sábado, 9 de julho de 2011

Capitulo VIII

Capitulo VIII

- Há vinte e três anos, estava eu em Lisboa a estudar Economia, tal como tu agora. Vivia a mocidade típica dos vinte anos, numa ansiedade constante de conquista. Nesta ânsia de viver desenfreadamente, conheci a minha melhor conquista e maior desilusão. Apaixonei-me por uma rapariga que estudava educação de infância. Foi um amor típico dos jovens, vivido com muita pressa e demasiada intensidade. Mas foi sem dúvida um amor… Casámos assim que eu terminei o curso, e nestas pressas de viver uma vida plena e sem saborear o que só a juventude nos pode dar, ela nem terminou o curso. Os anos de casamento trouxeram um afrouxamento às pressas iniciais, mas na maioria foram anos de um casamento normal. Eu fui um marido um pouco ausente, porque esta actividade exige muita presença em diversos sítios, e a Carla não gostava de me acompanhar. Achava desinteressante esta minha mobilidade e adaptou-se a uma vida em que tinha de viajar sozinha, tinha de ocupar o tempo na nossa casa sozinha. Organizou uma agenda, em que no início era preenchia totalmente em minha função, longe de mim. Foi um casamento que durou dezoito anos. Foram dezoito anos em que eu amei… Sim, eu amei durante todo esse tempo… Umas vezes com mais intensidade do que outras, mas amei…
    O silêncio que preencheu o momento seguinte foi promissor de que aquele relato terminava ali naquele instante. Diana conseguiu ler uma mágoa profunda nos olhos de Bernardo quando os conseguiu fixar. Havia ali qualquer coisa que não tinha sido falada, mas sentia-se no ar. Uma tensão não exprimida, mas que palpitava como se quisesse ser revelada, mas principalmente entendida. Diana solidária com aquela dor que lhe carregava as sobrancelhas sobre um olhar nebulado pegou-lhe na mão e beijou-lhe a palma com um carinho que preencheu o peito de Bernardo de uma forma que ele pensou já não ser possível.
- E durante esses anos nunca tiveram filhos? – Diana procurava uma brecha que lhe permitisse satisfazer a curiosidade.
- Não. E quando pensamos nisso já não nos foi possível.
- Ora… Nunca é demasiado tarde para se gerar uma nova vida. – Estas palavras provocaram um tão mal estar em Bernardo que se viram obrigados a deixar a esplanada. Bernardo sentiu uma fraqueza que desculpou com uma queda de tensão. Deixaram a esplanada e encaminharam-se num vazio de conversa até ao hotel, onde Bernardo estava hospedado. Estacionaram nas traseiras do edifício e entraram directamente por um acesso que conduzia a uma entrada de uma suite que Diana nunca tinha visto. Ficou bastante evidente que aquele espaço estava reservada ao patrão. A porta do elevador abriu-se e deixou à mostra uma sala ampla que parecia transportá-los no tempo para a “época das luzes”. Um estilo rococó situado entre o barroco e o neoclassicismo marcado por cores claras e douramentos nos acabamentos contrastava harmoniosamente com uns detalhes modernos sabiamente espalhados por aquele amplo espaço. Diana encantou-se com uma aparador estilo Luiz VI defrontado por uma cadeira transparente de acrílico e com uns posters em molduras bem actuais colocados harmoniosamente sobre o móvel antigo. Ambos os estilos saiam valorizados. Os dois sentaram-se num sofá confortável em pele castanho que deixava os corpos afundarem-se convenientemente, convidando a permanecerem ali.
- Sente-se melhor Bernardo? – Diana sentiu-se embaraçada com o seu deslumbramento e depressa tentou recompor-se.
- O que eu tenho não passa.
- Não diga isso, que ainda é castigado. Um homem com o património que o Bernardo tem, bem-parecido, a gozar de plena saúde… Até é pecado reclamar da vida. – Diana tentava animá-lo, conseguindo apenas o efeito contrário.
