sexta-feira, 7 de outubro de 2011

CAPITULO V - Na Base da Montanha

CAPITULO V


A cozinha dos Ferreira transborda animação e muitas mulheres, que se fazem acompanhar por aquele burburinho inevitável das risotas, segredinhos e mexericos. Glória acende o forno de lenha enquanto as restantes mulheres preparam a massa. As festas do Senhor Espírito Santo estão à porta e é preciso fazer a massa sovada para distribuir a quem queira, como recompensa pelos favores pedidos aos Santos. Este ano é a tia Espírito Santo quem oferece as sopas, pagando assim a promessa de que o marido se curasse de uma pneumonia. Como é da família, Luzia ofereceu o seu pessoal para ajudar. O José ajudará a matar as vacas e a preparar a carne, e as mulheres ajudarão na cozinha. Faltam só dois dias para a grande festança e o trabalho abunda sem nunca diminuir...
Maria anda chateada... Não queria participar naquela azáfama que lhe roubava tanto tempo... Logo agora que tinha tantos trabalhos para fazer.
- Mãezinha, posso ir para o quarto. A professora Noélia passou muitos deveres e tenho que fazê-los todos para amanhã, se não ainda apanho com a régua nas unhas... – Pede Maria com muito jeitinho e carinho tentando comprar a resposta positiva.
- Vai lá filha! Primeiro está a escola... – Luzia beija a fronte de Maria e olha-a com admiração. É tão criança e ao mesmo tempo tão responsável. É pela felicidade dela e das outras filhas que Luzia prometeu este ano dar cinquenta rosquilhas nas festas.
Maria nem agradeceu. Voltou costas e correu para o quarto. Trancou bem a porta não fosse alguém abri-la e descobrir o seu segredo... Tirou de debaixo da cama a sua mala da escola feita em madeira pelo seu falecido avô. Abriu com muito cuidado como se o seu interior guardasse um segredo e posou-a aberta em cima da cama. No interior desta mala não tinha nenhum material de estudo, apenas linhas, agulhas, tecidos, missangas... Maria tinha criado o seu próprio mini negócio como ela lhe chamava. Fazia chapéus muito bonitos. Começou com esta tarefa umas poucas semanas atrás, quando fez um chapéu para oferecer a uma amiguinha. A mãe da menina admirou muito o chapéu rosa com um véu branco e uma flor toda feita de tule branco a decorar o lado direito do mesmo e pediu a Maria que lhe fizesse um chapéu preto muito discreto, mas ao mesmo tempo chique para usar nos funerais. Maria aceitou o desafio. Primeiro pediu ao pai de João que lhe arranjasse moldes, depois desfez uma saia de seda preta que tinha para forrar o chapéu e com um dos véus que a mãe usava para levar à missa fez um véu pequeno adequado ao chapéu, e por fim fez uma rosa com arame e forrou-a com cetim branco, dando uma ar agradávelmente discreto e tirando um pouco o peso do luto. A sua primeira cliente ficou radiante com o resultado e fez da menina a sua chapeleira, recomendando-a às amigas. Maria ganhava um bom dinheiro. Tirava sempre uma pequena quantia que dava ao pai de João para que este lhe comprasse os materiais necessários, e o resto do dinheiro guardava para que um dia pudesse montar uma loja de chapéus feitos por ela. Não queria viver da terra, nem da lavoura. Sabia que as terras da família eram abundantes e que davam para garantir um bom futuro a toda a família, mas era um trabalho tão sujo... O mais complicado era manter segredo desta actividade. O pai de João prometera não dizer nada a ninguém, e as clientes só fazem as encomendas à porta da escola. No entanto, Maria sabe que corre o risco de ser descoberta e tem de estar preparada para tal. Quanto mais tarde os pais souberem melhor, pois assim tem tempo para guardar o máximo de dinheiro, não vá ficar sozinha e desamparada...
A tia Espírito Santo entra em casa dos Ferreiras com os vestidos das meninas prontos para a procissão.
- Glória!!! – Chama Luzia – leva os vestidos para o quarto e pendura-os direitinhos... Não são uma beleza?...
Glória apressa-se, pega nos vestidos com o máximo de cuidado possível e dirige-se para o quarto. Em frente à porta do quarto, Glória não consegue entrar.
- Maria!!! Abre a porta... Que fazes aí dentro trancada?
Maria apressa-se a enfiar tudo dentro da mala e envia-a para baixo da cama.
- Tem calma mulher... Parece que vais tirar o pai da forca. – Reclama Maria enquanto abre a porta.
Glória entra com os vestidos na mão, pousa-os em cima da cama e fixa Maria nos olhos.
- O que me estás a esconder, minha menina?
- Nada... Estava apenas a fazer os trabalhos de casa.
Glória olha em redor e não vê nenhum material escolar. Maria está a mentir-lhe de certeza. Nem ligou aos vestidos... Em circunstâncias normais, teria ficado histérica com os vestidos e começaria logo a inspeccioná-los, não fossem precisar de algum ajuste.
- Maria, Maria... Não gosto que me enganem... Se estás com algum problema podes dividi-lo comigo, afinal sou tua irmã, e mais do que isso, sou tua amiga.
Maria encolhe os ombros... Tem tanta vontade de lhe contar, de lhe mostrar orgulhosamente o seu trabalho, de lhe dizer que o chapéu que ela tanto admirou na última missa tinha sido obra sua. Maria abre a sua gaveta de roupa e tira de lá um lindo arranjo de flores muito pequeninas feitas em seda branca e entrelaçadas com muita harmonia formando uma tiara própria para prender um véu de noiva. Estendeu aquela pequena obra de arte à irmã.
