sábado, 24 de setembro de 2011

Na Base da Montanha CAPITULO I


Na Base da Montanha

CAPITULO I


Finalmente a missa terminou. Num dia de Primavera tão bonito é enfadonho passar tanto tempo dentro de um templo religioso, onde a luminosidade escasseia por entre os vitrais coloridos, e onde as palavras do padre Inácio se conjugam com o berburinho do público cristão resultando daí um incompreensível latim, que dava sono e deixava Ana profundamente deprimida.
Ana era uma rapariga de origens simples. A segunda das três filha de Lúzia e José. Lúzia, uma mulher dócil e muito dedicada à família, tinha uma proximidade das filhas invulgares entre duas gerações distintas. O pai ficava um pouco na margem desta relação, não por vontade própria, mas porque a sua função masculina de não deixar que falte nada na sua casa assim o exigia. 
Ana era feliz, mas como qualquer adolescente de dezassete anos sonhava deixar a ilha e conhecer o mundo. Não que ela não tivesse orgulho da sua ilha… Pelo contrário, ela orgulhava-se muito de morar na base da montanha mais alta do seu país,  Portugal… Mas de que lhe valia isso se não podia dizê-lo ao resto do mundo…
– Ana, vai buscar algumas favas secas para moer e fazer café… Olha que o teu pai está a chegar…– disse a mãe atarefada a preparar as papas para o almoço.
– Sabes mãe, eu aprendi na escola que no Brasil o café é feito com grãos de café. Mas aqui no Pico fazemos café com favas. Então, eu acho que não deviamos chamar café ao nosso café. Não acha mãezinha?– disse  Maria na sua doçura dos 10 anos e orgulhosa por estar na terceira classe. Mais um ano e terá tantos estudos como as suas irmãs. Assim pode acontecer que  deixem  de implicar com ela só pelo facto de ser a mais nova.
Já todos reunidos na sala de estar, para tomar o almoço, a conversa torna-se animada.
- Acham que vou viver o suficiente para assistir à passagem de milénio? – perguntou Ana.
- Claro que sim – respondeu Glória a mais velha das irmãs – já só faltam cinquenta anos.
- Não falem de tolices. Parece que não sabem que o ano 2000 significa o fim do mundo. Pensem mas é em ser umas boas meninas para não terem muitas contas a acertar no dia do Juízo Final. – Exaltou-se Luzia que era uma cristã convicta. Os seus olhos azuis quase transparentes estavam agora opacos, o que significava que não valia a pena continuar aquela conversa.
- Estava cheia de fome — disse Ana na tentativa de aliviar os ânimos — o padre Inácio devia ter em conta que o seu rebanho vai em jejum à sua missa e  ser um pouco mais rápido a chegar ao fim.
- Eu cá acho que é tolice nossa não tomar o almoço antes da missa. O padre não sabia se tinhamos comido ou não e nós podiamos comungar na mesma. — conclui Maria.
- Acabemos com a conversa. Vocês três arrumem a mesa que eu e vosso pai vamos visitar a tia Angelina…
As três irmãs gostavam imenso do domingo. Havia pouco que fazer. Apenas a lida da casa, que durava um instante se as três se organizassem.
Maria gostava de brincar com a sua boneca de trapos, que os queridos tios lhe tinham mandado da América. Gostava muito desses tios americanos apesar de não os conhecer, mas como eles mandavam roupas muito bonitas  só podiam ser boa gente. As pessoas más vestem-se mal, pois se não têm gosto pelos bons sentimentos, também não podem ter bom gosto no que diz respeito a modas. Maria, pelo contrário, ocupava o seu tempo livre cuidando da sua boneca e da sua roupa. Conhecia a moda, e como já sabia costurar ia adequando as roupas antigas, ora pondo uma fita aqui, ora pondo uns acessórios bonitos ali… Assim seria linda por dentro e por fora. O seu cabelo dourado caía-lhe em cachos sobre os ombros. Usava-o frequentemente solto, ou então apanhado com uma fita, normalmente da mesma cor da saia. A sua boca muito pequenina condizia com o seu narizinho bicudinho. Maria sofria com o desgosto de ter umas poucas sardas que segundo ela “ eram mais que as estrelas do céu “. Também tinha pena de não ter os olhos azuis da mãe. Dizia muitas vezes “herdei o pior dos dois: as sardas da mãe e os olhos castanhos vulgares do pai”.
