sábado, 30 de julho de 2011

PARTE III Capitulo XII

PARTE III

Capitulo XII

    O coração apertou-se quando a figura da ilha de S. Jorge surgiu no lado esquerdo, encaixado naquela janela minúscula do avião. A ilha elegante e esguia alongava-se num verde húmido, em que encostas altas escondiam fajãs paradisíacas. O avião aproximava-se do seu destino com uma calma não partilhada por Diana. A ilha do Pico mostrou-se numa ponta dupla que se alongava descaradamente em direcção ao mar, resultando num triângulo perfeito. Finalmente o Monte Queimado tão familiar surgiu no seu plano de visão, seguido do Monte da Guia que escondia uma enseada em forma de oito. O mar azul esbranquiçava-se contra o basalto negro da costa que se perdia no encontro perfeito com o verde luminoso dos prados dominados por vacas malhadas preguiçosas que comiam vagarosamente.
    O contacto do avião com a pista foi perfeito e as palmas surgiram para sobressalto de Diana que já não se lembrava daquele ritual. Desde que tomara cargos de direcção no grupo hoteleiro que viajara por toda a Europa e por alguns países da Améria do Norte e nunca se lembra de ter ouvido aplausos dentro do avião como acontecia sempre que aterrava naquela pista minúscula. Esta era uma recordação distante que lhe fora arrancada pelo momento, e que a fez tomar consciência do tempo que já passara desde a última vez que estivera na sua terra natal. Já se haviam passado mais de três anos, e esta constatação provocou-lhe um medo súbito, uma vontade desesperada de sair dali, de voltar para trás, para o conforto da vida que conquistara sozinha. O pânico apoderou-se da sua mente, o medo da miséria que aquela terra lhe tinha oferecido fizeram-na perder a noção de espaço e num respirar sôfrego um gemido libertou-se seguido de um chorar compulsivo. A senhora idosa que ressonara baixinho durante toda a viagem compadeceu-se de Diana e numa tentativa frustrada de a acalmar acariciava-lhe as costas da mão. A hospedeira desapertou-lhe o cinto e obrigou-a a engolir um pouco de água com açúcar repetindo que se tratava de uma situação normal. Diana focou-se no motivo que a conduzia àquela ilha e obrigou-se a acalmar. Encontrar Duarte era um motivo demasiado forte para se deixar envolver por velhos receios e ela sabia que naquela primeira semana de Setembro, Duarte estaria de férias no Faial.
    Assim que Diana começou a descer as escadas do avião, avistou Pedro e Raquel que lhe acenavam energeticamente. Aquela visão sossegou-lhe os nervos e iluminou-lhe o rosto num sorriso. Esperou a sua bagagem numa impaciência que antevia um abraço apertado do irmão. Sentia muitas saudades de Pedro, e Raquel fazia-lhe muita falta em Coimbra. Quando a amiga regressou para o Faial, Diana adquiriu o seu próprio cantinho. Tratava-se de um apartamento pequeno situado num condomínio privado onde podia disfrutar de piscina durante o ano inteiro, de um ginásio muito bem equipado e de dois campos de ténis. Tratava-se de pequenos luxos destinados apenas a moradores daquele “resort” como Diana chamava. Ela morava num pequeno paraíso, mas sentia sempre uma inquietação pesar-lhe no espírito e uma ânsia que qualquer coisa mais. Todas as metas que conseguia ultrapassar não eram devidamente apreciadas e um horizonte mais longínquo se fazia desejar no imediato. Havia uma insatisfação permanente que lhe gritava do fundo da alma para ser satisfeita, e apesar de todos os esforços, a ânsia de conseguir sempre um pouco mais dominava-a.
- Bicha do mato! Que saudades! – Raquel atirou-se ao pescoço da amiga assim que a viu.
- Bem-vinda de volta princesa! – Pedro pegou na irmã e fê-la rodopiar no ar activando instantaneamente a memória de Diana que recordava com carinho a quantidade de vezes que Pedro lhe fizera aquilo.   
    Diana gostou daquela imagem que transmitia união entre o irmão e Raquel. Ficou ainda mais agradada quando olhou para eles e percebeu que já não via um mecânico humilde e uma beta loura, mas um casal em que ambos se encaixavam sem que nenhum deles sobressaísse.
    Quando chegaram à porta da casa de Pedro, o peito de Diana apertou-se num vendaval de sentimentos e emoções. Pedro ficara com a casa onde ambos haviam vivido tantos dramas e passado tantas privações. Diana nunca entendera bem a motivação do irmão no que respeitava àquele lugar, mas aprendera a respeitar. O seu espanto reflectiu-se num descair de queixo assim que saiu do carro e os seus olhos fixaram-se no lugar onde se situava a velha casa. Em lugar dos degraus gastos e disparos que davam acesso ao velho balcão com uma porta tosca que rangia a cada contacto e que deixava antever a uma cozinha deprimente, os olhos de Diana encontraram uma casa simples, mas linda. As paredes brancas contrastavam com o negro do basalto que contornava portas e janelas. Apesar da aparência renovada, naquela casa, as suas misérias eram sentidas como se ainda o pai estivesse ali perto pronto para lhe levantar o punho cerrado. Era como se ainda ouvisse a velha zundap rugir furiosamente aproximando-se daquela ruína e despertando em Diana um sorriso frágil na antecipação da chegada do irmão.
