sábado, 1 de outubro de 2011

CAPITULO IV - Na Base da Montanha

CAPITULO IV


Fátima estava desamparada. Preparava-se para entrar no quarto da mãe. Ia ser forte pela primeira vez na vida. Iria bater o pé, e opôr-se às intenções da mãe. Iria enfrentá-la. Fátima ergueu a cabeça, respirou fundo e entrou...
- Parece-me bastante melhor!
- És tu que me provocas isto! Dei-te tudo o que podia... Sempre fui uma exclente mãe, compreensiva, carinhosa, dedicada... Como achas que me senti quando ouvi o que o Francisco te disse? Não sei o que tens na cabeça. Nosso Senhor Jesus Cristo nos valha, que eu não mereço isto. Tu queres matar-me de vergonha? Deixares que um noivo como o Francisco termine o noivado... O que é que esta gentinha vai pensar? Já toda a vila sabe deste casamento e agora queres andar na boca do povo... Queres que te chamem despeitada? Queres ser sempre essa rapariguinha sem sal que nem um noivo consegue encantar? Acorda para a vida! Ai Jesus! Que me matas de desgosto!
- Eu não acho certo casar-me com alguém que não me quer!
-Sabes o que te digo? Antes com discretos a pecar do que com tolos a orar... Será que não sabes o que é bom para ti? Deitas fora o filho do Dr. Bruno, o melhor partido da vila! Com este casamento só ficas a ganhar. Vais ter uma vida de rainha, sem preocupações. Terás uma boa casa, poderás passear de carro. Se tiveres filhos vão agradecer-te o resto da vida pelo pai rico que lhes deste. Não sejas tonta...
- Estou espantada!... Tanta preocupação comigo!... Já que a sua única preocupação é a minha felicidade, porque é que nunca me perguntou se eu queria este casamento? Nunca me perguntou se eu estava feliz. Estou cansada de ser uma marioneta nas suas mãos...
Fátima sentiu o peito apertado e as lágrimas saltaram-lhe desesperadamente dos olhos... As palavras começaram a sair-lhe da boca num tom mais elevado, quase histérico e sem qualquer tipo de ordenação racional. Ela perdera aquela batalha, perdera as estribeiras, a postura. Perdera a razão.
Fátima saíu a correr do quarto da mãe. Apressava-se a chegar à porta de saída, que parecia afastar-se. Precisa de apanhar ar, de sair dali, de se sentir livre. As paredes aproximam-se e o corredor alonga-se. Fátima respira velozmente, e continua a correr demoradamente... Finalmente chegou à rua. A noite está calma, e o ar fresco bate-lhe ferozmente no rosto... Ela continua a correr, e só pára quando encontra o mar à sua frente. Senta-se numa rocha, e chora...
- Oh Manel!... Preciso tanto de ti! Porque é que a vida te tirou de mim? – Fátima sente- se angustiada, mas o pior é este sentimento de desamparo. Onde poderá ela encontrar apoio? Deus foi demasiado cruel quando deixou o seu Manel no mar. Ainda se lembra quando conheceu o pequeno Manel...
No primeiro dia de escola, tinha Fátima 7 anos. Os seus pais deixaram-na no meio do pátio sozinha. Ela olhou em redor e sentiu inveja dos outros meninos que corriam atrás uns dos outros sem se preocuparem com a roupa. Queria tanto conhecê-los e brincar com eles. Estava numa luta interior que não se resolvia. Contava até três para tomar coragem e ir apresentar-se. Um, dois... Três... Pronto, é agora... Dava um passo e parava. Não tinha coragem. O que pensaria a mãe? Com certeza não ficaria satisfeita, ralharia por ela ter sujado o vestido imaculado, e pior, não gostaria de saber que ela fizera amizade com aqueles meninos pobres. A professora chamou-os para dentro da sala de aula. Fátima sentou-se sozinha numa carteira dupla. Tinha a sensação de que os meninos se tinham afastado dela. Era estranho, pois sempre pensara que aquele tipo de gente tinha vontade de conhecer e de conviver com pessoas como ela. Sempre pensara que eram as pessoas de classe superior que se afastavam dos pobres, afinal a rejeitada era Fátima... O Manel chegou atrasado a essa aula e sentou-se ao lado de Fátima. Esta sentiu uma alegria enorme encher-lhe o peito. Apartir desse dia nunca mais se largaram. Manel era um bom amigo, desinteressado, sempre pronto a ajudar e a defender Fátima sem esperar nada em troca. Nunca ninguém gostara dela daquela forma... Com Manel, Fátima sentia-se desejada, sentia