domingo, 3 de julho de 2011

Capitulo VII

    Diana sentia falta de ter uma folga, de ter um dia de preguiça desperdiçado entre o sofá e a padaria da urbanização, mas parecia que esse dia tardava em chegar. Até a Primavera se antecipou ao tão merecido descanso, desdenhando das obrigações mundanas que Diana tinha de cumprir. Aquele sábado demasiado sombrio para um mês de Abril alongava-se numa fila interminável de quartos que precisavam de ser limpos. E Diana fazia-o com a mente dispersa e cantarolando “ diamonds are a girl’s best friend”. Quando finalmente a hora de saída se pronunciou num apitar de alarme do seu telemóvel, Diana apressou-se a mudar de roupa para sair. Tinha de se apressar se queria apanhar o autocarro.
- Diana! Espere um momento! - Diana reteve-se ao som daquele chamamento, reconhecendo a voz do seu gerente. Olhou para o relógio desejando que a conversa fosse rápida de forma a poder apanhar o autocarro. Não lhe apetecia nada gastar dinheiro num táxi.
- Sim?
- Em vez de entrares amanhã às sete horas da tarde podes entrar às quatro? – O gerente falava de uma forma arrastada que prolongava as palavras para além do necessário, atiçando a impaciência de Diana. – Vamos ter a sala de conferências ocupada por uma reunião de um banco e estamos sem assistentes. Tu conheces os hábitos desta casa e creio que podes desempenhar bem essas funções.
- Claro. Pode contar comigo. – A espera tinha valido a pena. Podia deixar de ser camareira para começar a trabalhar na organização de eventos do Hotel. Sentiu-se satisfeita com a perspectiva de mudança. Quando voltou a olhar para o relógio sentiu um sobressalto. Estava muito atrasada e saiu a correr. Atravessou o pátio traseiro do hotel debaixo de uma chuva intensa, mas nem assim desacelerou o passo. O vento batia-lhe ferozmente nas faces molhadas e a sua visão estava turva. Atravessou a passadeira que a separava da paragem de autocarros sem ver o carro que se aproximava, e só teve consciência da presença deste quando sentiu uma dor lancinante na perna direita. O seu corpo rebolou por cima de um capot preto e caiu sem reacção no outro lado da estrada. O guincho dos travões a fundo ainda lhe feriam os ouvidos e as ideias turvavam-se perante aquela dor que teimava em crescer.
- Desculpa! Estava a chover muito e não a vi! – Um homem alto e forte tentava levantar Diana no meio de desculpas e lamentações. No entanto perante aquele rosto contorcido de dor a cada tentativa de movimento ele desistiu e chamou uma ambulância. Diana não sabe quanto tempo esteve ali deitada, mas pareceu-lhe uma eternidade até finalmente ver a ambulância parar ao seu lado. Não foram para o Hospital da Universidade de Coimbra como Diana esperava, mas sim para um hospital privado, onde Diana teve um tratamento de excelência. O resultado do acidente foi uma fractura na perna, mas nada que exigisse demasiados cuidados, apenas umas semanas com gesso. Quando o médico finalmente lhe disse que estava pronta para ir para casa Diana lembrou-se com ironia que afinal de contas tinha de pagar o táxi. A tentar habituar-se ao equilíbrio das muletas Diana saiu para a entrada das urgências onde um homem alto e bem-parecido se dirigiu a ela com a palavra preocupação inscrita no rosto.
- Peço-lhe imensa desculpa! – O homem tremia um pouco das mãos e a voz tinha um timbre de aflição. – Foi sem intenção… foi muito rápido e eu realmente não a vi.
- Então é o senhor o responsável pelo meu novo acessório! – O tom descontraído de Diana arrancou uma gargalhada de alívio àquele desconhecido.
- O que posso fazer por si agora?
- O que qualquer cavalheiro faria no seu lugar. Pode oferecer-me uma boleia até a casa, visto que estou incapacitada para correr atrás de um autocarro. – O sorriso malandro que Diana ofereceu desfez qualquer incómodo que existia até aquele momento. O estranho conduziu-a até ao seu carro. Tratava-se de um Lexus preto, luxuoso com os estofos em pele e com um conforto superior ao de muitas casas.
- Eu sou a Diana! – Apresentou-se Diana depois de instalada dentro do carro.
- Ah! Nem me apresentei. Que falha a minha. Eu sou Bernardo Figueiredo. Muito prazer! – O estranho estendeu-lhe a mão num cumprimento que ficou sem resposta, perante uma rapariga de repente apática que o mirava de queixo caído.
- Desculpe! – Diana refez-se do choque apenas passados uns longos segundos. – Acho que é o meu patrão! Eu trabalho no hotel!
- Ah! Então confirma-se. Eu sou o seu patrão, Diana. – O homem sorriu-lhe. De repente sentiu-se satisfeito perante a possibilidade de poder voltar a vê-la. Era uma ideia pateta, porque sabia que não podia ter qualquer tipo de relacionamento, mas havia qualquer coisa naquela rapariga que o atraía. – Diga-me Diana, onde mora?
- Em Celas.
- Então, o que faz no meu hotel?
- Sou camareira.
    A cara de surpresa de Bernardo não passou despercebida a Diana.
- As camareiras são todas assim tão atraentes? Não admira que estejamos com um crescente número de clientes. – Depois da piada, Bernardo recompôs-se não reconhecendo aquele bom humor que sentia e sem saber bem como lidar com ele. – Eu congratulo-me pelo facto de conhecer todo o meu pessoal, mas confesso que nunca a tinha visto.
- Eu só trabalho em part-time. As reuniões que organiza com os seus colaboradores são apenas para pessoal que trabalha a tempo inteiro.
- Ah! Mistério resolvido! – Bernardo sentia outro sorriso aflorar-lhe os lábios o que era raro e ficou satisfeito com a sensação. – E o que faz com o resto do seu tempo útil?
- Estou no quarto ano de economia!
- Não me diga! – O espanto visível na cara daquele homem respeitado e poderoso fez Diana sentir um orgulho incomensurável da sua pessoa. – Não é um curso fácil para quem só se dedica ao estudo… Nem quero imaginar para quem trabalha… como é que lhe está a correr?
- Sou a melhor aluna da faculdade!
    Bernardo sentiu a segurança daquela resposta directa e sem rodeios e travou o carro, encostando-o desajeitadamente quando percebeu que já tinham chegado ao destino. Não lhe apetecia já despedir-se daquela rapariga que era uma caixinha de surpresas.
- A Diana é a melhor aluna da faculdade de economia? E trabalha como camareira? E no meu hotel?
- Sim!
- Eu tenho a melhor aluna da faculdade de economia da Universidade de Coimbra todos os dias a fazer as camas de um dos meus hotéis?
- Está a ficar um pouco repetitivo Sr. Bernardo. – Diana coloca a mão na porta do carro com intenção de sair.
- Espere Diana! Vamos tomar um café a qualquer lado? – Bernardo não queria dispensar aquela companhia tão cedo.
- Eu estou cansada e dói-me um pouco a perna. Não leve a mal. Mas podia ajudar-me a sair do carro. – Novamente aquele sorriso perfeito que se começava a encaixar na mente de Bernardo.
   Depois de conseguir sair do carro Diana agradeceu a boleia e descansou a preocupação que no seu entendimento ocupava a mente do seu patrão e que era a razão daquele comportamento um pouco estranho.
- Não se preocupe Sr. Bernardo que eu não vou fazer queixa nem pedir nenhuma indemnização. – Não que esta ideia não lhe tivesse atravessado o espírito, mas Diana chegou à conclusão que ele lhe seria mais útil como amigo do que como inimigo.
- Nem estava a pensar nisso. E se o fizesse estava no seu direito.
- Ah! Tenho de lhe pedir um favor!
- Tudo o que queira Diana.
- Avise no Hotel que amanhã não posso ser assistente na sala de conferências ao encontro de um banco que vai lá haver.
- Claro! Não se preocupe! – Depois de um momento em que Bernardo se sentiu novamente um adolescente constrangido na presença de uma mulher superior, tentou adiar mais um pouco a despedida.
- Na segunda-feira vai às aulas?
- Claro! Às oito e trinta da manhã já quero estar na faculdade a tomar o meu café e a exibir o meu acessório novo! – Após mais um momento constrangedor, Diana iniciou a despedida. – Bem! Foi um prazer conhecê-lo.
    Diana encostou a canadiana ao corpo libertando uma mão para o cumprimento de despedida. Bernardo recebeu aquela mão esticada e sentiu uma tensão naquele contacto, como já não sentia há demasiado tempo.
- Só tenho pena que tenha sido nestas circunstâncias. Até breve Diana!

