segunda-feira, 30 de maio de 2011

CAPÍTULO II



    Pedro não questionou o porquê daquele pedido, limitou-se a satisfazê-lo. Chegados ao sítio pretendido, Diana saltou fora da mota e pediu ao irmão que fosse trabalhar. Ele não estava em condições de perder o emprego por um capricho seu, e também não queria expô-lo ao teatro que iria fazer.
    Diana entrou devagar no capítulo analisando o cenário. Uma sala ampla e fria com um caixão aberto no centro. Umas cadeiras desconfortáveis estavam dispostas à volta da sala. Deparou-se com os tios que caminhavam na sua direcção com um ar de poucos amigos. Não tinham os olhos vermelhos… Não tinham as faces molhadas… Não tinham a boca curvada de dor… Tinham apenas as bochechas inchadas de raiva, de fúria como se acabassem de ser injuriados.

- Como te atreves a vir aqui sua vira lata? – Olinda explodiu um sussurro dentro do ouvido de Diana, enquanto Nuno lhe apertava um braço tentando intimidar a rapariga.
- Vê como funcionam os vira lata e aprende querida tia. – e nisto Diana depositou um suave beijo na face irada de Olinda provocando um espanto geral  no meio das pessoas que zelavam o corpo. Então Diana aproximou-se do caixão pegou na mão do avô pálido e chorou… Chorou de raiva… Chorou de despeito por tudo o que aquele malvado fizera com a pobre mãe… Chorou tudo o que tinha apertado no peito, tudo o que uma vida de miséria e maus tratos lhe tinham dado… Chorou a fome que aquele avô abastado a tinha deixado passar… Chorou o frio que lhe petrificava as entranhas no Inverno quando aquele avô tinha tantos agasalhos… Chorou o futuro esperançado mas incerto numa universidade que aquele avô lhe podia ter garantido… Chorou a ingratidão daquele avô para com um neto que cuidou da sua filha e da sua neta… Chorou e esperou a reacção de quem a rodeava. Percebeu que as pessoas estavam comovidas com a sua atitude. Percebeu comentários em surdina que lhe chegavam aos ouvidos “pobre rapariga que chora a morte de um avô que nunca lhe valeu”, ou “nem parece filha daquele bêbado, com tão bom coração”, “coitadinha da menina sofre mais que os próprios filhos que lhe eram chegados”. Diana ficou satisfeita com o pensamento geral da sala e mais satisfeita ficou quando encarou os tios impotentes num canto transpirando incómodo.

- Eu perdoo-te o abandono da minha mãe… Eu perdoo-te a fome que os teus netos passaram sem que lhes estendesses um prato de comida… Eu perdoo-te os maus tratos que os teus netos sofreram por lhes teres virado as costas… Eu só quero que descanses em paz… - com estas palavras pouco sentidas mas muito emotivas Diana conquistou de vez a compaixão dos presentes que passaram a dar as condolências a ela em vez de se dirigirem aos filhos do falecido. Esta foi a primeira vez que Diana percebeu o tão fácil que lhe era manipular as mentes fracas... E gostou da sensação.

