terça-feira, 27 de setembro de 2011

CAPITULO III Na Base da Montanha

CAPITULO III


Francisco estacionou o carro fora da porta de sua casa. Sente um calafrio a percorrer-lhe as costas. É de prazer com certeza... Francisco está esgotado, deitado na sua cama, mas não consegue dormir. Sempre que fecha os olhos vê a imagem de Ana a sorrir-lhe e sente o seu cheiro invadir-lhe as narinas. Que vontade tem de voltar a afogar o seu nariz no pescoço de Ana. Que vontade tem de voltar a pegar-lhe a cintura e fazê-la rodopiar como uma pena. Que vontade tem de voltar a encostar os seus lábios aos dela... Porquê este devaneio? Afinal já beijou tantas mulheres, e beijos bastante fogosos que fariam corar as mais donzelas. Mas nenhum desses beijos delirantes e demoradamente quentes se igualavam àquele encostar de lábios. O sentimento que acompanhou aquele gesto nunca o sentira antes. Ficaria ali, de bom grado, para sempre, à porta da filarmónica com o seu corpo encostado tímidamente ao corpo de Ana. Está a amar pela primeira vez e, por estranho que lhe pareça, esta ideia não o desagrada. Tinha que dizer isto a Ana!..  Tinha que lhe dizer que o que sente é amor, que é o limite do verbo gostar...
O dia amanhece, e Francisco acorda devagar, percebendo que nem mudou de roupa. Agora é tempo de se tornar apresentável, pois os doentes devem estar a chegar ao consultório. Francisco trabalhava com o pai no seu consultório, que ficava no rés-do-chão de sua casa. O consultório era grande, tinha uma sala onde os doentes esperavam equipada com cadeiras confortáveis e uma secretária de madeira onde se sentava a Dona Helena, que recebia todos os dias os doentes com uma enorme simpatia e compaixão, ou não trabalhasse há já mais de vinte anos com o doutor Bruno, fazendo desta a sua única vida. Da sala de espera os doentes passavam para o consultório médico, onde o doutor Bruno se fazia acompanhar de todos os instrumentos necessários para poder aliviar o tormento dos seus pacientes. O doutor Bruno, mais conhecido por médico da vila era uma pessoa simples e caridosa. Tinha-se casado com uma mulher que nunca chegara a amar, mas que lhe dera a oportunidade de desempenhar a sua profissão sem restrições, uma vez que era muito rica. Para preencher o vazio do casamento trabalhava todo o dia, subindo ao andar de cima da casa apenas para comer e dormir. O Doutor Bruno tinha agora um novo entusiasmo que era ensinar tudo o que sabia ao filho e aprender com este as novas técnicas de medicina.
- Tem massa sovada quente para o almoço tal como tu gostas, filho. – Disse a senhora Clemência que não se cansa de mimar o filho. É para ela uma grande alegria ter Francisco em casa, e desta vez não tem de abdicar dele novamente. Ele veio para ficar. Clemência é uma mulher doce e dedicada ao filho e ao marido. Francisco é o seu único filho, é o fruto do amor que sente pelo marido. Ela sabe bem que este amor não lhe é retribuído. Mas não se cansa de ter esperança. Um dia o marido vai entrar em casa e vai olhá-la de uma forma diferente, com um brilho apaixonado nos olhos, vai correr a abraçá-la de uma forma apressada tentando recuperar todo o tempo perdido, e quando esse momento chegar ela vai estar de braços abertos pronta para recebê-lo. Enquanto isto não acontece, ela continuará a cuidar de Bruno e a admirá-lo com a mesma paixão com que se casou com ele.
- Tu ontem voltaste tarde. Nem te ouvi chegar. – Comenta Clemência com o filho.
- Sabe dona Clemência, aconteceu-me uma coisa maravilhosa ontem.
- E a tua mãe pode saber o quê?
- Descobri que estou verdadeiramente apaixonado... Ela é maravilhosa...
- Fico muito satisfeita que tu e a Fátima estejam apaixonados. Nem imaginas como isso facilita o casamento.
Pois é!... Fátima... Francisco esquecera a noiva. Está metido numa grande embrulhada. Como reagirá Fátima quando souber que Francisco já não quer casar? Ele tem de ser muito cauteloso, já que Fátima é uma rapariga muito frágil. Coitada!... Não merecia... Ela é tão meiga, e é uma excelente rapariga!... Sem dúvida... Mas é a sua felicidade que conta, e Francisco não quer abrir mão de Ana. Fátima também não aceitaria migalhas, nem merecia tal coisa... Oxalá não lhe faltem as forças na hora de falar com Fátima...
