sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Capitulo XX

Capitulo XX

     Errar é humano, mas perdoar é divino… Estas palavras tomavam um sentido tão literal e físico na vida de Diana, que só o facto de uma leve sensação tardia ensombrava um pouco esta divindade. O acto de perdoar não reflecte apenas uma bênção para o perdoado, mas significa uma abertura de espírito a algo infinito, tornando todo qualquer bem-estar superior possível para aquele que tem a capacidade de perdoar. No entanto, perdão não é sinónimo de esquecimento, muito pelo contrário. O verdadeiro perdão é aquele que não implica o esquecimento das acções negativas que lhe deram origem. Esquecer é sinónimo de desaprender. E desaprender é sinónimo de que as cautelas que o nosso ser ganhou com o sofrimento provocado por actos impróprios são desmoronadas e voltamos e estar susceptíveis a permitir actos iguais. Por isso é que o perdão deve ser praticado por personalidades fortes que tenham a capacidade de perdoar sem baixar as defesas, ou corre-se o risco de entrar num ciclo vicioso de perdões repetitivos que deixam de fazer sentido. Diana era detentora de uma personalidade forte que soube tirar o melhor proveito daquele perdão.
    A sua alma sentia uma leveza até então desconhecida que se mostrava descaradamente num ar descontraído que lhe havia apagado a ruga marcada na testa. Não havia pressões, nem metas a atingir. Não havia ansiedades, nem nada a provar… Era apenas a Diana, quase sem fantasmas… E era este quase que tomava uma dimensão demasiado grande, para um facto tão pequeno…
    - Bom dia cavalheiros! – Naquela manhã Diana sentiu necessidade de tomar o pequeno-almoço num lugar amado com as pessoas que realmente faziam parte da sua vida. Guida ficou encantada com aquela visita tão matinal.
- Bom dia menina… Bons olhos a vejam! – Guida cumprimentava-a preparando uma meia de leite com o desembaraço de uma vida de experiência.
    O café estava calmo e gozava-se de um descanso atípico para um dia que prometia ser quente e convidativo a um mergulho naquelas águas limpas e de movimentos suaves. Diana sentou-se na mesa onde estavam os pescadores sem pedir licença.
- Então o que é que a donzela vai fazer hoje? – José Gaitinha falava ao mesmo tempo que mastigava a torrada que pingava manteiga pelo canto da boca.
- Depois de te limpar a boca como se faz aos bebés… - Diana pegou num guardanapo e passou-lho pelos lábios secos e gretados, animando a manhã dos restantes velhotes – Vou ao cemitério…
- Ah! Vais à campa do Bernardo? Então vou contigo! – Mário ofereceu-se depois de inalar um longo trago de um cigarro murcho.
- Não vou à campa do Bernardo! – Esta afirmação provocou um olhar espantado dos pescadores e de Guida que esperavam uma continuidade daquela constatação. – Vou visitar o meu pai. – O silêncio que se seguiu não foi uma pausa de pesar, e muito menos de respeito… Foi apenas um momento em que ninguém conseguia formar um pensamento digno de ser verbalizado.
- Então ninguém comenta? Ficaram sem língua, estes linguarudos? – Diana esforçava-se por cortar os pensamentos comuns que se pudessem estar a formar-se naquelas mentes.
- O que vais lá fazer? – Foi Manuel que com o seu ar sério formalizou a questão silenciada por todos.
- Vou meditar sobre tudo o que se passou. Vou ver se existem motivações suficientes que justifiquem tudo o que ele me fez passar!
- Acho que fazes bem! – Gaitinha, com o seu coração mole, colocou as emoções no meio dos seus lábios. – Ele tinha os seus defeitos… Mas ele também teve uma vida muito difícil Diana… Nunca teve ninguém que o ensinasse a ser bom… Nunca teve o exemplo de uma boa família…
    Diana sentiu um aperto no peito. Ainda havia um assunto que a prendia naquele passado terrível…
- É verdade Diana! – Mário continuou aquele discurso de luto que só agora estava a ser feito. – O teu pai sofreu as passas do Algarve naquela família que Deus lhe deu. Eu ainda me lembro de ele andar a roubar fruta no mercado para matar a fome… Era uma criança demasiado enfezada para a sua idade e sempre imundo…
- Foi um pobre coitado que não teve a mesma capacidade que tu Diana! – A voz grossa de Manuel deu um tom de realidade às palavras anteriores… - Ele teve uma infância terrível… Passava dias sem ir a casa com medo do que lhe podia acontecer… Não era aceite em casa nem fora dela… Nunca lhe conheci um amigo verdadeiro, só os amigos dos copos…
    Gaitinha interrompeu Manuel.
- Quando ele conheceu a Ermelinda ele mudou. Oh Diana! Parecia um novo homem… Lembro-me de vê-lo todo asseado nos bailaricos na esperança de conseguir dançar com ela… Até começou a trabalhar nas terras dos Fonseca, lembras-te Mário?
- É verdade! Eu trabalhei com ele nessa altura… Lembro-me que ele tinha a força de um touro. E era um homem digno que procurava uma oportunidade. Estava muito apaixonado pela tua mãe, e quando percebeu que era correspondido, ganhou uma nova motivação para a vida… Mas apesar de terem casado e do Zé nos primeiros meses de casamento manter a mesma atitude, a verdade é que ele voltou a refugiar-se no álcool e nunca mais vi aquele homem com quem trabalhei…
