segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Capitulo XVIII

Capitulo XVIII

    A casa transbordava uma agitação própria dos grandes momentos. Raquel mirava-se ao espelho alheia a todo o movimento característico de última hora. Os seus braços estavam inertes e os olhos focavam a imagem daquela noiva reflectida. O vestido branco imaculado transformava-a numa verdadeira princesa cuja pequena coroa de ouro branco confirmava esse estatuto. Raquel tinha preparado aquele dia com um dinamismo casual que se encaixou no seu quotidiano de forma natural, mas só naquele momento em que visualiza a sua figura quase divina é que realizava na sua mente o passo que ia dar e sentia-se feliz. De uma felicidade calma e plena que lhe preenchia todas as suas ambições. Era uma felicidade pouco exuberante mas assertiva que não deixava espaço para dúvidas e que garantia um futuro estável. Ela que agia por impulso, que agia antes de pensar, que tinha os desejos à flor da pele, estava transformada numa mulher que sabia o que queria e que lutava por isso sem desejos precipitados. Ela tinha tido a capacidade de agarrar o futuro com que sempre sonhara. Já não era uma menina mimada à espera que as coisas se se proporcionassem, mas uma mulher que mesmo sem consciência disso lutara por merecer um pouco mais…
- Raquel, tu estás linda! – Diana sentia-se emocionada ao ver a melhor amiga a ligar o seu futuro ao irmão com uma dignidade e certeza capazes de destruir qualquer nuvem escura que se pudesse formar naquele enlace.
- Estou a ficar um pouco nervosa! Só agora é que realizei na minha cabeça o passo importante que vou dar!
- Estás arrependida?
- Nem pensar nisso! Pode não parecer, mas sinto-me feliz…
    As duas raparigas abraçaram-se longamente e partiram juntas para mais um momento marcante na vida de uma delas.
    Nada escapara aos preparos antecipados de Raquel. O altar em madeira montado à beira da piscina do hotel serviu de palco para o esperado sim. A passadeira vermelha que conduzia ao altar foi inaugurada pela noiva e só depois de confirmados os votos foi conspurcada por arroz e pétalas de rosas. O jardim amplo albergava uma tenda enorme onde estavam as mesas preparadas para o banquete. A banda tocava um reportório de músicas pré seleccionadas pessoalmente por Raquel que se derretia ao olhar para o agora marido envergando um smoking que lhe conferia um ar de James Bond. Pedro era o tipo de homem que não tinha consciência dos olhares que atraia sobre a sua figura alta e atlética, mas Raquel sabia que mesmo ali, no papel de noivo dedicado a responder com um beijo apaixonado a cada tilintar de talheres, Pedro continuava a provocar suspiros e desilusões em muitas mentes femininas.
- A minha linda esposa dança? – O sorriso que acompanhou esta proposta foi o momento que nenhuma máquina fotográfica teria a capacidade de registar, mas que ficaria gravada para a eternidade na memória de Raquel.
    A festa que aquela noite prometia não decepcionou ninguém. Diana dançou com os pescadores até não aguentar mais de dor nos pés massacrados. Desfrutou do champanhe e da música com a alma aberta aos detalhes da vida que são capazes de proporcionar prazeres quase imperceptíveis, mas que quando permitidos levam a um êxtase de bem-estar que se confunde facilmente com a verdadeira felicidade.
- A Diana não se importa de dançar comigo? – O olhar inexpressivo que acompanhou aquela proposta surpreendeu menos do que a pessoa que a formalizava. Rúben estendia uma mão insegura e não segurava o olhar no de Diana por mais de dois segundos. Diana contrariou a sua vontade primária de negação e aceitou. Afinal era um dia de alegria que não devia ser ensombrado por mágoas antigas.
- Claro! – Diana depositou a sua mão na de Rúben e dirigiram-se os dois para a pista de dança. Dançaram de uma forma mais formal do que divertida a música My Way de Frank Sinatra soberbamente interpretada pela banda contratada.