    Diana voltou para casa à noite na companhia do irmão e encontrou o pai bêbado e porco como de costume. Dirigiu-se a ele numa fúria até então desconhecida apanhando o pai e o irmão desprevenidos.
- Tu sabias que tínhamos um avô abastado e nunca nos disseste… Preferiste ver os teus próprios filhos enterrados em miséria, rotos, famintos e cheios de hematomas e nódoas negras… Tu és um estupor nas nossas vidas… Tu mataste-a e quase nos mataste também… Eu odeio-te seu inútil… - Diana atirava as palavras numa histeria louca. As veias da fronte latejavam-lhe e os lábios tornavam-se roxos.
- Não me fales assim, sua ingrata… eu fui buscar-te ao colégio interno e dei-te um casa e uma família… - José dos copos tentou levantar a mão à rapariga recebendo neste entretanto um estalo na cara que lhe provocou um ardor, e um espanto abriu-se nos seus olhos.
- Nunca mais me tocas seu merdas… Ouviste? E não te atrevas a atirar-me à cara que me foste buscar… Um pai não cobra a um filho o seu dever de cuidar dele… e só me foste buscar porque eu já tinha idade para cuidar da casa e quem sabe trabalhar para te pôr mais algum dinheiro no bolso. Ficaste zangado quando decidi continuar a estudar… Ah como ficaste zangado… Tu nem sabes que eu, a tua filha é a melhor aluna desta ilha e quem sabe do arquipélago… Tu nem sabes os sacrifícios que o teu filho mais velho faz para teres luz, água e comida nesta casa… Tu nem sabes dar valor àquilo que não criaste mas que te caiu do céu, que te foi deixado pela mulher que deixaste morrer… Ah como eu te odeio inútil. – Diana virou costas e correu para o seu quarto escapando assim à tentação de esmurrar o próprio pai.

    Adormeceu em pouco tempo e dormiu a noite toda. Acordou de manhã com os olhos inchados. Preparou-se num instante e correu a apanhar boleia do irmão.
    Na escola Raquel esperava-a pacientemente. Diana sentiu um calor no peito quando viu a amiga, a sua única amiga ali especada à porta da escola preocupada com ela.

- Então, Diana, estás bem? Saíste do café tão transtornada que ficamos todos preocupados.
- Fui ter com o meu irmão. Precisávamos de falar… Ele sabia Raquel… Todos sabiam menos eu…
- O teu irmão só te quis proteger dessa gente sem coração.
- Eu sei Raquel. O Pedro é o meu anjo da guarda. – Diana entrelaçou o seu braço no de Raquel e começaram a subir a rampa da escola calmamente. – foi a Irmã Maria Alice que apelidou o Pedro de meu anjo da guarda na manhã em que me descobriu nos braços dele à porta do colégio.
- Eu sei que deves muito ao teu irmão. Contaram-me a vossa história no café. Deves ter muito orgulho nele, Diana. Eu já sou sua fã, mesmo sem o conhecer. – as duas raparigas riram, um riso sem graça mas agradável.
- Ai Raquel o que devo fazer com esta informação.
- Eu falei ontem à noite com a minha mãe acerca de tudo o que te está a acontecer e ela diz-me que tu e o teu irmão têm direito à parte que caberia à tua mãe.
- Eu nem sei como hei-de reclamar a nossa parte da herança.
-Pois os teus amigos do café já começaram a tratar disso. Tens a sorte de estar rodeada de pessoas que gostam realmente de ti, Diana. Às vezes o facto de se ser marginal faz com que apenas nos rodeie quem interessa. Olha para mim… Posso fazer amigos com demasiada facilidade, mas qual deles gosta verdadeiramente de mim, como aqueles velhos do café gostam de ti?
- Tens razão… então que estão aqueles velhos a tramar?
- Parece que há um advogado que vai lá todos os dias lanchar. Eles estão convencidos de que é boa pessoa e pediram-lhe para lá estar hoje à hora de almoço. Querem que vás lá almoçar de modo a falares com ele.
    Diana sorriu. Bastava-lhe isto neste momento. Realmente era afortunada nas amizades. A manhã decorreu numa lentidão anormal para Diana. Os gritinhos das meninas à volta da cor bombástica do verniz da Bia irritava-lhe o espírito. Os olhares fulminantes que Ruben lhe dirigia atiçavam-lhe a malícia. Sabia que eram o resultado dele a culpar pelo fim do namoro com a filha da juíza, mas mesmo assim não conseguiu evitar e aproximou-se dele.
- Ruben agradecia que parasses de me fazer olhinhos. Sabes bem que não fazes o meu tipo. – a risota no grupo de amigos foi geral e o desconforto de Ruben resultou num pontapear frenético no estômago de Diana.

