sábado, 28 de maio de 2011

Ilha Azul

Capitulo I
            
    Chegar atrasada significa uma fracção de segundos em que tem de aguentar todos aqueles olhares maliciosamente vazios sobre a sua frágil figura, procurando naqueles ténis velhos algo que se pareça com os tão em voga all-star e não encontrando mais do que uma vaga expressão de coitadinha da pobrezinha.
    É o primeiro dia do terceiro período daquele 12º ano que parece interminável. A turma continua o mesmo mar de gente insignificante que vibra com as novas madeixas da tão popular Bia. Diana consegue chegar mesmo a tempo de ouvir o toque da campainha e entra num passo miúdo mas rápido na sala 16 para mais uma aula de matemática. Senta-se no lugar de costume, na última fila o mais à esquerda possível e pousa a mochila gasta na cadeira do lado adivinhando que ficará vazia. A aula termina e segue-se o intervalo de quinze minutos, demasiado longo para Diana que se deposita fora da próxima sala onde terá a aula de economia. Com um olhar desinteressado fixa ao acaso o fundo do corredor onde vê Ruben de mão dada com a nova namorada, a filha da nova juíza da cidade… Só podia… Aquele deus grego de cabelo louro a roçar-lhe os ombros de uma forma um pouco feminina era o top ten de popularidade naquela pequena escola secundária daquela pequena ilha dos Açores, Faial. Eles dirigem-se a ela e Diana sente um formigueiro nervoso na boca do estômago.
- Olá Diana! Aqui a Raquel estava curiosa para conhecer a croma que tem aquelas notas bombásticas na pauta. – Diz Ruben sem sequer olhar Diana e demonstrando uma contrariedade evidente por se ver forçado a dirigir palavra àquela pobre de espírito.

- Eu sou a Raquel, e fiquei impressionada com as tuas notas. Ter como nota mais baixa um 17 a português é obra. Parabéns…
- Eu sou a Diana… - respondeu com o olhar baixo constrangida pela conversa. Ruben resolveu a situação pegando no braço da namorada e afastando-a para a rua.

    O resto da manhã passou-se entre uma aula e outra e quando soou o toque da campainha anunciando o fim das aulas da manhã os corredores encheram-se de um frenesim humano, um mar de cabeças que Diana deixou passar para então aventurar-se na sua saída da sala. Ao atravessar o pátio da escola ouviu uma voz esganiçada pronunciar o seu nome num tom demasiado agudo para seu gosto. Não se deu ao trabalho de olhar. Não lhe apetecia ser a cobaia de um bando de filhinhos de papá que queriam arranjar um animalzinho para mal tratar durante a hora de almoço… De repente Diana sente uma mão pousar no seu ombro e sente todos os músculos do seu corpo endurecerem. Os dentes cerram-se e os punhos fecham-se com uma força trémula. Se eles quiserem um saco de pancada vão surpreender-se…

- Não me ouviste chamar-te? – Pergunta Raquel com as bochechas vermelhas reflectindo o esforço feito para alcançá-la.
- Olha betinha de merda, se queres gozar com esta mal trapida, aberração, bicha do mato ou o que quiserem rotular, estás muito enganada. – Sibila Diana num sussurro frio fixando os olhos da novata da escola sem nunca pestanejar. De seguida baixa aqueles olhos verdes redondos apavorados e fixa-os no chão voltando-se de costas e fazendo intenção de prosseguir o seu caminho.
- Se te queres vitimizar com essa balela da pobrezinha perdes o teu tempo comigo, porque eu não tenho pena nenhuma de ti. Apenas sou nova na escola e quero fazer amizades interessantes… E eu acho que tu és uma pessoa interessante. Quanto a seres uma bicha do mato isso, querida é inegável. – Depois de dois segundos de espanto Diana rasgou os lábios numa gargalhada contagiante. – Anda daí … Vamos almoçar uma mega pizza de queijo… Oferta da betinha. – Raquel encerrou o assunto e desceram a rampa da escola mirando os muros pretos de basaltos generosamente abraçados por longos braços de era que formavam um antigo forte transformado numa cara residencial.