- Podemos dar uma volta pelo jardim? – Ruben segredou ao ouvido de Diana provocando nesta um arrepio. Não foi um arrepio de medo, mas de cautela, reflexo de uma relação pouco saudável que se havia criado entre os dois. Rúben pressentindo este receio tranquilizou-a. – Só preciso de falar contigo Diana. É muito importante…
- Não sei se será boa ideia!..
    Mas face a esta pequena contestação, Rúben falou com uma humildade na voz que desarmou numa fracção de segundo a muralha que Diana demorou anos a construir.
- Por favor… É mesmo muito importante para mim…
    Em silêncio Diana pegou na mão daquele homem e conduziu-o para fora da tenda. A noite estava amena, apenas uma brisa nocturna típica das ilhas arrepiava os braços desnudos de Diana. O céu mostrava-se descaradamente num esplendor de estrelas e planetas que se confundiam harmoniosamente. A lua surgia grande e próxima como se fosse fácil alcançá-la, tornando naquele momento qualquer milagre possível. Sentaram-se num banco de jardim com uns rendilhados de ferro frios virados para aquela pequena cidade que se estendia aos seus pés rumo ao mar. As luzes trémulas das casas faziam adivinhar a vidas mundanas próprias de um lugar pequeno e Diana sentiu-se tranquila.
- Eu quero pedir-te perdão Diana… - Rúben fixou um olhar arregalado de expectativa nos olhos de Diana e pressentindo a incompreensão e confusão da mente de Diana, Rúben percebeu que não seria tão fácil quanto imaginara livrar-se daquele fantasma. – Eu preciso que me perdoes Diana…
- Oh Rúben! Não gozes comigo…
- Não estás a perceber…
- Eu estou a perceber muito bem. – Diana refez-se do espanto inicial e colocou a sua mente calculista que tanto a caracterizara a funcionar. – Não precisas de fazer isso… O teu emprego só depende de um bom trabalho da tua parte… E eu realmente não tenho razões de queixa… Até podes crescer no hotel… Apesar dos rancores que guardo a teu respeito, isso não vai influenciar-te negativamente no teu trabalho… Não te preocupes…
    Perante uma falta de reacção de Rúben, Diana forçou-se a encará-lo e o que encontrou naquele rosto destorcido perturbou-a e desconcertou-a. Ela sabia lidar com o Rúben agressivo, mas as lágrimas que ele deixava rolar-lhe pela cara era uma situação que a paralisava nos movimentos e pensamentos.
- Tu não estás a perceber Diana! – Rúben esforçava-se por falar de forma coerente para que Diana o compreendesse. – Eu sonho contigo!
- O quê?!?! – Diana emitiu um pequeno guincho de estupefacção.
- Tenho pesadelos contigo! Até já tenho medo de adormecer e esforço-me por não fechar os olhos… Mas assim que lhes dou descanso é a tua face que me surge… E tu tens uma gargalhada estridente e maldosa… Assim que apareces eu sinto uma fome desgraçada. Vejo tanta comida perto de ti e esforço-me por alcançá-la mas nunca consigo e vou desfalecendo e desfalecendo e tu vais rindo e rindo cada vez mais alto…
- Que horror! Até parece que sou eu a má da fita! – Diana nem acredita no que houve. Aquele bruto ensombrou-lhe a adolescência com um pânico constante de maus trados físicos e verbais e agora queixa-se de uns pesadelozinhos dos quais ela nem é responsável…
- Oh Diana não ironizes! Por favor ouve-me… - Rúben chorava como uma criança. – Eu sou um homem adulto e com consciência suficiente para perceber que a garota a quem eu fiz a vida negra me estendeu a mão quando todos me viraram as costas nesta ilha desgraçada… Tu não sabes o que esta consciência me está a fazer… Graças a ti eu soube o que é estabilidade e graças a ti eu conheci uma pessoa que me é tão especial…
- Quem? – Diana sentia-se horrorizada com a hipótese de ser responsável por ter apresentado alguma mulher àquele canalha…
- A Marta…
- Tu nem te atrevas a fazer-lhe mal… Eu dou cabo de ti… Canalha… Estupor… - Diana sentiu a mesma vibração percorrer-lhe as veias que sentira quando enfrentou o pai e num impulso de sobrevivência que já não sentia há muito começou a agredi-lo com todas as suas forças. Só parou quando o cansaço lhe invadiu os movimentos e percebeu nesse exacto momento que Rúben não evitou um único golpe, nem ripostou. Aquele homem enorme e com uma força bruta, não agiu da forma como era esperada e o caracterizava. Diana sentia-se confusa…
- Eu amo-a… E ela retribui-me este sentimento… - Rúben encolheu-se instintivamente à espera de uma nova reacção, da mesma forma que Diana fizera centenas de vezes. Ela sentia a cabeça a latejar e o seu raciocínio teimava em flutuar acima do seu entendimento. Como não houve qualquer reacção, Rúben arriscou e continuou com a sua intenção.