- Gostas Glória?
- É linda!... Onde foste buscar uma coisa dessas... Deve ter custado um dinheirão... Olha só para o trabalho que aí está feito... – Glória pegou naquele objecto com uma cautela extrema.
- Fui eu que fiz... É para usares no teu casamento.
- Oh Maria! Onde é que aprendeste esta arte? Onde é que foste buscar o material? Estou tão deslumbrada quanto confusa... Era por isso que estavas trancada? Como é que pudeste fazer uma coisa tão bonita?... Tão perfeita...
- Glória! Eu preciso da tua compreensão para o que te vou contar...
Glória levantou o olhar da teara de florzinhas e fixou a irmã com preocupação.
- Sabes que falta pouco para eu terminar a escola, não sabes?
- Sim..
- Sabes que eu não gosto da vida que me espera... Eu não gosto de terras, nem de galinhas, nem de porcos, nem de vacas... Certo?
- Sim...
- Cá em nossa casa todos sabem que eu sou muito vaidosa e ágil de mãos para a costura...
- O que é que me queres dizer Maria?
- Eu já estou a preparar o meu futuro, de modo a que não passe pelo trabalho do campo.
Maria tirou a sua mala de madeira e mostrou o seu material de costura, assim como os desenhos de todos os chapéus que já tinha feito. Glória olhou desenho por desenho estupefacta.
- Tu fizeste estes chapéus? E conseguiste? Quem é que te ensinou? Não me digas que o chapéu da dona Filomena é este que está aqui no desenho... Levas dinheiro para fazê-los?... – Glória deixa-se cair em cima da cama e desabafa – tu ainda és tão novinha...
- Não sei se vou conseguir responder a todas as perguntas... Sim, eu é que fiz o chapéu da senhora Filomena, assim como todos os que estão aí desenhados... E aprendi sozinha. Eu escrevi uma carta aos tios da América e pedi-lhes que me mandassem um livro que ensinasse a fazer roupa. Eles assim fizeram, mandaram o livro juntamente com uma encomenda de roupa que o pai foi buscar ao porto das Lajes. Neste livro tem uma parte que ensina a fazer chapéus... É certo que o livro está escrito em americano e eu não precebo nada do que lá diz, mas tem desenhos que mostram os passos a seguir para se conseguir um certo resultado... Com os desenhos e com um pouco de imaginação eu faço chapéus e vendo...
- Tu vendes?... Com essa idade quem é que te paga?
- Muitas senhoras que sabem apreciar um bom trabalho...
- E como é que sabes o que deves cobrar?
- O teu futuro sogro ensinou-me que eu devo acrescentar ao dinheiro gasto com o material, o custo do tempo, o custo do trabalho e a minha margem de lucro...
- O pai do João sabia e nunca me disse nada?
- Eu é que lhe pedi segredo...
Glória sai do quarto com as sobrancelhas carregadas... Não sabe bem o que deve pensar. Atravessa as divisões da casa num passo longo e apressado, sai pela porta da cozinha sem ouvir as perguntas que as mulheres lhe dirigem e encaminha-se caminho abaixo rumo à barbearia do futuro sogro. Levava na ideia a convicção de que o pai de João estava a aproveitar-se da meninice de Maria para lucrar algum... Não havia outra explicação... Que raio! Um homem daquela idade a explorar o trabalho de uma miuda de dez anos, quase onze é certo...
- Com que direito pôs a minha irmã mais nova a trabalhar? Vá, desembuche homem...
O barbeiro fica apreensivo e com os olhos arregalados... Pronto! Tinha sido descoberto. Agora só lhe resta contar a verdade...
- Eu não pus a menina a trabalhar. Ela é que tem um talento enorme e está a tirar proveito dele, eu só a ajudo para que não faça asneiras ou para que ninguém a engane...
- Quer dizer que ela não trabalha para si?
- Claro que não! Eu sou um homem pobre, mas sou às direitas. A menina Maria é que me procurou e pediu ajuda para conseguir materiais... Eu apenas aceitei fazê-lo porque se não fosse eu a ajudá-la ela iria procurar essa ajuda noutra pessoa que poderia não ser muito séria. Eu encomendo os materiais dela juntamento com os da barbearia... E a pequena é mesmo boa naquilo dos chapéus, pois tem cada vez mais freguesas, e encomenda cada vez mais materiais...
- Ela é uma criança que já lida com dinheiro... Com negócios...
- Ela já tem quase onze anos e tem um talento que lhe dá prazer e sustento. Quantos se podem gabar do mesmo?
Glória sai da barbearia sem a revolta que transportava no peito, mas com uma confusão angustiante que lhe pesa enormemente na mente. É verdade que a pequena Maria não quer o trabalho sujo das terras, mas também é verdade que ela é muito nova... Tem talento, não pode negar... E deve dar um bom sustento, caso contrário o pai de João não a teria incentivado. Quando chegar o momento certo saberá o que fazer, e este não é o momento, basta olhar para a sua cozinha onde reina o trabalho e a boa disposição. Depois das festas do Espírito Santo, logo se vê...

1 comentário:

  1. Amiga, estas histórias, eram dignas de serem publicadas em livro...
    Muitos parabéns.

    Beijinhos deste teu amigo:
    Humberto Neves

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