domingo, 4 de setembro de 2011

Capitulo XVII


Capitulo XVII

    Existem dois tipos de desejos. Aqueles que resultam dos parâmetros que a sociedade em si alicia e aqueles que vêem da alma. Os primeiros são corriqueiros e de satisfação curta quando alcançados. Normalmente são materializados em coisas fúteis que não vão para além de um simples conforto momentâneo. São desejos vividos sofregamente que normalmente conduzem a um quotidiano repetido e confortavelmente dividido entre o trabalho para o patrão e o trabalho para a família. Mas os segundos desejos são devastadores quando entendidos. Atingem uma dimensão demasiado grande para a compreensão corriqueira e assim que compreendidos ocupam cada milímetro da nossa alma e corpo. São desejados com uma ânsia incomensurável e a vida só pode ser saboreada na sua plenitude com a realização desse desejo.
   Diana teve a capacidade humana de satisfazer todos os desejos resultantes da sua vida social. Todas as suas forças foram conjugadas satisfatoriamente para um resultado muito desejado, mas pequeno face à consciência do verdadeiro desejo. Ela trocaria todos os sonhos realizados por mais um momento íntimo com Duarte.
- Temos um problema! – A porta abriu-se intempestivamente e Marta surgiu sofregamente.
- Então rapariga? – Diana levantou-se instintivamente. – O que é que se passa?
- A Fátima ainda não apareceu para trabalhar! Já lhe liguei várias vezes, mas ela não me atende. – Marta articulava as palavras com uma respiração pesada que demonstrava um cansaço momentâneo. – O problema é que estamos com o hotel lotado e não temos ninguém para a limpeza do corredor dois. – Eu posso fazê-lo, mas não vou conseguir fazer um bom trabalho sozinha em tão pouco tempo…
    Diana pegou no braço da rapariga e conduziu-a para fora do escritório. Entraram na lavandaria do hotel e Diana enfiou uma farda de camareira com a experiência de outros tempos. As duas colocaram os utensílios necessários num carrinho e dirigiram-se para os quartos. Diana limpou com a mesma meticulosidade que lhe havia caracterizado nos seus tempos de camareira. Marta ficou surpreendida pelo trabalho fantástico que a patroa desempenhava agilmente e sem qualquer preconceito pelo exercício de uma função menor.
- Nunca esperei uma atitude destas da sua parte. – Marta sentia uma proximidade quase íntima daquela mulher que se mostrava superior. – É preciso muita dignidade para deixar os saltos altos e enfiar umas galochas.
    Diana deixou sair uma gargalhada partilhada pelas duas.
- Eu já fui camareira! E se hoje tenho o que tenho é porque em primeiro lugar sempre fiz um trabalho exemplar e só depois é que veio o factor sorte. – Diana gostava daquela rapariga de gestos simples e sorriso fácil que chorava os problemas de todos e vivia os seus com a coragem dos heróis.
- Nem imagina como lhe sou grata! Se não fosse a Diana nem sei o que seria da minha vida. – E na envolvência daquela gratidão a rapariga abraçou Diana e chorou.
- Não chores Marta! E não me agradeças!
- Mas se não fosse a Diana eu estaria no meio da rua completamente desamparada…
- Olha Marta! Tu estás aqui graças a ti, e só a ti! E se alguém te fizer crer no contrário não acredites!
- Mas…
-Não há mas, nem meio mas! – Diana queria transmitir àquela rapariga carente e pouco confiante que a vida dela depende apenas das suas próprias atitudes… - Tu estás aqui, porque foste agradável comigo naquele dia, e porque te mostraste disponível. Se te tivesses portado de outra forma não estarias aqui… Só deves este facto a ti. – Diana fixou-lhe um olhar duro e profundo. – Muitas raparigas passaram por mim naquele dia, no colégio, e tu foste a única que me conquistaste, e isto minha querida é mérito teu… Mesmo assim dei emprego a outras meninas do colégio e olha o que elas estão a fazer com essa oportunidade… Olha o exemplo da Fátima… Eu sei que não é a primeira vez que ela falta sem avisar… Sei que ela chega atrasada frequentemente e faz um mau trabalho…
