domingo, 23 de outubro de 2011

CAPÍTULO VII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO VII


   Afinal foram as três irmãs dentro da velha camioneta a caminho da vila das Lajes para visitarem Fátima. Nenhuma delas apreciava a viagem lenta que parava em cada freguesia renovando o número de passageiros a cada dez minutos. As raparigas desceram na última paragem da urbana, junto à Igreja da Matriz. Os vinte minutos de distância que levaram a chegar a casa de Fátima foi feito num silêncio absoluto. Paradas em frente à porta de madeira pintada de verde e recortada por pesadas pedras de basalto escuro que contrastava com o branco imaculado das paredes. Glória levou uns minutos até levantar a mão trémula e bater naquele badalo dourado demasiado ornamentado para uma aldeia de baleeiros.
    A surpresa de Alice ao deparar-se com aquelas irmãs devassas à sua porta foi imediatamente substituída por um ar imponente a ameaçador.
    - Que surpresa meninas! A que se deve esta visita? – Alice manteve a porta a meio caminho vigiando apenas por uma fresta.     
    - Bom dia D. Alice. – Respondeu Glória com uma calma disfarçada. – Viemos à vila comprar uma bilhas e uns açafates novos que os nossos perderam-se nas festas, sabe como é...
    - Não, não sei... Infelizmente não há disposições para festas nesta casa.
    - Pois! Nós queríamos ver a Fátima. Estamos muito preocupadas. Nunca mais soubemos nada dela...
    - Ela está na mesma. Continua doente. Deve ser ansiedade do casamento. – E num gesto que intuía uma despedida breve começou a fechar a porta despedindo-se – Infelizmente ela está agora a dormir, mas fiquem descansadas que eu digo-lhes que estiveram cá.
    Maria indignada com aquela recepção forçou o seu corpo entalando-o entre a porta de modo a assegurar-se de que ela não era fechada.
    - Eu gostava muito de lhe deixar um desenho. Talvez a D. Alice tenha a gentileza de me emprestar um lápis e um papel. – Maria deixou deslumbrar o seu melhor sorriso acompanhado por um piscar de olhos inocentes que provocaram um arrepio de raiva pela espinha acima da dona da casa que culminou num ruborizar de bochechas e num faiscar de olhos.
    E antes que aquela bruxa inventasse outra desculpa, Maria forçou a entrada e fez-se de convidada.
    - Ah! D. Alice tem a casa sempre tão riquinha. Até dá gosto, vê-se que é muito primada. Oxalá a Fátima tenha saído a si... – Maria tentava fazer conversa com aquela mulher impenetrável de modo a que ela baixasse as defesas e as irmãs encontrassem uma oportunidade de deixar alguma mensagem a Fátima. – O Doutor Francisco é um homem de sorte...
    - Tirem-se quaisquer dúvidas disso. A minha Fátima vai fazê-lo muito feliz. – Responde Alice impondo ordem em qualquer intenção duvidosa que pudesse vir daquele trio.
    Maria percebendo que não podia contar com a ajuda das irmãs que se limitavam a segui-la atónitas continuou a conversa.
    - Vai ser o casamento do ano. Não se fala de outra coisa. Eu já tenho pelo menos meia dúzia de encomendas de chapéus para essa data. Já fizeram o vestido da noiva?
    - Já está encomendado. A Fátima já fez duas provas antes de adoecer. Agora talvez vá precisar de uns ajustes uma vez que aquela rapariga está a emagrecer a olhos vistos.
    Sentia-se que a D. Alice começava a desanuviar. A conversa dos preparativos do casamento fizeram-na baixar armas, o que foi muito inteligente da parte da Maria. Glória estava tão aparvalhada com a atitude da irmã mais nova que parecia ter o cérebro parado. Foi Ana a primeira a sair daquele estado de transe.
    - Eu quero que a D. Alice saiba que nós só queremos o que é melhor para a Fátima. E se a Fátima deposita todas as suas convicções no casamento, então tem todas as nossas preces nesse sentido. – Alice sentiu um misto de alívio e desconfiança. Talvez aquela batalha estivesse ganha...
    Maria conseguiu o pedaço de papel e o lápis pretendidos. Dividiu a folha em dois. Numa das folhas desenhou um cachalote a mergulhar, com vários botes a fazer mira para o animal. Homens minúsculos de arpão apontado envergavam peitos cheios de ar e orgulho enquanto os botes balouçavam ferozmente num mar irrequieto. Estava um cenário montado à espera de uma desgraça que o desenho deixava antever. Na segunda folha, Maria deixou um recado escrito à pressa:
“ Deixa a tua janela aberta. Vais receber uma visita importante.