    Quando terminou deixou a rapariga deitada no chão. O grupo, anteriormente demasiado grande ia-se dispersando sem dar nas vistas e sem se rirem. Diana teve que se levantar sozinha a arrastar-se para a aula seguinte. Chegou um pouco atrasada e quando entrou na sala pediu desculpa ao professor e piscou o olho a Ruben numa atitude provocadora.
    A hora de almoço finalmente chegou. As duas amigas dirigiram-se para o café onde foram recebidas com um enorme hambúrguer por conta da casa. O advogado já lá estava. Tratava-se de um homem de meia-idade com problemas de calvície que disfarçava rapando o cabelo por completo. Vestia umas calças de sarja beges e um pólo verde seco. Apresentava-se com um visual cuidado mas mais descontraído do que aquele que Diana esperava encontrar. O Dr. dirigiu-se a Diana de mão estendida e num cumprimento caloroso. O seu aperto de mão era firme, o que agradou a rapariga. Não suportava apertos de mão frouxos, pois sentia que a personalidade de uma pessoa era demonstrada logo num primeiro contacto.

-Então esta é a famosa Diana. – o advogado sorriu-lhe enquanto se sentava na mesa sem pedir licença. – És a estrela de cartaz deste café, o ídolo destes idosos. – este último comentário despertou os mais diversos protestos acalorados como esperava o advogado que piscou um olho cúmplice às raparigas. – Falemos então de assuntos sérios.

    Os ouvidos todos daquele estabelecimento apuraram-se.

- Não sei se o Doutor já está por dentro da história. – começou Diana.
- Os seus amigos que não são idosos já me contaram. Contaram-me a sua vida de uma forma resumida e quero que saiba que já sou um admirador seu e do seu irmão. E como tal gostava que me tratasse por Carlos.
- Pois bem, Carlos, como já deve ser do seu conhecimento, uma vez que os meus amigos não idosos são tão mexeriqueiros – esta réplica suscitou novas contestações que depois de acalmadas se transformaram em mil atenções na conversa que se adivinhava. – O pai da minha falecida mãe morreu ontem. Sei que ele era já viúvo. Nunca tivemos qualquer contacto com tal criatura, mas quero ter agora contacto com a parte da herança que cabe a mim e ao meu irmão.
- Bem Diana, como fazes 18 anos no próximo mês, vou tratar-te como adulta que és. Eu já fiz um levantamento dos bens. Ao que parece não fizeram partilhas quando a tua avó morreu, o que te favorece. Assim sendo os bens considerados são a casa que eles têm na freguesia de Pedro Miguel, muitas terras de lavoura na mesma freguesia, gado que sustenta o talho, o próprio talho que é um negócio bem rentável, umas terras nas Dutras que estão um tanto ao abandono e as contas bancárias.
- Diga-me uma coisa, Carlos, a herança deve ser dividida em três partes iguais, uma para a Olinda, outra para o Nuno e aquela que seria da minha mãe que será para mim e para o meu irmão, correcto?
- Certo.
- As terras de lavoura em Pedro Miguel são o dobro daquelas que existem nas dutras?
- Mais ou menos… Talvez um pouco menos…
- Então ouça o que eu quero que fique para mim e para o meu irmão. – Diana inclinou-se sobre a mesa na direcção do advogado e falou com uma clarividência difícil de encontrar. – Eu quero apenas as terras das Dutras e uma renda vitalícia do talho no valor de cem contos por mês actualizada anualmente conforme a inflação sendo que o aumento da mesma nunca pode ser inferior a 2%.

    O espanto do advogado foi declarado por um cair de queixo. Mas que raio de idade tinha aquela cachopa, para falar daquela maneira.