    As raparigas almoçaram em silêncio a pizza e Coca-Cola sentadas no muro que separava o jardim daquela marina cheia de veleiros e pequenos iates, com os muros cinza claros cobertos de desenhos daqueles que queriam deixar registado uma fugaz estadia naquela baía azul. A paisagem prolongava-se por um azul calmo e intenso até bater numa ilha triangular cujo cume é o ponto mais alto de Portugal. Um pouco mais distante e mais à esquerda alongava-se S. Jorge a ilha mais comprida do arquipélago, e ainda a Graciosa que se pronunciava numa imagem de uns seios perfeitos.

- Quais são os teus objectivos quando terminares o liceu? – pergunta Raquel afastando uma madeixa inoportuna de cabelo louro da cara e prendendo-a atrás da orelha pequena ornamentada com um brinco em forma de golfinho.
- Quero ir para a faculdade… Quero tirar economia ou gestão de empresas. - responde Diana pouco à vontade
- Mas como é que pensas fazê-lo? Os teus pais não têm condições financeiras para te pagarem os estudos, não é verdade?

    Diana espantou-se com a lata da rapariga, mas apreciou o à vontade com que ela abordava o assunto.

- Eu só tenho pai, que por ventura é o maior alcoólico que esta terra já conheceu. A minha mãe morreu quando nasci… Nunca cheguei a conhecê-la. – Diana sentiu um aperto na garganta e apressou-se no assunto de família – Por isso é que faço questão de ter tão boas notas. Tenho de conseguir uma bolsa de estudo. Já tenho dinheiro para a viagem e para o primeiro mês lá fora… Trabalho ao fim-de-semana num café…

    Raquel sentiu vergonha pela primeira vez na vida por ter uma vida tão facilitada. Sentiu vergonha da sua média de 15, da qual sempre se orgulhara… Envergonhou-se da exigência que fez aos pais há três dias atrás para que lhe comprassem uma mochila nova, quando tem seis mochilas boas dentro do guarda fato… Sentiu-se ingrata por todas as vezes que gritou a Deus o quão injusto era com ela por tê-la colocado naquela ilha insana que não tem um teatro, um cinema, uma universidade, um politécnico, um mcdonald’s… 

- Eu gostava de tirar psicologia, mas tinha de melhorar um pouco a minha média, por isso vou tentar fisioterapia, terapia da fala ou algo do género…

    Diana soltou uma gargalhada, a segunda do dia… Coisa rara nela, mas ela estava a gostar daquela espécie de inicio de amizade

- Tu és muito divertida… Em vez de fazeres um esforço nos próximos três meses para melhorares a tua média e tirares o curso que te agrada, pensas em sacrificar o resto da tua vida a uma profissão que tanto te faz… Pelo amor de Deus Raquel… - Diana acalmou o riso e declarou – Vais começar a estudar comigo todos os dias e vais subir a tua média, ou não me chamo Diana Pereira Silva e este não é o ano de 1998.

    A hora de almoço passou-se depressa de mais e as aulas da tarde começaram com o mesmo ritmo lento e chato característico do início de cada período. Diana passou os intervalos sozinha olhando para Raquel à distância, enquanto ela desfrutava com um ar demasiado sisudo a companhia do namorado e dos amigos.
    No final das aulas Diana encaminhou-se num passo apressado para fora dos portões da escola. Atravessou a cidade pela avenida sempre junto ao mar olhando o vai e vem das ondas calmas enquanto roçavam para depois se afastarem das pedras escuras num movimento eternamente prometedor. 
    Finalmente chegou à oficina de carros. Entrou conhecedora do caminho e deteve-se a olhar para o irmão todo sujo de graxa encaixado naquele fato-macaco que não fazia justiça aos seus ombros largos, ao seu abdómen bem dividido, às suas pernas altas e atléticas. Diana enchia-se de orgulho ao olhá-lo ali com poucos estudos a trabalhar num emprego humilde com todo o profissionalismo e dedicação que se pode desejar num funcionário.

