domingo, 19 de junho de 2011

CAPÍTULO V

CAPÍTULO V


    O hall-de-entrada do edifício novo da escola secundária estava repleto de rostos ansiosos e nervosos. Diana agarrava a mão de Duarte com uma força desnecessária, mas o enfermeiro não reclamava. Todos os olhares estavam depositados nas contínuas que entravam com as pautas decretórias de muitos futuros, incluindo o de Diana e Raquel, que se contorciam em ansiedade de ver o resultado daqueles exames nacionais. As mãos experientes eram rançosas na colocação dos papéis desejados no placar, enquanto as cabeças se começavam a esticar sobre os ombros ossudos das duas funcionárias da escola. Diana foi a primeira das duas amigas a visualizar as suas notas. Foram excepcionais e garantiram-lhe uma média final de 18,8 valores. Diana sentiu um orgulho incomensurável que lhe preencheu as entranhas e que se enalteceu com o olhar terno e babado de Duarte.

- Diana!... Diana!... – Raquel furava impetuosamente aquela barreira de gente que a separava da amiga. Assim que a avistou laçou-se ao seu pescoço. – Oh Diana!... Eu consegui! Tens de ver as minhas notas… Os meus pais nem vão acreditar. Fiquei com média final de 16,7… E tudo graças a ti sua bicha do mato.
    Diana sentiu o peito ainda mais inchado de satisfação. O reconhecimento da amiga vincava-lhe ainda mais o orgulho, mas a alegria que sentia por ela ultrapassava em muito o primeiro sentimento.
- Eu sabia que tu conseguias! Sempre soube! Afinal tu és a beta loura mais inteligente que eu conheço.
- Oh! Isso não vale como elogio… Tu não conheces mais nenhuma…

    As raparigas rodopiavam enquanto choravam e riam ao mesmo tempo. Duarte tentava inutilmente conduzi-las para o exterior do edifício. Nesta tentativa frustrada de atingir a porta de entrada, Raquel tropeçou em Ruben e logo o abraçou também num impulso.
- Olá Ruben! Eu tive 17 a inglês, viste? E 17 a psicologia, viste? Sabes o que significa? Eu vou conseguir tirar o curso dos meus sonhos…
- Ainda bem Raquel, fico muito contente…
- E tu? Nunca soube bem quais eram os teus planos…
- Eu chumbei…
- Oh! Lamento imenso Ruben!
- Não te preocupes! Eu prefiro assim. É melhor repetir este ano e para o próximo ano vou sentir-me mais seguro…
- Ah! A Diana foi a melhor aluna da escola de certeza absoluta. Ela até tirou 20 a matemática e economia. – Raquel puxou a amiga para o seu lado para que pudesse receber uma palavra de agrado do colega.
- Não te desfaças em graças comigo sua borra-botas… Nem sequer ouses olhar para o sítio onde estou… Estás a ouvir sua pelintra. – O tom de voz de Ruben foi subindo desagradavelmente atraindo todos os olhares para aquela cena.- Pensas o quê?!?! Que agora que a Raquel te dá confiança já és gente?!?! Vadia, rafeira… - este discurso inflamado culminou com um estalo ruidoso na face de Diana.

    Duarte não deu tempo de refrear os ânimos e respondeu com um soco rápido e certeiro no olho direito de Ruben. A confusão instalou-se e foi a professora de Biologia que colocou termo àquela situação.
- Ruben, vais já para o gabinete da directora. E vocês três podem seguir-me até à sala de professores.