                                                                  Maria Ferreira, irmã da Glória”
   
    - Pronto já acabei o desenho D. Alice. Vou só enfiá-lo debaixo da porta. – E dito isto a pequena levantou-se e dirigiu-se à porta do quarto sob o olhar atento da D. Alice. Maria adoptou um passo lento mas firme dando ao momento um certo dramatismo. Passou em frente ao sofá de pele vermelho escuro onde estavam sentadas as duas irmãs piscando-lhes o olho. Roçou levemente a beira da saia preta demasiado rodada da D. Alice que se encontrava encostada à porta do quarto guardando descaradamente a porta. Mostrou o desenho à D. Alice recebendo em troca um aceno de cabeça e um inspirar mais profundo transparecendo alívio por se tratar efectivamente de um desenho. Dobrou cuidadosamente a folha e num gesto quase gracioso baixou-se e enfiou o papel debaixo da porta.
    Seguiu-se uma despedida desajeitada e quase embaraçosa conduzida pela personagem mais jovem daquele elenco. Assim que as três irmãs sentiram a porta bater nas suas costas respiraram de alívio mas não diminuíram a passada, parando apenas no adro largo da igreja onde se encostaram ao muro de pedra escuro.
    - Mas que situação mais estranha! Agora que estou mais calma é que percebo que saímos tal como entramos, sem saber de nada... – Ana deixou cair os braços sobre o corpo num gesto de impotência.
    - Jesus Cristo nos valha! Que a situação é pior do que esperávamos. O que é que devemos fazer agora? – Glória começava a mostrar desespero naquela voz que se esganiçava como se ela estivesse à beira das lágrimas.
    - Se o mundo dependesse do vosso desembaraço estaríamos todos condenados... – Maria esticou-se, encheu o peito, empinou o nariz e mostrou porque era a mais inteligente da família. – Neste exacto momento a Fátima deve estar a abrir uma fresta da janela e espera a nossa visita clandestina.
   As duas irmãs mais velhas trocaram um olhar confuso.
    - O que é que estás para aí a dizer? – Perguntou Glória desconfiada.
    - Estou a dizer que enquanto vocês duas gaguejavam e faziam figuras tristes eu meti debaixo da porta um bilhete juntamente com o desenho pedindo que a vossa amiga deixasse a janela aberta de modo a que pudéssemos lá entrar sem a D. Alice dar conta.
    Ana agarrou Maria pela cintura e fê-la rodar no ar. Rodaram tanto que acabaram por cair no meio de gargalhadas estridentes em cima dos quadrados escuros de basalto que formavam um tapete negro por entre o verde do relvado até à porta da igreja.
    - Tu és um geniozinho sua pirralha esperta – gritava Glória enquanto despenteava freneticamente os caracóis alinhados da pequena.
    Com uma nova esperança as três irmãs passearam pelas ruas da vila. Sentaram-se no porto da vila Lajes mirando a paisagem. Logo ali ao lado tinham a rampa larga onde os homens forçavam os longos e estreitos botes a entrarem no mar. Desciam a rampa fazendo os botes deslizarem água adentro e saltavam lá para dentro sem fazerem a embarcação vacilar. Os botes afastavam-se deixando à vista apenas uns longos pontos brancos. Do lado oposto espalhavam-se as casas dos pescadores e baleeiros com a escuridão e tristeza do basalto escondendo sempre uma perda próxima. Aquela população triste e sorridente, pesada e solidária encrostada na base daquela montanha imensa coberta por um verde-escuro assombroso no inverno e resplandecente no Verão ofereciam cumprimentos e acções quotidianas simples e vulgares quase felizes.
    Quando os três corações começaram a bater compassadamente e a mente se libertou do aperto, as três raparigas resolveram voltar à casa de Fátima. Subiram as escadas do balcão quase de gatas. No topo destas encolheram-se contra a parede e passaram por baixo da primeira janela. Um grito vindo do interior fez com que gelassem contento os movimentos e a respiração durante uns longos segundos. Quando se sentiram novamente seguras continuaram a deslizar pela parede até à quarta janela. Maria subiu o olhar muito a medo espreitando o interior do quarto. De repente saltou lá para dentro, correu para a porta trancando-a, voltou à janela e ajudou as irmãs a treparem lá para dentro. E finalmente suspirou de alívio.
    O quarto cheirava a jasmim e a doença. Os três pares de olhos pousaram no rosto pálido de Fátima retendo uma alegria invulgar num rosto tão descorado.
    - O que é que se passa contigo Fátima da minh’alma? – Glória foi a primeira a avançar para a amiga deixando-se cair de joelhos ao lado da cama e afagando os cabelos sem brilho da doente.
    Fátima deixou cair uma lágrima gorda que contrapunha o sorriso descarnado.
    - Vou ter com o meu Manel. E pela primeira vez, desde a sua morte estou feliz. – Enfrentando os soluços descarados de Glória e o tremer de lábios das outras irmãs, Fátima sentiu-se incompreendida – Não chorem. Esta é a minha forma de conseguir ser feliz e quero a vossa aprovação.
    - Chega desta mariquice! – Explodiu Maria expondo toda a sua indignação por alguém jovem, relativamente belo, muito inteligente e cheio de saúde, estar desta forma a fitar a morte numa atitude ingrata e até arrogante. – O que é que queres Fátima? Chamar a atenção? Pois bem, és detentora de toda a nossa atenção... Agora vou buscar comida e enfiá-la por essa goela abaixo ou não me chamo Maria Ferreira...