- Ah princesa! Já chegaste? Nem te vi entrar… Vou só lavar as mãos e vamos embora, ok? – Pedro aproximou-se da irmã e beijou-a na testa enquanto lhe fazia um festa na ponta do nariz sujando-a de graxa.

    Diana esperou o irmão encostada à velha zundap, a motinha que os transportava todos os dias, debaixo de sol ou de chuva.
    Pedro ainda demorou-se um pouco na oficina e chegaram a casa por volta das oito da noite. Subiram os degraus de pedra, passaram o balcão da casa e entraram pela porta principal que dava acesso a uma velha cozinha com uns armários antiquados pintados de verde água e com algumas portas em vidro deixando adivinhar um conjunto de louça disparo e desajeitado. A mesa de madeira no centro da cozinha assentava num chão de soalho que rangia a cada passo e os bancos envolventes encontravam-se tombados, à excepção de um que aguentava o peso de um homem sujo, com o cabelo desgrenhado e uma barba de semanas. O homem ao sentir a chegada dos filhos levantou-se desajeitadamente e precipitou-se para os recém-chegados.

- Seus filhos da puta… Acham que isto são horas seus vadios… E o meu jantar? Hã? Onde é que está o meu jantar? Eu dou-vos um tecto e nem a merda do jantar fazem… Seus filhos da puta… - E neste discurso inflamado e mal pronunciado, José dos copos, como era conhecido, deixa cair a mão direita numa força bruta sobre o rosto assustado de Diana que resulta na inconsciência imediata desta.

    Diana quer ver mas as pálpebras pesam uma tonelada. Num esforço que lhe pareceu sobre-humano obriga os olhos a abrirem-se e depara-se com uma claridade imensa de um branco intenso… Deve ter morrido… Pois, provavelmente morreu… Não lhe parece uma ideia má de todo… E aquela imagem toda branca com uns olhos cor de mel de uma meiguice intrínseca que repousam agora nos seus devem pertencer a algum anjo que está agora a executar um ritual de boas vindas…

- Já acordou sua dorminhoca! – O anjo é mais humano do que parecia.
- Onde é que eu estou? – pergunta Diana numa voz  arrastada.
- Estás no hospital e eu sou o enfermeiro Duarte – Afinal não é um anjo… Ainda bem… Os anjos são assexuados.
- O meu irmão?
- Está lá fora, muito angustiado. Antes de o mandar entrar quero falar um pouco contigo.
- Sobre o quê?
- Ambos sabemos que esse hematoma que ganhaste hoje não é resultado de uma queda. Foi uma agressão… Queres falar disso?
- Apenas caí na banheira...
- Engraçado… O teu irmão diz que o acidente deu-se nas escadas. Foi ele que te bateu?
   
    Diana sente um aperto na garganta e uma humidade irritante nos olhos que teima em converter-se em lágrimas.
 - Não… - responde finalmente num sussurro.
- Um namorado?
    Diana deixa escapar um gargalhada atabalhoada antes de responder.
- Não tenho…
- Ah! Deve ser o meu dia de sorte! – Respondeu o enfermeiro Duarte com um sorriso aberto mostrando os dentes brilhante encaixados nuns lábios finos que terminavam numa barba rasa que lhe davam um ar potente.
    O irmão entrou no quarto com os olhos vermelhos e inchados. A testa enrugada de preocupação e as mãos trémulas agarrando com demasiada firmeza o cartão de saúde da irmã.

- Desculpa Princesa! Não consegui evitar a tempo… Desculpa! – Pedro deixou enterrar o rosto sofrido no peito da irmã que o abraçou e chorou com ele.
- Tu sabes que a culpa não é tua! Afinal tu és o meu anjo da guarda, não é? – pergunta Diana num fio de voz que trás à memória muitas recordações dolorosas. Aquele cenário comove o enfermeiro que se retira discretamente do quarto, mas levando na alma aquele drama familiar que não consegue entender.

