terça-feira, 13 de setembro de 2011

Capitulo XIX

Capitulo XIX

    O dia a seguir a um casamento é sempre difícil de se iniciar, mas Diana era a excepção a esta regra. Levantou-se cedo e seguiu directamente para o hotel. Queria certificar-se pessoalmente que os recém-casados teriam um pequeno-almoço digno do Olimpo, antes de embarcarem na tão merecida lua-de-mel com destino às Ilhas Gregas. Diana entrou no hotel com a pressa de uma profissional dedicada e dirigiu-se directamente para a cozinha onde não resistiu aos croissants de manteiga que a sua nova cozinheira preparava com a mestria dos dinossauros da cozinha. Tratava-se de uma menina de dezanove anos proveniente de uma família degradada com seis irmãos alcoólicos e desempregados de profissão que um dia debaixo de uma chuva torrencial bateu à porta do seu gabinete no hotel e pediu ajuda. Ela escapou a todos os olhares e conseguiu esquivar-se até àquele gabinete de difícil acesso… E fê-lo sozinha… Só por este feito, Diana não conseguiu recusar a entrada da rapariga enfezada, com o maxilar inferior demasiado grande para umas feições tão singelas. A rapariga contou-lhe resumidamente que se encontrava no limiar da pobreza. Não tinha qualquer previsão de quando seria a sua próxima refeição e precisava urgentemente de trabalho. Não tinha mais do que o sexto ano, mas garantia ser muito trabalhadora… Só precisava de uma oportunidade… Estas eram as palavras mágicas que faziam despertar a compaixão de Diana. A partir daquele dia, a rapariga ficou instalada nos aposentos dos empregados do hotel. Diana percebeu desde cedo o jeito que ela tinha para a cozinha e deu-lhe a formação necessária… Foi uma excelente aposta que a deliciava todas as manhãs com aqueles pequenos croissants sempre quentes e fofos.
- Hum! O meu paladar agradece-te imensamente… - Diana formalizava sempre o mesmo elogio todas as manhãs ao qual a rapariga respondia com um sorriso de satisfação tímido mas agradado. – Quero que prepares pessoalmente um pequeno-almoço digno de um rajá para o meu irmão…
- Já está ali no carrinho. Ele já ligou a pedir que lhe fosse entregue no quarto.
    Diana inspeccionou todos os detalhes e satisfeita com o resultado empurrou o carrinho e dirigiu-se para o quarto do irmão. Bateu suavemente à porta e entrou assim que obteve a devida autorização do outro lado.
- Bom dia casal maravilha! – Diana puxou uma cadeira que estava num canto do quarto e fez intenção de se juntar a eles naquele banquete.
- Ai que romântico! Tomar o meu primeiro pequeno-almoço como casado com o emplastro da minha irmã! – Pedro provocava a irmã com um sorriso que contrariava completamente aquele afirmação.
- Também gosto muito de ti maninho. – Diana piscou um olho cúmplice a Raquel que se aproximava da mesa recheada. A refeição fez-se numa agitação animada lembrando os pormenores cómicos do casamento. O episódio que relatava o José Gaitinha a cantar em inglês foi o que mereceu maior entusiasmo pela ladainha de um linguajar inventado que ele jurava ser a língua de sua majestade. O Manuel também foi alvo de risotas pelos comentários reprovadores dos vestidos demasiado curtos ou decotes pronunciados dos quais ele não conseguia desviar os olhos gulosos. Mário esticava-se na esperança de ser notado por alguma das beldades que se passeavam na festa. O Paulo e a Guida portavam-se como um verdadeiro casal antigo nos anos de casamentos. Guida chamava a atenção de Paulo na quantidade de copos de champagne que ele já bebera e ele dando-lhe razão continuava a ingerir aquela bebida com uma ganância provocadora.
- E tu, a certa altura desapareceste com o Rúben! – Raquel aproveitou o momento em que o recente marido se retirou para o merecido banho e abordou o assunto que lhe ocupava parte da mente.
- Pois foi! – Raquel ficou desiludida com a curta resposta. Esperava que Diana começasse a desbobinar, mas teria de se esforçar mais para isso.
- E falaram do quê?
- Tu não irias acreditar!
- Experimenta-me!
- Ele pediu-me perdão! – Diana desabafou após uns segundos em que brincou deliberadamente com um bago daquela uva isabela, proveniente das vinhas imensas da ilha vizinha.
- Ele conseguiu! – Esta exclamação impensada de Raquel suscitou a desconfiança imediata de Diana.
- O que queres dizer com isso? – Raquel percebeu tarde demais o seu desabafo em voz alta. Tinha de lhe contar a verdade, apesar de estar a violar uma conduta que lhe é exigida… Mas numa verdadeira amizade, as questões mal resolvidas tornam-se trevas absurdas que dominam qualquer ponto-luz de confiança.