- Vou só num instante a casa de Fátima e já volto para ajudá-lo. – Anúncia Francisco ao pai, saindo logo de seguida.
Ao chegar a casa de Fátima quem o recebe é a senhora Alice, mãe da noiva. Francisco sente-se constrangido. Não consegue confiar naquele olhar cinzento e redondo, naquele cabelo que não consegue definir bem uma cor, umas vezes é castanho, outras parece vislumbrar um efeito vermelho suave. A sua cara redonda e a sua pele branca angelical contrastam com a sua postura altiva e com o sorriso de malícia que a acompanha sempre. A mãe de Fátima é sempre tão demasiadamente simpática com ele, e no entando ele juraria que ela transborda falsidade. Quando está perto dela não sente nenhum calor humano, apenas um gélido e fingido carinho.
- A Fátima está? Preciso muito de falar com ela.
- A minha rica filha foi passar o dia a casa do José Ferreira, em São João. Ela é muito amiga da filha mais velha dele, a Glória. A rapariga também vai casar, e o menino sabe como são as raparigas casadoiras, arranjam qualquer pretexto para trocarem segredos sobre os futuros maridos... É a ansiedade do casamento...
Francisco não podia acreditar! Que coincidência dos diabos! Então Ana já deve saber. O que terá pensado dele? Ele tem de arranjar uma forma de falar com Ana, de explicar que tencionava terminar o noivado. Com toda a certeza Ana vai compreender, afinal ela também o ama... Pelo menos ele assim pensa...
Francisco não se faz rogado, pega no carro e vai até S. João. Estaciona em frente à casa de Ana, mas não sai de dentro da viatura. O que faz agora? Tem de fazer a coisa certa ou deita tudo a perder. Perdido em discursos fantásticos, a tentar encontrar as melhores palavras, repara que em frente à atafona está Ana sentada num degrau, encolhida e com um aspecto muito debilitado. Francisco sai do carro e com cautela aproxima-se. Senta-se ao lado de Ana e abraça-a. Ana parece querer afastar-se mas faltam-lhe as forças. Estava distante, como se aquele abraço lhe fosse completamente indiferente.
- Como é que me pudeste fazer isto Francisco?
- Eu não te queria magoar. Eu...
- Tu disseste que havia algo de mágico entre nós, fizeste-me acreditar que os teus sentimentos por mim eram sinceros e puros, mas afinal brincavas comigo enquanto noivavas com outra... Vai-te embora Francisco... Ainda não é tarde para seguir o meu caminho... Por favor, respeita-me.
- Ana, deixa-me explicar-te. Não era minha intenção...
- Vai-te embora Francisco... E não te preocupes porque eu não contei nada à tua noiva. Ela está dentro de casa com Glória na sua maior inocência. Podes ir descansado.
Dito isto Ana levanta-se no intuito de se afastar. Francisco agarra-a desesperadamente e beija-a longamente. Ana não luta contra aquele acto, apenas se deixa levar. O beijo termina e Francisco olha nos olhos de Ana e segurando-lhe o rosto com ambas as mãos sente as lágrimas caírem apressadamente. Percebe a dor que lhe vai na alma e que trespassa aqueles olhos inchados e opacos de tristeza. Ana havia-se tornado na sua própria felicidade, e como poderia ser feliz com a sua Ana destroçada. Francisco quis falar mas a garganta apertada não deixava sair mais do que um soluço.
Ouvem-se vozes. Os pais, as irmãs e Fátima devem ter saido de casa e devem estar no balcão à conversa. Francisco tem de se ir embora...
- Eu amo-te Ana. Por favor confia em mim...
Ana vira as costas melancólicamente, depois ergue a cabeça, enxuga as lágrimas e caminha altivamente com a postura de uma rainha.
Francisco desce a terra que separa a casa da atafona, abre o portão e encontra a família de Ana com Fátima em animadas conversas.
- Desculpem incomodar, mas precisava muito de falar com Fátima se não se importarem.
- Queres um copo de angelica rapaz? – Pergunta José
- Não obrigado. Fica para outra altura. Eu estou com um pouco de pressa, pois o meu pai está à minha espera no consultório.
Fátima foi ao encontro do noivo e perguntou-lhe baixinho:
- O que se passa?
- Precisamos de conversar.
- Parece sério... Talvez seja melhor ires cear a minha casa e depois falamos.