que a única coisa que lhe era exigida era a sua sinceridade... Fátima podia ser expontânea, podia falar primeiro e pensar depois. Com a idade, aquela amizade tão bem cultivada, transformou-se em amor. Ambos depressa perceberam a diferença e adaptaram-se muito bem à nova condição. De amigos inseparáveis passaram a amantes apaixonados, e alimentavam aquele sentimento com encontros furtivos e longamente românticos. Manel era o pilar central da vida de Fátima, era o seu conselheiro, confidente. Mas o destino de Fátima tratou de a pôr no seu lugar, de a fazer lembrar que a sua vida é invisível aos olhos de todos, que a sua vontade é desconhecida. Aquele dia fatídico fê-la lembrar da sua condição de marioneta da mãe. Fátima marcara um encontro com Manel no porto das lajes. Era costume deles despedirem-se sempre que Manel ia para o mar com os outros baleeiros, como se aqueles momentos escondidos fossem um amuleto de sorte para Manel, protegendo-o dos perigos daquelas gigantes baleias. Nesse dia Fátima não apareceu. Ficara retida em casa com visitas. Manel esperou quase uma hora, mas os outros baleeiros começaram a chegar e Manel teve que partir para a caça. Os baleeiros arrastaram os botes para a água, enfiaram-se dentro deles e começaram a remar rumo ao mar alto. O cachalote foi avistado, e os baleeiros param de remar. Preparam o arpão para ser lançado no momento oportuno. Seis botes fazem mira para o mesmo gigante. O cachalote começa a mostrar-se lentamente, e antes que consiga desaparecer, Manel lança o arpão que o atinge em cheio. A corda que liga agora o animal ao bote começa a correr. Os outros baleeiros apressam-se a lançar os seus arpões... Mas o animal sofrido e desorientado roça o bote onde estava Manel de pé a segurar a corda... Manel desequilibrou-se, bateu com a cabeça na beira do bote e afundou-se no mar. Os homens procuraram-no desesperadamente, forçavam a vista com esperança de ver um sinal, mas o sangue do cachalote cobria o mar, e as esperanças afundaram-se também...
Com a notícia da morte de Manel, Fátima perdeu toda a alegria que tinha e fez da vontade da mãe a sua orientação de vida. Soube que apartir daquele momento nunca mais se sentiria interessante, nunca mais teria uma vontade, um devaneio... Tudo perdeu o interesse... E assim se tornou noiva de Francisco quatro meses depois da morte de Manel, sem nunca dizer que aceitava este noivo, sem nunca olhá-lo nos olhos, sem nunca lhe declarar um sentimento... Apenas aceitara a vontade alheia...
Ali sozinha, encolhida, e a tremer de frio, Fátima sente-se perdida e injustiçada... Não tem vontade de voltar para casa, para o meio da confusão, da gritaria, do insulto... Talvez fosse hora de se encontrar com Manel... Talvez ele esteja à sua espera com aquele sorriso encantado e com uma hortência na mão para lhe dar. Quer voltar a ouvir aquelas gargalhadas estridentes que brotavam da sua boca sem razão aparente. E o mar está ali diante dela, tão sereno, numa espera compassada de uma vai e vem lento e absurdamente convidativo... É lá que está o seu Manel...
- Fátima! O que te passou pela cabeça? Discutiste com a tua mãe, logo agora que ela está debilitada. Nem imaginas como ela está. Quase ia desmaiando outra vez. Pediu-me para te procurar. Oh Fátima! Tu foste longe demais!... – O senhor Joaquim pegou na filha pelo braço e conduziu-a para casa num passo lento, intuindo uma conversa séria...
- Porque é que casaste com a mãe?- pergunta Fátima.
- Porque... Ora que pergunta absurda!... Porque sim.
- Foste tu que a escolheste?
- Sim.
- Estavas apaixonado?
- A tua mãe era muito bonita. Quando me casei com ela não a conhecia bem. Só sabia que era muito bonita, e dava a parecer ser uma boa rapariga, muito calma, e uma boa dona de casa. Depois de casarmos percebi que afinal ela não era nada tranquila, pelo contrário, tinha um génio impossível, mas eu habituei-me ao seu feitio... E cá estamos casados há mais de vinte anos. – Joaquim sorriu à filha num gesto confidente – Eu habituei-me a ela porque era a minha esposa, e tu deves fazer o mesmo, porque ela é a tua mãe.
Chegados a casa, a senhora Alice esperava-os.