    A sala de professores era um espaço que intimidava Diana. Quando entrou sentiu-se de uma pequenez crónica e a intensidade dos olhares inquiridores dos professores pesava-lhe na alma.
- A culpa não foi nossa! Foi aquele bruto que se atirou à Diana… Veja a marca da mão dele ainda está impressa no rosto dela… - Raquel sentia uma fúria que lhe ascendia desde o diafragma até às cordas vocais que neste momento vibravam em demasia.
- Deixa-me ver o teu rosto Diana. – A professora Maria de Jesus, que conhecia os dramas daquela aluna que ela tanto estimava sentou-a com uma cautela excessiva e afastou o cabelo de Diana deixando à mostra a marca dos dedos de Ruben.
- Não foi nada! Já passou! – Diana sentia-se desconfortável com aquelas atenções e só queria sair dali.
- Foi uma agressão! E uma agressão nunca deve ser reduzida a nada sob pena que adquirir exactamente essa importância. – A professora de filosofia, Maria Céu, acariciava-lhe o rosto magoado enquanto lhe falava devagar como se quisesse forçar a entrada de uma ideia. – Percebes o que te estou a dizer Diana?
    Diana abanou a cabeça afirmativamente e atreveu-se a levantar o olhar até Duarte que estava inchado de fúria.
- Bem Diana! Existe outro assunto que queríamos falar contigo. A directora incumbiu-me de te comunicar que tu e um outro colega da ilha de S. Miguel foram os melhores alunos da região autónoma dos Açores e ocupam os primeiros lugares na tabela nacional. Este ano o grupo aéreo SATA vai baptizar dois aviões e convida-te para madrinha de uma deles. É evidente que terás benefícios junto da companhia. Mas eles entrarão em contacto contigo. Tens alguma questão? – A professora Maria Jesus sentou-se ao seu lado pegando-lhe na mão. Um gesto que nunca se permitia enquanto docente, mas já não era professora na escola daquela rapariga. Ela agora seguiria um caminho que ela própria conquistara com muito esforço e todo o merecimento.
- Gostava de saber se com estas notas posso obter alguma bolsa de estudo.
- Nós vamos ajudar-te nisso. Se existe alguém neste mundo que merece uma bolsa de mérito és tu Diana. – A professora mudou de posição e dando a entender que o caso da agressão estava completamente terminado continuou. – Também queremos pedir-te que discurses no próximo sábado no baile de finalistas. Vamos fazer um baile de gala e haverá um prémio para o melhor aluno deste 12º ano, que és tu evidentemente. Gostaria muito que tivesses um discurso preparado.
- Mas… - Diana não podia conceber tal coisa. Como podia ela falar para uma plateia que não a respeitava? Uma plateia de alunos que nem a consideravam uma pessoa?
- Não há mas nem meio mas… Prepara um discurso e não se fala mais nisso. Encontramo-nos no sábado.
    O reconhecimento que Diana sentia naquela sala de professores enchia-lhe a alma de um orgulho e de uma vontade de um dia voltar ali e mostrar que tinha conseguido alcançar mais do que sequer seria desejável para ela.
    Quando finalmente saíram da escola, Diana e Duarte encaminharam-se a pé para o café no intuito de comunicar as novidades aos restantes amigos. De mãos dadas caminhavam sem pressas fora do clube naval, apreciando os barcos à vela que iniciavam novos aventureiros.

- Não foi a primeira vez que te trataram mal naquela escola, pois não? – Duarte cortou aquele silêncio com uma conversa que se antevia difícil.
- Não. – A resposta curta e rápida deixou um peso de verdade no ar.
- Foi só o Ruben que te agrediu?
- Não. – Novamente aquela resposta monossilábica.
- E tu nunca te queixaste a ninguém?
- Não. – Desta vez Duarte não deixou a resposta no ar e interrompeu os passos de Diana com um abraço forte e sentido envolvido numa promessa murmurada.
- Nunca mais vou deixar que te tratem mal Diana. Nunca mais vais ter que engolir humilhações… - Diana deixou-se envolver por aquele mundo que já lhe pertencia e que começava a ser-lhe agradavelmente familiar.

    À porta do café Diana sacudiu os cabelos soprou para cima e preparou-se para ser mimada como realmente merecia.
- Atenção minha gente! – Diana colocou-se em cima de uma cadeira e tilintava com uma colherzinha numa chávena chamando a atenção dos presentes. – É oficial… Eu sou a melhor aluna da região autónoma dos Açores e uma das melhores alunas do país! – O mar de aplausos e assobios romperam. Seguiram-se os cumprimentos carinhosos as palmadinhas nas costas, os abraços e os beijos estalados dos pescadores.
- Lembras-te quando eu te ensinei a prova dos nove? Foi desde aí que te transformaste numa pessoa inteligente. – José Gaitinha exibia-se ao lado daquela rapariga que lhe proporcionava um orgulho que nunca sentira.
- Não… Foi graças às minhas lições de história… Quem é que te contou as artimanhas do Conde Andeiro com D. Leonor Teles para entregar Portugal aos castelhanos? – Mário não largava o braço daquela menina que acompanhava há anos e de quem aprendera a partilhar os sonhos.
- Desculpem meus senhores, mas a influência positiva que esta menina recebeu que a tornou nesta jovem esplendorosa, foi minha… - Até Manuel mostrava indícios de emoção na humidade que lhe contornava os olhos.