    Pedro fez uma rápida retrospectiva à sua vida sempre condicionada pelos maus modos do pai. José dos copos sempre gostou da boa vida. Este gosto vem desde os tempos de solteiro. Com a fama de preguiçoso casou-se com uma rapariga ingénua e muito trabalhadora de nome Ermelinda. Dizem que ele gostava muito dela, mas a preguiça era maior que o amor que sentia pela mulher. Ela tratava da casa e das poucas terras que tinham, único sustento daquela família. Engravidou do primeiro filho ainda muito jovem, apenas com 18 anos, mas o excesso de trabalho e a falta de apoio para fazê-lo resultaram num aborto. Teve então o primeiro filho, Pedro, cinco anos depois, para grande alegria sua. Pedro costuma falar da mãe descrevendo-a como uma mulher simples e fácil de contentar. Estava sempre de bem com a vida. Mesmo nos momentos em que se sentia mais cansada tinha sempre um sorriso ou uma desculpa para justificar a falta de ajuda por parte do marido. Foi Pedro que desde muito cedo começou a ajudar a mãe. Quando Pedro tinha oito anos, Ermelinda engravidou novamente. Com o aumentar dos meses e da barriga, Ermelinda caiu na cama muito doente, mas José, apesar da sua aflição teve demasiada preguiça para levá-la ao médico. O tamanho da barriga crescia acompanhado pelo inchaço dos pés e pernas. Pedro desdobrou-se no trabalho da terra e dos animais de forma a ter pelo menos ter uma sopa e leite para alimentar a mãe. De vez em quando conseguia um pouco de carne junto dos vizinhos que se compadeciam da situação. A hora do parto chegou e lá estava o pequeno Pedro contando apenas com a ausência do pai como ajuda. Foi Pedro que ajudou a mãe a dar à luz aquela menina pequenina. Foi Pedro que cortou o cordão umbilical, embrulhou a recém-nascida e colocou-a no colo de Ermelinda. Foi Pedro que a chamou pela primeira vez de Diana. E foi Pedro que ajudou a mãe na hora da sua morte a partir com um sorriso nos lábios, reflexo da sua última alegria.
    Seguiram-se os seis meses mais difíceis da sua vida. Sem ter tempo para chorar a morte da mãe que tanto lhe pesava no peito, na garganta, nos olhos sempre dormentes e desejosos de se libertarem daquela angústia, Pedro começava o seu dia antes do próprio sol. Trabalhava as terras o melhor que podia e tratava das duas únicas vacas que tinham. Alimentava a irmã principalmente de leite e batata esmagada. Durante as aulas deixava a bebé sozinha dentro de um berço improvisado por ele. Voltava das aulas sempre cheio de pressa e ansiedade para ver se a irmã estava bem. Num destes regressos encontrou a irmã caída no chão do quarto com um hematoma na face. Desesperado agarrou-a e saiu de casa a correr. Os seus olhos deixavam escapar toda a dor e ressentimentos que rolavam face abaixo num desespero gritado por uivos. As suas pernas moviam-se mais rápido do que o esperado num miúdo de nove anos, e o seu pensamento fluía numa tentativa de raciocínio. Pedro lembra-se de ter ouvido na escola que os casos de maus tratos eram tratados por senhoras Assistentes Sociais. Ele sabia que o hospital tinha senhoras dessas e era para lá que concentrava todo o seu esforço. Demorou apenas uma hora e meia a lá chegar. Entrou de rompante pela porta principal e gritou que queria falar com uma Assistente Social. Face ao nervosismo da criança, o segurança aproximou-se dele com uma atenção demasiado artificial para ser notada pelo rapaz e conduziu-o para fora do gabinete da Dr.ª Isabel. Ao ler a placa com as palavras desejadas Pedro acalmou-se. Quando finalmente entrou no gabinete estendeu a bebé para a delicada senhora e pediu-lhe fervorosamente que ficasse com ela, pois o pai não sabia tomar conta de bebés. A meiga senhora sorriu-lhe e fez-lhe algumas perguntas… Era bom sinal… Foram encaminhados para a rua onde a senhora segredou qualquer coisa a um taxista, e com mais um sorriso meteram as crianças dentro do táxi. Pedro relaxou finalmente… Deviam estar a ser levados para uma nova casa… Encostou a cabeça no assento e deixou que os seus olhos descansassem por um instante. Quando os voltou a abrir, foi com a surpresa que ainda lhe ardia na cara. A desilusão de estar a ser arrancado do táxi pelas mãos brutas do pai e arrastado novamente para a mesma casa provocou-lhe um pânico crescente com um movimento rápido de braços que tentavam proteger a cabeça dos golpes que iam sendo desferidos continuamente sobre o seu frágil corpo. José só parou quando o cansaço físico provocado pelo imenso esforço de repreender o filho se apoderou dos seus membros e decidiu ir deitar-se. Pedro ali ficou imóvel horas a fio olhando para a irmã que estava largada no canto oposto da divisão. Num último esforço desesperado levantou-se, pegou na bebé e voltou a sair. Foi-se arrastando lentamente rumo à sua última esperança. Com o corpo curvado de dores e crivado de nódoas e hematomas caminhou durante toda a noite, levando seis horas a chegar ao seu destino. Foi acordado com um suave abanar. Estava deitado fora da porta do colégio de Stº António. Não conseguiu evitar um leve sorriso ao ver que tinha conseguido chegar ao seu destino. Foi recebido pela irmã Maria Alice que logo se compadeceu daqueles irmãos. As freiras ficaram com a menina, mas nada puderam fazer em relação a Pedro que teve de voltar para casa. Pedro não se importou. Estava grato por ter conseguido colocar a irmã em segurança naquele colégio interno para raparigas. A mãe estaria, com toda a certeza orgulhosa dele…