O seu grande orgulho era o facto de poder frequentar a escola. Só tinha pena de não poder estudar para além da quarta classe. De certeza que os seus pais não a deixariam ir para o Faial continuar os estudos...  e ela que gostava tanto de ser professora… Sabia bem a vida que a esperava… Via-a todos os dias no quotidiano das irmãs. Às vezes ajudam na lida da casa, outras acordam ainda antes do amanhecer para ir para o mato mudar os animais ou ajudar na agricultura… Era tudo o que ela não queria para si. Assim só poderia vestir roupas bonitas para ir à missa ou a alguma festa. Não imaginava que um dia teria de trocar os seus lindos sapatinhos de camurça por um par de albarcas feias e desconfortáveis.
Glória aproveitava o seu domingo lendo lindos romances e suspirando em voz alta. Às vezes lia e relia à pressa bilhetinhos misteriosos, que logo escondia debaixo do colchão. Neste domingo, e como acontecia sempre que os pais saíam, resolveu dar um passeio. Todas as vezes que saía nestes passeios misteriosos levava um sorriso palerma nos lábios rosados e carnudos. Não disfarsava o seu ar ansioso. Os  seus grandes olhos castanhos adoptavam um brilho culpado, que harmonizavam com o brilho apaixonado do seu cabelo negro.
Glória estava a viver, pela primeira vez, um amor furtivo próprio dos seus dezanove anos. O eleito do seu coração era João, o filho do barbeiro. Não era um rapaz bonito, mas enchia a sua alma de um sentimento que até então lhe era desconhecido. Cabelo e olhos negros, de pele muito branca, estatura média e pouco entroncado estava longe de ser um príncipe. No entanto, Glória trocaria bem um belo príncipe por esta figura caricata. Estes são os mais belos mistérios do amor…    
Glória era uma pessoa feliz por natureza. Pedia pouco à vida e contentava-se com o que esta lhe dava. Era a única das três irmãs que herdara a imensa fé religiosa de sua mãe. Agradecia a Deus, todos os dias, por ter tido o privilégio de frequentar a escola, por ter sempre uma mesa farta na sua casa e pela família maravilhosa que lhe tinha dado. Sabia bem que naquela pequena freguesia chamada S. João, situada numa insignificante ilha dos Açores dada pelo nome de Pico, estas bençãos eram raras. E para completar toda esta felicidade, Deus ainda lhe concedia a sorte de saber o que é o amor… A sorte de saber o que é amar e ser-se amado…
    A sua única falha e que lhe perturbava muito o espírito, era o facto de ainda não ter contado à sua família que estava apaixonada. Tinha medo que os pais não aceitassem João, pelo facto de ele ser de famílias muito humildes. Pelo contrário, a sua família tinha muitas terras, tinham uma boa casa, tinham um bom nome na freguesia. Os seus pais tinham feito questão de lhe dar o máximo de estudos que a ilha permitia, não quereriam concerteza que ela se casasse com um rapaz que tinha apenas o primeiro exame. O pai de João tornou-se barbeiro, porque foi a única herança que o seu pai lhe deixara, e era a única coisa que tinha para deixar ao filho. Glória não tinha a certeza de que seus pais apoiariam a ideia de um casamento entre a filha mais velha e o filho do barbeiro.
Ana já sabia deste romance, descobriu por acaso um dos muitos bilhetes que Glória tinha guardado. Contudo, nunca lhe dissera que tinha descoberto o seu segredo. Não queria pressionar a irmã a contar-lhe. Quando ela quisesse fazê-lo havia de procurá-la.
Ana era uma rapariga muito discreta. Herdara o feitio reservado do pai. No entanto, a sua imaginação era muito activa, nunca parava. Sonhava sair da ilha e conhecer o mundo. Aprendera na escola que no continente a terra nunca acabava. Que se podia andar, andar sem nunca chegar ao mar. Quanto mais andasse, mais sitios diferentes conheceria. Era tão diferente da vida numa ilha. Ali estava limitada pelo mar. Já tinha atravessado o mar uma vez, quando foi à ilha do Faial comprar uns sapatos de camurça. Estava muito entusiasmada por sair daquela ilha. Passou lá cinco dias. Ficou encantada com a imagem da sua ilha ao longe. Era realmente uma montanha imponente, capaz de despertar sentimentos estranhos como o de medo e ao mesmo tempo de orgulho. A sua ilha vista daquele cais parecia um triângulo, cuja base se alongava sobre o mar. Era óbvio que a sua ilha tinha uma relação muito próxima com o mar. Só não conseguia adivinhar de que tipo de relação se tratava. Talvez houvesse um sentimento de paixão entre eles, como acontecia com a sua irmã Glória. Ou talvez fosse apenas uma relação de vaidade, usavam-se um ao outro. Nunca tinha visto a sua ilha com aquela beleza selvagem que agora conseguia admirar, porque também nunca a tinha visto assim toda abraçada pelo mar. Também nunca tinha achado o mar tão bonito como naquele fim de tarde, talvez porque nunca o tinha visto receber em seus braços a sua magestosa ilha, numa ternura tão pura que amolece os mais cruéis corações.
