domingo, 30 de outubro de 2011

CAPÍTULO VIII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO VIII
    O quotidiano da terra sobrepôs-se à alegria das festividades, e as rotinas garantidoras de uma sobrevivência digna numa ilha acabou por se instalar com a mesma naturalidade com que uma aranha aceita outro insecto na sua teia. O calor era suportável, mas a junção deste com a humidade faziam os corpos transpirarem um melaço peganhento que se agarrava descaradamente à pele daquelas gentes. Glória preparava o casamento tão desejado pelos noivos e trabalhado pelos restantes membros da família, que alimentavam o porco destinado a alimentar os convidados daquele dia.
- Estou tão feliz! – Glória tentava contagiar a amiga cada vez mais debilitada pela falta de alimento.
- Nem imaginas como eu te desejo toda a felicidade do mundo! – Fátima falava por entre um murmúrio libertado pelos lábios descarnados.
- Quero muito que estejas presente Fátima! – Glória agarra uma mão inerte e murcha e fixa aqueles olhos encovados numa face demasiado magra com um olhar esperançado. – Tu sabes que só será o dia perfeito para mim se fores tu a minha madrinha. Fizemos esta promessa quando começamos a pensar em rapazes, lembras-te?
    Fátima sorriu e soube que o momento de reencontrar o seu Manel teria de esperar mais um pouco. Este sonho que se realizaria com a sua morte foi imediatamente adiado em detrimento dos desejos da sua amiga. Pensando nisto Fátima não conseguiu evitar um sorriso. Parece irónico. Ela deseja de uma forma incomensurável deixar esta vida, as pessoas que lhe são próximas, e no entanto está a agir contra o seu desejo para dar uma alegria exactamente a uma dessas pessoas que ela pretende abandonar. Analisando friamente é este o cenário, mas a verdade é que os actos humanos acarretam cenários que nunca são tão simples ou fáceis. Cada acto humano transporta o peso das emoções dos impulsos dos raciocínios ou da falta deles... E este é um acto de amor, porque a base de uma amizade séria é o amor. Aquele amor que não tem vergonha de ser apregoado. Aquele amor que partilha tristezas, alegrias, sorrisos e confidências. Aquele amor que serve de alicerce a qualquer tipo de relação sincera. Porque sentir amizade por alguém é amar, e amar é usar de actos que intuem a felicidade do outro sem que isto signifique qualquer esforço caprichoso. E Fátima queria um último acto de amizade para com a sua amiga tão amada Glória...
Glória estava diferente. Ela sentia-se diferente. Aprendera que a sua personalidade frágil e quase apática é capaz de se evidenciar e sobrepor-se quando levada ao limite. Em cada visita semanal que tem feito a Fátima sente este novo sentimento de vitória e de imposição sedimentar-se. A D. Alice parece-lhe a cada nova visita mais pequena e insignificante, contrariando a altivez da jovem noiva. E a sensação de vitória é como a cafeína, quando ingerida nas doses certas revitaliza a alma e o corpo.
- Claro que vou! Já só faltam duas semanas... – Fátima sorri um sorriso malandro. – Dizes-me que vou ser madrinha apenas a alguns dias do casamento... Tens medo que tenha tempo de arranjar um vestido mais bonito do que o teu... – As raparigas riem gargalhadas diferentes.
De volta a casa, Glória encontra em cima da cama a pequena tera com um veu comprido comprido delineado por uma bainha de cetim branco. Glória sente um par de lágrimas rolarem-lhe pela face. É um trabalho moroso feito pela irmã mais nova e que reflecte o afecto que une as três irmãs. Glória chora um choro calmo e sentido. Não é tristeza, mas também não se trata de felicidade... Ou talvez sejam ambos os sentimentos. Um passo em frente na nossa vida significa sempre ficar mais próximo de um objectivo, mas mais distante de um apego. E o casamento é um passo demasiado comprido que a faz chegar a uma nova etapa da sua vida e afastar-se de outra etapa que lhe é tão querida. É verdade que a famíla caminha ao nosso lado durante toda a nossa vida... Mas existem várias formas de caminhar. Até aqui ela caminhou no mesmo caminho que os pais e as irmãs... Apartir daqui caminharão caminhos paralelos sem nunca se perderem de vista... Mas nunca mais será o mesmo caminho...