- Podem sair quando quiserem. A Diana leva aqui uns comprimidos que só deve tomar se tiver dores.

    Os irmãos voltaram para aquela casa agora demasiado sossegada. Foi uma noite falsamente pacífica em que Diana só conseguiu adormecer quando se meteu na cama do irmão e voltou a sentir-se segura debaixo daquele braço forte.

    O dia amanheceu e Diana vestiu uma roupa qualquer sem sequer olhá-la, come um pouco de pão seco com leite lavou a cara e os dentes e escovou o cabelo deixando-o solto e caído sobre o lado da cara inchado tentando disfarçar o rosto magoado.
    Subiu a rampa da escola sempre de cabeça baixa tentando passar o mais despercebida possível. Entrou na sala onde teria a aula de inglês e sentou-se no mesmo lugar de sempre, pousando a mochila na carteira ao lado.

- Podes afastar a mochila? – pergunta Raquel com aquele sorriso fácil que lhe era característico e desfazendo-se dele com a mesma facilidade quando Diana levantou e deixou visível o inchaço roxo que se alongava desde a base do nariz até ao queixo.

    Ficaram a olhar uma para a outra durante uns segundos constrangedores, enquanto Diana tentava dominar as emoções fracas que se apoderavam dela. Ambas deixaram cair um par de lágrimas discretas e sentaram-se lado a lado em silêncio. A aula decorreu normalmente e Raquel não pode deixar de admirar aquela rapariga de pele demasiado queimada própria de quem trabalha no campo ou faz demasiada demora na rua tentando tardar sempre o regresso a casa. O cabelo castanho claro, sem ter um corte definido caia-lhe em caracóis sobre os ombros largos. O corpo esguio fazia adivinhar-se bem tonificado, uns seios pequenos mas redondos, uma barriga longa e dura e umas pernas bem torneadas escondiam-se por debaixo de uns trapos velhos e mal estimados. Mesmo com o rosto danificado, mesmo com uma vida familiar e pessoal difícil, mesmo vítima de maus tratos, Diana estava concentrada na aula captando tudo o que era ali dito retendo a informação imediata e anotando o que deve rever em casa. Que força de vontade… Que motivação se move nas suas entranhas… É sem dúvida uma pessoa merecedora de toda a admiração e Raquel admirava-a.
    A aula terminou e Diana começou a arrumar as suas coisas sem pressa. Raquel pelo contrário atirou com tudo para dentro da mochila de forma a poder aproveitar o máximo de tempo possível do intervalo.