    Diana ligou ao irmão a contar todos os pormenores daquela tarde. Tinham muito para organizar. Tinham de planear tudo com muito cuidado. Afinal de contas o sonho dela estava prestes a materializar-se e ela entraria de cabeça erguida na faculdade de economia da cidade dos estudantes. E daí sairia também vitoriosa, porque Diana começava a perceber que o sabor da vitória e da superioridade é infinitamente melhor do que certos privilégios quotidianos. Ela voltaria àquele lugar de cabeça erguida e ninguém teria coragem de a humilhar, ou sequer de emitir pensamentos menos agradáveis da sua pessoa. Um dia iria poder proporcionar momentos gloriosos àquela gente simples que merecia um mundo de respeito e gratidão.
    Aquela noite não foi passada em festejos grandiosos, mas simplesmente sentada no sofá de casa a ver um filme repetido milhentas vezes nos canais abertos e enroscada no irmão a comer pipocas. Um serão corriqueiro, que lhe tinha passado ao lado durante toda a sua existência.
- No sábado vou ao baile com a Raquel. – Pedro atirou a novidade para ver como caía na irmã.
- Não acredito… Em vez de me acompanhares que sou tua irmã… a mulher da tua vida, vais acompanhar uma loura boazona… - Diana estava contente com aquela nova perspectiva do irmão se entender com a Raquel. – És um vendido… É isso que tu és!
- Tu já vais ser conduzida por um enfermeirozito! Tive de arranjar outra pessoa que me desse atenção!
- Oh meu caro irmão! Pois fique sua excelência sabendo que eu tenho dois braços…
    Pedro começou a fazer-lhe cócegas que resultaram num voar das pipocas. Diana ria alto e tentava defender-se daquela ofensiva que disparava de todos os lados. Finalmente conseguiu levantar-se do sofá e sempre a fugir desajeitadamente refugiou-se atrás da mesa da cozinha. Enquanto fitava Pedro que a tentava apanhar o som do telefone soou estridente. Correram ambos para o aparelho e foi Diana a mais bem-sucedida.
- Sim… - após um momento a ouvir a conversa do outro lado, Diana terminou a chamada. – Então fica combinado. Amanhã ao meio-dia estarei pronta. Beijo.
- Agora recebes telefonemas… Quem te viu e quem te vê! – Pedro já tinha acalmado a sua perseguição e voltou a sentar-se no sofá ao lado da irmã. – Não vais dizer-me quem era?
- Claro que te digo! Era a tua amada… - nova insinuação de cócegas se fez insinuar na ponta dos dedos de Pedro, mas depressa se verificou que não passava de uma falsa intenção. – Tem calma maninho! Ela só me queria convidar para almoçar lá em casa dela. O convite partiu dos pais dela… Agora que penso nisso… É a primeira vez que vou a casa de Raquel. Pronto! É oficial! Estou nervosa!