- Sabe Diana nem tudo o que parece é! – Bernardo largou a mão da rapariga até então colada à sua e de repente sentiu o ridículo da situação. Ele estava a deixar-se envolver emocionalmente por uma jovem que tinha uma vida promissora pela sua frente, e ele não tinha nada para lhe oferecer. – Vá aproveitar a sua juventude Diana e deixe os velhos descansarem.
- Está a falar de quem? Eu só vejo jovens nesta sala! – Diana deslumbrou-o novamente com aquele sorriso um pouco maroto que lhe era característico.
- É melhor ir-se embora Diana. – Bernardo levantou-se e encaminhou-se para o seu quarto, deixando clara a sua intenção, para grande atrapalhação de Diana.
    Nessa noite, Diana deitada na sua cama fixava aquele tecto já demasiado apreciado e questionava aquela atitude despropositada. Talvez tivesse dito alguma coisa ofensiva. Ela fazia um esforço de memória e não conseguia lembrar-se de nenhuma conversa em que pudesse ter ofendido Bernardo. No dia seguinte, quando ele a fosse buscar iria esclarecer a situação e pedir-lhe desculpa se fosse necessário. Diana foi buscar o telemóvel que estava dentro da mala de forma a programar o alarme para a hora correcta. Quando olhou para o ecrã, reparou que tinha três chamadas não atendidas e uma mensagem. Todas estas tentativas de contacto eram de Duarte, e a mensagem deixou Diana enternecida, “ Liga-me quando puderes, para eu matar saudades da tua voz. Amo-te”. Diana começou a marcar o número de volta, mas não efectivou a sua intenção. Já era um pouco tarde e podiam falar no dia seguinte…
- Bom dia beta! – Raquel abrindo a boca e coçando o emaranhado de cabelo espantou-se com uma mesa de pequeno-almoço com café, torradas e um colorido de frutas. Normalmente as raparigas engoliam um copo de leite e umas bolachas à pressa, mas hoje Diana esmerara-se.
- Bem Diana! Madrugaste para fazer tudo isto. O que é que me queres pedir?
- Não sejas tonta! Senta-te e disfruta de uma refeição reforçada.
- Agora a sério Diana, a que se deve tudo isto?
- Acordei demasiado cedo! – Esta era a verdade. Diana acordou ansiosa, e como o tempo teimava em não passar ao ritmo desejado, a rapariga resolveu ocupar-se com alguma coisa que não a pressa de voltar a ver Bernardo nessa manhã.
- Ah rapariga laparosa! – Aquele termo típico da terra de Diana causou uma cascata de gargalhadas e animou aquela manhã numa boa premonição para o resto do dia.
    Como esperado e desejado, o Lexus já a esperava no lugar do costume. Quando se abriu a porta do condutor, Diana começou a relaxar. Saberia agora se tinha ofendido o patrão ou se tinha sido impertinente de alguma forma. Ela detestava esta sensação de que alguma coisa não estava bem resolvida e só conseguiria descansar o espírito quando sentisse novamente um ambiente descontraído entre os dois. Quando o corpo do condutor de depositou totalmente fora do carro Diana, sentiu uma pontada de decepção. Não era Bernardo que conduzia o Lexus, mas um motorista que Diana não conhecia.
- Bom dia! O Sr. Bernardo pediu-me que estivesse ao seu dispor durante estes dias em que ainda estará com o gesso. – O motorista mostrava-se muito solene, enquanto abria a porta traseira do carro. Diana sentiu uma sensação estranha. Sempre se sentara no banco da frente e aquela formalidade de não ocupar o lugar ao lado do condutor habitual estava a causar-lhe uma estranheza súbita que a impediu de qualquer comentário para além de um agradecimento tosco.