- O Rúben procurou a minha ajuda enquanto psicóloga. – Aquela declaração fez o queixo de Diana descair.
- Quando?
- Estava no hotel há pouco tempo. Procurou-me porque sentia que ia cometer uma loucura qualquer sem sequer conseguir definir que tipo de loucura seria ou contra quem a cometeria. Entrou no meu consultório com os olhos de um miúdo amedrontado e apenas pediu-me que o ajudasse em nome dos velhos tempos.
- Então foste tu que o aconselhaste a pedir perdão. – Diana sentia-se ultrajada e enganada. – Não foi uma atitude de dignidade mas de obediência… Ainda bem que não o perdoei! – Diana agora andava de um lado para o outro com uma mão na cintura e a outra fechada em punho que se elevava a cada silaba tónica do seu discurso.
- Tu não o perdoaste? – Raquel quase gritou esta pergunta retórica. Levantou-se e perdeu a calma. Interrompeu a caminhada inútil da amiga e encostou-lhe o dedo indicador ao nariz.
- Agora vais ouvir umas verdades. O Rúben está há meses a seguir um plano de duas consultas semanais, e a fazer um esforço sobre-humano para ultrapassar dificuldades da sua personalidade. Ele teve a humildade de perceber que estava no caminho errado e chegou sozinho à conclusão que para recomeçar a sua vida tinha de arrumar com um passado ensombrado. Ele assumiu os seus actos menos dignos e até maldosos e foi ele que percebeu que precisa do teu perdão para continuar a sua jornada… Foi ele, Diana…
- Pois ele que vá para o diabo que o coma… Se o futuro risonho dele depende de ouvir da minha boca que o perdoou, então ele vai arder num inferno de pesadelos em vida… - Diana vociferava de raiva, nem percebia bem porquê. No dia anterior, quando encarou aquela história deprimente e o pedido de desculpa de Rúben, quase tinha cedido a esse pedido. Mas havia qualquer coisa no seu espírito que não lhe permitiu essa abertura. Havia um rancor antigo… Um sentimento de que ela devia manter-se sempre alerta e havia esta incapacidade de cortar com o passado. Afinal eram estes ressentimentos o verdadeiro rastilho da sua ascensão.
- Olha Diana! Eu adoro-te! Mas tu continuas a esconder-te atrás dessa cortina de vítima…
- Não te esqueças que aquela besta assombrou a minha adolescência. Ele não é boa pessoa… É um mau carácter, um bruto, um canalha…
- És tão boa a definir personalidades! Agora vais sentar-te e ouvir-me sem me interromperes! – Ambas se sentaram novamente à mesma mesa e olharam-se descaradamente. – Quero que saibas que sou eu, a Raquel, que te vai dizer umas verdades… Sou eu, na condição de tua amiga… Sou eu, uma das pessoas que sempre esteve ao teu lado e que só te deseja o bem… E agora que tens consciência da pessoa que está à tua frente, tenho a certeza que vais interiorizar com atenção aquilo que te vou dizer… Porque eu sou uma das pessoas que te ama… E quem ama só diz o necessário… - Raquel ficou satisfeita com o acenar afirmativo da cabeça de Diana. – Tu formaste uma opinião acerca do carácter do Rúben sem conheceres todos os dados que formam a personalidade dele. E estás fechada nesse preconceito…
- Eu não sou preconceituosa… Os outros é que foram comigo! – Diana exaltou-se perante aquela acusação injusta…
- Tu, realmente foste vítima de muitos preconceitos, de uma forma atroz que ninguém merece… E esse facto tornou-te forte e deu-te motivação para alcançares tudo aquilo que tens… Mas tu és preconceituosa e estás a sê-lo com o Rúben! – Raquel levantou a mão em forma de protesto às palavras que Diana se preparava para dizer. – Sou eu que estou agora a falar… Lembras-te quando eu te conheci? Eu corri para ti aberta a conhecer-te e tu rejeitaste-me com palavras muito injustas… Isto, minha querida, foi uma agressão verbal… Tu criaste na tua cabeça uma pré- concepção daquilo que eu era… Uma betinha de merda, como tu própria me descreveste… - Diana afrouxou o olhar face ao reconhecimento das palavras da amiga. – Só temos esta amizade maravilhosa porque eu insisti e tu deste-me uma brecha para um conhecimento profundo da minha pessoa… Agora falemos do Bernardo…
- Eu adorava o Bernardo… Nunca pensei mal dele… - Diana tentava a justificação fraca dos culpados.
