domingo, 5 de junho de 2011

CAPÍTULO III


    Aquela noite suavizada pela doce memória do jantar parecia não estar receptiva ao sono… Diana sentia-se embalada numa leveza um pouco tola em que a respiração estava lenta e a dormência do corpo fazia-se acompanhar de um sorriso palerma nos lábios. Foi neste marasmo que Diana se sobressaltou ao som do toque inoportuno do telefone. Sem vontade e ao mesmo tempo impelida por uma urgência própria de um contacto fora de horas Diana correu para o telefone. Levantou o auscultador e ouviu a voz do outro lado sem qualquer reacção.
   
- Pedro!... Acorda Pedro… - Diana abanava aquele corpo adormecido com uma cautela excessiva enquanto sussurrava- Acorda Pedro!...

    Pedro abriu os olhos com dificuldade e levou algum tempo até conseguir focar o rosto da irmã.

- Ele foi-se… - Foram estas palavras que despertaram completamente a mente de Pedro que abraçou a irmã numa compreensão mútua.

    No hospital foram recebidos por um médico que já os esperava.

- Lamento muito! – Foram as únicas palavras de consolo que os irmãos encontraram naquele hospital. – O vosso pai estava já muito doente. Tinha uma cirrose já num estado muito avançado, resultado de muitos anos de alcoolismo…

- Pois… Pensei que fosse só um traumatismo… - Diana não conseguia pensar com clareza…

- O traumatismo foi o resultado da queda que ele deu, mas o vosso pai já tinha esta doença há muito tempo… Talvez não vos tenha dito para não vos preocupar… - Aquela afirmação ficou no ar sem que ninguém acreditasse nela.

    Foi uma noite longa. O Capítulo era demasiado grande para as pessoas que velavam o corpo. Ao contrário de Pedro que chorava, Diana não conseguia libertar uma única lágrima. Tratou de todos os pormenores com a frieza dos agentes funerários. Neste momento apenas se sentia cansada e grata aos poucos amigos que a acompanhavam.
    O funeral realizou-se logo no dia seguinte. Não havia necessidade de adiar esse ritual, uma vez que as despedidas já haviam sido feitas há muito tempo. Mesmo assim Diana sentiu um peso no peito quando viu o caixão do pai ser depositado naquele buraco. Deixou cair as primeiras lágrimas de infelicidade, porque apesar de tudo sentia-se infeliz… Infeliz por não ter mais nenhuma oportunidade de mudar as coisas com o seu progenitor… Com aquele caixão enterrado, enterravam-se todas as esperanças de salvar aquela relação. Diana olhou demoradamente as pessoas que estavam ali ao seu lado naquele momento. Os amigos do café, a sua nova amiga Raquel, o advogado Carlos e Duarte, que apesar de estar um pouco afastado estava ali… Ironicamente nenhuma daquelas pessoas se encontrava ali para lamentar a morte do Zé dos copos… Ironicamente a mesma terra que tinha engolido o corpo do abastado Pereira do talho, engolia agora o corpo do homem mais miserável daquela ilha… O seu pai…

    Os dias correram numa normalidade estranha aos dois irmãos. Diana depressa percebeu que o ordenado do irmão não era mau. Apenas insuficiente para fazer face às dívidas do pai. Mas agora sentia a casa mais leve, mais arejada, mais limpa e mais abastada. Logo pela manhã Diana tinha o prazer de se deliciar com o aroma a café fresco que Pedro fazia todos os dias. O pequeno-almoço era tomado à mesa como nunca haviam feito, havia uma toalha limpa que servia de depósito a pão sempre fresco com queijo e manteiga, e por vezes massa sovada que satisfazia a gulodice dos irmãos.
    Diana sentia-se feliz. Escovava o cabelo e olhava-se ao espelho com uma certa vaidade que nunca tinha tido disposição de sentir. Sentou-se na beira da cama para calçar as sapatilhas quando reparou num envelope em cima da sua colcha.

- Pedro! Oh Pedro! Deixaste isto no meu quarto… - Diana esticava o envelope na direcção do irmão recebendo deste apenas um sorriso desinteressado…

- Se estava na tua cama então deve ser para ti. – E com esta frase Pedro pegou na irmã ao colo e rodou-a como se ela fosse uma boneca. – Parabéns Princesa…

    Diana emitia gritinhos de alegria. – Nem acredito que me esquecia… Isto é para mim? Põe-me no chão que fico tonta - Diana sentia-se asfixiar de tanta excitação… Ela fazia anos e o que estava dentro do envelope eram duas notas de cinco contos. – Acho que nunca vi tanto dinheiro junto… Não posso aceitar Pedro…

- Lê o postal.