- Mas Diana, as terras das Dutras estão ao abandono, enquanto as de Pedro Miguel são terras de lavoura. E vais abdicar da casa e do gado?
- Os meus tios não vão querer estas partilhas. Não vão facilitar neste sentido. Se eu não exigir as coisas certas da forma mais inteligente vamos alongar as partilhas durante anos em tribunais enquanto eles continuarão a gozar do talho com toda a dignidade e nós continuaremos no limiar da pobreza. E depois, Carlos, não é de todo uma proposta tola. Primeiro devemos mostrar-lhes que eles têm o próprio tecto e sustento em causa. Devemos mostrar interesse em dividir tudo em três partes. Eles ficarão aflitos com a possibilidade de perderem o único sustento que conhecem e a única habitação que dispõem. Neste ambiente de receio, quando lhes disser que nós nos contentamos com as terras das Dutras e com a renda vitalícia do talho nos termos em que lhe falei eles aceitarão sem pestanejar.
- Faz sentido Diana, mas o problema é que essa divisão não lhe é favorável, nem a si nem ao seu irmão.
- Aí é que se engana. – Diana adoptou um brilho demasiado inteligente naquele olhar verde cuja pupila se dilatava num raciocínio genial. – Diga-me uma coisa doutor, a cidade da Horta está a crescer a olhos vistos, certo?
- Certo.
- E continuando assim não vai poder crescer para o mar, certo?
- Certo.
- E para os lados temos morros que dificultaram um crescimento da cidade nesse sentido, certo?
- Certo.
- Então para onde acham vocês que a cidade vai crescer?

    Fez-se luz em cada olhar presente naquela reunião.

- Para as Dutras claro. – o advogado sentia-se extasiado com aquele banho de sensatez, de raciocínio rápido, de visão.
- Exactamente! Daqui a 5 anos, ou até menos, aqueles prédios valerão muito mais que o resto da herança. E se os lotearmos darão imensos lotes e valerão mais. Agora só temos de acertar os seus honorários, claro. – esta era a parte que Diana tinha medo. Precisava de um advogado para impor respeito junto dos tios, mas não tinha como lhe pagar.

- Os teus amigos queriam pagar-me, mas agora que te conheci, faço questão de oferecer os meus trabalhos. Agora sei o porquê de seres tão querida neste meio… Tu és simplesmente brilhante… Tu mereces que eu vista a tua camisola.

    Diana sentiu que aquela estrutura forte presente enquanto dialogava com o advogado se começava a desmoronar e o lábio inferior começou a tremer-lhe um pouco, sinónimo da emoção que sentia naquele momento. Ali era respeitada e até admirada. Ali havia pessoas capazes de passar necessidades para a ajudarem. Ali não havia doutores, nem pescadores…
    Para celebrar os donos do café do Porto Pim ofereceram os cafés e instalou-se uma conversa de ocasião à volta da reacção dos tios.

- Vou fazer-lhes passarem um mau bocado, isso vos prometo – comprometia-se o Dr. Carlos
- Hão-de meter o rabinho entre as pernas. – adivinhava José Gaitinha.
- Vão ficar mais pequenos que eu. – esperançava-se Mário
- Vai mas é ser pouco em relação ao que fizeram. – indignava-se Manuel

    A conversa animada foi interrompida pelo toque do telefone do café. Guida atendeu e sem demora chamou Diana.

- É o teu irmão.

    Diana pegou no telefone apressadamente adivinhando más noticias.

- Oh Diana, o pai está no hospital. Ainda não sei bem o que lhe aconteceu. Vou sair agora da oficina directamente para lá. Vais lá ter?
- Claro que sim. Estou já de saída… Encontramo-nos lá.

    Desligando o telefone deparou-se com vários pares de olhos pousados nela à espera da notícia.

- O que aconteceu Diana? – perguntou Raquel
- O meu pai está no hospital. Ainda não sabemos o que aconteceu. Vou para lá agora.
- Eu levo-te. - ofereceu-se o Dr. Carlos.

    Diana entrou nas urgências do hospital na companhia de Raquel. Pedro já lá estava.

- O pai caiu de um muro alto. Entrou aqui meio adormecido, mas os médicos acreditam que é efeito da bebida. Ele ainda está sob observação… Mas só por precaução.