- Onde é que te meteste? Tive de ir meia dúzia de vezes à retrete que os nervos desregularam-me os intestinos. É neste estado que me pões... Se me queres matar dá-me logo um tiro, não o faças desta forma lenta... – Alice estava com os olhos a faiscar.
- Desculpe mãe!... – Fátima não tinha forças para enfrentar aquela situação.
- Amanhã vais para o Faial passar uns tempos. Vais logo na lancha da manhã, para que não vejas o Francisco. Assim ele terá de esperar que regresses para terminar o noivado, e nós ganhamos tempo. Tenho de descobrir porque é que ele tomou esta decisão repentina. Deve haver algum rabo de saia. Alguma moça esperta que sabe que ele é um bom partido, ao contrário de algumas tontas que andam por aí...
Fátima baixou a cabeça e foi para o quarto. Deitou-se na cama e fechou os olhos de cansaço. Sentiu um arrepio suave percorrer-lhe o corpo e sem querer esboçou um sorriso, como no tempo em que tinha Manel ao seu lado. Fátima acabou de tomar uma decisão... Não vai para o Faial... E até já sabe o que deve fazer...
O dia seguinte clareou o quarto de Fátima sem a incomodar. Estava na hora de ela se levantar para apanhar a lancha, mas não o fez e deixou-se ficar na cama. Aquele quarto grande com duas janelas cobertas por pesados cortinados, com aquela cama envolta num véu, com a cómoda toda trabalhada e um espelho de corpo inteiro no canto oposto à porta, seria o único refúgio que Fátima teria a partir daquele momento, e a ideia não lhe desagradava. A senhora sua mãe iria ter uma surpresa...
- Fátima! Já estás pronta?- A senhora Alice entra no quarto sem pedir licença. – Ainda deitada?! Anda levanta-te...
- Não consigo, mãe. Estou a sentir-me muito fraca e com uma dor na cabeça que não me larga... Se me ponho de pé caio... – Fátima vai usar o mesmo método da mãe. Se ela pode ficar doente quando lhe convém, então Fátima também ficará.
- Sai já dessa cama minha menina... – Alice tira a roupa de cima da filha, agarra-lhe um braço e começa a puxá-la com toda a sua força soltando uivos de raiva...
Joaquim, ouvindo aqueles gritos enlouquecidos corre para o quarto da filha e fica estupefacto com o que vê. A queda seca de Fátima sobre o chão de soalho, não acalma a senhora enfurecida que continua a forçar a rapariga a pôr-se de pé, usando toda a sua persuasão física e psicológica, fundamentada em insultos e ameaças.
- Pára mulher que me matas a rapariga!- Joaquim agarra a esposa pela cintura e afasta-a de Fátima.
- Estás doida! Olha bem para este quadro triste, Alice! O que te passou pela cabeça?
Joaquim expulsa a mulher do quarto e ajuda a filha a deitar-se na cama. A partir de que momento é que a esposa se tornara naquele monstro impiedoso? Como é que esta evolução se deu sem que ele sequer tenha reparado? Ele sabe-o bem... Tem sempre a mente ocupada com os assuntos da Câmara, principalmente desde que o louco Mestre Quim se soltou e destruiu alguns dos candeeiros da vila, cessando assim a iluminação pública que tanto custara a Joaquim e que o tornara muito popular entre o seu povo. Joaquim preocupava-se mais com a iluminação pouco duradoura que conseguira do que com os problemas da sua casa. Tinha uma família de aparência cuidada, mas em ruínas...
Fátima fica sozinha no quarto e sorri de satisfação. Como é bom ser rebelde, impôr uma vontade e ganhar uma batalha. Não vale a pena sonhar todos os dias, sem deixar que esse sonho faça parte da nossa vida. Fátima tem agora um objectivo, e já traçou o caminho a seguir para lá chegar... Ela vai libertar-se para sempre e vai viver o sonho.
A senhora Alice sente-se como uma fera dentro de uma jaula, sem espaço de manobra, mas isto não fica assim. A filha não é suficientemente forte para enfrentá-la, daqui a pouco arrepender-se-á e fará o que a mãe lhe disser. Mas nunca a viu defender uma posição com tanta convicção. Irá a casa do Ferreira e convencerá a Glória a falar com a filha e a meter-lhe algum juízo na cabeça. Agora só precisa de um transporte até lá. O marido certamente não a levará, e a única família que também tem carro na vila das Lajes é a família de Francisco. Não tem alternativa e terá de pedir a Francisco que a leve. Só tem de arranjar um bom pretexto.
Já em frente ao consultório, Alice adopta um aspecto desconsolado, um ar cansado, e uma postura descaída, e entra.