    Já dentro do carro e com a desilusão a pesar-lhe nos olhos que teimavam rasar de água, Diana viu um ramo de hortências com um envelope. Apressou-se a abrir o envelope e devorou de uma só vez aquelas letras, para só depois as absorver com calma.
    “ Minha querida Diana! Lamento muito não poder continuar ao seu dispor como seria da minha vontade, mas as obrigações não se dispersam no ar. Gostei muito de a conhecer. Mais do que talvez fosse oportuno. Desejo-lhe uma vida muito feliz e um futuro presenteado de vitórias.
                                                                       Bernardo”
    Diana só conseguiu ler o que as entrelinhas espalhavam com tanta clareza. Era uma despedida. Como podia ter interpretado como amizade a atenção que um homem como Bernardo lhe dispensara? Era ingenuidade sua. Uma ingenuidade que morreria naquele momento. O peso da marginalidade voltou a instalar-se incomodamente. Quem nasce para estar num lugar inferior não pode contar com ajudas para alcançar um lugar dianteiro nesta sociedade estandardizada. Diana chorou de rancor. Sentiu naquele exacto momento uma descriminação maior do que os maus tratos de Ruben lhe haviam provocado. Sentiu-se mais pequena do que a cada olhar de pena que sentira ao longo da sua vida. Sentiu-se mais humilhada do que quando viveu da caridade alheia… Mas ela era forte… ela era muito forte… Conseguiria chegar a um estatuto superior sozinha e saberia olhar para as pessoas que mereciam de frente, e desprezaria os fúteis, os que andavam com os papás na algibeira.
- Como é que se chama? – O carro estacionou fora da faculdade e Diana dirigia-se ao motorista que a ajudava a sair da viatura.
- Adelino.
- Pois bem Adelino! Está dispensado!
- Mas… O patrão não vai ficar satisfeito…
- Claro que vai. Adelino olhe bem para mim. Sou uma pobre coitada. Acha mesmo que o seu patrão fica satisfeito por se sentir obrigado a prestar um serviço a uma pobretana?
- Eu acho que a senhora não está a ver bem as coisas…
- Acredite em mim. Ele ficará feliz por saber que este vínculo terminou.
- Mas a senhora… Está a ser precipitada… O patrão tem estima por si e faz isto por se preocupar consigo.
- É um bom funcionário… Lealdade é a melhor virtude que se pode possuir. E o Adelino é leal. Espero que seja valorizado por isso. – Diana virou as costas e mesmo limitada pelas muletas, Adelino viu a postura e a dignidade de uma rainha naquela rapariga.
    Os dias passaram-se sem que Diana os contasse. Concentrou-se apenas nas disciplinas que exigiam uma dedicação que não lhe deixava espaço para tristezas ou rancores. No dia em que finalmente se libertou do gesso, Diana apresentou-se no hotel para começar novamente a trabalhar. Foi com surpresa que recebeu a indicação de que seria recebida pelo responsável dos recursos humanos. Será que Bernardo iria despedi-la só porque ela declinou a oferta do carro e do motorista? Era bem feito… ela baixou as suas defesas perante aquele homem, pensando que estava a desenvolver uma amizade sincera… Mas ele era como todos os outros… Centrava as suas amizades apenas no seu quadrante social… e ela não fazia parte dessa realidade. Esperou com uma calma aparente sentada num sofá confortável e a folhear uma revista que nem chegava a focar. Sairia com a cabeça erguida e sem olhar para trás. Só não tinha saído já, porque queria levar o cheque.
- Diana! – Ao chamamento Diana demorou um pouco a levantar-se, não querendo passar uma imagem de ansiedade.
- Boa tarde Diana! Sente-se por favor! – Diana deparou-se com uma senhora de meia-idade, com uns óculos pendurados na ponta do nariz. A mulher dirigia-lhe um sorriso afectuoso que lhe tornava o rosto ainda mais redondo.
- Boa tarde. – Diana começava a sentir o estômago retrair-se.
