sábado, 15 de outubro de 2011

CAPÍTULO VI - Na Base da Montanha

CAPÍTULO VI

    Os açafates de pão transbordavam massa sovada e rosquilhas que eram empilhados cuidadosamente em cima do carro de bois enfeitados com um mar de rosas. O arroz doce fumegante era pulverizado com canela em pó formando desenhos apelativos de coroas e pombas, símbolos típicos das festas do Senhor Espírito Santo. Quando o sol começou a raiar as mulheres reuniram-se no império e começaram a preparar as mesas de refeição para receber a freguesia inteira e mais umas dezenas de fora.
    A missa começou à hora certa e a plateia apresentava-se nos seus melhores trajes escondendo por debaixo daquela fachada de calma o reboliço do início do dia que continuava a pairar na mente dos responsáveis pelas sopas. O marido da tia Espírito Santo foi o coroado, pois era ele o mordomo do império daquele ano. Com os joelhos assentes num coxim de cetim vermelho, os olhos fixos nos sapatos do padre Inácio em sinal de respeito, aceitou a colocação da coroa de prata em cima do seu cabelo ralo permitindo assim que o Espírito Santo descesse sobre si.
    No final da missa, à porta da igreja começaram a formar a procissão. Esta era composta por três quadrados formados por quatro longas varas seguras nas pontas por quatro pares de mãos adolescentes. No centro do primeiro quadrado encontrava-se Ana com um vestido rodado cor salmão, uma meia de renda branca que teimava em cair sobre o tornozelo e uns sapatos pretos de camurça. Os braços deixavam demarcados o esforço dos músculos ao transportar o estandarte vermelho sangue com a imagem de uma grande pomba bordada a ouro. No segundo quadrado centravam-se as três meninas mais bem arranjadas da procissão. A menina do meio, a filha da tia Espírito Santo era a rainha e trajava um vestido de seda branco com uma capa comprida da mesma cor do estandarte cheia de bordados. Aquela capa demasiado pesada dava-lhe um ar de Drácula que contrastava com o aspecto angelical da coroa de prata transportada pela mesma rainha. De cada lado da rainha caminhavam as damas envergando vestidos mais singelos e transportando o prato e o ceptro. No último quadrado Glória transportava outro estandarte com o símbolo do Império da freguesia. Entre estas quadras, mãos pequeninas e inocentes faziam esvoaçar pétalas de rosas que marcavam o caminho do Senhor Espírito Santo.
    O percurso tornou-se demasiado longo para as duas irmãs que suportavam o peso dos estandartes, e demasiado curto para a prima rainha que queria mais tempo de exibição. Enquanto a procissão percorria as ruas da freguesia iam-se juntando mais pessoas com os seus açafates de pão prometido que equilibravam em cima da cabeça com uma mestria de modelo.
    De volta às portas da igreja a filarmónica tocou o Hino das festas e as vozes elevaram-se num sentimento convicto mais profundo do que aquele sentido quando cantam o Hino Nacional:

Alva pomba que meiga apareceste
Ao Messias no rio Jordão
Estendei vossas assas celestes
Sobre o povo do órgão cristão

Vinde! Oh vinde entre nuvens de glória
Entre gente e cânticos de amor
Entre as asas de eterna vitória
E os querubins elevam o Senhor!
E os querubins elevam o Senhor!