- Sim é verdade que adoravas o Bernardo… Mas não, não é verdade que nunca tenhas pensado mal dele… Deixa-me continuar com o meu raciocínio. Tu deixaste que o Bernardo se aproximasse de ti por oportunismo… O que não é pouco digno, pelo contrário, quase todas as pessoas abrem-se aos outros por oportunismo, mas nunca têm a decência de admitir ou sequer de o saber. Mas lembras-te daquele dia em que desceste do apartamento e encontraste no lugar de Bernardo um motorista… Lembras-te de ter rotulado o Bernardo de um menino do papá com medo de se misturar com gentalha… Chamaste-o de tantas coisas, de ricalhaço com manias de superioridade… e nenhuma delas correspondia à realidade… Isto, minha queria é preconceito, que criaste só porque ele tinha uma posição social diferente da tua… Só deixas de ter preconceito em duas situações: ou quando te abres completamente ao mundo e às suas diferenças e aceitas tudo tal qual te surge, ou quando te fechas completamente ao mundo e só crias uma opinião depois de teres todas as verdades sobre a mesa.
- Mas eu nunca magoei ninguém da forma como o Rúben fez comigo!
- Cada um lidou com os seus males à sua maneira. Tu protegeste-te assumindo um papel de vítima. O Rúben protegeu-se adoptando um papel de agressor. Talvez esta última forma de lidar com os problemas seja menos digna… Mas sabes quantos agressores têm a capacidade de perceber que estão a agir mal? Sabes quantos agressores são capazes de assumir que estão errados?... O Rúben teve essa capacidade. A capacidade de perceber que não pode apagar o passado, mas pode arrepender-se e aprender com os prejuízos disso… Tu não estás a ter a mesma capacidade…
- Que raio é que estás para aí a dizer? – Diana voltou a exaltar-se e explodiu num rio furioso de palavras. – Eu não soube lidar com o passado… Eu coloquei o passado para trás das costas e construí uma vida digna sozinha… Eu esfolei todo o meu ser para conseguir ultrapassar o passado e viver exactamente da forma inversa… Eu queimei inúmeras futilidades e vivências próprias de certas idades para enterrar este maldito passado… E sabes que mais… Olha bem para mim… Não tenho nada a ver com o meio que me pariu…
- Volta a sentar-te Diana! – Raquel manteve a calma perante aquele ataque de indignação, provocando um certo desconforto em Diana que lhe obedeceu. – Tu conquistaste muita coisa, mas nunca ultrapassaste esse teu tão odiado passado. Aliás, tem sido exactamente esse passado o principal impulsionador. Tu fazes tudo na dependência desse passado… E agora eu pergunto-te… Estás feliz?
    Diana chorou quando aquele entendimento foi aceite pela sua mente. Raquel tinha razão. Tudo o que ela queria deixar para trás tem caminhado lado a lado com ela. Todos os seus desejos foram sonhados tendo como motivo o seu passado. Todas as suas acções eram conduzidas por aquele passado que teimava em permanecer presente…
- E o que devo fazer para me libertar deste fardo? – Diana finalmente estava aberta a ultrapassar aquele fantasma que a acompanhava e a dilacerava, roubando-lhe sempre o verdadeiro prazer de cada conquista e conduzindo-a sempre para uma nova ambição que a conduziria a um novo patamar conquistado mas não saboreado.
- Para deixares de teres fantasmas deves deixá-los no seu lugar temporal… Muito lá para trás! Deixa aquele adolescente mesquinho exactamente nesse lugar que tu já passaste há muito tempo. Tens de perdoar e esquecer… Porque enquanto não o fizeres vais ter sempre a motivação de teres que provar alguma coisa que nesta data presente já não faz sentido…
    Pedro saiu do banho envolto num vapor que fazia adivinhar um banho relaxante e a boa disposição dele não merecia ser colocada em causa pelos problemas de Diana. Esta despediu-se e justificou as suas lágrimas com as saudades que sentiria deles naquelas duas semana de ausência.
    Diana trancou-se no seu escritório e forçou a sua memória a encontrar um momento em que ela tenha saboreado completamente um conquista sua… E só os momentos passados com Duarte lhe passavam à frente dos olhos. Duarte foi o único sentimento de lhe surgiu naturalmente sem ter como impulsionador aquele passado que teimava em pulsear-lhe nas veias. Duarte era a sua única conquista que não tinha aquela marca maldita. Era um sentimento que ela tinha desenvolvido apenas porque sim… Isto era tão simples que não podia ser mentira. Diana agarrou num auscultador e pediu a presença imediata de Rúben ao seu gabinete.
    A figura de Rúben surgiu-lhe mais encolhida do que costume e os seus olhos reflectiam mais uma noite mal dormida. Diana ao vê-lo mergulhado nas sombras do seu passado sentiu uma angústia solidária. Correu para o seu agressor e abriu-lhe os braços. Após uns segundos de espanto e outros de entendimento, Rúben refugiou-se naquele abraço. 
O verdadeiro perdão é aquele que se sente nas entranhas e não aquele que a nossa boca é capaz de pronunciar.

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