domingo, 11 de dezembro de 2011

CAPÍTULO XIII - Na Base da Montanha




   
    A barriga proeminente própria dos cinco meses de gestação partilhou a harmonia de uma ceia natalícia onde reinou a fé, a amizade, o amor, mas principalmente a lealdade. Porque o que une as relações humanas é a lealdade. Uma relação profissional desleal acaba. Uma amizade que engana termina. Um amor que mente magoa. A lealdade é o alicerce de qualquer tipo de relação. Não existe confiança onde a lealdade é inexistente, e não existe relação sem confiança. Aquela humilde família vítima de acusações e maledicências era abençoada com este nobre sentimento e protegiam-se uns aos outros sem oportunismos escondidos. Aqueles pais acarinhavam as suas três meninas sem esperarem falsos orgulhos que pudessem abanar e desfilar perante olhares alheios. Eles amavam desmedidamente sem cobranças ou desilusões. Simplesmente amavam… Amam…
    A mesa sustentava uma ceia rara naquela casa. As papas de aveia deram lugar a um guisado de carne acompanhado com batata assada. O arroz doce ainda fumegava e derretia-se dentro das bocas deixando o rasto do sabor da canela. As filhós davam o retoque final naquele banquete. Ao contrário do tradicional nenhum deles foi à missa do galo. O assunto nem foi comentado naquela família. Todos perceberam que cometeriam aquele pecado em conjunto para protegerem Ana de qualquer tipo de humilhação. Até Luzia parecia aceitar esta falha com uma certa normalidade. Para compensarem rezaram em conjunto à imagem do Menino Jesus que tinham num Altar que fazia lembrar uma pirâmide onde se destacava a alvura das toalhas de linho que cobriam cada degrau e os napperons delineados de hábeis rendas. A imagem do Menino Jesus marcava a passagem de duas gerações, mas continuava a aquecer os corações daqueles que a adoravam. O corpo deitado com os bracinhos inclinados para um céu distante, os pés cruzados e uns olhos brilhantes que pareciam compreender a partilhar a mesma esperança daquela família. O altar enchia-se de laranjas e tangerinas que significavam as oferendas que Lhe faziam e neste cenário não podia falta a quadra que partilhava do mesmo aroma e numa só voz cantarolavam.
- Ó meu Menino Jesus,
   A sua capela cheira
   Cheira a cravos, cheira a rosas
   Cheira a flor de laranjeira!

- Que Deus abençoe a minha irmã Ana e o bebé! – Maria foi a primeira a verbalizar em voz alta o seu pedido. Todos interiorizaram aquelas palavras inocentes e rezaram para que essa prece se elevasse e se tornasse prioritária junto àquele Deus misericordioso.
- Eu peço a Deus que proteja e ampare a minha família como eles estão a fazer comigo neste momento em que tanto preciso. Peço a Deus que lhes estenda a mão e os eleve numa nobreza de sentimentos que só alguns são capazes. – Ana fechou os olhos e sentiu cada palavra que a sua garganta expulsava. – Rezo para que a minha irmã Glória usufrua da felicidade de um longo casamento com este marido bom que lhe colocaste no seu caminho. Rezo para que continues a iluminar a alma brilhante da minha irmã Maria para que ela siga a sua vocação e para que continue justa e bondosa nos seus actos. Rezo para que os meus pais não sofram descriminações por minha causa que ultrapassem as suas forças.
    A noite aquecida pelo forno a lenha que mantiveram aceso na cozinha manteve-se num ritmo caloroso e simpático sem ligar a tristezas ou sofrimentos antecipados. Estavam todos a despedirem-se de Ana que partiria no primeiro dia de Janeiro para a ilha da Terceira rumo a um futuro incerto. Ela inscrevera-se no exame de aferição para a escola do magistério, mas foi-lhe recusado fazer o exame da sua própria ilha devido à sua condição. Esta palavra ainda ensombrava as ideias de Ana… Condição… Era esta a palavra usada para se referirem à sua gravidez. Não era uma condição digna de exemplo a futuros alunos. Uma professora devia ser irrepreensível em todas as suas acções de modo a que os seus alunos a tomem por exemplo. Esta era a afirmação mais ridícula que já tinha ouvido. As crianças deviam olhar para o seu exemplo de frente e retirarem as suas próprias conclusões, só assim teriam capacidade de avaliar os seus próprios actos e consequências de forma consciente. Deviam saber avaliar os possíveis resultados das suas escolhas. Deviam aprender a enfrentar as consequências e deviam inspirar-se nela para verem que não são obrigadas a caírem num buraco negro que lhes sugará a alma e as forças sempre que agirem em desconformidade com as regras. E Ana não pode ter agido de forma tão errada. Ela não se arrepende de ter amado para além do entendimento superficial do amor. De se ter entregado sem perspectivas ou cobranças. Sem esperar ser recompensada por isso, porque amar desmesuradamente é entregar sem esperar nada em troca e ela sabia que era capaz de tal acto. E todos queriam fazê-la acreditar que estava a ser castigada por isso. Como poderia acreditar em semelhante coisa, se foi neste exacto momento que mais se sentiu amada e amparada pela sua família. Foi nesta circunstância que ela percebeu que o amor que os seus lhe dispensavam era incomensurável. E foi nesta loucura que Deus a abençoou com uma criança que ela tanto desejava. A vida é feita de contrastes e balanços. Para possuirmos o benefício de uma felicidade plena, temos de ter a capacidade de a contrabalançar com algum sofrimento, mas só depende de cada um dar mais importância ao momento de felicidade ou ao sofrimento que a vida teve que impor para manter a ordem das coisas.