- Oh patroa!... Ela precisa tanto desse emprego…
    Diana interrompeu aquela desculpa com um gesto rápido que não admitia retorno.
- Ela precisa, mas não merece… Ela não tem a sensibilidade e a inteligência de perceber que ela não pode inserir-se nesta sociedade da mesma forma que as outras miúdas que têm uma família… Se ela não segurar um emprego, não tem uma família que lhe abra a porta da sua casa e a reconforte com um lar e comida… Fica desamparada numa beira de estrada sem um aconchego ou um prato de sopa… Se ela não souber escolher bem a pessoa com quem partilhará o resto da sua vida, quando terminar o casamento, ela não encontrará uma porta aberta para recebê-la e lamber-lhe as feridas… Se ela errar, só ela lidará com as consequências, porque pessoas como nós não temos margem para errar ou corremos o risco de uma vida de miséria… E minha querida e doce Marta, a miséria não se cura…
    Marta absorveu aquelas palavras e fez delas o melhor conselho a seguir. O único familiar que Marta conhecera foi o pai. O homem com os olhos mais bondosos que ela já viu. Lembra-se dos fins-de semana em que ia com o pai passear no parque do capelo por meio dos pinheiros brincando a mundos fantásticos que se escondiam por entre os carreiros do parque cobertos de fagulha seca. Os veados aceitavam as folhas verdes com um ranço no maxilar que se movia preguiçosamente fazendo os galhos desaparecerem como por magia e aquele mundo confundia-se com uma nova dimensão em que as fadas surgiam e salvavam as misérias do mundo e o pai era dotado de um carácter heróico e de um corpo atlético sem rastos daquela doença que a realidade teimava em manter. Marta na ternura dos seus quatro anos tinha uma paixão absurda pelo progenitor e numa intuição própria das crianças falava baixinho ou resguardava-se num canto escuro daquela casa demasiado pequena, deixando o pai à vontade para chorar de dor ou vomitar o que não conseguia sequer ingerir. Quando aquela doença incompreendida por Marta se tornou insuportável, uma mulher desconhecida arrancou a pequena menina dos braços daquele homem e levou-a sem nenhuma explicação para uma nova casa partilhada por demasiadas meninas que sentiam a mesma incompreensão. Ainda hoje Marta acorda no sobressalto daquela despedida indesejada chorada pelos olhos bondosos daquele homem que foi seu pai e gritada pela voz de uma simples menina. Marta ainda ouve os soluços de um homem grande vertidos em lágrimas grossas de impotência, que implorava àquela mulher de semblante carregado que lhe deixasse a filha… A promessa sofrida de que se sentiria melhor e poderia sustentar a sua pequenina… A garantia de que amava aquela menina mais do que a própria vida… O rosto sulcado pelas rugas precoces de uma doença injusta ainda lhe invadiam as memórias e o rosto magro e melancólico do pai estava gravado na sua mente. Aquele momento de ruptura foi suavizado pelas visitas frequentes do pai ao colégio interno, mas estas visitas foram insuficientes para reparar a amargura que os invadia em cada despedida. O pai sobreviveu apenas seis meses à distância que os separava e a notícia da sua morte foi gritada durante dias seguidos pela pequena Marta. Depois seguiram-se meses de choro que culminaram numa vida mergulhada na amargura da saudade. Marta sabia como era ser amada incondicionalmente e sentia a falta daquela figura paterna com uma mágoa que embora apaziguada pelo tempo era aprofundada pela consciência do quão difícil é ser-se tão amada…