- Então Raquel! Não me viste quando entraste na sala? Tinha guardado o lugar ao meu lado para ti… - Reclama Ruben magoado com a falta de atenção.
- Vi. – Responde Raquel com firmeza – Mas já tinha combinado com a Diana que ficaríamos juntas nas aulas de inglês já que é a única disciplina que temos juntas. Não é amiga? – e com isto emitiu um piscar de olho prometedor e com uma certa malícia de quem se divertia com a situação.
- Estás a gozar, certo? – Pergunta Ruben incrédulo e um pouco envergonhado com o facto de a namorada estar a estabelecer uma relação amigável com aquela campónia.
- Não, não estou a gozar. Queres passar o intervalo connosco?

    Ruben sente-se ultrajado e humilhado. Volta as costas às duas raparigas e sai da sala. Como é que Raquel pode dar confiança àquele tipo de gentinha… Claro que o namoro está terminado… A Raquel teve a oportunidade de se dar com pessoal porreiro na escola e escolhe gente duvidosa para desenvolver amizades… Nem parece filha de quem é. O que será que a juíza Fernanda e o marido, o médico Guilherme pensarão desta nova companhia? É pena as coisas terminarem assim, até porque a Raquel não é de se deitar fora…

- Agora vou ter aula de educação física, mas à tarde não tenho aulas. Falamos nessa altura está bem Diana?

    Diana encolheu os ombros e olhou aquela nova amiga com uma gratidão que incomodou Raquel. As aulas da manhã passaram depressa e a tarde chegou para alívio de todo o 12º ano que não tinham aulas às terças-feiras da parte da tarde. Raquel procurou Diana para que pudessem conversar um pouco mas sem sucesso. Só voltou a vê-la na manhã seguinte.

- Então bicha do mato? Procurei-te ontem por toda a parte… Onde é que te meteste?
- Com uns amigos – respondeu Diana que não pode evitar um sorriso quando olhou para o ar estupefacto da amiga…
- Não sabia que tinhas assim tantos amigos.
- Queres conhecê-los hoje na hora de almoço? Convidaram-me para comer com eles.
- Teria todo o gosto. Encontramo-nos junto ao portão quando tocar a campainha, combinado?
- Claro betinha…
    Pela primeira vez na sua vida estudantil as aulas pareceram mais aborrecidas e Diana tinha pressa de voltar a estar com a sua nova e única amiga adolescente. Estava um pouco reticente em apresentar os seus verdadeiros amigos. A reacção de Raquel decidiria a relação das duas daí para a frente. Achava que era importante a amiga saber com que tipo de gente se dava, ver o quão diferente são os seus amigos.
    Ao meio-dia em ponto as duas raparigas puseram-se a caminho.

- Para onde me levas? – Questiona Raquel curiosa.
    Diana esboçou um sorriso nervoso. Manteve-se calada o caminho todo, com uma ruga de preocupação na testa. Talvez não tenha sido assim tão boa ideia introduzir Raquel no seu mundo. Talvez seja cedo demais…

- Chegamos!... – Declara Diana com uma nova animação enquanto entra num café à beira da praia do porto pim.

    Raquel entra a medo observando pela primeira vez o interior daquele café. Os clientes resumiam-se a um grupo de velhos de pele curtida e um pouco desdentados que cheiravam a peixe, mas não de uma forma desagradável. A sensação de repugnância depressa foi ultrapassada pelo calor humano que aquela gente depositou na recepção a Diana.

- Quero apresentar-vos a minha amiga Raquel. – Diana apontou para aquela rapariga loura com um orgulho que se pronunciava no seu sorriso.