    Os dias finais daquele ano passaram-se sem que Ana saísse de casa ou recebessem qualquer visita. Fora daquelas paredes só os pais e irmãs eram alvo de olhares de soslaio e de comentários murmurados. Ana sabia que estava a ser poupada a semelhantes constrangimentos, mas mesmo fechada ela sabia… Ela sentia as malícias. Ouviu os pais comentarem que o marido de Glória se metera numa briga na Voz do Campo para a defender de comentários perversos. Sabia que a tia Espirito Santo inventara uma desculpa para dissimular o parentesco que a unia à família. Os vizinhos partiam para o mato sem esperarem pelo pai como era costume fazerem. Mas o que mais a magoava era o silêncio de Francisco… Nunca mais ouve uma palavra um bilhete um sinal. Ele pô-la fora da sua vida e fechou-lhe a porta na cara, sem uma justificação ou uma esperança. Ana ainda sentia uma pontada de desilusão e mágoa da rejeição, mas no seu íntimo sabia que a longo prazo ela seria a beneficiada. Ela usufruiria sozinha do fruto daquela relação e Francisco ficaria privado do seu próprio filho, e só Deus sabia o peso que a sua consciência carregaria quando o desejo de disfrutar daquilo que ela desfrutará um dia, lhe cair sobre a memória e atemorizar-lhe o arrependimento.
    A última noite naquela casa suportava a saudade antecipada e o tempo parecia curto para absorver todas as palavras, olhares, e gestos que lhes seriam negados nos próximos meses. Glória passaria aquela noite na casa dos Ferreira com o marido de forma que não conseguia afastar a sua mão da irmã. Roçava os seus dedos pálidos nos braços de Ana e acariciava-lhe a barriga constantemente. Maria refugiava-se no ângulo do cotovelo de Ana e enterrava o seu nariz entre o peito e a barriga da irmã tentando reter o cheiro que tanta falta lhe faria. Luzia confirmava e reconfirmava as malas da filha garantindo que não lhe faltava nada, mas os olhos enublados não lhe facilitavam o trabalho. José tentava inalar um pouco de ar forçando aquela garganta que teimava em fechar-se. Ele admirava a filha, a força interior de que ela dispunha naturalmente, a justiça nos seus actos e o discernimento das suas decisões. Ela enfrentaria um futuro incerto sem garantias de sucesso, sem facilidades ou facilitismos, apenas com um punhado de desejos e um lar para onde poderá sempre voltar. José já sentia orgulho naquela menina mulher que de queixo erguido iria enfrentar sozinha novas oportunidades e novas derrotas, mas no seu íntimo José sabia que se havia alguém neste mundo capaz de conseguir algo positivo de uma situação desastrosa, esse alguém seria a sua filha Ana. Deus só coloca problemas na medida da capacidade de quem os deve resolver. Cabe a cada um saber lidar com essa dificuldade e conseguir uma nova situação mais confortável e fortalecida.
- Vinha um coelhinho
   Da roça a passear
   Encontrou uma coelhinha
   Com quem logo quis casar
   Minha querida minha doce
   Minha linda coelhinha
   Vim falar-te de amor
    Com intenção de seres minha…
    Maria já dormia sob o efeito da voz de Ana que lhe contava pela última vez ladainhas sussurradas para embalar a irmã. Ana deixou que os seus olhos se fechassem e sonhassem com um futuro promissor contrário a todas as previsões que mentes limitadas pudessem intuir.
    Quando o dia amanheceu, o frio foi o primeiro sinal físico que Ana sentiu e só depois o beijo carinhoso de Maria que a mirava com uns olhos inchados e vermelhos denunciadores de algum tempo de sofrimento. O momento da despedida começara e Ana sentiu um aperto no ventre. A criança que transportava mexia-se fazendo com que a sua barriga ondulasse provocando uma gargalhada nervosa nas duas irmãs. Aquela criança era uma dádiva naquela família e ninguém se atrevia sequer a sentir o contrário.