- Ela é como tu… - Rúben não conseguiu evitar um novo soluço que lhe estremeceu os ombros. – Tudo o que me enojava em ti, existe na mulher que eu amo… Sabes o quão agonizante é ter consciência disto?
    Incapaz de pronunciar uma única palavra abanou a cabeça em negação. O seu espírito estava completamente estagnado e o seu corpo sem reacção. Mas a sua mente estava activa e empenhada numa compreensão que lhe parecia fora de alcance.
- Sabes o motivo que me levou a odiar-te tanto?
    Aquela noite esplendorosa reflectida num céu magnífico e numa lua que irradiava desdém na sua simplicidade sem arestas ou cantos que escondem verdades ocultas… Aquele universo estendia-se sobre a sua cabeça assistindo à sua impotência com uma satisfação brilhante que tornava uma noite agradável para os amantes.
- Nunca pensei que houvesse um motivo específico… Eu era uma marginal e vocês, pessoas normais que não me aceitavam no vosso mundo perfeito…
    A gargalhada nervosa que Rúben emitiu confundiu ainda mais a corrente que lhe atravessava o cérebro…
- Ai Diana! A vida não é assim tão simples… Eu vou contar-te o segredo da minha família e tu vais perceber que o que interessa é a fachada que cada um usa… Tal como tu agora… Estás polida, todos te aceitam… Mas quando eras uma maltrapida e estavas associada ao Zé dos Copos, todos te rejeitavam… A humanidade tem tanto de reles como de compaixão.
    Diana ouviu em silêncio a história daquele homem que ela pensou um dia conhecer intimamente e redescobriu uma nova pessoa.
   

    O pai de Rúben era um antigo chefe de finanças. Um homem respeitado e ligado à política local, de nome Diamantino. Casou-se na idade certa com uma rapariga respeitável, que não fazia nada para a sua subsistência. Vivam uma vida invejada e deleitavam-se com esse facto. No segundo ano de casamento, Diamantino e a jovem esposa Inês tiveram o primeiro e único filho, Rúben. Foi uma grande alegria para a família que se alongava para além dos jovens pais, atingindo tios, primos, padrinhos, e vizinhos. A casa deles palpitava vida e agitação traduzida num entra e sai de gente. A sua vida social era vivida em jantares maioritariamente gratuitos para eles, mas pagos pelos contribuintes. Não havia evento naquela ilha que o casal não marcasse presença. Qualquer festa era uma desculpa para estrear uma fatiota nova e exibir o melhor presente. Rúben habituou-se a esta vida que lhe proporcionava a fragilidade de um poder de cristal. Os seus dias eram passados em casa na companhia de uma ama cabo-verdiana que o acarinhava com uma ternura não correspondida. Rúben sempre vira a ama como uma subalterna e era insensível às atenções e mimos que a pobre mulher lhe disponibilizava. Ruben tinha apenas dez anos, frequentava ainda o quarto ano no único colégio da ilha, o colégio de Santo António, e estava convencido de que as meninas internas que as freiras tão generosamente acolhiam eram seres inferiores que não mereciam a sua companhia. No entanto nessa altura não alimentava mais do que uma indiferença por aquele tipo de gente e sustentava-se na teoria do pai, de que tinham o dever de ser benevolentes e caridosos com os necessitados. O pai costumava participar em muitas acções de solidariedade, principalmente no exterior da ilha. Certo dia aquele pai alto e imponente dirigiu mais do que duas palavras àquele filho que o adorava de coração e que mendigava cada pequena atenção.
