quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

CAPÍTULO XII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XII



    O dia amanheceu na frieza que acompanhava a despedida de José e Luzia quando saíram de casa para ir à vila. A caminhada adivinhava-se longa e o silêncio que se instalou entre o casal tornou o caminho mais difícil. A preocupação com o futuro da filha pesava-lhes mais do que qualquer humilhação que aquela situação poderia significar. Os olhos miraram sem apreciar da forma merecida as pontas negras da vila que se alongavam em braços de magma adormecido por entre o mar preguiçoso que se baloiçava sem sentido acariciando desajeitadamente aquele manto negro, e penetrava descaradamente as reentrâncias que se perdiam em grutas fundas de mistérios e águas.
    A porta do médico da vila apresentou-se à frente dos Ferreira num pronúncio de dificuldade, como se houvesse uma chuva permanente que lhes molhava a alma e lavava a esperança.
- Bom dia Luzia! Como está José? – Clemência recebeu o casal inesperado com uma cordialidade educada apesar de os seus olhos sinceros terem transmitido a surpresa de uma forma bastante clara.
- Desculpe incomodá-la, mas temos uma conversa muito importante para ter convosco. – José cumprimentou a dona da casa com um embaraço que denunciava uma conversa difícil. – O Dr. Bruno está?
- Sim! Está na sala! Entrem! Estejam à vontade. – Clemência conduziu as visitas até à sala onde foram calorosamente recebidos por Bruno que sentado no sofá folheava pela enésima vez o “Monte dos Vendavais”.
    Depois de estarem todos confortavelmente sentados nas poltronas forradas de veludo e com um chá fumegante servido num conjunto de porcelana delicado, José iniciou a conversa sem delongas.
- O Francisco não está em casa? – José sentia-se ansioso e só queria resolver aquele assunto o mais rápido possível.
- O Francisco foi passear com uma colega de faculdade que veio passar uns dias connosco. Eles eram muito amigos e a rapariga veio matar saudades do meu rapaz. – O Dr. Bruno falava com a despreocupação dos inocentes, sem perceber o efeito que as suas palavras provocavam na disposição dos convidados.
- Devíamos ter esta conversa na presença do Francisco, mas visto que ele está muito ocupado vou falar convosco. – José fixou os olhos do Dr. Bruno e foi eficaz na transmissão das suas ideias. – A minha Ana está grávida do vosso rapaz.
    O silêncio que se seguiu foi o necessário para assimilar a informação. Clemência foi a primeira a falar. Doía-lhe o coração pela rapariga, mas ela tinha que proteger o seu próprio filho. Já dizia o ditado “filho da minha filha meu neto é, o filho do meu filho é ou não é?”.
- Tenho de falar com o meu filho! Só ele pode confirmar essa vossa afirmação. Se o que me dizem é verdade, então voltaremos a conversar para agirmos da melhor forma possível.
- Mas… - Luzia queria contrapor. Dizer que a sua filha não mentia. Toda a gente sabia que eles tinham tido um romance… Ela foi acusada disso publicamente… Mas quando Luzia se preparava para defender a filha, José mandou-a calar, pegou-lhe no braço e levantou-se em jeito de despedida. Com o queixo erguido José dignificou-se:
- Não precisamos de enganar ninguém para assumirmos os nossos problemas familiares. Sempre fomos uma família humilde, mas justa nos sentimentos. Dentro da minha casa ninguém entra por obrigação. Ninguém se deita na mesma cama por obrigação. Ninguém ama por obrigação… - Estas palavras atingiram a carência afectiva de Clemência de uma forma cruel e a consciência do Dr. Bruno que percebeu o recado. Ele olhava para Clemência e continuava a sentir o mesmo repúdio da obrigação que sentiu no primeiro dia em que se casou. E recebeu de Clemência o mesmo olhar esperançoso e enganado de que um dia a faísca do amor lhe saltaria do coração e seriam eternamente felizes.
    O regresso a casa foi feito sem a altivez que caracterizou José naquela conversa. Os ombros descaíram e os olhos focaram as pedras do caminho sem se erguerem uma única vez. As lágrimas finalmente soltaram-se face ao entendimento cruel de que a filha seria mãe sem ter um marido que a apoiasse. A dor de suportar a dor de um filho tem proporções inesgotáveis no peito de um pai. Ele encontraria uma solução para a filha e protegê-la-ia custasse o que custasse, porque a sua menina não merecia uma condenação prematura e solitária por um acto tolo praticado a dois.
    Os dias passaram-se sem que Francisco desse noticias. Os olhos de Ana despregaram-se finalmente da porta de entrada e a esperança libertou-se das suas ânsias. A realidade mostrou-se num misto de culpa e medo, e a penitência era aguardada ao mesmo ritmo da barriga. Ana não queria a clausura que o destino obrigava. Ela queria deixar de lado as tristezas e os pesares e queria sentir em sentimentos nobres e humanos a felicidade da maternidade. Ela era responsável por uma nova vida e queria gritar este feito em alegrias coloridas. Não é justo calar os movimentos carinhosos que ela sente desenvolverem-se dentro de si num luto permanente, como se a sua criança não fosse digna de todas as maravilhas que Deus colocou à disposição de todos. O sol é uma maravilha que se exibe ao mundo sem restrições. O arco-íris surge tranquilamente para que qualquer par de olhos se posse deslumbrar. A felicidade dela não vai ser engolida por um punhado de gente. Ela recusa fechar-se às maravilhas do mundo dentro de amarguras que ela não sente. O seu intimo quer absorver uma vida de possibilidades, um futuro de decisões, um rumo de hipóteses, porque a magia de viver é fazê-lo tendo sempre o privilégio da escolha e a surpresa do resultado.
