mal-estar. As minhas olheiras profundas afastavam o seu olhar. A minha queda de cabelo afastaram os seus afagos. Tudo o que a doença refletia em mim repudiava-o. Depois de uma sessão de tratamento voltei para casa apoiada nele. Ele deitou-me no sofá colocou uma manta em cima de mim, mas não ficou ao meu lado. Desapareceu da sala. Quando me tentei levantar sozinha ele apareceu solícito para me ajudar. Estava mal disposta. Ia vomitar. Ele segurou-me pela cintura e levou-me de forma apressada e atabalhoada até à casa de banho. Depositou-me em frente à sanita e saiu fechando a porta atrás de si. Senti-me sozinha. Não tinha forças para aguentar o meu corpo debruçado sobre a sanita. Deixei-me cair com a cabeça encaixada na abertura da sanita e vomitei. Não tive forças para afastar o cabelo ou o que restava dele. Estive assim durante muitos minutos. Talvez horas. Quando senti que o meu corpo estremecia menos fiz um esforço sobre-humano e levantei-me. Limpei a sanita com uma toalha húmida. Arrastei-me até à bacia e lavei a cara e as pontas do cabelo e por fim escovei os dentes. Assim que coloquei a mão na maçaneta, Luís abriu a porta e levou-me de volta para o sofá. Apesar de ele estar sempre comigo comecei a sentir-me abandonada. Deixou de tomar as refeições comigo para evitar ver as minhas mãos trémulas que levavam desajeitadamente a sopa à boca. Começou a dormir no quarto de hóspedes para não me ouvir gemer. Sempre que eu mudava de roupa ele saía discretamente da divisão onde estávamos para não encarar o meu corpo deformado pela retenção de líquidos e pela cicatriz. No dia em que lhe pedi para me rapar o cabelo, foi a gota de água. Disse que me levava ao cabeleireiro para fazê-lo. Eu pedi-lhe, implorei-lhe que fosse ele a rapar-me a cabeça em casa. Mostrei-lhe que não tinha forças para enfrentar uma ida ao cabeleireiro e tudo o que isso implicava, desde os olhares até às perguntas e contares de histórias de cancro que nada tinham que ver comigo. Era penoso para mim fazer isso fora da minha casa. Quero dizer, era ainda mais penoso fazê-lo fora de casa. O Luís encolheu-se e finalmente chorou. Entre soluços infantis repetia que não era capaz. Que não conseguia. Que era demasiado para ele. Nesse momento entrou no quarto que agora ocupava e tirou de lá uma mala já feita. Sempre me questionei em que momento é que a fizera. Há quanto tempo estaria aquela mala ali à espera dele? Quando é que ele tomara aquela decisão? Em que momento é que ele decidiu que ia embora? Foi logo no início quando o médico nos deu o resultado? Foi na primeira sessão de tratamento? Foi na primeira vez que tive uma sessão adiada por ter as defesas em baixo? Terá sido no dia em que fiz a cirurgia? Em que ele viu a cicatriz? Quanto tempo é que ele permaneceu meu? Quanto é que ele aguentou por mim? Qual foi o momento em que deixou de haver nós?

- Vai à próxima aula? – Tomás não reagiu minimamente ao meu comentário. Não me fez perguntas. Não lamentou.

- Não sei.

- Tem de ir. Peço-lhe por tudo. – Tomás sorriu e fez-me um olhar pedinchão. – Agora que encontrei o par perfeito…

Rimo-nos alto. Talvez… Talvez vá.

- Moro ali naquela casa.

Ele encostou o carro. E eu saí mais leve, menos culpada por ser deformada. Senti-me novamente humana e alguma coisa em mim palpitava de novo. Abanei os ombros e senti um peso invisível escorrer-me pelo corpo abaixo. Tive dificuldades que já passaram e que eu permiti que continuassem a viver comigo no meu dia-a-dia. Viver no passado é o mesmo que morrer várias vezes da mesma forma lenta e agonizante. O cancro é passado. O Luís é passado. O meu corpo escultural é passado. Acabou. Agora tenho o que tenho e o dia de amanhã será apenas o que eu fizer dele.

 

 

 

CAPITULO IV

 

Estou sentada num banco da avenida a ler um livro ao sabor da maresia que me embala. Fecho os olhos permitindo-me abusar daquele calor de início de primavera. E volto a pensar no poema. Escrevi também um poema. Coloquei-o sorrateiramente na mala de uma desconhecida que passa por mim todos os dias de manhã naquela mesma avenida e que nunca retribui o meu cumprimento matinal. É linda. Deslumbrante mesmo. Mas tem uma má atitude. Escrevi-lhe um poema para alertá-la.

Ainda penso no meu poema. Naquele que alguém escreveu apenas a pensar em mim. Só para mim. Como aquele poema me conhecia bem.