O Faial era uma ilha muito diferente da sua. Havia mais casas, e estas estavam numa disposição mais unida. Também havia mais carros e as estradas estavam adequadas a estes. Em S. João só havia três carros e não eram tão bonitos. Havia muito comércio, e depressa Ana percebeu que as pessoas não eram mais ricas por terem muitas terras. Havia meios de sobrevivência alternativos, como o comércio. Nos primeiros dias Ana gostou muito de lá estar. Mas depressa chegou à conclusão de que era uma ilha e até mais pequena do que a sua, apesar de estar mais desenvolvida. Quando acabasse de explorar tudo não restava mais nada. Não podia continuar a andar…
Fisicamente Ana era atraente. Os olhos verdes opacos contrastavam com o cabelo negro e liso. Era a mais alta das irmãs, mas a que dava menos nas vistas, uma vez que não ligava a modas, nem tinha jeito para isso. Quando Maria escolhia a sua roupa e lhe penteava os cabelos ficava “uma riqueza” como dizia a pequenota da família. Segundo Maria, Ana não devia apanhar tanto sol, pois já não era muito branca e assim ficaria ainda mais escura.
Eram duas da tarde, e Glória não havia maneira de aparecer. Os pais já tinham chegado à meia hora e estavam chateados com a situação. Ana então resolveu mentir…
- A Glória foi dar um passeio com a Fátima. Já não estavam juntas desde a última vez que ela cá veio à freguesia… já lá vai uma “macheia” de tempo.
- Oh filha, pois talvez tens razão... Mas para não me arreliarem podiam ter dito onde iam. – disse a mãe já com um ar meio zangado.
- Eu vou procurá-las. Encontro-as num instante… – ofereceu-se Maria.
- É melhor ir eu – interrompeu Ana muito depressa. Não era bom que Maria descobrisse o namoro da irmã.
- Vai a Maria, e tu ajudas-me a pôr a mesa– resolveu Luzia.
Maria saíu inchada de importância pelo facto da mãe lhe ter confiado a tarefa a ela. Não ia falhar… Se fosse preciso corria S. João de uma ponta a outra, mas não voltava para casa de mãos vazias…
- Boas tardes Zulmira! Não viu por aí a Glória? Aquela desnaturada saíu de casa depois do almoço e ainda não voltou…– perguntou Maria que já estava no fim da rua de sua casa.
- Vi-a já há muito tempo para lá da sociedade filarmónica.
Maria continuou a sua busca. Ia até à filarmónica e estava muito contente por isso. Tinha muito orgulho naquela sociedade pois tinha sido fundada pelo seu avô em 1907. Mesmo à porta estava o senhor Tarimba que lhe disse que tinha visto Glória a subir a rua do cabeço. Agora Maria estava a ficar preocupada… O que é que havia para aqueles lados que pudesse interessar num passeio? Só esperava que não estivessem no moinho abandonado. Este moinho estava em boas condições, no entanto ninguém se atrevia a usá-lo, apesar de ninguém reclamá-lo como sua propriedade. Dizia-se que estava assombrado. Há muitos anos atrás, parece que um homem se enforcou lá sem nenhuma explicação, e depois de estar já morto apareceu à sua mulher a dizer que o demónio lhe aparecera e lhe dissera que aquele moinho era propriedade sua. Aconselhou a mulher a nunca mais ir ao moinho e que não o deixasse como herança aos filhos. A mulher assim o fez. Duas gerações depois, um homem muito pobre resolveu tomar o moinho e dar-lhe alguma utilidade. Dizem que o homem desapareceu logo na primeira vez que pôs o moinho a funcionar para fazer farinha. Algumas vezes o moinho funciona durante a noite. Diz-se que é esse homem que lá desapareceu e que agora é escravo do diabo. Nessas noites o vento sopra com mais força para que a farinha se faça mais rápido. Com essa farinha faz-se o pão que o diabo amassa e que os desgraçados comem.