    As primeiras rotinas fizeram-se num silêncio penoso que carregava preocupações e expectativas, desejos e receios. Ana despediu-se de cada divisão da casa e com uns olhos secos de sofrimento que contrariavam o coração. Saiu para o pátio de terra batida absorvendo pela última vez o terreno dianteiro onde o milho verde lhe acenava. Glória chegou mesmo na altura em que fechavam o portão exterior.
    Foram todos na velha camioneta. Ana sentia-se grata pela família que Deus lhe tinha dado. Contaram-se história, recordaram-se momentos que não precisavam de ser verbalizados para evitar o seu esquecimento. Discutiram vivamente o futuro de Maria, concordando em uníssono que não passava pelo trabalho duro da terra. Maria descrevia-se como uma futura mulher independente que abusaria do batom, provocando uma gargalhada geral, mal entendida pelos restantes passageiros que miravam com um desdém maldoso aquela família pouco resignada á vergonha que os assombrava.
    O cais borbulhava uma vida colorida em passagens apressadas de encomendas de última hora, os últimos conselhos e os últimos abraços sentidos. O barco de Ana já se encontrava atracado, mas o embarque ainda tardava. Luzia afagava-lhe o rosto como se o quisesse memorizar para além do olhar. José sentia uma dormência nos olhos e um aperto na garganta por saber que estava abrir mão da sua menina. Maria e Glória apoderaram-se de cada braço da irmã e falavam as duas ao mesmo tempo, arrancando promessas de cartas frequentes e uma visita no Verão. João mantinha-se ao lado da esposa apoiando a cunhada prenha e solteira sem vergonhas e com um orgulho próprio por fazer parte daquele pequeno mundo familiar. Ana recebia aquelas atenções sem embaraços aproveitando todas elas como forma de compensar os próximos meses. Os seus olhos passeavam de cara em cara recolhendo o máximo de memórias para seu consolo futuro, quando pousaram ao acaso na figura de Francisco. Ele continuava alto e com uma aspecto poderoso envergando um fato impecavelmente vincado, coberto por um sobretudo muito sofisticado que lhe caia de uma forma agradavelmente desleixada. Ana sentiu que o seu coração parava. O seu ventre deu um salto ao reconhecer o progenitor. Ele estava acompanhado por uma mulher alta e esguia de cabelo preto lustroso curto que lhe emoldurava uma cara redonda e atrevida. Trocavam pequenas carícias dando-lhes um toque casual. Aquela mulher transpirava um ar citadino e sofisticado com o qual Ana não podia competir. Envergava uma camisola justa que lhe evidenciava uns seios redondos e promissores que se esvaiam numa cintura fina. A saia favorecia-lhe a curva das ancas e tronava-a mais esguia com umas curvas perfeitas. A maquiagem tornava-lhe os seus traços doces e perfeitos como se fosse uma boneca de porcelana. Agora percebia de uma forma cruel que não tinha significado nada para Francisco. Ela era apenas uma conquista interessante, que lhe causou a adrenalina da caça.
- Estás bem Ana? – Glória percebeu o motivo daquele olhar longínquo.
- Estou! Não te preocupes!
- Aquele filho-da-mão! Eu havia de lá ir e obrigá-lo a ter alguma dignidade nas ventas. – José sentia a raiva fervilhar-lhe nas veias. A filha cometeu um erro e está a pagar um preço cruel. Aquele canalha cometeu o mesmo erro e anda a namoriscar com uma bisca qualquer.
- Tem calma pai! Este é um momento nosso. Não vamos estragar a nossa despedida! – Ana tentava transmitir uma tranquilidade que não sentia. Neste exacto momento sentia-se principalmente humilhada. Mas queria aproveitar os últimos minutos com aqueles que verdadeiramente lhe interessam.
    Maria lia indignação no olhar de todos quando miravam de soslaio Francisco. Sabia que todos tinham vontade de o magoar de alguma forma, mas eram adultos e tinham de ser ponderados. Mas ela era apenas uma criancinha. E as criancinhas podem fazer coisas que os adultos não podem… Afinal são apenas crianças. E com esta razão do seu lado, Maria dirigiu-se ao jovem médico sem que a família percebesse a sua falta e puxou-lhe suavemente a manga do sobretudo. Francisco desviou o olhar por cima do seu ombro e a primeira sensação que teve foi a imagem de Ana nos seus olhos. O aperto que sentiu no peito fê-lo apertar o colarinho da camisa. E antes que a sua mente pudesse desenvolver mais alguma ideia, Francisco deparou-se com a segunda sensação. Uma dor aguda na canela resultante de um pontapé demasiado certeiro para uma miúda de onze anos que neste momento corria a sorrir de prazer para junto da irmã. Maria sentia-se vingada.