    Assim que Diana entrou em casa o grito estridente de Raquel percorreu as entranhas de todo o prédio.
- O que é que te aconteceu? – Raquel apertava e apalpava a amiga freneticamente à procura de outras mazelas. – O que é que aconteceu?
- Fui atropelada à porta do hotel.
- Brutos! Estou capaz de matar quem te fez isto! Se não sabem conduzir deviam andar de mula… pelo menos tinham tempo de travar a tempo se fosse preciso…
- Tem calma Raquel, já passou! – Diana ajeitou-se no sofá e esticou a perna sobre uma mesinha que Raquel prontamente colocou à sua frente com uma almofadinha para não magoar a amiga. – Tens planos para hoje Raquel?
- Não! Vou vegetar o fim-de-semana todo, e tomar conta da doentinha!
- Óptimo! Vegetar sem a tua companhia não é a mesma coisa.
    O descanso daquele fim-de-semana chuvoso passou-se entre o sofá e a cama e dissipou-se depressa demais, para desagrado das raparigas que acordaram numa segunda-feira solarenga, mas prometedora do início dos trabalhos. Diana e Raquel acordaram mais cedo de forma a garantirem que Diana estava na paragem de autocarro antes da hora. Despediram-se à porta do prédio, uma vez que os destinos das raparigas eram opostos. Diana deslocava-se vagarosamente para a paragem quando reparou num Lexus estacionado fora do seu prédio. O vidro baixou-se e Diana espantou-se com o reconhecimento do patrão dentro do carro.
- Pronta para uma nova semana? – Bernardo saiu do carro apressadamente para ajudar Diana. Perante a falta de reacção desta, o patrão pegou-lhe no braço e encaminhou-a com cuidado para o carro. – Enquanto estiver com essa limitação de deslocação, eu serei o seu motorista particular.
    Diana deixou escapar uma gargalhada. A ideia de ter o seu patrão, um homem dono de uma das maiores cadeias hoteleiras do país e que já começara a internacionalizar, ali a trabalhar para ela era por demais irónico.
- O que pensará o pessoal do hotel quando me vir chegar na sua companhia e como meu motorista?
- Pensará que eu sou um homem de sorte por poder acompanhá-la para todo o lado! – Bernardo sentia uma energia pulante dentro das veias que teimava em ser libertada, ansiando aquela segunda-feira como um pedinte anseia uma nota.
- Não estava a falar a sério quando disse que vai ser o meu motorista. Um homem como o senhor deve ter mais que fazer.
- Ponto número um, a partir deste exacto momento trata-me só por Bernardo. Ponto número dois, eu já cancelei todos os meus compromissos por duas semanas, em que estarei inteiramente ao seu dispor. Ponto número três, enquanto estiver assim está dispensada do trabalho. E nenhum destes pontos é negociável.