- Glória! Glória!… – gritava Maria já no cimo da canada, quando viu numa vinha um casal de namorados. Era lindo ver-se dois apaixonados. Aproximou-se para ver quem eram, quando de repente e para grande espanto seu, encara Glória em longas promessas de amor eterno com o filho do barbeiro. Ficou ali especada até que a irmã a viu e correu ao seu encontro.
- Oh Maria! Como é que me descobriste aqui? Não vais dizer nada aos paizinhos,  pois não? Este será o nosso segredo… – implorou Glória…
- Eu não acho certo que este namoro seja às escondidas. Porque é que o João não pediu ao pai para te poder visitar e quem sabe casar? Então João? Eu sou nova, não sou burra… Não vês que se ele te esconde é porque não quer nada sério contigo. Aposto que quando sair daqui,  vai para a “Voz do Campo” gabar-se aos amigos…–exaltou-se Maria.
- Estás enganada Maria… Eu é que não quero contar aos pais. Pelo menos por enquanto… Tenho medo da forma como podem reagir, compreendes Maria? –desabafou Glória.
- A Maria tem razão. Amanhã à noite vou a tua casa falar com o teu pai. Há-de ser o que Deus quiser – resolveu João cheio de embaraço pela situação.
- Até que enfim alguma dignidade. Eu vou apoiar-vos. Se o pai se opuser ao vosso namoro eu hei-de convencê-lo a aceitar. Hoje vou continuar a mentira da Ana e dizer que te encontrei com a Fátima – disse Maria, e voltando-se para João– e se tu não apareceres amanhã à noite conto tudo aos meus pais.
As duas irmãs voltaram para casa em silêncio. Cada uma tinha o pensamento ocupado de forma diferente, no entanto o assunto era o mesmo. Glória estava ansiosa… Como é que reagiriam os pais? Estava disposta a lutar pelo seu amor, mesmo contra a vontade da família. Ela é que tinha de decidir com quem quer passar o resto da sua vida. Se não fôr com João será infeliz e os pais não querem concerteza essa responsabilidade, por isso só podem aceitar. Havia também outra questão que lhe rondava a mente. O que é que passou pela cabeça de Ana para ter inventado um passeio com Fátima? Será que ela já sabia? Será que estava a tentar encobrir o seu romance?
Maria estava satisfeita com a situação. Nunca imaginou que a sua irmã mais velha se pudesse apaixonar. Sempre pensou que ela tinha vocação para freira… Quem diria… Depois do noivado de Glória, só faltava encaminhar Ana e depois seria a sua vez de arranjar um pretendente. Não seria concerteza o filho do barbeiro que para além de feio era pobre… O que terá visto Glória naquele rapaz? Talvez fosse simpático e respeitador… Mas isso não interessava agora… O que interessa é que daqui a nada ela poderá ter também um namorado… Isto sim é uma boa notícia…
Finalmente chegaram a casa.
- Esta doida estava a mexericar com a Fátima. E o mexerico devia ser bom, porque quando lá cheguei nenhuma delas tinha dado conta de que já era tão tarde. – disse Maria lançando um olhar cúmplice às irmãs e recebendo destas um sorriso.
Ana tinha percebido tudo. Era muito perspicaz…
Depois da refeição as quatro mulheres arrumaram a cozinha e foram descansar. Luzia pôs-se a cozer umas meias aproveitando assim a luz do dia. O seu marido resolveu dormir uma sesta e as meninas foram para o quarto. A conversa girou à volta do que tinha acontecido.
- Diz-me uma coisa Ana… Já sabias dos meus encontros?
- Na verdade já. Só não te disse porque não te quis embaraçar. Sempre achei que se precisasses de falar com alguém, tu é que devias decidir com quem e  não me quis impor como tua confidente…
- Oh Ana! Não páras de me supreender. O João comprometeu-se a pedir a minha mão amanhã à noite… Estou tão nervosa, mas ao mesmo tempo aliviada. Esta mentira estava a pesar-me muito no coração. Como achas que os pais vão reagir?