    Foi Manuel que iluminou melhor aquela questão que ainda se mostrava confusa.
- Eu acho que ele procurou uma oportunidade… Mas aquela gente dos Pereira do talho, ou seja, a família da tua mãe era de más rés… E por mais que o Zé se esforçasse eles faziam sempre questão de o humilhar e mostrar de onde é que ele vinha… E verdade seja dita que o Zé era de cabeça fraca, e o facto de não ter sido aceite por eles levou-o para uma fossa tão funda que ele nunca mais se juntou… O teu avô chegou mesmo ao cúmulo de pagar aos Fonseca para não lhe darem mais trabalho… E depois disto o Zé tomou uma grande bebedeira. O Pereira velho, aproveitou-se disso para espalhar pela ilha que o Zé tinha sido despedido porque tinha voltado aos copos, nunca mais ninguém lhe pegou para trabalhar… O Zé foi-se afundando cada vez mais na bebida e o boato tornou-se verdade…
    Diana absorveu aquela curta história e sem saber bem quais os efeitos que aquele novo conhecimento lhe provocava seguiu caminho ao cemitério.
    Diana sempre achou absurdo que aqueles terrenos estivessem ocupados pela morte. Parecia que os mortos zombavam dos vivos, naquele sitio privilegiado onde estavam sete palmos abaixo de poderem usufruir da vista fantástica que poucos lugares ofereciam. Só agora ali em frente à sepultura do pai é que ela podia apreciar o conforto que aquela beleza da natureza proporcionava a quem chorava a angústia da perda. E ela chorava a angústia da perda do pai. Chorava o facto de não ter tido tempo para resolver as coisas em vida. Chorou a certeza de não saber que sentimentos despertava no progenitor. Pedro sempre lhe dissera que o pai a afastava porque via nela a imagem e a força da falecida esposa, e não suportava ser confrontado com isso todos os dias.
- Oh pai! – Diana verbalizava as palavras em voz alta, na esperança que elas se elevassem até onde a percepção dos mortos a atingisse. – Eu sou uma mulher adulta e bem-sucedida, e tu um pobre espectro... A vida foi mais generosa comigo do que foi contigo... E começo a questionar-me se não foi porque tu, apesar de tudo, não foste melhor pai para mim do que o teu pai foi para ti... Talvez tu te tenhas esforçado e tenhas conseguido dar-me uma vida um pouco melhor do que aquela que tu tiveste... Mas o ser humano é assim... Chora só as dores que conhece. Eu chorei as minhas, e tu choraste as tuas... E nunca questionamos porquê... Tu tiveste melhores filhos que os teus pais e eu só posso pensar que foi porque, apesar de não teres tido nenhuma orientação para a família, conseguiste distinguir-te um pouco dos teus progenitores... E deste a oportunidade aos teus filhos que se distingam um pouco mais de ti... E os meus filhos e do Pedro terão a oportunidade de se distinguirem um pouco mais de nós... E isto porque fomos sempre melhorando... – Diana deixava cair lágrimas gordas, mas não soluçava. – Tenho tanta pena que a maturidade necessária para este entendimento só me tenha chegado agora. Mas eu tenho esperança que possas sentir o que me vai na alma. Tenho esperança que sintas que eu te estou a pedir desculpa por te ter dito que te odiava... E quero que sintas que te perdoo de coração todas as tuas atitudes que me magoaram... Eu não tenho vergonha das minhas raízes... E eu já não tenho vergonha de ti, porque és o meu pai... E eu recebi o meu testemunho de ti...
    Diana ajoelhou-se e depositou as rosas sobre o tampo de mármore negro... E rezou... Rezou como já há muito tempo não o fazia. E sentiu uma paz quando voltou a fixar o mar alongado a seus pés contornando dois ilhéus ao longe a acabando na encosta da ilha vizinha. Era por esta calma de espírito que ela ansiava. Todo o seu ser estava agora despido de pré-ideais ou de provas impostas a si mesma. Ela era neste momento um tronco em bruto, e podia esculpir o destino que quisesse.
    O seu rosto iluminou-se, quando em resposta a uma mão suave pousada no seu ombro voltou-se e descobriu que estava preparada para aquele futuro, sem outras restrições ou falsas prioridades... Para se seguir um novo caminho temos de fazer de volta o antigo caminho.
- Olá Diana! – O olhar ansioso que acompanhou aquele cumprimento desmoronou a última pedra de uma muralha construída pelas razões erradas e Diana preparou-se para o que o destino lhe reservava.
- Olá Duarte! – O cumprimento de Diana foi mais frio do que Duarte esperava... Ele tinha sonhado várias recepções, e em todas elas acabava com Diana a abraçá-lo efusivamente.
- O Bernardo escreveu-me uma carta antes de morrer. Só ontem é que a recebi. Ele deixou-a ao seu advogado e pediu-lhe estritamente que só me entregasse após a sua morte e numa altura oportuna para ti.
    Diana olhou-o confusa. A imagem de Bernardo ainda estava fresca na sua memória e cada alusão a ele despertava-lhe uma dor no peito. Duarte estendeu-lhe a carta num entendimento calado de que ela a deveria ler.