- Glória! Oh Glória! – Luzia entra no quarto das filhas com um olhar transtornado. Os cabelos mal apanhados arrepiavam-se fugindo da prisão dos ganchos partilhando o mesmo desalinho.
- O que se passa mãe? – Glória corre ao encontro da mãe que assim que a vê se deixa cair num banco da cozinha e desata num pranto.
- Eu vou fazer-te uma pergunta filha e não me mintas! – Luzia fixou o rosto de Glória concentrando-se em sinais que demonstrassem uma contradição às palavras que a filha pronunciaria. – A Tia Espirito Santo disse-me que corre á boca pequena na vila que a Fátima está a desfalecer de tristeza e que a culpa é da tua irmã… O que sabes tu desta história?
Os lábios de Luzia fecharam-se numa linha dura que acompanhava o olhar. O seu rosto conhecidamente alegre parecia talhado numa rocha cinzenta e Glória perante esta mãe desconhecida não sentiu abertura para rodeios.
- A nossa Ana apaixonou-se pelo filho do médico da vila, o Francisco.
- Ela quer matar-nos de vergonha? Mas que raio é que essa rapariga tem na cabeça? O rapaz tem uma noiva…
- Oh mãe! Acalma-te! – Glória rodou os ombros da mãe com os seus braços pálidos e embalou-lhe a desilusão. – Eu sei que estás desiludida com a Ana. Eu sei que a tua alma chora. Mas como uma família unida que nós somos é altura de formarmos um muro impenetrável à volta da Ana. Ela vai precisar de todo o nosso apoio e defesa para enfrentar o que aí vem. Ela não escolheu um caminho árduo porque gosta de sofrer… Ela apaixonou-se. E o Francisco retribui-lhe este sentimento.
- Ai Glória! Eu sempre rezei a Deus para que as minhas filhas tivessem uma vida humilde sem grandes sobressaltos e que soubessem viver das pequenas alegrias do dia-a-dia. As alegrias grandiosas têm preços muito altos…
As duas mulheres abraçaram-se e choraram tudo o que aquela situação merecia naquele momento, porque a partir daquele momento não haveria mais lugar para lamentações. José encostado à soleira da porta assistiu àquela conversa na sombra e partilhou daquelas lágrimas que anteviam as dificuldades de uma filha tão amada. Mas para além deste pronúncio de dias difíceis, José também chorou de gratidão pela família maravilhosa que Deus lhe tinha entregado sem que ele a tivesse escolhido.
- José! Não te senti chegar! – Luzia olhou o marido com um olhar de pedinte procurando uma gesto de apoio à decisão que acabava de tomar. Ela enfrentará tudo o que se insurgir contra a sua Ana e defenderá a sua cria como uma leoa.
José abriu os seus longos braços demasiado morenos e acolheu as duas mulheres reforçando a união daquela humilde família.
- Na vila a nossa Ana é uma víbora insensível. – José queria as cartas em cima da mesa. A partir deste momento não queria meias palavras ou falsos entendimentos. Se estavam unidos para proteger Ana, então teriam de falar no assunto abertamente. – Aqui na freguesia já começo a notar uns olhares de soslaio que deixam transparecer rancor.
- Mas a Ana não tem culpa! – Glória defendia a irmã sempre que sentia que lhe estavam a apontar o dedo.
- Eu não estou a culpar ninguém. Estou a mostrar-vos a situação tal como ela se apresenta. As pessoas são cruéis. Muito cruéis e apontar o dedo é uma ocupação preferencial das nossas gentes. Estão preparadas para os sussurros e olhares de soslaio de que vamos ser alvo a partir deste momento?