    As paredes podiam agora estar brancas, a cozinha podia ser agora moderna, ampla e luminosa, mas Diana via o passado ali presente, sentia a miséria pairar por cima dos novos sofás de pele. Onde estava um jardim cuidado coberto por um relvado verdejante que suplicava ser pisado por crianças felizes, Diana só conseguia focar a imagem de um quintal moribundo e pouco fértil.
- Porque é que quiseste ficar com esta casa? – Diana aproveitou um momento a sós com o irmão.
- Porque estão aqui todas as minhas recordações da mãe.- Pedro sentou-se ao lado da irmã e abraçou-a com a mesma naturalidade com que o fazia há muitos anos atrás, para grande satisfação de Diana que sentiu repentinamente o peso da saudade daquela ternura que os unia.
- Podes recordar a mãe fora destas paredes! Este lugar causa-me arrepios!
- Nós temos visões diferentes das coisas. Os dias mais felizes da minha vida foram passados dentro destas paredes. Sim, existem muitas recordações menos boas… Muitas delas são horríveis mesmo… Mas todas essas vivências fizeram de mim a pessoa que sou hoje e conduziram-me à vida que tenho hoje… E eu gosto de mim e da minha vida.
- Ah! – Foi tudo o que Diana conseguiu verbalizar. Na verdade não percebia. A pessoa maravilhosa que o irmão era não se dissiparia se ele mudasse de casa.
- Sabes Diana? Por vezes sinto que a mãe ainda está aqui. Ouço a gargalhada dela fácil e contagiante sempre que eu lhe trazia um “ dente de leão” e soprava-o para a cara. Ainda a sinto choramingar sozinha dentro do quarto como o fazia sempre que voltava da cidade e via de longe a família que a continuava a negar. Sinto os seus passos pesados quando estava grávida de ti. E à noite quando fecho os olhos sinto um leve roçar dos seus lábios na minha testa.
    Diana silenciou-se durante uns momentos. Viveu naquela casa com uma ânsia desesperada de sair dali que nunca reparou nos pormenores e histórias que aquela casa guardava. Nunca tentou sequer descobrir a pessoa maravilhosa que a sua mãe foi.
- Achas que eu sou parecida com ela? – Diana sentia uma necessidade repentina de ter uma imagem nítida da sua progenitora.
- Fisicamente, vocês são muito parecidas. Ela também era muito bonita. Tinha os olhos iguais aos teus, mas a expressão do olhar é muito diferente.
- Como assim? – Diana despertou em si um corrente de curiosidade.
- A mãe tinha um olhar que se rasgava em sorrisos com a mesma facilidade com que os lábios o faziam. Tinha um olhar dócil e que transmitia uma paz confortável aos que a rodeavam. Ela possuía um ar descontraído e feliz que a tornava uma pessoa querida por todos. Quando ela era viva, nós éramos pobres na mesma, mas esta casa transbordava pequenas felicidades quotidianas. Os problemas existiam, mas ela tinha a capacidade de absorvê-los e transformá-los em coisas melhores. Ela sofria! Eu sei que sim, mas nunca se queixava. Guardava os sentimentos e situações menos agradáveis e protegia-nos a todos. – Pedro iluminava-se sempre que falava da mãe.
- Bem! Ela tinha um olhar bondoso! Já percebi! Estás a queres dizer que eu tenho um olhar demoníaco! – Diana lançou aquela afirmação em forma de brincadeira, mas no fundo esperava uma reacção sincera.
- Tu és um demónio! Rapariga laparosa! – Pedro aproveitou o tom descontraído para dizer a Diana aquilo que ela precisava de ouvir e digerir sobre si mesma. - Tu tens um olhar duro, por vezes frio! Não faz de ti má pessoa, até porque não o és! Mas tu tens uma forma diferente de lidar com as dificuldades. Foste acumulando rancores e concentrando-te em ti mesma e nos teus planos para mudares de vida.
- Então achas que me transformei numa pessoa amarga? - Diana tremeu perante aquela visão da sua pessoa.
- Amarga não é a palavra certa para te descrever, embora na minha humilde opinião te caracterize em parte. – Pedro inspirou fundo e escolheu as palavras o melhor que pode. – A mãe lidou com as dificuldades concentrando-se nas pequenas coisas boas e protegendo aqueles que amava das tristezas. Tu lidaste com as dificuldades passando pelas pequenas alegrias com demasiada pressa, sem nunca as teres vivido, e nesta tua pressa, tu corres em busca de uma vida melhorada sem teres disfrutado do tempo da tua vida que já passou. – Pedro pegou no rosto da irmã com um cuidado desnecessário e obrigou-a a focar os seus olhos. – Tens uma vida muito diferente, uma vida que desejaste muito e pela qual lutaste tanto… E agora pergunto-te. És feliz Diana?
    Diana encontrou a resposta àquela pergunta mais depressa do que desejaria, e encontrou no abraço apertado do irmão o conforto e compreensão da resposta que ficou por soletrar.

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