    No dia seguinte ao meio dia em ponto, Diana esperava ansiosamente, sentada nos degraus de basalto do pátio da sua casa a chegada da sua boleia. Quando avistou o jipe preto que se elevava sobre o asfalto de forma imponente não conseguiu evitar um formigueiro no estômago.
- Pronta para uma tarde sequiosa a aturar dois velhotes. – O Dr. Guilherme exibia um sorriso simpático enquanto abria a porta do jipe a Diana. – O Carlos contou-me as novidades sobre a tua herança. Eu e a Fernanda ficámos muito contentes.
- Pois, não foi uma situação fácil… - Diana não gostava de falar naquele assunto.
    A viagem de carro foi do agrado de Diana que nunca tinha oportunidade de ir para aquele lado da ilha. A casa situava-se num alto com vista para a Praia do Almoxarife. Os portões altos abriram-se ao carregar num comando e Diana deixou-se deslumbrar por uma entrada de brita sob uma arcada de árvores verdes. A casa era sóbria e simples. Não tinha a opulência que Diana tinha imaginado. Tratava-se de uma casa de um só piso branca com gelosias azuis e rodeada por um relvado verde. Uma varanda muito familiar com um baloiço alongava-se por toda a frente da casa. Quando entraram, Raquel correu para a amiga.
- Estava a ver que nunca mais chegavam! Anda lá que já temos tudo pronto no jardim das traseiras.
    As raparigas saíram do hall-de-entrada por uma porta ampla de correr que dava lugar a uma cozinha enorme, toda branca com os electrodomésticos em inox, que resultavam numa simetria perfeita entre o branco imaculado das paredes e armários, o cinzento dos electrodomésticos e o preto do chão. Diana atravessou esta cozinha idílica de queixo caído e saiu por uma porta traseira que dava a um novo jardim com uma relva suave e verde que contrastava com a piscina de um azul límpido com um rebordo em granito branco que convidava descaradamente a um mergulho.
    A mesa estava graciosamente colocada sob um telheiro de madeira que albergava também uma churrasqueira e uma lava loiça, num estilo rústico, mas muito prático e confortável.
    Diana sorriu quando viu ser servido um frango de churrasco com salada e batata frita. Todo o medo que a dominara até aquele momento dissipou-se quando visualizou uma refeição que seria capaz de comer sem tirar nenhum curso com a Paula Bobone. O almoço correu com uma simplicidade e à vontade que contagiou Diana e a fez sentir-se integrada.
- Temos de agradecer-te o facto de teres resgatado a nossa pequena da preguiça. – Fernanda mostrava-se uma dona de casa e anfitriã atenciosa.
- A Raquel tinha tudo o que era preciso nela, eu só estudei com ela.
- Ah Diana! Não sejas humilde. Deste-me uma grande ajuda. Se não fosses tu, nunca saberia que conseguia estudar mais do que meia hora seguida.
- Também temos de dar-te os parabéns… A melhor aluna do arquipélago e entre as melhores do país… E quiçá da Europa. – O Dr. Guilherme transbordava bom humor e tinha-lhe bondade inscrita na testa. – O que pretendes fazer agora Diana?
- Vou concorrer ao curso de economia na Universidade de Coimbra.
- Excelente escolha! – Aplaudiu Fernanda. – Foi em Coimbra que eu tirei o meu curso de direito e onde conheci o homem da minha vida… Era um angolano com um corpo fantástico… - Após uma gargalhada geral alta que desfez a mentira da anfitriã… - O que é?!?! Podia ser… Afinal de contas eu era um estrondo naquela altura…
- Tu ainda és querida! – Tratava-se de um casal especial, sem dúvida, com uma vida especial, que Diana queria para si também.
- A Raquel também vai concorrer para Coimbra. Se ficarem lá as duas, gostaríamos muito que ficasses no nosso apartamento com a Raquel. O que nos dizes Diana? – O convite do Dr. Guilherme ficou uns segundos sem resposta.
- Eu… Sinceramente, agradeço muito a disponibilidade, mas sinceramente não tenho possibilidades para pagar uma renda a meias… Vou concorrer para as residências da universidade.