    Diana abriu um postal que tinha a imagem de uma princesa na capa e leu a mensagem escrita numa letra cuidada:

“ Depois de dizeres que não podes aceitar, quero que aceites esta prenda e que gastes todo este dinheiro contigo. Quero que compres roupa para a faculdade que trates um pouco de ti. Quero que sejas princesa por um dia, no sentido literal da palavra. Esta é a minha prenda e quero que aceites.

Adoro-te Princesa”

    Diana atirou-se ao pescoço do irmão e chorou e riu ao mesmo tempo enquanto balbuciava coisas sem sentido entre um emaranhado de gratidão.

    Quando a aniversariante chegou aos portões da escola deixou-se aí ficar à espera de ver Raquel. Esticava o pescoço na direcção em que a amiga devia surgir numa impaciência irrequieta. Assim que a avistou correu ao seu encontro.

- Vamos faltar hoje às aulas? – Diana emitia um brilho de esperança naqueles olhos arregalados.
- Tu queres baldar-te? Estás doente? – Raquel encostou a palma da mão à testa da amiga. – Logo tu que és tão enervantemente responsável?

- O meu irmão deu-me como prenda de anos 10 contos para eu gastar só comigo. Preciso da ajuda de uma entendida em gastar dinheiro.

- Esse é um golpe baixo… Aliciares uma miúda inocente com compras… Só vou aceitar porque fazes anos e nem sequer me tinhas dito. – Raquel enfiou o braço no de Diana e encaminhando-se no sentido contrário ao da escola sussurrou ao ouvido da amiga – Mas primeiro eu vou dar-te a minha prenda.

    As duas percorreram as ruas daquela pequena cidade comentando todas as montras que viam, desde as ourivesarias às lojas de roupa. Diana sentia que era o melhor aniversário desde que tem memória. Quando frequentava o colégio as irmãs faziam sempre um pão-de-ló que comiam depois do jantar e deixavam Pedro juntar-se a elas naquela refeição. Pedro era o único que lhe dava sempre uma lembrança. Diana acariciou a pulseira que trazia no pulso. Tinha sido uma dessas lembranças. Uma pulseira preta feita com verga que os miúdos costumavam pedir a uma empresa de telecomunicação. Muita gente fazia e tinha daquelas pulseiras, mas Diana orgulhava-se de ter a mais bonita e a mais bem-feita de todas.

- Chegamos! – Raquel deu um pulinho de excitação acompanhado por um bater de palmas repenicado. Tratava-se de um salão de cabeleireira situado num emaranhado de ruazinhas no coração da freguesia da Conceição. O salão não era grande, mas era muito agradável à vista e tornava-se ainda mais especial por ser o primeiro salão onde Diana cortaria o cabelo.

- Bom dia Natália. Pode atender-nos agora? – Raquel entrou no salão conhecedora do caminho e dirigiu-se com um sorriso rasgado em direcção a uma mulher baixa e leve que se movimentava com a ligeireza de uma bailarina.

- Raquel!... Não esperava ter-te aqui hoje! Não me digas que não gostaste da cor das tuas madeixas? – Natália falava enquanto supervisionava o cabelo de Raquel.

    Diana deixou cair o queixo de admiração…

- Tu não és realmente loura?
- Claro que sou… - Raquel não conseguiu evitar uma gargalhada face ao espanto da amiga…
- A Raquel tem o cabelo num tom louro escuro… Fizemos umas madeixas mais claras para ajudar a realçar a cor natural dela. – Natália dirigiu-se a Diana com uma simpatia sincera, sem medo de a tocar e sem uns olhos inquiridores.
- A minha amiga Diana tem de mudar de visual urgentemente como é evidente. – Raquel provocava a amiga deliberadamente. – Quero que pegue nesta bicha do mato e a transforme numa princesa.

    Após duas horas naquele salão Diana olhou para o espelho com um orgulho perceptível num suave sorriso. Olhou sem demora o cabelo comprido mas um pouco mais curto com os caracóis soltos e salientes que se mexiam graciosamente a cada movimento seu… Olhou como aquele novo corte de cabelo lhe emoldurava de uma forma que lhe agradava muito aquele rosto moreno. Reparou deliberadamente em todos os pormenores que até então não tinha tido coragem de encarar e descobriu uma Diana bonita. Bonita era a palavra que melhor a descrevia neste exacto momento. Bonita… Uma palavra que nunca lhe pertencera e da qual se sentia agora proprietária legitima. Pela primeira vez naquele espelho falsamente admirado por centenas de pessoas ela tomou consciência do que é aparência… De como é fácil induzir percepções nos outros apenas pela aparência. Como é que nunca ninguém viu aquela verdade irrefutável… Diana era muito mais bonita do que a popular Bia ou mesmo mais bonita do que a sua amiga Raquel… Como é que em tantos pares de olhos sem problemas oftalmológicos nenhum captou esta verdade que agora se afigura tão irrefutável?...