O sim uníssono surgiu a três vozes femininas sem nenhuma réstia trémula, com a segurança dos audazes. Maria juntara-se à reunião e sentia o sangue fervilhar-lhe dentro das veias numa inquietação que previa uns pares de estalos a quem se atrevesse falar mal da irmã.
O entendimento mutuo que saíra daquela cozinha ficou entrenhado na alma dos presentes e a precepção de que o casamento de Glória poderia não contar com todos os convidados foi intuido por todos, mas pronunciado por nenhum. Glória não se sentia melindrada com esse facto. Quem fizesse questão de presenciar o seu casamento sem vergonha e de a acompanhar naquele momento feliz da sua vida é porque realmente lhe interessava como pessoa. Quem não marcasse presença, então é porque não estava ali a fazer nada. Os momentos dificeis são o melhor coador de afinidades que existe.

O dia do casamento chegou numa premonição boa transmitida por um sol radiante sustendo-se numa felicidade tão brilhante que se espalhava pelo céu não premitindo a entrada de nuvens desagradáveis naquele cenário. Assim era o casamento de Glória. As pessoas mesquinhas que haviam tido a pertinência de avançar com juízos de valor não estavam presentes. E tal como acontece aos leais, foram premiados pela sua presença com a imagem fantástica de Fátima a suposta noiva enganada e eferma com o desgosto, no altar ao lado de Glória abençoando junto com as divindades aquela união. Os olhares pasmaram perante tal facto, mas como naquela igreja pouco cheia não havia lugar a olhares maldosos, os convidados congratularam-se por não se terem enganado na confiança que depositavam naquela familia.
A missa de casamento emocionou todos quando Glória no fim da cerimónio se apoderou do púlpito e pediu a atenção dos presentes.
- Quero agradecer a todos os presentes! Sei que os que se atreveram a vir a esta cerimónio são os verdadeiros amigos da minha familia. Fico-vos eternamente grata por não nos terem virado as costas e por partilharem este momento tão importante da minha vida. Quero também agradecer à minha amiga Fátima o facto de estar aqui presente e de ser a minha madrinha de casamento.
Face ao abraço apertado das duas amigas a plateia emocionou-se e explodiu num aplauso nunca antes atrevido na casa de Deus.
- Isto é uma família de gente boa! – A tia Espirito Santo falava para a senhora do lado. – Eram incapazes de fazer mal a alguém…
- Também acho! Eu e o meu Joaquim nunca acreditamos nessa história da filha dos Ferreira querer roubar o noivo da outra pequena. É uma história muito mal contada… - A mulher baixa e redonda que fazia conversa com a tia Espírito Santo adoptou o seu ar coscuvilheiro e continuou. – Mas tens de concordar que é estranho os pais da menina Fátima não estarem presentes. Dizem que eles foram contra o facto de a rapariga ser madrinha da Glória.
- Sabes o que te digo mulher de Deus! Se as pessoas se preocupassem mais com o que se passa dentro das suas próprias paredes havia mais gente feliz… - Filomena, uma mulher prática e pouco bonita arrematou aquele diálogo que se adivinhava tornar-se maldoso. Ela própria era viúva de dois falecidos maridos e tinha o terceiro muito doente em casa. Sabia bem os prejuízos da maledicência num meio pequeno. As pessoas sabiam lá o que ela sofrera com cada uma dessas perdas. As pessoas imaginavam lá o que é antever um futuro sozinha sem um companheiro para partilhar as dores e alegrias. Podiam chamar-lhe ave de mau agoiro. Podiam acusar-lhe de matar maridos por um motivo obscuro qualquer. Mas não sabiam o que se passava de verdade dentro da sua alma. A verdade era bem mais simples do que os sussurros maldosos que lhe rondavam a reputação. Ela tinha uma sorte muito rara num meio mesquinho daqueles. Deus dera-lhe três maridos que a trataram como uma rainha com todo o respeito e amor que se podia desejar numa relação. Mas o custo destas alegrias residia na durabilidade de cada um dos homens da sua vida. Se ela tivesse tido apenas um marido que a tratasse mal, a batesse e se embebedasse como um homem a sério, ela seria então considerada uma santa senhora… Estas são as hipocrisias das mentes pequenas.