- É graças a mim que o teu amado deixou de ser covarde.– disse Maria cheia de importância o que provocou um mar de risos nas irmãs, desanuviando o ambiente…
O sol esperado estava a nascer e Glória olhava-o cheia de esperança naquele novo dia. Hoje fora a primeira a acordar. Estava energética. Ali sentada numa pedra no meio do mato, com o pai e a irmã do meio, apreciava cada momento. Não conseguia concentrar a sua atenção nos animais. Hoje nem tinha bebido uma caneca de leite ainda quente acabado de tirar da vaca. Ordenhava aqueles animais enormes sem sequer olhá-los. Ana mirava a irmã e pedia aos céus que tudo corresse bem. Hoje só passavam a manhã no mato. Quando acabaram de tirar o leite a todas as vacas foram para casa, ficando o pai sozinho, que só chegava a casa ao anoitecer.
Glória parecia uma barata tonta. Não parava quieta. Arrumava tudo e zangava-se com quem tirasse alguma coisa do lugar. A mãe desconfiou de toda aquela agitação.
- Que se passa pequena? O que é que te atormenta? Podes contar à tua velha mãe… Pára quieta um instante que me pões tonta…
Glória olhou os olhos da mãe num grito de silêncio e pediu ajuda. Deixou-se cair naquele colo quente e experiente e libertou os seus sentimentos. Finalmente chorou. Luzia limitou-se a acariciar-lhe os cabelos e esperou que a filha se abrisse com ela. Glória sentia uma enorme paz e soube que podia confiar na sua velha mãe.
- Sabe mãe, eu tenho-me portado muito mal ultimamente. As minhas acções foram pouco dignas, mas os meus sentimentos muito nobres. Eu amo um rapaz e tenho a certeza de que sou correspondida. Como é que eu sei isso? Sei, porque ele me disse, porque eu tenho-me encontrado com ele sempre que posso. Ele é pobre e quase analfabeto, sei que a mãe e o pai queriam mais para mim, mas eu acho que se me casar com este rapaz vou ter o que de mais precioso há, vou ter o amor e a felicidade…
- Já há algum tempo que desconfiava… Tu andavas com um ar suspeito, suspiravas demais e sonhavas acordada… Uma mãe sente essas coisas. Quem é esse rapaz?
- É o João, filho do barbeiro…
- Acho-o pouco digno de ti, não por ser pobre e quase analfabeto, mas por andar a esconder-te de todos,  por não ter falado logo com o teu pai como um rapaz às direitas…
- Oh mãe!… Está a ser injusta… Eu é que não quis que ele viesse cá a casa porque tinha medo que os pais não me deixassem casar com ele. Ontem quando a Maria me foi procurar eu estava na sua companhia. E ele prometeu à Maria que hoje vinha falar com o pai… Estou com tanto medo…
- Então estou muito desiludida contigo! Mas que raio de juízo fazes de mim e de teu pai? Nunca julgamos ninguém por ser pouco abastado. Se fosse um bebado ou coisa assim… Mas o rapaz até é trabalhador e honesto, pelo menos é o que parece, e eu e teu pai ficamos contentes. Só queremos que tu e as tuas irmãs sejam felizes. Não vos demos estudos para arranjarem um bom partido, mas porque queremos o melhor para as nossas meninas…
Glória abraçou a mãe num misto de remorsos e de agradecimento. Como ela tinha sido ingrata ao fazer semelhante juízo dos seus pais. Tinha de rezar muito para agradecer a Deus e também para obter perdão pelos seus pecados.
José chegou a casa mais cedo nesse dia. O trabalho tinha rendido e ele estava satisfeito. Ainda não tinha tirado a roupa suja quando Luzia o chamou para uma conversa, que pelo ar parecia séria.
- Hoje vamos ter uma visita muito especial depois do jantar.
- Quem é? Porque é que estás com esse ar de caso?
- Vamos receber um pretendente de Glória…
- Mas que pretendente? Ela ainda é muito nova para essas andanças… Era
só o que me faltava…
- Trata-se do filho do barbeiro…
- Então sempre é a sério… A nossa filha cresceu…
- Ela gosta muito deste rapaz e diz que quer aceitar a sua proposta. Tem medo que não o aceites por ser de origens humildes e por quase não saber ler nem escrever…  
- Eu realmente queria melhor para ela, mas se ela gosta dele não há nada a fazer. Ele que venha e que se mostre digno do nosso tesouro.