    E numa atitude autoritária dirigiu-se para a porta do quarto decidida a fazer o que havia acabado de prometer, quando um grito desesperado a petrificou. Todas as três arregalaram os olhos na direcção de Fátima, seguindo-se a intuição de que a D. Alice corria a passos pesados para o quarto. Sem trocarem palavras e num entendimento geral as três irmãs esconderam-se como puderam. Maria enfiou-se dentro do guarda-fato e a outras duas meteram-se atrás dos pesados cortinados. A porta abriu-se com uma ferocidade que fez estremecer cada corpo humano que aquele quarto de cama continha.
    - O que foi? Que grito foi este? Ai que me agonias!... – A D. Alice entrou no quarto e sentou-se na beira da cama de Fátima.
    - Eu não ouvi grito nenhum. – Respondeu Fátima com uma calma aparente.
    - Como assim não ouviste se o grito saiu daqui deste quarto?
    - Ai mãe! Se lhe estou a dizer que não ouvi nada...
    - Só falatava agora que me chamasses de doida. Eu sei o que ouvi! Não sou nenhhuma desregulada do juízo. – E com isto a D. Alice levantou-se e avaliou cada canto do quarto com um olhar demasiado atento. Parecendo satisfeita com o veredicto, a mulher encaminhou-se para a porta.
    - Vou buscar-te qualquer coisita para comeres, está bem? – Perguntou meio a medo.
    - Não tenho fome.
    - Vais ter de comer mais cedo ou mais tarde. Tenho uns inhames cozidos lá dentro... Devias comer um pouco.
    - Obrigada mãe, mas não tenho fome.
    O calor que a D. Alice sentiu nas entranhas traduziram-se um rubor furioso e num atirar de palavras.
    - O que é que tu queres de mim filha ingrata? Pára de te armares em doente. Isso pega com o teu pai que é um tanso, mas não pega comigo... – Enquanto gritava os braços abanavam-se como se se estivesse a afogar. – Eu sei bem que gozas da saúde de um touro. Estás a armar-te em menina mimada, mas isso não te vai levar a lado nenhum. Nem que tenha de voltar a dar-te umas palmadas nesse rabo escanzelado como quando eras garota... – E num levantar de mão austero de quem se prepara para transformar em acções as sua palavras, a D. Alice enche o peito de ar elevando o máximo possivel o punho direito deixando-o descair com toda a sua força sobre o corpo frágil de Fátima. Aquele punho gordo e pesado é agarrado no ar por uma mão forte e pálida. Os olhares das duas mulheres encontram-se e detém-se um no outro por demasiado tempo. Os olhos da D. Alice estão esbugalhados de espanto e levam tempo a estreitarem-se num olhar ameçador. Glória mantém um olhar duro e demasiado escuro invulgar naquela cara jovem e conhecidamente feliz.
- Se volta a levantar a mão a Fátima, sou eu que acerto contas consigo sua bruxa oportunista... Malvada de uma figa... Diabos te levem velha maléfica... Eu juro que te parto em pedaços e dou-te de comer aos porcos... – As ameaças de Glória tornavam-se esganiçadas e terminaram repentinamente com um estalo barulhento que sentiu na sua face rebentando imediatamente o lábio inferior num rio de sangue que depressa se alastrou no colarinho de renda branca. Os olhos da rapariga deixaram de ser duros para brotarem em lágrimas de dor.
- Nunca mais tocas na minha irmã... – Maria saltou para as costas da D. Alice e agarrou-lhe os cabelos com uma força imprópria para uma menina da sua idade. Ana espantada com aquele cenário tardou a reagir puxando a irmã mais nova de cima da dona da casa enquanto a pequena endiabrada se rebolava e espernejava numa tentativa vã de se soltar.
    Ficaram uns segundos suspensos no ar em que todas se refizeram e organizaram pensamentos. Foi a D. Alice que rompeu aquele silêncio perturbador.
    - Vou chamar as autoridades e fazer queixa de vocês sua laparosas...
    - Não vai nada, porque senão nós dizemos a toda esta freguesia que você está a matar a sua filha aos poucos... – O olhar de Gloria brilhava de fúria enquanto os seus passos pequenos e firmes eram dados de forma intimidatória na direcção da senhora da casa. – Não se atreva a fazer queixa de nós, nem se atreva a maltratar a Fátima. A partir de hoje eu venho todos os dias visitar a minha amiga e espero que a porta me seja sempre aberta com recebimentos cordiais. – Agora Glória estava com a testa encostada à testa alta da D. Alice e sibilava em tom de ameaça. – Se não se portar bem a partir de agora, eu arranco-lhe os olhos. – Dito isto Glória endireitou-se deu um beijo de despedida a Fátima com um sorriso aberto como se aquela cena toda não se tivesse passado e prometeu-lhe visitá-la no dia seguinte.

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