- Estás linda Diana!- Raquel emitiu aquele gritinho que lhe era característico quando se sentia satisfeita. – Esta é a minha prenda para ti…

    As duas raparigas aproveitaram o resto do dia para entrar em todas as lojas que existiam naquela cidade. Diana mais cautelosa do que Raquel acabou por escolher com sensatez a roupa certa para usar na Faculdade a partir de Setembro. Nem olhou para as calças de ganga rasgadas que Raquel lhe impingia. Preferia calças de corte direito simples que servem para qualquer circunstância. Comprou umas camisolas, um sobretudo e umas botas adivinhando um Inverno mais rigoroso do que aquele que se faz sentir nas ilhas.

    Quando terminaram as compras, ambas as raparigas foram até à oficina onde Pedro trabalhava.

-Olá Anjo! Guardas-me aqui as compras? – Diana beijou o irmão na face e sentiu que ele estava rígido. O olhar dele estacou na imagem da sua amiga. Diana nem queria acreditar no que estava a ver… Raquel estava corada e emitia uns risinhos nervosos enquanto cumprimentava Pedro. E este gaguejava de forma aparvalhada uma piadas despropositadas…

    Quando Diana conseguiu arrancar a amiga da oficina dirigiram-se para a escola. Seguiram pela marginal. Raquel não emitia uma única palavra. Levava um olhar que se petrificava nas pedras da calçada como se estivesse a decorar a sequência dos desenhos resultantes daquele calcetamento de basalto e granito.

- Estás a pensar em quê Raquel?
- Não te posso dizer… - Raquel sorriu-lhe gentilmente como se isso bastasse para conseguir a compreensão da amiga.
- Eu sei que estás a pensar no meu irmão. – Diana fez esta afirmação sem tirar os olhos da companheira e ficou satisfeita por ter acertado.
- Porque é que dizes isso?
- Ora, porque o Pedro é lindo de morrer e tu não és cega nenhuma. – Esta descontracção de Diana fez com que Raquel baixasse completamente a guarda.
- Ai Diana! Eu estava inquieta para desabafar com alguém… O teu irmão mexe com todos os nervos que existem no meu corpo… Ele é um deus grego… E tem aquele ar mais velho e aqueles olhos pretos que emitem um brilho maroto de quem é muito mais vivido.

    Diana não evitou uma gargalhada.
- Pára de te babar e da próxima vez que o vires convida-o para ir à praia contigo no fim-de-semana. O Pedro adora o mar. Podes agradecer-me a dica mais tarde.

    As aulas passaram-se a um ritmo apressado que fez Diana sentir o peso da culpa por ter faltado às aulas da manhã. Descia a rampa da escola organizando mentalmente o estudo dessa noite de forma a compensar a sua falta. Também tinha de começar a estudar com Raquel de forma a incentivá-la a subir a média. Tinha-lhe prometido que a ia ajudar e não podia falhar. Os seus olhos pousaram numa imagem demasiado boa para ser real. Duarte estava em frente à escola encostado à sua lata velha com um ramo de rosas na mão. Estaria ele à sua espera? Diana aproximou-se dele e viu-o abrir a boca mas sem emitir um único som.

- Isso é para mim? – Perguntou Diana de forma um pouco atrevida.
- Tu estás linda! – Duarte esticou o ramo na direcção dela confirmando a pergunta que lhe tinha sido colocada – quer dizer tu és, eras… Mas estás diferente…

    Diana sorriu-lhe e beijou-lhe a face de um modo deliberadamente lento. Olhou para aquele enfermeiro alto e agradeceu o facto de ele ter-se demonstrado aberto a ela antes de ela parecer um pouco mais bonita. Ele foi a única pessoa do sexo masculino que olhou para Diana com carinho, que lhe pegou na mão, que a levou a jantar fora… Não haveria lugar na sua vida para outra pessoa, porque quem a viesse a partir deste momento teria uma visão privilegiada da sua pessoa… Duarte foi o único que soube vê-la…

- Ah! Parabéns Diana! Entra no carro que hoje estás por minha conta!