    Francisco não conseguia desviar os olhos de Ana. E sentiu um pouco de desilusão ao ver que ela não estava com um ar de sofrimento. Este era um pensamento egoísta, mas magoava-o muito pensar que ela já não sofria por ele. A barriga dela era exibida descaradamente e acertou-lhe como uma flecha. Ela era forte e determinada, o tipo de mulher que não se rendia facilmente, com um riso fácil que lhe atingia a alma. E ele sentia saudades dela. Sentia tantas saudades dela. Porque é que as coisas não eram simples? Porque é que as pessoas tinham de julgar tão facilmente? Ele sabia que era a sua reputação que estava em jogo e na altura não podia arriscar. Mas talvez as pessoas pudessem ver as coisas de forma diferente. Se ele fizesse parecer um acto heróico da sua parte, munido por um grande amor, as pessoas talvez se rendessem a uma linda história de amor e ainda sairia com a sua imagem reforçada… Para além de poder ficar com a sua Ana. Num impulso provocado por esta corrente de esperanças, Francisco dirigiu-se ao seu futuro num passo determinado.
- Ana! – Francisco sentiu que a emoção de a ter ali tão perto de si lhe transtornava as ideias. O seu olhar continuava quente, e ela mordiscava o lábio inferior de uma forma ingenuamente sedutora. – Posso falar contigo?
- Eu tenho um barco para apanhar e estou a despedir-me da minha família! – Ana foi mais dura do que imaginou que conseguiria e sentiu um formigueiro de trinfo invadir-lhe as entranhas quando viu um brilho de espanto e receio traspassar o olhar de Francisco.
- Como assim? Vais ao Faial? – Francisco começou a sentir o seu coração acelerar o ritmo cardíaco de uma forma louca e as suas mãos ficaram dormentes.
- Não! Vou mudar-me para a Terceira! – Ana sorriu-lhe condescendentemente. Francisco agarrou-lhe os braços com uma força excessiva e deixou que o medo se reflectisse sem vergonha nos seus olhos baços e lacrimejantes.
- Não podes! Não quero que vás!
- Estás a ser ridículo Francisco! – Ana começava a não sentir-se tão segura, mas tinha de ser forte. Ela não quer um futuro com uma pessoa fraca que vive em função dos pensamentos e julgamentos alheios. Ela quer alguém que olhe para ela e que esqueça o resto do mundo. Ela quer alguém capaz de enfrentar a humanidade para defendê-la. Ela quer alguém que viva para ela em primeiro lugar e que disfrute do resto do mundo ao seu lado. Se Francisco fosse capaz disso… então ela não hesitaria.
- Por favor não vás Ana! Eu imploro-te! – Francisco deixou que o desespero rolasse pelas suas faces e a voz apertada se soltasse. – Fica comigo Ana. Vamos enfrentar isto juntos! Eu já pensei em tudo! Eu achava que as pessoas iam julgar-me apontar-me o dedo, mas podemos transformar isto numa história de amor. Vamos derreter os corações destas gentes com a nossa história e depois todos vão aceitar a nossa relação… Para mim é mais do que claro que tu me mereces… Que estás à altura de alguém como eu, independentemente do que os outros dizem…
    Aquelas palavras magoaram mais Ana do que todas as atitudes ou falta delas até àquele momento. Ana encheu o peito e mostrou uma dignidade que ficou gravada na memória, no coração, na alma de Francisco…
- Largue-me doutor Francisco! – Francisco deixou cair as mãos alheio às nódoas negras que deixara impressas nos braços de Ana. – Tu estás equivocado nesse teu raciocínio. Não sou eu que não estou à tua altura. És tu que não me mereces. – Francisco levou algum tempo a processar aquelas palavras. Ana pegou-lhe na mão a pousou-a sobre a sua barriga. A resposta àquele toque foi um pequeno pontapé, como se tivesse reconhecido o progenitor.
- Apresento-te o meu filho! Aquele que tu ajudaste a gerar! – Ana afastou novamente a mão de Francisco E abraçou-o sem remorsos. Afinal ele não era o culpado. Ele amava-a e ela sabia que sim, mas se uma forma que não servia na vida dela. Francisco apertou Ana nos braços sem perceber bem o que se estava a passar, até ao momento em que Ana lhe sussurrou ao ouvido.
- Adeus Francisco! Eu amo-te, mas tu és demasiado fraco para mim…
    Francisco sentiu o seu mundo ruir e a dor do entendimento instalou-se desconfortavelmente no seu peito. Os seus olhos não se desviaram daquela criatura que tinha movido os alicerces da sua vida enquanto ela se despedia de uma família humilde que a apoiava com uma capacidade superior que ele não soubera ter. Ana subiu para o barco e debruçou-se acenando pela última vez àqueles que ela amava. Francisco não desviou o olhar na esperança de merecer um último aceno que não lhe foi dedicado.

Sem comentários:

Enviar um comentário