- É melhor. Então fica combinado. – Francisco despede-se da noiva com um beijo muito frio na mão e vai-se embora sem se despedir de ninguém.
Fátima ficara intrigada. Era capaz de jurar que o noivo tinha uma lágrima prometedora no canto do olho. Estava com algum problema sério sem dúvida...
O consultório estava calmo. Ainda bem, proque assim o doutor Bruno não sentiu demasiado a falta do filho.
- Quem é vivo sempre aparece!...
- Fui a S. João...
- Fazer o quê?
- A Fátima estava em casa dos Ferreira e eu fui lá falar com ela.
- Queres dizer-me alguma coisa? Não te davas ao trabalho de ir a S. João se não houvesse algum problema. – O doutor Bruno tem um mau pressentimento, sente um calafrio percorrer-lhe as costas, e um murmúrio ao ouvido como se soubesse que apartir daquele momento a angústia seria sua companheira e o sofrimento andaria de mãos dadas com o filho.
- Eu vou esta noite cear a casa de Fátima. Vou terminar o noivado... – Francisco fica com o ar suspenso esperando uma reacção do pai.
- Porquê essa atitude? Até ontem andavas todo contente e agora parece que tens uma nuvem negra sobre a cabeça. Fizeste alguma asneira?
- Eu apaixonei-me por outra rapariga. É completamente diferente de Fátima. É alegre, divertida, espontânea... Quando estou com ela tudo o resto desaparece... E agora que eu lhe causei sofrimento, sinto um peso no peito. É como se a minha felicidade estivesse dependente da felicidade dela... É como se a nossa alma fosse uma só...
Francisco parece transportar todo o cansaço do mundo nos ombros.
- Vai descandar! Precisas de dormir um pouco, e quando acordares pensa bem no que vais dizer a Fátima... A rapariga não merece sofrer, por isso tens de ser muito honesto com ela, e principalmente, tens de mostrar respeito por ela.
Francisco obedece ao pai. O doutor Bruno fica a olhar para o filho até ele desaparecer nas escadas. Francisco nem imagina a sorte que tem por poder escolher uma esposa. Ele não depende de um casamento para fazer aquilo que gosta. É inútil pensar que depois do casamento podemos obrigar-nos a amar aquela pessoa que não nos desperta qualquer palpitar mais apressado no ritmo do coração. Como o sentimento facilita a relação... Quando falta o amor, cresce o vazio e a indiferença... O sentimento é substituído pelo quotidiano, pelo hábito de acordarmos todos os dias ao lado daquela pessoa, pelo costume de termos aquela presença em todas as refeições, pelo facto de ela ser a mãe do nosso filho.
Francisco descansa, mas não dorme. Tem de ser cauteloso ao terminar o noivado. Não sabe quais os sentimentos de Fátima em relação a ele. Ela sempre foi muito distante e pouco falante. Nunca viu uma emoção nos seus olhos apagados. Nas poucas cartas que trocaram, nunca houve uma jura de amor, nunca usaram aquelas expressões típicas das cartas dos namorados como por exemplo “ da sempre tua...”.
Chegou a hora. Francisco está em frente à porta de casa da Fátima, respira fundo, organiza pela última vez o discurso, e finalmente bate palmas...
- Francisco! Entre! Nem sabe como ficamos felizes por nos fazer companhia esta noite. – A senhora Alice estava com um brilho no olhar e com aquele sorriso maliciosamente delicado. Será que continuará tão atenciosa depois da notícia?
Francisco entra timidamente. À sua frente está Fátima que o cumprimenta sem sequer olhá-lo. Tem sempre o mesmo ar. Só a viu sorrir em casa dos Ferreira, de resto parece ausente.
- Eu gostava de falar um pouco a sós com a Fátima, se não se importarem. – Declara Francisco.
A senhora Alice perde o sorriso e adopta um ar preocupado. Ia tentar opôr-se quando o marido a pegou no braço e a conduziu para o quarto. O senhor Joaquim para além de marido e pai dedicado era um homem sensato, no entanto era demasiado submisso à mulher. O seu cabelo branco demais para os seus quarenta anos e os seus olhos pequenos e negros parecem transportar uma dor silênciosa. É alto e tem um porte atlético para a idade, no entanto, ali ao lado da mulher, não parece mais do que um pobre velho. A senhora Alice era muito manipoladora, cheia de esquemas e maliciosas simpatias, há muito que Joaquim desistira de se opôr às suas atitudes. Fingia que não percebia as intenções da mulher em relação a este casamento, mas a verdade é que hoje sentiu que a filha tem de ter alguma actividade neste noivado. É Fátima que deve sentir e viver este romance, e não realizar apenas o desejo da mãe de a ver casada com o filho do médico da vila.