- Fico satisfeita por ver que recuperou inteiramente.
- Obrigada!
- Bem Diana. Vou direita ao assunto. – A mulher baixa sacudiu os cabelos grisalhos, baixou os óculos e fixou aqueles olhos pequenos e astutos em Diana. – Por indicação do Dr. Bernardo, a sua situação nesta casa vai ser alterada.
    Diana sentiu um soco no estômago quando percebeu que o seu despedimento resultaria de uma ordem directa de Bernardo.
- O Dr. Bernardo, acha que as capacidades da Diana estão subaproveitadas nas suas funções de camareira. Fiquei muito admirada quando ele me comunicou que a Diana é uma aluna exemplar no curso de economia. Claro que fui confirmar esta afirmação. – A mulher encostou-se de forma mais descontraída na cadeira. – Eu liguei para um grande amigo que é professor catedrático na sua faculdade, e quando lhe pedi informações suas, ele nem teve de consultar os ficheiros. Sabe o que isto significa Diana? – A mulher nem esperou uma resposta. – A Diana é uma aluna de excelência. É um daqueles casos em que os professores se sentem gratos por leccionar. E nós tínhamo-la aqui na nossa casa como camareira. A nossa proposta é a seguinte, a Diana vai acompanhar durante um mês todas as funções, acções e administrações do nosso hotel. Passado esse mês gostaríamos que fosse a Diana a administrar este hotel. Claro que o salário acompanhará esta subida nas suas funções. O que me diz?
    Diana sentiu um súbito ardor que depressa resultou num choro convulsivo, para desespero da entrevistadora que se redobrou em cuidados sem saber o que fazer àquela rapariga. Era a primeira vez que se sentia reconhecida profissionalmente pelo seu valor. Estava à sua frente uma pessoa que não conhecia de lado nenhum e que avaliou todo o seu esforço sem conotações preconcebidas ou compadecimentos. Finalmente um esforço contínuo e persistente de anos dava um resultado que Diana sentia merecer com toda a legitimidade deste mundo.
- Desculpe! – Diana recompôs-se. – Eu prometo que não vou desiludir!
- Eu sei disso. – A mulher voltou a sentar-se e sorriu-lhe maternalmente. – E o Dr. Bernardo também o sabe.
    Aquela alusão a Bernardo fez com que Diana repensasse a sua avaliação sobre ele. Podia ter interpretado mal aquele tempo que passara na sua companhia. Não se tratara do início de uma amizade, mas tinha de admitir que Bernardo mostrara-se uma pessoa justa, ao dar-lhe esta oportunidade. Ele mostrou que se importava com os seus assalariados e sabia fazer uma gestão justa e proveitosa do seu pessoal.  
    O mês passou-se num desenrolar de novas experiências e sabedorias. A experiência era realmente útil à teoria do curso, e vice-versa. Diana sentia-se realizada e vivia esta nova fase da sua vida com uma intensidade acima do que era esperado. Mostrava-se sempre um passo à frente do que lhe era exigido. Diana fizera questão de conhecer cada trabalhador daquele imenso hotel e acompanhar as funções de cada um ao pormenor. Um bom administrador é aquele que conhece ao pormenor as obrigações diárias de cada posto de trabalho. Só assim se pode exigir com sabedoria sem criar expectativas impossíveis ou objectivos baixos, garantindo assim que não se instale a insatisfação ou desmotivação dos trabalhadores.
    Duarte vibrava com esta nova felicidade da namorada e acompanhava cada nova etapa ultrapassada com o orgulho dos que amam. No entanto, as conversas eram cada vez mais curtas. Abordavam-se demasiados assuntos nos curtos e escassos telefonemas que os ligavam, deixando sempre uma vaga frustração em Duarte que ansiava uma conversa lamechas sem novidades, abordando apenas planos a dois e sentimentos que já há muito não eram declarados.

Sem comentários:

Enviar um comentário