    E com o fim do Hino ao Senhor Espírito Santo termina o festejo religioso e começa o convívio popular. A sala de Jantar do Império enche e esvazia-se vezes sem conta. Ana e Gloria servem as sopas de espírito, compostas por pão embebido num caldo de carne acompanhado por carne de vaca cozida. Glória olha nervosamente para a porta na esperança que Fátima apareça e possam falar um pouco. Desde a visita da Dona Alice que nunca mais teve notícias da amiga. É estranho este afastamento, este silêncio pesado que parece transportar um nevoeiro que torna todo o tipo de pensamentos e conclusões difusas.
    Ana começa a aglomerar os açafates de pão para que a distribuição da massa sovada e das rosquilhas comece. Ela gosta desta nova tarefa já que aqui não é obrigada a cumprimentar ninguém nem a facultar um sorriso generoso de menina inocente grata por poder servir o Império da freguesia. Perdida nas suas preocupações sente um puxão suave mas firme na beira da sua saia rodada. Apesar dos olhos tristes não consegue evitar um sorriso ao rapazito baixo com um boné enterrado na cabeça que lhe faz realçar as orelhas demasiado grandes. O miúdo descarado estende-lhe a mão fechada que Ana aceita no meio das suas duas mãos, mais num gesto mecânico do que de compreensão. É-lhe deixado um papelinho sem explicações com a mesma pressa e nervosismo com que se delega um tesouro de última hora. Ana abre o papel curiosa e sente um ardor nos olhos aliviado por um par de lágrimas discretas. Trata-se de um bilhete de Francisco.
    “Vem ter comigo às traseiras da igreja”. Um bilhete tão curto, tão pouco revelador, que lhe pesa tanto nas mãos trémulas. Tentando opor-se à sua saída da Ermida, Ana corre pelo pátio fora com o rosto corado de emoção e a respiração ofegante, sobe as escadas escuras de basalto da igreja como se voasse, contorna os cantos da igreja brancos de cal e só pára quando encontra à sua espera aquele sorriso maroto que termina numas covinhas prometedoras. Francisco está lá a sua espera. Abre os seus braços longos e este gesto é o suficiente para que Ana se deixe envolver por aquele abraço saudoso. É ali o seu mundo... Não importa as circunstâncias, os contornes mais obscuros. Ana acaba de perceber que prefere aqueles curtos momentos de felicidade do que uma falsa promessa de vida futura sem sobressaltos, vivida num marasmo constante.
    Sentados no degrau da porta da sacristia sentem o peso do momento no ar. É Francisco que corta aquele silêncio insinuante.
    - Ainda bem que vieste! É sinal que ainda tens um pouco de fé em mim… - Ana viu-lhe aquele olhar maroto cor de mel com um brilho de macho orgulhoso e não conseguiu evitar uma gargalhada sonora. Já há algum tempo que não se ria assim e como lhe estava a saber bem… Como precisava daquilo na sua vida…
    - Claro que sim doutor! Toda a minha fé reunida num só Deus. – Esta era a sua Ana. Descontraída, rindo de um futuro incerto sem exigir promessas ou compromissos. Entregava-se a ele sem questionar sem se vitimizar pelas circunstâncias. Nunca ninguém lhe dera esta estabilidade de sentimentos, esta prova de disponibilidade absoluta. Francisco não acompanhava Ana naquele riso fácil. Estava com o seu olhar preso naquele rosto perfeito demasiado moreno para a moda da altura, naquele cabelo rebelde que teimava em fugir do elástico, naqueles olhos verdes opacos e simples, naquele queixo bem definido que se impunha sobre um pescoço longo e altivo. Francisco pegou nesse rosto que lhe estava gravado na memória e aproximou-o do seu. Beijou-lhe a testa sem pressa, roçou-lhe os seus lábios sobre um olho de cada vez, deslizou a sua face pela face dela demoradamente até que encostou os seus lábios aos dela sentindo-os carnudos e quentes. Foram saboreando e explorando sem pressas os lábios um do outro como se tivessem a conhecer um novo território.
    - Ana! Estás doida? – Glória nem acredita no que vê. Mas que raio se passa com as irmãs. Andava à procura de Maria para evitar que ela se metesse em sarilhos, e afinal encontra um cenário pior. – Larga a minha irmã seu porco, nojento, ordinário. - A fúria sobe-lhe pela espinha acima e tortura-lhe a garganta que emite gritos de aviso. Arranca Ana dos braços de Francisco colocando-a atrás de si num gesto protector.
    - Eu posso explicar!... – Gemia Francisco baixinho para não enervar mais a rapariga endiabrada.
    Foi Ana que pôs fim àquele comportamento intempestivo da irmã.
    - Basta Glória! – Repreendeu Ana com um timbre seguro que fez Glória vacilar. – Se o Francisco diz que pode explicar dá-lhe pelo menos uma oportunidade para fazê-lo. – Glória fica parva a olhar para aquela Ana determinada. Onde é que está a irmã de olhos baixos, mergulhada numa tristeza infinita que tem vivido na sua casa nas últimas semanas?
    - Então desembucha homem! – Glória ainda não estava totalmente recomposta mas fez um esforço para engolir o doutorzinho.