- Senta-te Francisco.
- Fátima! Eu não sei bem por onde começar... No natal, quando resolvemos noivar, fizemo-lo sem qualquer tipo de sentimento. Apenas achamos que seria bom para ambos... Agora tenho dúvidas... Eu sei que o que sinto por ti é um respeito imenso e uma vontade de te ver feliz... E tu, Fátima? O que sentes por mim?
Fátima fica surpresa! Estava com medo que Francisco quisesse antecipar o casamento, mas afinal queria terminar. Por um lado sentia-se aliviada, não queria casar com Francisco, apesar de o achar muito atraente. Fátima não sentia nada que pudesse servir de base a um romance... Pelo menos não o sentia em relação a Francisco... Mas o que pensaria a mãe? Não ficaria nada satisfeita. Obrigá-la-ia a atitudes menos correctas para conquistar o Francisco... O que deveria dizer agora? Vai fazer o que o coração lhe manda. Vai dizer a verdade... Vai dizer.
- Eu admiro-o muito, mas eu também... – Fátima é interrompida por um grito da mãe...
Francisco levanta-se e corre a acudir a senhora Alice. A mãe de Fátima está desmaiada no corredor, e o marido sacode-a como se fosse um tapete...
- Acorda mulher, que me estás a deixar aflito...
Joaquim e Francisco tentam reanimar a mulher, enquanto Fátima fica de pé a olhar para aquela cena toda. Como são burros... Ela bem sabe o que se passou... A dona Alice estava a escutar atrás da porta e fingiu o desmaio para ganhar tempo. Sabia bem o que a filha ia dizer, seria o fim do casamento perfeito... Oh! Mas ela não vai deixar que este noivado acabe assim. Ninguém conhecia melhor a senhora Alice do que a filha. Fátima sabia exactamente o que se iria passar de seguida. Francisco sairia de sua casa deixando a conversa para depois, e a mãe perderia automáticamente aquele ar débil e doente e berraria com Fátima insultando-a. Depois de esgotar as forças numa gritaria ensurdecedora, apresentará a sua estratégia a Fátima e dir-lhe-á exactamente o que esta deve fazer, não lhe deixando alternativa. Era exactamente isto que Fátima não queria que acontecesse...
- Pronto, Fátima! A tua mãe já está acordada. É melhor que descanse um pouco. Não deve ser nada grave. Se ela piorar, por favor manda chamar-me... Não te preocupes. – Francisco prepara-se para ir embora.
- Não queres terminar a conversa? – Fátima não quer que aquela conversa fique para depois...
- Não é a melhor altura Fátima. A tua mãe agora quer que tu estejas ao seu lado. Faz-lhe companhia... Eu passo por cá depois.
Francisco saiu. Fátima sente um aperto no peito. Será que ele não percebe que depois será demasiado tarde? Será que ele nem questionou por que razão estaria a dona Alice atrás da porta desmaiada? Será assim tão cego? Agora quando conversarem já não poderá ser sincera... Já terá as directivas da mãe... Terá de seguir à risca os planos da tão gentil dona Alice...
Francisco sente-se decepcionado. Queria tanto ter aquela conversa com Fátima, sentir-se livre, mas afinal vai ter que esperar mais um pouco. No entanto estava mais esperançado. Tinha a certeza que Fátima não sentia nada por ele. Viu bem o brilho que o rosto de Fátima adoptou quando Francisco lhe deu a entender que não sentia mais do que respeito. Ela passou a ter em si espelhada uma nova esperança. Francisco sempre achou que Fátima era uma noiva pouco entusiasta, talvez porque não o desejava para marido. Teve a sensação de ter à sua frente uma outra rapariga, mais leve, mais espontânea, mais interessante. Com toda a certeza que o fim do seu noivado já tem um destino marcado... Parecia ironia o que a vida lhe fez. Francisco tinha planeado a sua vida de forma infalível rumo à felicidade. Seria médico como sempre quis, teria uma esposa dedicada em casa, de muito boas famílias, ideal para mãe dos seus filhos, teria como sogro o presidente da câmara... Agora passadas umas poucas semanas esta vida em que espelhara a sua felicidade futura era-lhe completamente intolerável. Esta vida perfeita e invejável era uma hipótese que Francisco não queria ponderar... Era uma felicidade sem raiz, que o consumiria numa tristeza intemporal...

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