- Vamos receber duas meninas internas numa instituição de caridade nesta casa. Quero que sejas cordial com elas, apesar da sua condição inferior.
- Porquê? – Perguntou Rúben na inocência dos seus dez anos, numa tentativa desesperada de alongar aquela espécie de conversa que o pai iniciara com ele. O homem de cabelo preto que começava a evidenciar umas nuances prateadas sentou-se no sofá e colocou o filho no seu colo. O pequeno ficou excitado de tanta felicidade com aquele gesto raro e ficou muito sossegado na esperança de que o pai não se cansasse dele.
- Porque nós temos de fazer o bem a quem precisa. Existe uma instituição no continente que acolhe meninas abandonadas e que quer proporcionar a elas vivências no seio de uma família exemplar como a nossa. Por isso nós vamos recebê-las durante duas semanas. – O pai voltou a pousar o filho no chão e nem por um momento leu a desilusão que lhe trespassou o olhar.
    O dia em que receberia as meninas chegou e Rúben sentiu a ansiedade do pai. O homem mal tomara o pequeno-almoço e o espaço que distanciava o sofá da janela foi percorrido vezes sem conta. A mãe pelo contrário ainda nem se tinha levantado da cama. Já passava um pouco das onzes horas da manhã quando um táxi parou à porta de casa. Diamantino levantou-se apressadamente, parou diante do espelho da entrada, ajeitou o cabelo e abriu a porta com uma calma que Rúben ainda não tivera oportunidade de ver durante esse dia.
- Sejam bem-vindas! – Diamantino abriu os braços àquelas duas estranhas e abraçou-as, provocando um ciúme repentino no filho que virou as costas às raparigas sem sequer cumprimentá-las. Afinal eram mais velhas do que Rúben imaginara. Se já era difícil brincar com meninas da sua idade, era completamente impossível fazê-lo com meninas de catorze anos.
    A primeira semana passou-se sem que Rúben conseguisse a tão desejada atenção paterna. Os dias dividiam-se entre os carinhos forçados da ama e as amarguras da mãe que se portava de uma forma estranha e tinha uma voz arrastada como se lhe fosse difícil pronunciar as palavras. Diamantino saía todos os dias de manhã com as meninas. Mostrou-lhes a ilha como um verdadeiro guia turístico e naquele dia, preparava-se para levá-las à praia. Rúben sentia uma raiva por aquelas meninas que segredavam constantemente ao ouvido do pai e emitiam umas risadinhas histéricas que provocavam tremuras no seu corpo e tinha de cerrar os punhos com toda a força até lhe passar esses ataques de nervos. Diamantino nunca o levara a passear, nunca foram à praia juntos, nunca jogaram futebol… E agora aquelas malditas que nem os pais verdadeiros souberam cativar eram detentoras de todas as atenções que deviam ser dele e só dele. Rúben tinha o nariz colado ao vidro que se embaciava e desembaciava ao ritmo da sua respiração e o coração acelerava-se a cada gesto que presenciava naquele piquenique ridículo que acontecia nas traseiras do seu próprio jardim. Esse piquenique tinha-lhe sido negado com um não seco proferido pela boca do pai e que lhe ressoava em eco na cabeça. Uma toalha xadrez imaculada estava estendida com pequenas maravilhas espalhadas, doces e salgados que lhe eram sempre vedados. Rúben sentia água na boca ao olhar para cada dentada descarada que era executada naqueles jesuítas cremosos, ao mesmo tempo que um rancor silencioso lhe percorria as veias palpitantes de fúria. Não podia contar com a mãe que dormia até ao meio-dia e desaparecia durante toda a tarde voltando quando Rúben já estava deitado. Sentia-se encurralado e o seu espírito pedia-lhe uma libertação urgente que Rúben não sabia como satisfazer. Quando o piquenique terminou, o Sr. Diamantino entrou com as convidadas e fez uma festa no cocuruto de Rúben enquanto lhe dava novas recomendações.