    Diana sentiu uma ponta de decepção. É maldade esperançar-se na morte de alguém, mas era exactamente neste desejo de morte que Diana se concentrava. Aquele malvado nem era oportuno na hora da partida. Continuará a amaldiçoar-lhe cada regresso a casa. Continuará a amedrontá-la com aqueles gestos lentos e pesados que por vezes se precipitam no seu rosto. Continuará a gastar o dinheiro que o irmão ganha com tanto esforço. Continuará a gritar-lhe com aquele bafo pestilento da bebida… Diana sai disparada das urgências de cabeça baixa e num passo demasiado apressado com as lágrimas a tentarem uma saída forçada, quando sente um embate forte no peito e cai de rabo no chão.

- Olha quem aqui está! – o enfermeiro Duarte estava de cócoras a segurar-lhe o rosto entre as suas mãos. – Estás bem? Vejo que as marcas do hematoma estão a desaparecer…

    Diana sem paciência para conversa de circunstância começou a chorar convulsivamente enquanto se tentava desenvencilhar do enfermeiro. Chegou a ser brusca nos seus movimentos para espanto do rapaz.

- Estás muito alterada. O que é que se passa?
- Não se passa nada… Agora deixe-me em paz. – Duarte agarrou-a pela mão e arrastou-a atrás de si. Enfiou-a dentro do elevador e sentiu-se atraído por aquela figura. Sentiu um calor repentino na mão que segurava a mão dela. O coração apertava-se ao vê-la deixar cair lágrimas. Que mistérios haveria naquele ser? Que força o precipitava para ela? De certeza que a vida dela estava enterrada em problemas, mas ele sentia-se tentado a aliviar-lhe o peso desses problemas… Mas que raio de pensamentos… Nem a conhece bem e já está a delirar realidades fantasiosa…
O elevador parou no andar pretendido e Duarte continuou a conduzi-la através de corredores largos com luzes trémulas que faziam lembrar um cenário de filmes de terror. Finalmente passaram a porta pretendida e Duarte sentou Diana numa mesa a um canto mandando-a esperar. Diana obedeceu, apesar de ter demorado uns bons vinte minutos. Voltou com um tabuleiro com dois galões e uma torrada.
- Agora come. – Duarte mostrava-se um pouco brusco nas suas ordens, pelo que Diana não se atreveu a contestar. – Agora diz-me o que se passa.
- És psicólogo? – pergunta Diana.
- Não! Pensei que te lembrasses de mim… Sou o enfermeiro que cuidou de ti no outro dia em que vieste às urgências… Sou o Duarte. – Apresentou-se o rapaz desiludido.
- És meu amigo, conhecido, familiar? – Pergunta Diana como se não tivesse ouvido o discurso de apresentação de Duarte.
- Não. – Duarte agora sentia-se confuso face à atitude da rapariga. Seria ela maluca…
- Então com que direito queres que te conte o que se passa comigo? – e antes que conseguisse obter uma resposta do seu interlocutor, continuou com um discurso atrapalhado – Queres conhecer as minhas misérias? Pois eu digo-te… Sou filha daquele bêbado que está nas urgências… que possui um tal estado de alcoolismo permanente que se atirou de um muro, pensando que podia voar… Sou uma pelintra sem eira nem beira, órfã de mãe e criada pelas freiras que cuidam dos abandonados… Queres saber mais?... Sou aquela que tem uma existência de fome, frio e privações… Sou aquela a quem ninguém atravessa a rua para cumprimentar… Não dizes nada… Eu posso continuar… Sou aquela de quem os pais afastam os filhos com medo que eu lhes pegue a minha miséria. – Diana calou-se de repente tomando consciência do seu desabafo. Como não houve qualquer reacção do enfermeiro, Diana adivinhou-lhe o provável embaraço de estar sentado com ela no bar do hospital. – Bem agora que sabe o que se passa comigo, pode fazer como toda gente e ir-se embora. Não quero embaraçá-lo com a minha presença aqui no seu local de trabalho.