Foi Fernanda que desfez as dúvidas da rapariga.
- Oh querida! Se existe alguém com capacidade para pagar o que exigimos és tu! Nós não queremos uma renda monetária Diana. Só queremos que continues a ter a boa influência na Raquel que tens tido até agora. – Fernanda continuou com um discurso emocionado. – Tens sido amiga, no verdadeiro sentido da palavra, para com a nossa filha e o facto de sabermos que vocês não estão sozinhas lá fora, que se podem apoiar mutuamente, que a nossa Raquel tem alguém com ela que se importa com o seu bem-estar e com o seu sucesso… Oh Diana, não existe dinheiro no mundo que possa pagar o descanso que eu sentirei se souber que vocês as duas estão juntas… lá fora… Tão longe de casa…
- Assim sendo… É evidente que eu adoraria morar com a Raquel. E se me estão a dar essa oportunidade eu vou agarrá-la com ambas as mãos. E dou-vos a minha palavra que vão sentir-se muito orgulhosos de nós… - Gratidão era o sentimento que enchia Diana naquele momento.
- É claro que se vão orgulhar de nós… Afinal de contas está provado cientificamente que as duplas de sucesso são sempre constituídas por uma beta e por uma bicha do mato. – Raquel aliviou a emotividade que se sentia naquela mesa e deu lugar a uma conversa fluida cheia de previsões e cautelas para o futura que as aguardava.
    A tarde foi passada num ambiente familiar que aguçou os desejos de Diana para o seu futuro. Agora esticada no sofá Diana tentava inutilmente concentrar-se no discurso do próximo dia. Ainda nem tinha um vestido adequado. Teria de comprar qualquer coisa logo de manhã. Apesar de achar que era um desperdício de dinheiro.
-Bolas! Mas quem é que será a esta hora?!?! – Diana levantava-se do sofá sem vontade arrastando-se até à porta, respondendo assim ao bater ritmado que se ouvia.
- Duarte! – O espanto resultou num abraço apertado e num sorriso demasiado alargado. – O que é que estás aqui a fazer?
- Vim ver a minha musa antes de dormir! – Duarte beijou-a ao de leve e entregou-lhe uma caixa branca com uma rosa vermelha na tampa. – Surpresa!
- Oh! Mas eu não faço anos, nem é Natal! – Diana ria baixinho de excitação. – O que é que tu me queres pedir? Hein?
    Diana tirou a rosa com cuidado com o intuito de a guardar no seu diário. Abriu a tampa da caixa sem pressa, e pasmou num abrir de boca enquanto ia deixando escapar interjeições incompreensíveis.
- É lindo! Lindo! Lindo! Não existe outra palavra… é lindo!
- Podes experimentar para ver se acertei no número? – Duarte sentia-se a vibrar de felicidade por poder dar aquele pequeno mimo a Diana. Tratava-se de um vestido para o baile de finalistas.
- De certeza que é este o número certo! Afinal de contas tu já me tiraste as medidas há muito tempo! – Diana agarrou no vestido e refugiou-se no seu quarto. Despiu a roupa que tinha de forma apressada e desajeitada, e depois pegou no vestido com um cuidado extremo e enfiou-se nele com uma cautela desnecessário. Olhou-se ao espelho um pouco a medo, mas depressa o sorriso de satisfação a denunciou de uma vaidade merecida. Diana entrou na sala com o cabelo solto e descalça, mas com o vestido a delinear-lhe cada curva do tronco. O vestido rodeava-lhe graciosamente o pescoço como se se tratasse de um colar justo, e alongava-se sobre um peito perfeito, deixando os ombros morenos à mostra. O tecido caía descontraidamente até ao joelho, sendo apenas apertado por um cinto dourado grosso, que delineavam uma cintura perfeita. Perante aquela visão que se situava entre o sofisticado e o selvagem, Duarte sentiu a respiração suster-se e o coração parar. Tinha à sua frente uma menina mulher sem consciência da beleza que possuía com uma inocência sobre si mesma irresistível e ele tinha a sorte de a ter conquistado.