- Tens-te portado muito bem. Agora vamos subir um pouco para descansar… É melhor que brinques na rua. – Aquela caricia fria e o elogio não foram suficientes para acalmar as palpitações maldosas que formigavam nos punhos cerrados de Rúben. Este acompanhou com um olhar vítreo o percurso do pai até ao quarto. Passados uns extensos minutos de imobilidade, o menino seguiu o mesmo caminho que o pai acabava de percorrer. Pé ante pé para não ser descoberto, Rúben avançou como uma cobra matreira até ao quarto de hóspedes onde o progenitor tinha entrado com as meninas. Encostou o ouvido à porta e entendeu uma diversão sonora que o incomodou. Elas emitiam gritinhos abafados e risinhos estridentes, enquanto o pai arfava como se fosse um qualquer animal selvagem. Rúben rodou a maçaneta da porta com cautela e quando conseguiu uma pequena fresta estacou o seu olhar no inacreditável. Uma delas estava completamente despida, com os seios ainda pouco formados, deitada na cama e atazanava a atenção de Diamantino sacudindo-se de uma forma provocadora. A outra despia a roupa balançando-se como se houvesse alguma melodia a acompanhá-la. Diamantino já desprovido de qualquer vestimenta respondeu violentamente ao abrir de pernas atrevido da primeira. Aquele festival animalesco enjoou Rúben de tal maneira, que este se refugiou no seu quarto com a almofada a cobrir-lhe a cabeça num acto inútil de tentar aniquilar aquelas imagens e abafar aqueles sons que se elevavam na sua cabeça e no quarto ao lado. Ele não chorou… Rúben nunca mais chorou até àquele momento em que se sente fragilizado na presença de Diana.

    Diana nem acreditava no relato que acabava de ouvir. O seu instinto levou-a a abraçar Rúben e a acolher no seu colo aquele choro infantil.
- Não sabia de nada disso Rúben!... – Diana sentia-se dormente e incapaz de qualquer consolo melhor.
- A partir daí todos os anos recebíamos duas meninas durante duas semanas nas férias do verão. Até eu ter catorze anos… - Rúben soluçava e as palavras rebolavam-lhe entre a língua e as bochechas… Mas ele queria contar… Ele queria contar tudo… Para terminar com os pesadelos e seguir com a sua vida tem de ser compreendido e perdoado. E não existe perdão sincero sem que toda a verdade esteja exposta.
- Pronto Rúben acalma-te! Eu já percebi… Não precisas de continuar com essa tortura…
    Rúben endireitou-se e enxugou as lágrimas.
- Ainda não terminei a minha história… - Ele endireitou-se, limpou desajeitadamente as lágrimas e continuou o seu relato.

    O verão dos seus catorze anos foi um verão especialmente abafado, com temperaturas demasiado altas para humidades de cem por cento que provocavam um desconforto corporal traduzido num pele suada e melada. Rúben transpirava aquele clima pesado e quente numa ansiedade que previa o mesmo pesadelo dos outros verões. A visita esperada chegou na data prevista e como era de prever surgiram duas jovenzinhas com as suas risadinhas envergonhadas e com a simplicidade das rameiras. As entranhas de Rúben voltaram a volver-se como acontecia sempre que ouvia aquela banda sonora de sons guturais de sexo explícito vindos do quarto ao lado. Ele podia simplesmente sair de casa e ir para algum lugar onde não ouvisse aquele festival deprimente… Mas simplesmente não conseguia… Trancava-se sempre no quarto num silêncio tenebroso e captava cada risada, cada gemido, cada suspiro… Ele enroscava-se no chão às escuras como se quisesse que o único sentido apurado fosse a audição e chorava baixinho… Chorava de mágoa, mas principalmente chorava um rancor que crescia dentro dele e mostrava-se na forma de ódio. E ele odiava aquelas rameiras… Aquelas putas que estragavam o seu lar… Ele odiava-as… Elas tinham sido abandonadas exactamente porque não prestavam… Deviam viver eternamente afastadas das pessoas normais, ou causariam o caos por onde passassem… A tolerância de Rúben estava esgotada e a gargalhada de satisfação que o pai se permitiu foi a gota de água. Rúben levantou-se e com a alma a transbordar ódio e lágrimas na mesma quantidade, o rapaz atravessou a passos largos e pesados a distância entre os dois quartos sem a preocupação característica de ser notado. Arrombou literalmente a porta e entrou naquele cenário triste. Uma pequena loura tapou-se instantaneamente com um lençol revirado, como se nela existisse algum tipo de decência. A outra que estava numa cadeira tristemente nua e besuntada de uma maquilhagem excessiva, deixou-se assim ficar inerte à surpresa daquele acto ou apenas receosa daqueles olhos que faiscavam um ódio que ela bem conhecia.