    A rapariga levantou-se desiludida. Esperava um gesto de compreensão, uma palavra de esperança, mas afinal ela não está no café onde é apreciada. Está no meio das pessoas normais e dignas onde ela é uma marginal. E agora aquele deus grego também conhece a sua triste existência… Paciência…

- Espera Diana! – Duarte agarrou-lhe o braço com suavidade e fê-la voltar-se para ele – Eu já terminei o meu turno e gostaria muito que me fizesses companhia o resto da tarde.

    Diana sorriu. Um sorriso esplendoroso que aqueles lábios grossos e dentes brancos e perfeitos lhe proporcionavam. A rapariga seguiu-o sem questionar. Fizeram o caminho contrário sem trocarem uma palavra. Ambos demasiado conscientes da presença do outro. Ao chegarem ao carro Duarte abriu a porta num gesto cavalheiresco e Diana soltou uma gargalhada.

- Nunca ninguém me abriu a porta de um carro. Hoje sim o meu irmão podia chamar-me princesa.
- Pensei que essa gargalhada se devia à minha lata velha. – Duarte possuía um Fiat Uno muito velho, de uma cor preta gasta pelo tempo e pela maresia.
- Pois, para enfermeiro deslocas-te mal.
- Esperavas o quê? Um porshe?
- Nem mais… Depois fazias como o único proprietário de um porshe nesta ilha… Alugavas a pista do aeroporto para poderes tirar partido da máquina, já que não existem estradas para isso nesta terra…
- Não acredito que haja alguém que fez isso…
- Podes acreditar.

    A viagem de carro fez-se numa conversa simpática e que fluía sem esforço. Uma conversa sem temas deprimentes, sem preocupações, com algumas futilidades até… Como Duarte conhecia pouco a ilha, foi Diana que decidiu o destino. Ia indicando o caminho enquanto conversavam. Diana não conseguia evitar uma atenção abusiva nas faces daquele ser que a acompanhava. Os traços eram fortes e perfeitos. Tinha uma barba de dois dias que se apresentava em tons de louro escuro. Notavam-se umas poucas sardas perdidas sobre o nariz e maçãs do rosto… E aqueles olhos cor de mel que sorriam sempre que os lábios finos o faziam. O cabelo era abundante e um pouco rebelde de um louro arruivado que fazia lembrar o cabelo dos surfistas da televisão. Esta imagem agradava-lhe já que lhe era tão difícil desviar os olhos dela.
    - Chegamos. – declarou Diana com um entusiasmo que lhe era desconhecido. – Bem-vindo à Poças da Rainha, o meu lugar de eleição quando quero gritar.

    Tratava-se de umas piscinas naturais entre as rochas negras de basalto. Desceram as escadas improvisadas no meio dos enormes pedregulhos e sentaram-se no último degrau só com o negro do basalto e o azul do mar por companhia.