    O quarto de Raquel germinava roupa, e Diana não conseguia perceber onde se situava a fonte de todo aquele tecido.
- Ajuda-me Diana! Não tenho nada para vestir e o baile já começa daqui a duas horas. Ai meu Deus que não vou ter tempo para me arranjar!
- Também acho difícil que consigas enfiar um vestido pela cabeça abaixo apenas num par de horas. – Diana sentia-se divertida ao olhar para Raquel, que transpirava nervosismo e que andava de um lado para o outro como uma barata tonta mas com a cabeça muito hirta de forma a não estragar o penteado muito elaborado que a cabeleireira Natália lhe havia feito.
- As tuas unhas já estão secas?
- Já Raquel, não te preocupes.
- Já tens o teu vestido pronto?
-Já! Estás chata… Acalma a piriquita.
- Ai Diana! Como é que consegues estar tão descontraída? Eu estou a dar em doida. Nada me fica bem!
    Diana com muita calma começou a analisar a roupa de Raquel. Ela tinha realmente muitos vestidos de noite. E todos muito pomposos.
- Olha Raquel experimenta este. – Diana estendeu-lhe um vestido que estava esquecido no roupeiro e recebeu de Raquel uma careta como resposta.
- Credo Diana! Queres ver-me assim tanto sem brilho nenhum?
- Nada disso Raquel. Mas olha bem para ti! Já tens um penteado muito elaborado a praticar equilibrismo no teu cocuruto, enredado num fio de pérolas. Está lindo, mas se vais colocar um desses vestidos com muito brilho ou com tantos folhos, vais parecer uma árvore de Natal. É melhor levares um vestido liso como este e colocas estes brincos e uma pulseira. Experimenta… Não custa nada.
    Raquel fez-lhe a vontade mas muito contrariada. Quando finalmente se olhou ao espelho teve de admitir que estava muito bem. Estava com uma aparência sóbria qua a fazia mais adulta. Uma aparência que seria difícil para uma adolescente adquirir por escolha própria, mas que qualquer miúda da sua idade desejaria alcançar abusando no baton e no eyeliner.
    Finalmente chegou a hora de irem embora e Duarte já estava na sala de Raquel à espera das raparigas para as levar. Quando Duarte olhou para a sua Diana naquele vestido azul, teve o vislumbre de uma deusa grega, ideia que era vincada pelo penteado simples puxado para trás num rabo-de-cavalo liso que lhe conferia a personalidade de Diana, a deusa da caça.
- Duarte, tome bem conta destas meninas. Se houver algum problema tem neste papelinho o nosso número de telefone. – Fernanda sentia-se tão ansiosa como as próprias meninas.
- Agora vamos só tirar umas fotografias para a prosperidade. – O Dr. Guilherme puxou da sua máquina fotográfica muito sofisticada e começou a exigir a posses.
- Pronto! Já chega de fotografias! Vamos chegar atrasados. – Raquel apressava aquela saída com a ansiedade dos aflitos.
    A viagem de carro fez-se sem que Diana conseguisse desviar os olhos de Duarte. Ele vestia um smoking preto que o tornava mais alto e mais bem constituído, se é que isso era possível. O cabelo rebelde dava-lhe um ar muito macho que se acentuava com a barba por fazer. Podiam dar-lhe um ar de desmazelo, mas pelo contrário, acrescentavam um charme àquele smoking que ele usava. Diana questionava-se se era aquele smoking que favorecia o namorado ou se era o namorado que favorecia aquele smoking.
    Finalmente chegaram à escola. O baile seria no ginásio grande que tinha a entrada enfeitada com uns arcos que faziam lembrar as festas de S. João. Pedro envergava um fato cinzento com uma gravata da mesma cor e uma camisa impecavelmente branca. Assim que Raquel o avistou correu na sua direcção encantada com aquela visão de um homem alto de ombros largos, o cabelo preto que realçavam aqueles olhos verdes opacos que escondiam sempre qualquer coisa. O lábios alargaram-se num sorriso deixando à vista uns dentes brancos em que o canino do lado direito de sobrepunha um pouco aos outros de uma forma atrevida e que dava àquele sorriso um ar travesso.
- Estás linda Raquel! – Pedro deixou-se deslumbrar por aquele corpo perfeito realçado num vestido preto justo.
- Obrigada! – Raquel apressou-se a dar o braço ao seu par e entrou naquele ginásio com o orgulho de quem possuía o par mais bonito do mundo.
    A música estava boa, e Duarte pegou na mão de Diana e conduziu-a para a pista de dança. Rodeou-lhe a cintura e a música “can’t take my eyes off you” tomou uma nova dimensão. Diana deixou a palma da mão sentir os ombros de Duarte e enterrou o rosto naquele pescoço áspero da barba. Os braços de Duarte estreitavam Diana de uma forma perfeita como se tivessem sido feitos um para o outro. O cheiro dela que já lhe era familiar não o desiludiu naquela noite, e fê-lo inalar profundamente como se quisesse guardar aquele cheiro a caramelo que lhe era característico. Duarte fechou os olhos por um momento e teve a certeza de que era aquela a sua cara-metade e embalado pela música e pelo sentimento, deixou descair os lábios até ao ouvido dela e murmurou.
- Eu amo-te Diana Silva.
    Diana sentiu uma lágrima involuntária percorre-lhe a face e respondeu-lhe com uma beijo apaixonado e sincero. Era a segunda pessoa na sua vida que a amava. Para além do irmão que a amava incondicionalmente, ela tinha sido capaz de despertar amor noutra pessoa, e isso dava-lhe uma força e uma motivação extra. Uma força que não a deixaria desiludir aqueles que lhe davam tanto sem esperar nada em troca.
    Foram interrompidos pelo anúncio do melhor aluno da escola. A entrega seria feita pela professora Maria do Céu.
- É com muito orgulho que entrego este prémio à melhor aluna finalista do ano de 1998. Este ano tem sabor especial porque a nossa melhor aluna foi a número um do arquipélago, e uma das melhores do país. Diana vem ao palco receber o teu prémio.
    Diana subiu as escadas do palco sem sentir as pernas. Aceitou o prémio com os nervos alojados na barriga mas com a aparência de uma princesa.
- Muito obrigada professora!
    Quando Diana ficou sozinha em cima do palco, e olhou para Duarte, para Raquel e para o irmão onde deteve o olhar, esmigalhou o papel onde riscara umas humildes palavras e atirou a bola de papel para trás das costas. De repente soube exactamente o que devia dizer. E começou devagar, numa voz profunda e entendida, mas sabia que não estaria ao alcance do entendimento de todos.
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

    A intensidade que Diana colocou naquele poema de José régio, arrancou aplausos e uns olhares emocionados daqueles que entenderam a mensagem contagiaram uma sala inteira que acabou por aplauri de pé a filha do Zé dos copos.

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