    Após a surpresa inicial, Diamantino sorriu como se a situação lhe agradasse.
- Entra meu rapaz e faz-te homem… É para isso que este tipo de gente serve… - E com estas palavras pouco dignas de um senhor bem inserido numa sociedade falsa e corrupta, sanguessuga das fraquezas alheias, arrancou o lençol que tapava o corpo da pequena loura expondo um corpo magro e com poucas formas. Num gesto bruto abriu as pernas da rapariga na direcção de Rúben como se o convidasse a ingressar aquele acto pouco digno e degradante. O rapaz sentiu que o estômago o atraiçoava e num aperto nervoso, um impulso subiu-lhe pelas goelas e o vómito foi inevitável. Rúben fugiu a correr daquele cenário com a humilhação a pesar-lhe na dignidade. Ele correu até atingir a rua como se precisasse de ar, mas mesmo já no exterior a sua mente exigia-lhe um afastamento maior… E ele queria afastar-se, mas afastar-se tanto que aquelas imagens já não o pudessem afectar.
    Rúben só voltou a casa quando as suas pernas se recusavam a continuar e o cansaço excessivo lhe tinha adormecido a dor. O rapaz arrastou-se pela noite escura e purificadora até à entrada da sua casa, abriu a porta devagar para não acordar ninguém, adivinhando que àquela hora já estariam todos mergulhados num sono profundo. O estalo que lhe rebentou o lábio inferior foi pouco face aos olhos esbugalhados com um contorno preto que se desfazia sobre umas olheiras vincadas. A mãe gritava-lhe uma ladainha incompreensível enquanto o abanava e lhe falava com a sua cara encostada à dele sujeitando-o a um hálito amargo próprio de quem bebera demasiado.
- Ele foi-se embora por tua causa… - A mãe chorava e berrava… E Rúben tentava assimilar aquelas palavras… O pai foi-se embora supostamente porque ela não soubera manter a família unida. A esposa dele, a mulher que ele escolhera, a amada a quem um dia ele prometeu fidelidade lealdade e companheirismo, tinha criado um rebelde debaixo do seu próprio tecto. Se ela não tinha tido capacidade para desempenhar as únicas funções que lhe eram exigidas, que consistiam apenas em cuidar da casa e criar um filho obediente, então ele não podia continuar naquela casa.
    A doce Inês teve de arranjar um trabalho, o que não foi fácil, uma vez que nunca fizera nada de útil e teve de aprender a viver com um ordenado que ela considerava uma anedota. As orientações necessárias para gerir um tão curto orçamento familiar foram tomadas com a estupidez dos tolos. As aparências mantiveram-se a um custo de sopas diárias e bolachas de água e sal racionadas. A história vendida foi a de que o senhor Diamantino tinha ido para África como missionário e ela tinha ficado porque tinha um filho para criar, mas depois juntar-se-ia ao marido. As dívidas foram acumulando-se e só com a ajuda do irmão, o Dr. Carlos, foi possível sobreviver, porque na mente dos tontos o dinheiro vai para onde se mostra e não para onde se deve…

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