“Caro Duarte,

Vou passar a parte das saudações, pois no lugar onde me encontrarei quando leres esta carta, estou convencido, não existem estes tipos de formalidades.
Como já deves ter adivinhado escrevo-te, tendo como assunto principal a mulher que ambos amamos. Ela é um diamante em bruto capaz de despertar maravilhas em quem se cruza no seu caminho. Mas só os olhos mais atentos e as personalidades mais puras terão a inteligência de saber apreciá-la. E eu aprecio. Aprecio-a muito. Tanto que decidi organizar a minha vida de forma a que possa apreciá-la até ao fim dos meus dias, que adivinho ser em breve. Mas como qualquer preciosidade, ela está destinada a alguém. E esse alguém és tu.
Vou contar-te de forma resumida a mulher que reserva todo o seu amor e lealdade apenas a ti. Eu conheci a Diana num acidente em que eu lhe parti uma perna. E apesar de lhe ter provocado um mal, agradeço a Deus, todos os dias, ter-me proporcionado esse acidente. Diana deu-me a conhecer uma mulher forte e com tanta dignidade que pensei impossível num só ser humano. Ela contagiava tudo com o seu espírito de iniciativa, e sem exigir nada conseguia que todos à sua volta partilhassem dos seus projectos. É uma pessoa que não gosta de se impor, e é esta característica que faz com que ela receba tanto das pessoas que lhe dão uma oportunidade. Não existe ninguém que se tenha aberto à Diana que tenha ficado desiludido. Sempre admirei o facto de ela ter a capacidade de apaixonar as pessoas que lhe abrem o coração. Nas vidas corriqueiras temos imensa gente... Tanta, que temos a obrigação de as distinguir entre os melhores amigos, os amigos do coração, os simplesmente amigos, os colegas, os vizinhos, os conhecidos, etc. Diana tem poucas pessoas na sua vida e nunca soube fazer esta distinção. Tem os amigos que a amavam e que são amados por ela... E todos os restantes seres, são apenas os outros... Uma vez ao confrontá-la com esta situação ela respondeu-me humildemente “ a marginalidade é como um coador, as pessoas passam por nós e esforçam-se por não ficar... Só fica quem quer... E esses que querem merecem tudo de mim...”. Esta era outra virtude dela. Não deixando de ser verdade, e como qualquer verdade que se preze, existe mais verdade para além desta. Existem muitos marginais que não despertam esta paixão naqueles que lhes abrem os braços... E mesmo que despertem, a maioria não sabe alimentá-la.
Agora vou contar-te um pequeno segredo meu, que vai fazer sentires-te ridículo face a algumas conjecturas que criaste relativamente à Diana. Eu sou impotente... A Diana nunca me conheceu como um homem viril. Logo quando fizeste juízos de valor naquele beijo que viste, fizeste mal. Ela estava apenas a defender-me de quem me humilhava. E tu viraste costas a uma mulher fascinante e leal, sem sequer lhe dares oportunidade de se explicar... Tenho agora de confessar que esta foi a única vez que revelei a minha impotência que me deu um certo prazer.
E quando a Diana foi até à sua terra natal, numa altura em que evitava os seus fantasmas do passado, na esperança de te encontrar, eis que tu estavas noivo...
Se queres a minha opinião sincera, eu acho que tu não és suficientemente bom para a Diana... Mas depois de uma reflexão mais profunda chego à conclusão que não existe neste mundo ninguém suficientemente digno dela. Por isso o critério da felicidade é o único a ter em conta... E eu sei que ela só encontrará uma felicidade terna e pacifica contigo... Porque ela ama-te.
Questiono-me se tens noção do privilégio que está só ao teu alcance e vedado a todos os demais mortais.
Esta carta toda tem apenas um objectivo: dar-te um concelho. Faz as malas e aceita o prémio que a vida te oferece...