Luzia admirava o marido exactamente por isto. Era um homem de bons sentimentos, o melhor pai que poderia ter dado às sua filhas. Não casara com ele por amor, mas por imposição de seu pai. No entanto, era impossível não aprender a amar um homem daqueles. É mais importante o amor que nasce do respeito, do que o amor que nasce da paixão. Luzia tinha muito medo que alguma das suas filhas cedesse a este último. Era perigoso, traiçoeiro e pouco durador. Se o forçassem a durar muito transformava-se em ódio. Todavia os olhos de Glória tinham deixado transparecer um sentimento puro que não poderia ser só paixão. Agora só faltava olhar para os olhos de João e ver o que eles tinham para lhe dizer.
As três irmãs partilhavam o mesmo quarto, que nessa noite se enchia de agitação e de roupas espalhadas. Todas queriam estar lindas para a ocasião, mas não de uma forma excessiva, para não deixarem João embaraçado, pois concerteza traria uma roupa gasta, não deixando de ser a sua melhor roupa.
Alguém bateu palmas lá fora… Devia ser ele… Afinal não faltara à sua promessa. Era um homem de palavra e isso já era um bom sinal.
Maria foi a primeira a chegar à porta e abrindo-a encontrou João mais pálido do que costume…
- Entra homem… O meu pai já está à tua espera na sala…–disse Maria toda entusiasmada.
João entrou muito tímido e esperou que o mandassem sentar.
- Então o que te traz por cá, meu rapaz? –perguntou José com um ar sério que deixou o apaixonado gago.
- Eu vinha…quer dizer eu vim mesmo…eu prometi e vim…não sei bem por onde começar… nunca fiz isto antes, e ainda bem porque assim posso fazê-lo agora, apesar de que se já tivesse feito antes já saberia como fazer agora…quer dizer, não é bem fazer, mas dizer, sim porque eu não vim aqui fazer nada, mas sim pedir… Não, não fique com a ideia de que lhe quero pedir favores ou dinheiro, não é nada disso. É algo muito mais valioso do que dinheiro, é a sua filha… Eu sei que tem três, mas eu não as quero todas… não é que as outras sejam más raparigas ou feias, mas é que no meu coração só cabe uma…quer dizer eu gosto das três e concerteza terei um lugar especial no meu coração para as minhas futuras cunhadas, isto é se o senhor me permitir casar com aquela que eu amo…
E depois deste longo discurso calou-se a aguardar a resposta. José teve que fazer um esfoço para não se rir. Era de certeza um bom rapaz. Era tímido e reservado, que segundo José eram características essênciais para formar família, pois eram sinónimo de estabilidade. Finalmente José disse com um certo tom de divertimento:
- Eu ainda não consegui perceber com qual das minhas filhas pertendes casar!
- Oh! Perdoe-me senhor se não me fiz entender, mas a eleita do meu coração é Glória. –respondeu João com tanta firmeza e cheio de convicção que desmoronou qualquer dúvida que pairasse na sala em relação aos seus sentimentos por Glória.
Foi um momento muito emocionante em que Glória não pode evitar uma lágrima. Nunca sentira a felicidade tão perto. Mais um pouco e podia segurá-la com ambas as mãos.
- O que diz teu pai a isto? –perguntou José
- Dá-me todo o seu apoio. Ele acha Glória muito boa rapariga e muito digna. No entanto, preparou-me bem para esta noite, pois posso sair daqui sem aquilo que quero. Ele acha que a Glória é boa demais para mim e não vos censura se não me aceitarem para genro, pois provavelmente esperavam melhor do que o filho do barbeiro para a vossa filha.
- Alegra-me ver que a minha filha vai integrar uma família honesta e respeitadora. Não podia querer mais do que uma pessoa como tu para meu genro. Mostras ser um bom rapaz, trabalhador e principalmente mostras sentimentos muito nobres para com a minha filha. Em troca da mão dela só te peço uma coisa, que a faças feliz. Quem faz feliz as minhas filhas adoça a minha boca… Dá cá um abraço rapaz…
A felicidade pairava naquela sala de estar, iluminada por uma luz de petróleo, que não dava aquele cheiro desagradável da luz de azeite como acontecia na casa de João.
Os noivos chegaram à conclusão de que já podiam ter alcançado aquela felicidade há mais tempo, se não tivessem medo de enfrentar os problemas. É preciso ter mais fé nas pessoas, principalmente nas que nos amam…

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