    Diana não recusou a imposição e entrou naquele Fiat velho que já tinha ganho a sua estima. A viagem de carro foi curta. Pararam em frente ao café Porto Pim para espanto de Diana.

- O que é que fazemos aqui?
- Shiu! Não perguntes nada apenas segue-me.

    Duarte pegou-lhe na mão e dirigiram-se para o café. Diana sentiu um palpitar mais apressado quando ouviu um uníssono “Parabéns”. Estavam ali reunidas todas as pessoas que realmente lhe importavam.

- Pensavas que não pagavas um copo aqui ao teu Romeu? – José Gaitinha deu-lhe um abraço tão apertado que Diana sentiu o tremer do peito quando ele deu um soluço de orgulho. Seguiram-se os outros pescadores o Mário que se pôs na ponta dos pés para lhe beijar as faces, o Manuel que lhe deu um parabéns rezingão, a Guida que lhe deu imensos conselhos relacionados com os 18 anos frescos, Paulo que lhe deu umas palmadinhas carinhosas nas bochechas e Diana sentia os olhos a arderem-lhe de emoção à passagem de cada pessoa que fazia questão de estar sempre presente na sua vida.

- Vocês sabiam disto e não me disseram nada? – Diana falava agora com o irmão e com Raquel.
- Foi ali o teu namoradinho que organizou esta festa. – Pedro implicava com a irmã de um modo cúmplice que Raquel não pode deixar de admirar.
- Ele não é meu namorado. – Diana amuou falsamente.
- Olha Diana os meus pais estão ali e querem conhecer-te. – Raquel pegou na mão da amiga e arrastou-a atrás de si. Diana, quando foi colocada em frente à Juíza da cidade e ao novo médico do hospital da horta, sentiu uma vergonha por não ter tido tempo de se arranjar melhor. Sentiu de repente um medo que a obrigassem a afastar-se de Raquel.

- Então esta é a famosa Diana! – O Dr. Guilherme estendeu-lhe a mão num cumprimento caloroso. – Aqui o meu amigo Carlos falou-me muito bem de ti… Se bem que nunca sabemos quando podemos confiar nos advogados.

    Diana soltou uma gargalhada, mais de alivio do que de graça. A mãe de Raquel também foi muito simpática, mas não tiveram oportunidade de falar muito uma vez que todos solicitavam a atenção de Diana.
    Os parabéns foram cantados desafinadamente e o bolo feito por Guida foi recebido com agrado.
    Diana, agora menos solicitada encostou-se a uma canto a observar aquele cenário que a encantava. Ali, por sua causa estavam pescadores analfabetos, vestidos com roupas em segunda mão a conversar de igual para igual com pessoas instruídas que envergavam camisas Gant. Ela era o verdadeiro motivo daquela visão tão motivadora. Num cafezito perdido no mundo existem conversas partilhadas por gentes diferentes com estatutos sociais completamente antónimos, com perspectivas de vida opostas e que conversam de forma fluída interesses comuns sem repúdios ou preconceitos. Diana sentia-se especial neste dia em que a melhor prenda que recebeu foi uma visão gloriosa da sua pessoa.

- Vamos sair um pouco! Já ninguém vai dar pela tua falta! – Duarte pegou-lhe na mão com um à vontade que lhe agradou e conduziu-a para o exterior do estabelecimento. Na rua o sol adormecia lentamente prolongando-se num horizonte alaranjado. De mãos dadas e em silêncio o enfermeiro e a aniversariante dirigiram-se para o muro e debruçaram-se olhando demoradamente o mar que ia e vinha vagarosamente sobre a areia escura daquela baia. O monte da guia verdejava em frente apoiando uma pequena capela e servindo de limite àquele mar azul. Por detrás da praia concorria o monte queimado escuro e amuado que se ia deslizando em basalto, pequenas urzes e terminando na areia que servia de apoio às toalhas dos banhistas ausentes.

- Gosto de ti, Diana! – Duarte soltou aquela afirmação de uma forma simples com um olhar expectante depositado naquele rosto afirmado por uma personalidade forte. Diana olhou sem admiração mas comovida com aquela declaração pouco floreada. As coisas sinceras são as mais simples de se explicar, e não eram precisas mais palavras para aquele momento em que os hálitos se confundiram e os lábios se uniram sem pressas e urgências, apenas num acto de puro deleite.

1 comentário:

  1. Nádia, não se consegue parar de ler!!!! Isto tem de ser publicado para que mais pessoas possam disfrutar da leitua desta história!!!!

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