Um abraço,
Bernardo”

    Diana sentiu o peso da saudade, e o carinho da gratidão. Até na morte, Bernardo velava por ela. Os seus olhos fixaram os de Duarte e o seu corpo reagiu a esse contacto com um arrepio. Ela desejava-o tanto. Queria abraçá-lo e fazer-lhe promessas eternas…
- Agora é tarde! – Diana agora percebia como um pequeno momento de insegurança pode destruir uma felicidade que se perpetuaria pela eternidade. Se ela não tivesse hesitado no momento em que Duarte desapareceu da sua vida, teria justificado logo aquele beijo e provavelmente estariam juntos… - Tu és um homem casado…
    Duarte reagiu ao impulso que lhe palpitava nas veias de tocar em Diana e pegou-lhe na mão como fizera vezes sem conta. Conduziu-a para longe da campa do pai em silêncio. Era engraçado como o ser humano se auto destrói na sua complexidade de sentimentos mesquinhos. Todo o seu corpo reage a um simples encostar de pele, de uma forma muito mais sábia do que a sua mente que se deu ao luxo de elaborar longos processos de raciocínios destinados a justificar a distância necessária que devia manter daquela mulher. A sua alma elevava-se e tornava-se grandiosa face à possibilidade de ser merecedor do amor de Diana e os seus pêlos eriçavam-se com o seu perfume agreste que as suas narinas captavam sofregamente… Como se pode recusar tais evidências? Como podemos criticar o nosso destino se a nossa mente influenciada por uma sociedade maldosa e pouco digna se conspurca em desconfianças vãs? Pararam em frente ao jazigo de Bernardo, e Duarte colocou-se em frente de Diana obrigando-a a encará-lo. Aquele é o momento em que a expressão dos olhos tem de acompanhar a verdade das palavras.
- Eu amo-te Diana! Muito! – A proximidade dos rostos provocava um calor agradável nas faces de Diana. Esta abriu a boca no intuito de proferir um qualquer pensamento ou sentimento, mas Duarte pousou o dedo indicador sobre os lábios rosados com o intuito de silencia-la. Aproximou-se mais, juntando ambos os corpos num contacto promissor. – Deves saber que eu sou um homem disponível… Depois daquela noite que passámos juntos era impossível juntar o meu destino a outra pessoa… Eu saí naquela manhã, porque me pesava a consciência na mesma medida que o meu peito palpitava felicidade… Saí para poder voltar para ti completamente disponível… Mas tu já não estavas lá. – Diana tentou justificar-se e uma vez mais Duarte silenciou-a passando vagarosamente o dedo pelos lábios macios. – Fiquei sem saber o que fazer… Andei de um lado para o outro, ponderei demasiado o meu próximo passo e decidi, procurar-te. Conhecia-te o suficiente para adivinhar que estarias nas piscinas da Poça da Rainha… E não me enganei… - Duarte sorriu ao perceber o quão ridículo tinha sido o seu ciúme. – Mas tu estavas lá com o Bernardo…
    Os dois interiorizaram aquelas palavras durante uns momentos em que nunca desviaram os olhares. Diana então soube o que fazer a seguir. Todo o seu corpo cedeu ao instinto de seguir o rumo certo que a conduziria a um futuro verdadeiramente desejado, sem pressões ou intuitos obscuros. Afastou-se um pequeno passo de Duarte, provocando uma certa confusão neste, e ajoelhou-se.
- Duarte! Aceitas-me como tua mulher para o resto da tua vida?
    Duarte levantou-a como se ela não pesasse mais que uma pena e sem que ela conseguisse pousar os pés no chão Duarte rodopiou-a enquanto gritava efusivamente.
- Eu não só te aceito, como quero-te por toda a eternidade.
- Mas eu tenho uma condição. – Duarte ficou apreensivo e um pouco desconcertado, pousando Diana no chão e preparando-se para aceitar qualquer condição que lhe permitisse aceder a um futuro com aquela menina mulher de lábios carnudos, com uns caracóis cheios de vontades, reflectindo bem a personalidade que quem os possui. – Nunca mais tiramos conclusões precipitadas… Já percebemos que nenhum de nós é bom nisso…
    No meio daquele cenário mórbido ambos riram alto, coloriram o cinzento do cenário e agitaram aquela paisagem pacífica. Quando os dedos se entrelaçaram, os peitos se juntaram e os hálitos se confundiram, o beijo naturalizou-se numa paixão avassaladora que desaguaria num amor sereno.


                                                                                Fim

1 comentário:

  1. E assim chega ao fim a história da Diana... a jovem que se tornou a minha companhia diária nas minhas horas de almoço solitárias.... Com ela vivi emoções, amores, desamores, mas acima de tudo, estórias de vida.... Venha de lá a próxima..!!!

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