    Diana começava a gostar daquele patrão descontraído que lhe oferecia serviços subalternos. Tratava-se de um homem alto bem constituído de cabelo louro moldado por um pouco de gel. Tinha um olhar penetrante de um azul celeste que raramente acompanhava o sorriso dos lábios. Eram uns olhos permanentemente astutos e tristes, como se a alma não se adaptasse à boa disposição do corpo. Diana habituou-se àquela presença sólida que se impôs no seu dia-a-dia. As conversas fúteis deram lugar a conversas profundas em que a curiosidade de Diana era aguçada por assuntos que morriam antes mesmo de serem conversados. Sentia que Bernardo já conhecia todo o seu percurso de vida e ela estava ainda na estaca zero. Tratava-se de um homem interessante que apesar de estar aberto à sua presença, estava fechado para o mundo. Havia sempre uma áurea pesada nos contornes das suas feições e por vezes o seu olhar tornava-se turvo e os modos educados davam lugar a atitudes agreste, que Diana não entendia.
    Um certo dia, sentados numa esplanada à beira do rio mondego, a conversa tomou um rumo que Diana aproveitou para aprofundar o seu conhecimento sobre aquele ser enredado em mistério.
- O Bernardo nunca fala de si. Já lhe contei toda a minha existência ao longo desta semana, e o Bernardo fecha-se em copas sempre que tento aprofundar alguma coisa que lhe diga respeito.
- É impressão sua Diana. Pergunte o que quiser que eu respondo. – O sorriso que acompanhou esta disponibilidade foi um pouco forçado e acompanhado de uma desconfiança que lhe brilhou no olhar.
- O Bernardo é natural de onde?
- Sou o único filho de uma família antiga de Évora, que viveu sempre da hotelaria. Os meus pais fundaram o grupo hoteleiro que hoje conhece, com um hotel de luxo em Lagos. Quando faleceram, tenha eu vinte e oito anos, deixaram-me um negócio rentável formado por uma pequena cadeia de hotéis. Eu consegui alargar este negócio, para o património que hoje constitui o grupo económico tal como o conhecem. Tenho os hotéis, assim como uma rede de agências de viagens. Já tenho hotéis, em Madrid, no sul de Espanha, e no sul de França, sendo que o meu preferido se situa em Nice.
- Admiro o facto de ter arregaçado as mangas para conseguir um património maior. Muitos teriam vivido dos lucros resultantes do trabalho de outros.
- Como vê Diana, as únicas pessoas lutadoras não vêm do seu quadrante social. – Bernardo mostrava um olhar perdido em algum sítio menos agradável.
- Para um homem que conseguiu um pequeno império, não tem um ar muito vitorioso. Que males se escondem nesse olhar?
    Bernardo olhou aquela rapariga com um espanto espalhado nas expressões do rosto. Tocava-lhe o facto de, aquela açoriana numa semana ter reparado nele como as pessoas que lhe são próximas nunca repararam.
- É muito perspicaz, Diana.
- Sou apenas atenta e uma veterana no que toca a sofrimentos. É casado? – Adivinhando que não seria fácil arrancar-lhe o que lhe pesava na alma, Diana continuou com o interrogatório, na tentativa de chegar a uma conclusão.
- Já não! – A mágoa que trespassou aquele olhar límpido foi notória.
- Então é aí que reside a sua mágoa.
- Não é assim tão simples Diana…
- Então conte-me como foi o seu casamento e como terminou.
- Ai Diana! Devia ter seguido jornalismo, que essa sim é a profissão dos curiosos… - Como Diana continuava a olhá-lo à espera de uma história, Bernardo não teve coragem de contrariá-la, e começou a narrar a história do seu casamento com o olhar perdido num ponto longínquo das águas turvas do Mondego.

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