- Este lugar é lindo! Não conhecia. – Duarte estava demasiado concentrado na proximidade de ambos. Sentia o ombro dela encostado ao seu numa consciência desconcertante.
- Olho para esta piscina perdida no meio destes rochedos como o meu poço das lamentações. Às vezes acho que ele se enche de água do mar e de lágrimas minhas em partes iguais… - voltando-se para Duarte e olhando-o nos olhos para desconforto dele questionou – Não és de cá?
- Adivinhaste! Sou da Terceira, mas quando terminei o curso foi aqui que fiquei colocado.
- E estás a gostar?
- Começo a gostar… - estas palavras de duplo sentido provocaram em Diana uma esperança absurda.
- Não te custou deixares a família para trás?
- Não tenho família… - esta afirmação de Duarte provocou a compreensão momentanea de Diana que lhe pegou na mão num gesto de compreensão e manteve-a assim durante o tempo que ali estiveram.
- Então… Como é que foste criado?
- Num orfanato.
- Deve ter sido difícil!
- Não tanto como possas imaginar, Diana. – Duarte fixou as mãos entrelaçadas. Sentia cada ponto da sua pele que estava em contacto com a pele de Diana. Olhou-a sem vergonha. Deteve-se na testa pequena que se separava da cabeleira numa pronúncia de coração. O contorno do rosto tinha umas linhas duras que se suavizavam com o olhar verde e doce. O nariz era pequeno e redondo, um pouco empinado o que demonstrava uma certa agressividade de personalidade. A boca era uma tentação com uns lábios carnudos que se moviam de uma forma sensual, e quando se esticavam num sorriso por vezes terminavam numas covinhas ternurentas. Duarte sentia-se atraído naquela direcção. Quase se inclinou para a rapariga mas deteve-se a tempo.
-Desculpa a pergunta, mas como é que um gaiato órfão é enfermeiro?
-Estou a detectar alguma descriminação nessa pergunta Diana? Logo tu que lutas tanto contra a descriminação que sentes todos os dias?
-Não me interpretes mal. Eu própria sonho ir para a faculdade em Setembro quando terminar o secundário, e só quero ouvir da boca de alguém que também foi marginal e que conseguiu tirar o curso como é que conseguiu. Tens de admitir que a sociedade não foi feita para se encaixar em pessoas como nós. Não é à toa que existe a palavra marginal. A sociedade recebe no seu quotidiano aqueles que nascem no seio de uma família que trabalha, paga as contas, paga os estudos dos descendentes, ajuda-os a procurar emprego, a constituírem família e passam o testemunho. Nós não temos quem nos deixe o seu testemunho nem quem nos oriente na vida.
-Percebi! E deixa-me que te diga, não concordo contigo. É mais difícil para pessoas como nós atingir determinados objectivos. No entanto o facto de se ter uma família dita normal não é sinónimo de sucesso garantido. Tu é que deves olhar em volta e saber aproveitar todas as oportunidades, e com uma atenção redobrada, já que as tuas oportunidades são em menor número que as oportunidades dos outros. Eu aproveitei a única oportunidade que tive na vida… E olha o marginal a tentar arranjar uma vida em que passe o testemunho.
    O silêncio que se seguiu não significou qualquer incómodo. Diana Pensava nas oportunidades… e ela tinha oportunidades que não podia desperdiçar. Ia estar atenta a todos os bónus que a vida lhe desse e vai deixar de lado as lamentações. Afinal não é a única pessoa no mundo com dificuldades…  
    O silêncio alongou-se por um tempo indeterminado e foi interrompido por um arrepio de frio no corpo de Diana.

-Tens frio? – pergunta Duarte que detectou logo o arrepio tal era o estado de alerta do seu corpo em relação ao corpo de Diana.
- Um pouco… Mas estou a gostar da tua companhia e não me quero ir já embora… Se não te importares é claro.
-Não penses que vais livrar-te de mim com essa facilidade. Eu não faço intenção de te deixar já, mas vamos para outro lado… E agora quem decide sou eu.

    Duarte largou a mão de Diana a custo. Levantaram-se e dirigiram-se para o carro. Voltaram para a cidade e estacionaram no cais. Duarte sentia necessidade de voltar a tocar em Diana, pelo que encostou a palma da mão às costas da rapariga e conduziu-a até um restaurante que ficava numa esquina.
-Não podemos entrar aí Duarte. – e em jeito de segredo Diana aproximou a boca da orelha de Duarte e sussurrou – É demasiado caro…
     Duarte sentiu um arrepio de prazer ao sentir o rosto dela tão perto do seu. Inalou o cheiro que até agora lhe era desconhecido. O pescoço tinha um cheiro difícil que se situava entre o leite-creme e o caramelo. Um cheiro discreto quase imperceptível mas que lhe aguçava os sentidos.
-Não te preocupes. Hoje sou eu quem decide.