- Bom dia Dona Helena! O Francisco está?
- Ele acabou de entrar no consultório com o pai. Quer que o chame? – A bondosa Helena estende a mão a Alice e conduz a aparente debilitada a uma confortável cadeira, sorrindo-lhe discretamente no intuito de lhe poder minimizar a dor ilusória.
- Se não se importar... Eu preciso de um favor dele... Sabe como é, ele é quase família e quando precisamos de ajuda devemos recorrer sempre em primeiro lugar aos nossos. – Alice esforçava-se por se mostrar agradável a Helena, apesar do sentimento de repugnância que lhe percorria o pensamento. Sempre desconfiara que aquela dedicação ao consultório médico da vila trazia água no bico. Nunca tal tinha visto um médico precisar de uma assistente que não percebe nada de medicina, está ali apenas para receber os doentes, como se eles não soubessem aguardar pela sua vez sem a indicação dela. Sempre desconfiara que a solteira Helena era mais dedicada ao doutor Bruno do que aos doentes, e até já partilhara esta opinião com algumas amigas, que depressa fizeram espalhar o boato infundado, e que provocou uma mágoa silenciosa em Clemência.
Francisco aproximou-se da senhora Alice admirado com a visita.
- Em que posso ajudá-la?
-Oh meu querido Francisco! A tua futura esposa está muito debilitada. Não sei o que lhe deu, mas hoje não conseguiu sequer levantar-se da cama. Parece que a tristeza se apoderou daquela alma. – Alice vê o rosto de Francisco adoptar um ar preocupado e o brilho tremido do olhar transparece remorso, exactamente como Alice desejava. Ela já lhe tinha introduzido o bichinho do arrependimento, já lhe tinha conseguido atingir a consciência, que é o ponto mais fraco dos honestos.
- Quer que fale com ela? – Francisco está receoso da resposta. Não quer enfrentar Fátima naquele estado... O que lhe dirá?
- Não!.. Queria apenas pedir-lhe que me levasse a casa do José Ferreira para falar com Glória. Como ela é a melhor amiga da minha filha, pensei que soubesse explicar-me qual o motivo deste estado melancólico...
- Claro senhora Alice! Espere aqui só um momento que eu vou avisar o meu pai.
Francisco depressa esqueceu a depressão da suposta noiva. A ideia de poder ver Ana de novo era de tal forma grande que lhe enchia a alma, o pensamento, o próprio corpo...
O caminho para S. João estava demasiado longo e o silêncio aterrador. Francisco não sabia o que dizer. Estava ao lado da mãe da sua noiva a caminho da casa da sua amada. Que situação constrangedora...
- Está a ver esta terra aqui do seu lado direito? – Pergunta Alice no intuito de tornar a sua companhia mais agradável.
- Sim! O que tem?
- O Ferreira comprou esta terra para fazer a casa da Glória. Não foi nada barata, uma vez que é o melhor terreno que existe aqui na Ribeira do Meio. O que combinaram foi que o Ferreira comprava a terra para o futuro casal, e o João juntamente com o pai fariam a casa. Glória está muito entusiasmada. Mas o casamento vai dar-se antes de a casa estar pronta, porque os noivos não querem esperar. O amor é tão bonito, não acha?
- Sim, claro!
- Acha que o problema da minha filha é ansiedade por causa do casamento?
Francisco treme por dentro, e reponde sem convicção.
- Talvez.
O silêncio voltou e segurou-se até chegarem ao portão dos Ferreira.
- Oh Lúzia! Como estás? Há tanto tempo que não nos viamos, mulher. – Alice dirige-se a Lúzia com uma intimidade falsa, como se de velhas amigas se tratasse.
- Entrem! Não estava à espera da vossa visita. Espero que não tenha acontecido nada. – Lúzia tinha um sexto sentido muito apurado. Era capaz de sentir o ar carregado de embaraço, mas principalmente de hipocrisia.
- Oh mulher, preciso muito de falar com a tua filha! A minha Fátima não está nada bem. Caíu na cama e não se levanta por nada... Também não quer comer... Está numa depressão muito depressiva, que até me doi a alma...
Neste momento, Ana entra na cozinha e pára os seus olhos nos de Francisco. Ele estava ali sentado numa banca junto ao forno do pão com uma caneca de café na mão... Ana sentiu os seus lábios florirem, o seu coração bater com mais força, e sem pensar perguntou-lhe cheia de esperança.
- Que fazes aqui?