    Francisco começou por contar como conhecera Ana, como se deixou envolver por ela, como estava neste preciso momento apaixonado por ela. 
    - Isso é tudo muito bonito, mas a realidade é que tens uma noiva, que está muito doente por sinal. O que pensas fazer relativamente a isso? Hã? Isto não é só dizer um desenrolar de disparates românticos e está tudo bem. Tens duas pessoas que estão a sofrer com esta situação. Uma é a minha melhor amiga e a outra é a minha irmã. Podes perceber que não estou lá muito satisfeita contigo. E também não estou caída de amores por ti, logo só posso chegar à conclusão de que és um canalha doutorado… - e nisto começou a bater em Francisco deixando escapar grunhidos reveladores do esforço que estava a desempenhar ao esmurrá-lo.
    Francisco segurou-lhe facilmente os punhos e olhando-a bem nos olhos respondeu com uma seriedade louvável.
    - Eu amo a tua irmã! Agora agradecia que me ouvisses, porque o que vou dizer também é importante para a Ana. – Glória deixou-se cair de rabo no degrau da porta da sacristia, vencida pelo cansaço e disposta a ouvir até ao fim. Francisco teve então a sua oportunidade de contar a sua tentativa frustrada de terminar o noivado. Contou todos os pormenores daquela noite, desde o brilho que parecia de esperança no fim do noivado que viu no olhar de Fátima até ao chilique da Dona Alice. Explicou que depois desta cena não tornou a ver Fátima. Só vai sabendo dela através da Dona Alice que lhe transmite sempre a mesma cantilena “ é a ansiedade do casamento”.
    Agora Glória deixou a raiva de lado para assumir uma postura preocupada.
    - Então a Fátima não conseguiu dizer-te se queria ou não este casamento? – Pergunta Glória pondo as ideias em ordem.
    - Não… Nem tão pouco me disse o que sentia por mim ou pelo facto de estar noiva. Nunca se manifestou nem a favor nem contra, mas eu juro que naquela noite quando eu insinuei que não queria este casamento ela mostrou-me uma nova Fátima. Era como se estivesse aliviada… Mas não conseguiu verbalizar nada disto.
    - Faz sentido Francisco…
    - O que é que faz sentido? – Perguntou Ana com uma nova esperança.
    Glória contou a Francisco o romance de Fátima e Manel, assim como o seu fim trágico. Contou a parte da história que ninguém conhecia… As tentativas de pôr fim à vida, as automutilações que Fátima infligiu a si própria resultado de todo o remorso que a acompanhava pela morte do namorado… Glória contou os horrores psicológicos a que a Dona Alice a submeteu, até que de repente Fátima apareceu-lhe noiva do filho do doutor Bruno. Contou-lhe a notícia com uma alegria falsa tentando justificar aquele acontecimento com frases feitas como “a vida continua”, “o Manel só queria que eu fosse feliz”…
    - Nós temos de falar com a Fátima. Temos de vê-la. Sabe-se lá os tormentos que ela está a passar… - Glória tinha os olhos rasos de água. Queria tanto ajudar a amiga, tirar-lhe todo o peso que esta vida injusta lhe tinha colocado aos ombros.
    Ana abraçou a irmã e sussurrou-lhe – Vamos chegar a ela custe o que custar, mas agora temos de voltar para a festa. Não podemos levantar suspeitas.
  As irmãs voltaram para a festa disfarçando o rebentamento de pensamentos e emoções que se soltavam nas suas almas. Caminhavam lado a lado sorrindo e retribuindo cumprimentos e sorrisos.
    As mãos erguidas para receber um pão de massa sovada igualava-se a um campo de girassóis virados todos para o sol. O pão chovia sobre aquele pequeno mar dando à situação uma quase interpretação bíblica. Com o anoitecer chegou o bailarico animado onde toda a família Ferreira participou activamente. Luzia e José dançavam como se de um par de garotos se tratasse. Glória desempenhava a dança do acasalamento cheia de mistério, murmúrios e risinhos malandros que a faziam corar mais do que o exigido pelo esforço das voltas da chamarrita. Até a Maria havia arranjado um par para rodopiar e estava inchada de importância por tal facto, ralhando com o pequeno rapaz sempre que este a pisava.
    Ana por seu lado era a única que estava isolada num canto absorvida por mil ideias e pensamentos que lhe invadiam a mente numa tentativa frustrada de ordenação lógica. Torcia e retorcia os dedos e mordia os lábios enquanto inventava soluções mirabolantes para a sua situação. Tinha de pensar em Fátima. Não queria de forma alguma que as suas atitudes a conduzissem para um abismo ainda maior. Mas que raio se passaria com a rapariga? Estaria ela prisioneira da própria mãe? Estaria mesmo doente? No dia seguinte far-lhe-ia uma visita acompanhada pela irmã e esperava obter assim algumas respostas.

1 comentário:

  1. Gostei muito deste capítulo...com esta leitura, "matei" saudades, das tradições festivas dos Açores.A boa massa sovada e saborosas rosquilhas, que nos obrigava a trocar as voltas, aos senhores, que as entregavam, nas festas do Espirito Santo, para assim recebermos mais do que uma.
    Parabéns amiga.

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