   Diana sentia uma felicidade suave e merecida naquela vida quotidiana que lhe proporcionava um descanso mental na certeza de uma vida desafogada. Só a degeneração visível no corpo de Bernardo provocado por uma doença silenciosa perturbavam esta calma. Olhando para aquele corpo debilitado estendido numa cama impessoal e imaculada, Diana sentia o desespero da sua incapacidade. Este sentimento de impotência face à morte era quase imoral para uma lutadora como ela. Sempre tivera forças para ver o que poderia alcançar para além das dificuldades e lutara por isso com uma dignidade que transbordava por cada poro do seu ser… Mas quando a dificuldade é a morte não existem perspectivas para os limites desta realidade. Só a aceitação e o conforto do desconhecido pode aliviar a dor que esta realidade cada vez mais próxima teima em provocar.
- Não chores Diana. – Bernardo afagava aqueles cabelos rebeldes espalhados pelo seu peito enquanto as lágrimas gordas de Diana lhe molhavam o pijama.
- Lamento tanto Bernardo! Queria muito livrar-te dessa doença e não sou capaz de fazer nada.
- Não digas isso Diana! Tu mostraste-me uma vida em que eu fui verdadeiramente feliz.
- Eu daria anos da minha vida para que ficasses bom! – Diana sentia uma tristeza que lhe ardia no peito e nos olhos inchados de mágoa e frustração face ao inevitável.
- Sabes o que me assusta nesse teu discurso? – Diana fixou-lhe aqueles olhos doces que acompanhavam o sorriso meigo dos lábios e limpando as lágrimas envergonhada pela sua demonstração de fraqueza abanou a cabeça em negação. – É que eu sei que o farias sem sequer vacilar!
    Diana riu nervosamente e posou um beijo leve naquela testa pálida.
- Pode parecer impossível o que te vou dizer, mas neste momento eu estou preparado para morrer feliz.
- Não digas isso! Parece que desististe de lutar!
- Eu acredito que o mundo e a vida são sustentados por equilíbrios… Eu nasci e cresci numa vida facilitada, sem grandes preocupações e convencido que a vida era aquilo mesmo. Se eu tivesse morrido durante essa vida nestas mesmas circunstâncias, teria neste momento muitas flores caras com cartões muito bonitos numa sala de um hospital privado completamente sozinho. Em vez disso morro numa outra vida em que pessoas simples, pescadores analfabetos, pessoas singelas e honestas choram sinceramente a minha perda… Nunca estive um único minuto sozinho neste hospital… Desde que estou nesta ilha nunca fiz um tratamento sozinho…Nunca me senti tão amado… E nunca, em toda a minha vida senti que pudesse fazer tanta falta…
- Oh Bernardo! Tu vais fazer-me tanta falta!
- Eu sei! Mas a tua vida vai continuar sem mim. Só te peço que não me esqueças…
- Nunca…
    Bernardo fechou os olhos e deixou descair a cabeça para o lado esquerdo. Tinha partido na suavidade das suas palavras e deixado um rasto de amizade e companheirismo no meio daquela gente simples.
    A sua morte foi chorada e sentida por poucas pessoas, mas que continham em si o sentimento de mil. O capítulo frio e demasiado grande continha o corpo inerte e lânguido estendido num caixão e Diana estava há horas a fixar aquele rosto demasiado conhecido como se esperasse um sinal de que ainda existia vida naquele corpo. Agora que o seu físico não era capaz de reproduzir mais lágrimas, a sua mente questionava afincadamente para onde teria ido tudo aquilo que existia em Bernardo e que transcendia aquele corpo frágil. Onde estaria a bondade dele? A compaixão que lhe estava gravada no olhar? A paciência que lhe era tão característica? O amor que ele nutria por Diana? Não era possível que estes sentimentos e emoções fossem apenas reacções químicas daquele corpo agora inútil. A vontade que o fazia sorrir não podia ser provocada por uma conjugação qualquer de reagentes do cérebro que lhe davam essa indicação. O amor que ele transbordava no olhar não podia ser apenas provocado por cada batimento do seu coração. A calma que ele transmitia em cada toque não podia ser apenas resultado de um corpo que agora não servia para nada… Onde estaria essa parte de Bernardo que era visível porque aquele corpo transmitia essas reacções, mas que agora estava invisível a todos? Será este o conceito de espírito que se fala tanto e se percebe tão pouco? Estará o espírito dele ali perto dela neste momento? Diana quer desesperadamente guardar essa parte de Bernardo perto dela. Mas a única certeza que fica daquele ser incrível é que ele permanecerá na sua memória…

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