Lúzia acabou de ver qual a origem do mau humor da filha, e Alice adivinhou qual o motivo do fim do noivado perfeito. Tem de pensar rápido, já não pode levar Glória para casa, não vá servir de pombo-correio de Fátima, ajudando-a a cometer o erro de não se casar com o jovem médico.
- Vim acompanhar a senhora Alice! - Francisco baixou os olhos. Sabia que Ana tinha pensado noutro motivo para aquela visita, e ele desiludiu-a mais uma vez. Sentia uma enorme culpa em relação a Ana, mas em simultâneo acompanhava-o o remorso pelo estado de Fátima.
Ana retirou-se da cozinha em direcção à rua num passo apressado e esquecendo a educação que a mãe lhe dera. Não quer saber mais daquela gente... Ai! Se ela ao menos pudesse sair daquele lugar...
- Ana o que tens? – Glória encontra a irmã sentada no balcão com um olhar vidrado de quem não olha nada.
- O Francisco está na nossa cozinha...
- O que veio cá fazer?
- Acompanhar a futura sogra... Acho que ela quer falar contigo.
Glória roda os braços à volta do pescoço da irmã e beija-lhe a testa. De seguida entra em casa.
- Oh minha querida Glória! Preciso tanto de falar contigo... – Alice abre os braços para receber Glória num estreito cumprimento, o qual Glória finge não perceber continuando a andar até ao lugar vago.
- A Ana disse-me que quer falar comigo. De que se trata?
- É a Fátima...
- O que tem Fátima? – Glória sente um aperto no peito, sabe bem que a amiga é muito frágil e que por vezes tem uns pensamentos estranhos em relação à vida... Deus queira que não tenha feito nenhuma asneira...
- Está de cama, mergulhada numa tristeza que faz dó. Não sei o que se passa com ela, e pensei que talvez tu me pudesses dizer...
- Não faço ideia... Vou só mudar de roupa e vou convosco à vila para falar com ela.
Alice atrapalha-se... Não pode deixar que isso aconteça... Glória saberá que Fátima quer terminar o noivado e ajudará a irmã a conquistar o médico. Afinal elas são mais velhacas do que a filha, que é honesta demais.
- Lamento, mas ela não quer falar com ninguém, nem contigo. Eu até perguntei-lhe se queria que tu lá fosses para conversarem, para ela desabafar, mas exaltou-se dizendo que não queria ninguém no seu quarto...
Glória ficou ainda mais preocupada. O que se passará na cabeça da amiga? Não deve estar a sofrer por amor a Francisco, pois Glória sabe bem que este casamento não tem qualquer fundamento sentimental... Só pode ser saudade do seu Manel, revolta por se sentir só e injustiçada.
- Estava com esperança que tivesses alguma resposta para a melancolia da minha filha, mas sendo assim, é melhor voltar para junto dela. – Alice levanta-se e despede-se das duas mulheres. Glória acompanha-os até ao carro, e antes de entrarem, pergunta a Alice.
- Não acha que será uma recaída? Afinal ela já esteve assim uma vez... Quando tudo aquilo aconteceu... Talvez o sentimento de perda tenha descido sobre ela novamente...
- Não diga disparates Glória! Fátima ama o noivo e não tem mais nada que lhe ocupe o pensamento.
Alice entra no carro sem olhar para Glória. Como se atreve? É muito mais esperta do que podia imaginar. Ainda bem que não a deixou falar com a filha, pois sujeitar-se-ia a que aquela cobra voltasse a meter o passado na cabeça de Fátima fazendo com que ela desistisse do casamento. E quem ficaria com o melhor partido da vila? A irmãzinha do meio. É uma gentalha!
Francisco olha para o balcão onde está Ana paralizada e sem demonstrar qualquer emoção.
- Espere por mim só um minuto que eu vou despedir-me da outra filha... Não é de bom-tom sair sem me despedir de todos os que estão em casa. – E sem dar a hipótese de contestação à Dona Alice foi ter com Ana.
- Não posso estar aqui muito tempo... Só quero que saibas que já falei com Fátima... Só não esperava que ela caísse nesta depressão. Na conversa que tivemos pareceu-me que também não queria este casamento e agora acontece isto... Já não estou a perceber nada... Eu não desisti de ti, Ana... Por favor não desistas de mim. – Francisco pegou-lhe na mão e beijou-a cheio de vontade.
Ana não conseguiu articular nenhuma palavra que fizesse sentido. Só conseguia olhar Francisco com a mesma admiração com que o viu descer do barco naquele dia iluminado. A vida é assim, deixa sempre uma esperança para compensar os desalentos que nos põe no caminho...

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