    A ceia era engolida sem ser saboreada e Maria tagarelava coisas sem sentido numa tentativa frustrada de ter as antigas conversas em que todos falavam ao mesmo tempo e há muito caladas em suspiros e resignações. Ana interrompeu-a sem aviso provocando o levantar de olhos tão desejado por Maria.
- Eu não vou ficar nesta ilha! – Ana foi frontal na sua comunicação, não deixando que dúvidas sobre a sua decisão pudessem prevalecer sobre as suas certezas. – Recuso-me a ser enterrada viva nas infelicidades que esta gente me reserva.
- E vais para onde? Não sejas tonta! – José não queria mais palermices naquela casa.
- Vou para a Terceira! Inscrevi-me para fazer o exame de admissão para a escola do magistério primário. Vou fazer o exame e vou estudar. Vou ser professora primária e sustentar-me a mim e ao meu filho sem ter que me vergar a vergonhas impostas por quem não tem qualquer poder de decisão na minha vida!
- Não sejas ingrata com esta terra! Foi aqui que te criaste e agora queres recusar as tuas origens? – Luzia não suportava a ideia da filha sozinha e desamparada noutra terra que nem conhecem.
- Eu acho que ela tem toda a razão! – Maria viu uma réstia de esperança que começava a dominar-lhe a mente. A sua alma começava a abrir-se a novas possibilidades como se o escuro já não fosse tão escuro, as perspectivas palpitavam em esperanças e o seu coração voltou a rezar e a ansiar uma felicidade que parecia perdida.
- E como é que pretendes fazer isso, Ana? – José era mais cauteloso naquele assunto. Gostava muito de poder partilhar da esperança das filhas, mas a verdade é que ele tinha acabado de casar uma filha e de lhe oferecer um terreno. Neste momento não tinha recursos para pagar os estudos da filha.
- Vou para a Terceira fazer o exame que é daqui a 15 dias e depois trabalho lá como mulher-a-dias ou mesmo nos campos para pagar o curso. Não tenho medo do trabalho… E vou lutar com todas as minhas forças e vou ser uma vencedora, porque eu não nasci para me vergar com esta facilidade que me querem impor… - José sentiu como se lhe tivessem dado um murro no estômago. Ele queria muito ajudar, mas não podia ir roubar para proporcionar à filha um caminho que nem sabia se resultaria. Para além de que lhe era insuportável imaginar a sua filha sozinha numa terra desconhecida a dar à luz um filho ilegítimo.
- Mesmo que te queira ajudar, a verdade é que estamos sem dinheiro para essas aventuras. – José abordou o assunto sem rodeios da forma que o caracterizava, directa e eficaz.
    Ana calou-se por uns momentos. Teria de pensar melhor. Não poderia chegar à terceira sem ter algum dinheiro para os primeiros meses, pois teria de pagar a renda de um quarto e viver dignamente até começar a receber algum dinheiro do seu trabalho. Também tinha consciência de que no seu estado não seria fácil arranjar quem lhe desse trabalho… Mas não desistiria da ideia. O preço a pagar pela desistência era demasiado alto.
- Toma Ana! Acho que tens aqui o suficiente para poderes começar uma nova vida! – Maria surgiu na cozinha com um embrulho de pano verde atado nas pontas por um cordão. Ninguém reparara sequer que ela se tinha ausentado da mesa e os olhares curiosos depositavam-se no conteúdo que aquele embrulho traria.
- O que é isto, Maria? – Ana abriu o embrulho sem pressas e sem expectativas, mas quando visualizou o conteúdo os seus olhos arregalaram-se num misto de surpresa e gratidão… As lágrimas embrulhavam-se com os soluços num misto de reconhecimento por um gesto tão nobre de uma menina de onze anos capaz de um altruísmo desconhecido pelas gentes daquela terra. – Mas não posso aceitar. – Ana sabia que aquele era o dinheiro que ela poupava religiosamente há mais de uma ano proveniente dos seus trabalhos como modista.
- Onde é que foste arranjar este dinheiro? – Luzia levantou-se a arrancou o embrulho das mão de Ana. – Como é que tinhas este dinheiro todo? Luzia sentia uma fusão de desconfiança e medo da resposta que ouviria.
- É do meu trabalho! – José não pode deixar de sorrir, reconhecendo naquela pequena herdeira a sua própria altivez. O nariz empinado realçado pelas sardas que brilhavam um orgulho descarado e a linha fina dos seus finos lábios não se destorcia em intimidações.
- E que trabalho vem a ser esse? – Pergunta José mais divertido com a situação do que chateado. Ele confia cegamente nas filhas e conhece o carácter que ele ajudou a criar em cada uma das três. Mesmo na sua Ana ele não é capaz de a julgar, porque não é capaz de diminuir todo o ser de uma pessoa a um único acto.
- Eu faço chapéus… e tenho muitas clientes e senhoras de bom gosto que me encomendam. E eu faço-os… E elas pagam-me.
    Luzia deixa-se cair no banco assimilando aquela novidade. O estudo exagerado a que a filha se submetia fechada no quarto começava a fazer sentido. Qual estudo qual carapuça!
    Maria explicou a sua repulsa à vida do campo e mostrou de forma convincente que tinha arranjado uma alternativa rentável. Pediu e choramingou uma oportunidade que já estava dada desde o momento que ela mostrou o seu trabalho brilhante com a tiara de flores que segurou o véu de Glória. Os pais reconheceram-lhe todo o mérito e o abraço que partilharam com Maria fez desabrochar toda a união e apoio que se vivia dentro daquelas humildes paredes.

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