    Entraram e escolheram uma mesa no andar superior. Diana sentiu-se encantada com o deslumbre de uma parede em vidro que permitia uma vista sobre o cais em frenesim num vai e vem de cabeças apressadas com a chegada da lancha. A estátua de Manuel d’Arriaga elevava-se no centro da rotunda e parecia escarnecer as rotinas humanas daquele local. O cais cheio de traineiras envergonhadas face à envergadura do navio cruzeiro estacionado em alto mar,  grande demais para aquele pequeno porto. A rua estendia-se estreita passando pelo café Peter onde iatistas demasiado pálidos e louros brindavam com o famoso gin tónico o facto de estarem num dos sete bares do mundo de paragem obrigatória.
    O jantar foi servido em pequenos pedaços de carne e camarão crus que Diana e Duarte grelhavam numa pedra quente colocada na mesa. Conversaram sobre os molhos, os temperos a paisagem. Olharam-se com carinho, com desejo, com compreensão, com vergonha. Sentiam um turbilhão de sentimentos sem que os conseguissem separar e identificar.
-Afinal qual foi a tua oportunidade para tirares o curso? – pergunta Diana.
-Para te responder a isso tenho de te contar a minha história…
-Sou toda ouvidos.

    Com o fim do jantar os empregados limparam a mesa e serviram o café. Duarte debruçou-se sobre a mesa e procurou a mão de Diana. Começou a brincar distraidamente com os seus dedos magros enquanto começava o relato da sua vida.

- Fui abandonado à porta da casa dos gaiatos ainda bebé. Receberam-me na instituição e foi lá que criei os meus laços afectivos. Os outros rapazes eram na sua maioria crianças amargas, incompreendidas, que exteriorizavam na violência a revolta e a fúria que sentiam interiormente. Eu tive a sorte de um padre que ajudava a instituição se ter interessado por mim. Ainda me lembro do nosso primeiro encontro em que lhe perguntei se ele podia perguntar a Deus onde andava a minha mãe e se ela ainda demorava muito a vir buscar-me. Ele respondeu-me com um sorriso meigo: “Não deves começar por questionar o que não sabes, deves começar por valorizar o que já tens”. Pode parecer parvoíce, mas eu na inocência dos meus seis anos percebi o que ele me queria dizer. A partir daquele dia, o Padre Clemente passou a fazer parte da minha vida. Ia-me buscar todos os domingos e passávamos esse dia juntos. Eu assistia-lhe à eucaristia, almoçávamos sempre em casa de algum paroquiano e da parte da tarde jogávamos à bola e visitávamos o lar de idosos. Era sempre assim, a mesma rotina que eu ansiava ao longo de toda a semana. Tornei-me um bom aluno e creio que adoptei uma boa conduta garças a ele. Tinha sempre vontade de o fazer orgulhar-se de mim, queria sempre ter em cada domingo uma boa nota ou uma boa acção para lhe apresentar. Assim quando terminei o secundário, o padre arranjou-me um amigo abastado que me sustentou o curso sem nunca saber quem eu era. Só conheci o meu benfeitor no dia em que estava no aeroporto de Angra para vir trabalhar pela primeira vez aqui nesta ilha. Reconheceu-me logo pela descrição do padre Clemente. Dirigiu-se a mim com um olhar orgulhoso e disse-me “ És o décimo segundo rapaz dos gaiatos a quem eu disponibilizo ajuda para ir mais além. Mas és o primeiro que me dá a alegria de ver vencer”. Com estas palavras o homem abraçou-me, não de uma forma casual, mas com uma emoção que me tocou. Sabes Diana, foi nesse momento que percebi a quantidade de pessoas que desperdiçam oportunidades, e o pior é que se desculpam com as balelas de que são marginalizados e não têm apoio de ninguém. Existe Deus, Diana… Eu tenho esta certeza, e Ele é igual para todos… O que fazemos da nossa vida é que decide o nosso futuro e o futuro dos que nos rodeiam.
    Diana sentiu-se mais próxima daquele rapaz que até então lhe era desconhecido do que de qualquer cara jovem que lhe fosse familiar.

2 comentários:

  1. ohhhhhhhhhh.....soube me a pouco...estava mesmo a gostar...
    Isso não se faz :)
    Olha...está realmente muito bom..Parabéns..

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  2. Este fim de semana há mais Aninha :)
    Fico tão feliz por ver que as pessoas estão a ler e que se dão ao trabalho de me envias e-mails a comentar... :)

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