Os festejos prosseguiram num almoço animado na voz do campo. Ana sentou-se ao lado de Fátima conversando animadamente causando primeiro alguns sussurros e depois alguns alívios.
- Fátima! – Ana queria abrir-se com Fátima. Ela merecia a sua sinceridade total. – Eu queria abordar um assunto delicado contigo.
- Eu sei Ana! Vamos ter de falar acerca do Francisco.
- Sabes que nos temos encontrado algumas vezes?
- Eu sei que vocês nutrem sentimentos que são correspondidos… e nem imaginas como vos invejo.
Ana sentiu um nó na garganta. Será possível que ela esteja mesmo a sofrer por amor a Francisco? O peso da traição que sentiu assentar-lhe no peito era impossível de ser transportado.
- Basta uma palavra tua Fátima e eu afasto-me…
- Não sejas tola! O que eu quero dizer é que tenho saudades do tempo em que eu me sentia capaz de enfrentar qualquer dificuldade apenas em troca de uns momentos escapados a olhares indiscretos com o meu Manel.
- Pois! A Glória contou-me a tua história!
- E fez muito bem! Eu devia ter tido coragem para a ter contado quando o meu Manel ainda era vivo. Devia ter enfrentado todos os olhares maldosos que se atrevessem a julgar a minha felicidade ao lado de um pobre diabo. Devia ter erguido a cabeça e ter passeado de mãos dadas com o Manel por entre os sussurros que se atrevessem a criticar a moralidade desse acto. Devia tê-lo apresentado aos meus pais e jantado com ele utilizando as porcelanas da Dona Alice. Devia ter apregoado ao mundo numa voz muito mais alta do que a criticas que amava um pobre baleeiro que cheirava a peixe e que não sabia sequer ler nem escrever… - Fátima pegou na mão de Ana sem nunca olhá-la. – Sabes Ana, o mundo é muito mais cruel com os cumpridores do que com os corajosos…
- Obrigada Fátima, pelas tuas palavras.
- Eu dou-te a minha bênção para o teu namoro com o Francisco. Só gostava de ter a oportunidade de vê-lo para libertá-lo deste vínculo invisível que o liga a mim…
- Nem imaginas como me estás a fazer feliz neste exacto momento Fátima.
Ana abraçou a rapariga que a afastou num gesto que intuía a não aceitação daquele afecto.
- Não me agradeças já! Eu vou ser a tua desgraça nesta ilha Ana! E nem imaginas como lamento isso…
- Não te estou a perceber…
- Eu sou vigiada 24 horas por dia! Não vou ter a liberdade necessária para terminar este noivado com a celeridade que mereceria e que permita um tempo suficientemente digno para que possas comprometer-te com o meu actual noivo.
- Continuo sem perceber Fátima!
- Eu vou deixar esta vida em breve para poder encontrar a minha própria felicidade… Não vou poder terminar o noivado da forma conveniente. Não te vais tornar noiva de uma forma digna aos olhos desta terra… Estás preparada para o que aí vem?
Ana percebeu o que Fátima lhe estava a transmitir naquelas palavras muito sábias e visionárias. Mas o que lhe entristeceu naquele exacto momento não foi a notícia das dificuldades que passaria para ficar com o seu Francisco, mas o anúncio da morte prematura da amiga. Os seus olhos tristes animaram-se um pouco ao fixarem a felicidade da irmã mais velha rodopiando nos braços do marido trocando sussurros eternos, partilhando gestos comuns e sorrindo em uníssono numa promessa duradoura.

Sem comentários:

Enviar um comentário