- Ah! Não sabia que te davas com gente. – Arreliou-a um homem alto e demasiado magro com um ar de gozo natural que se evidenciava nos seus pequenos olhos negros e no riso rasgado e desavergonhado que deixava à mostra a falta evidente de dentadura.

- E este é o José Gaitinha, Raquel… Não te deixes enganar por este Romeu atraente…

    Agora o café rompia em gargalhadas. Raquel começava a apreciar aquele ambiente de pescadores onde era notório o carinho que todos sentiam por Diana. Para além das conversas banais mostravam interesse e orgulho nos estudos de Diana e faziam planos em conjunto para quando ela fosse estudar para o continente. Todos estavam dispostos a dividir o tão pouco que tinham de modo a tornar o sonho de Diana realidade.

- Eu já tenho dinheiro para a viagem e para o primeiro mês, não é assim Guida?

    Raquel percebeu que a Guida era a dona do café. Tratava-se de uma mulher que estava a chegar à casa dos quarenta e que aparentava bem essa idade nas rugas que lhe sulcavam a testa e contorno dos olhos. Possuía uma cabeleira de caracóis pesados e negros, sem brilho que contrastava com a pele demasiado pálida. A mulher de estatura média esticou-se e tirou um pote escondido na última prateleira. Abriu o pote e tirou de lá um molho de notas cuidadosamente enroladas.

- Até agora é isto que temos poupado Diana, mas se Deus quiser vamos conseguir angariar mais algum para além do teu ordenado, é claro. – Guida exibiu um sorriso maternal expondo os seus dentes demasiado grandes.
- Não precisam de fazer isso por mim… Vocês já vivem com tantas dificuldades e sei bem que fazem tantos sacrifícios para terem uma vida familiar um pouco desafogada, não se devem privar de nada para porem mais dinheiro nesse pote… - Diana falou com uma emoção trémula na voz.
- Ah, mas nós queremos ter uma amiga doutora e que nos leve a sítios finos comer aquelas comidas demasiado caras que nem chegam a encher o prato. – José Gaitinha provocava Diana de uma forma saudável enquanto tirava 500 escudos do bolso – e aqui vai mais uma notita para o fundo da nossa menina.

    Raquel emocionada sentia uma energia solidária percorrer-lhe a espinha. Olhava aquele café iluminado e limpo cheio de gentes simples, mal trapidas e pouco educadas a comerem de boca aberta e a sorverem o galão. Pessoas que normalmente lhe suscitavam desconfiança e até um pouco de repugnância e que a levavam a um afastamento automático. Naquele exacto momento achava aquela gente linda… Não havia outro adjectivo que qualificasse melhor os amigos de Diana. Os pescadores depositavam ternas palmadinhas nas costas de Diana, por vezes abraçavam-na e chegavam a beijar-lhe o topo da cabeça com uma ternura que lhe tocava o coração. E foi na corrente desta onda que Raquel puxou da carteira.

- Eu também quero contribuir para o futuro da aluna mais brilhante da nossa escola. – e nisto inseriu uma nota de dois contos no pote. Este gesto provocou um espanto geral que se reflectiu num silêncio absurdo. Foi Paulo, o marido de Guida, um homem robusto com um pouco de peso a mais, uns ombros demasiado largos e um nariz bicudo que cortou aquele gelo.

- Como é que uma miúda da tua idade anda com tanto dinheiro no bolso? – A pergunta foi feita de forma cordial, mas Raquel e Diana leram a desconfiança naqueles olhos pequenos e castanhos encovados num rosto redondo.

- A Raquel é uma betinha. – respondeu Diana arrancando uma gargalhada geral e desanuviando o ambiente.
- És filha de quem? – eis a pergunta típica dos meios pequenos gerada pela boca de um dos pescadores, mas questionada pela mente de todos.

    Raquel tinha muita vontade de agradar aquela plateia, queria que olhassem para ela com o mesmo respeito que olhavam para a amiga.

- Sou nova cá na ilha. A minha mãe é a nova juíza do vosso tribunal. E se estás com inveja por eu ter contribuído para o fundo da Diana, posso criar um fundo também para ti…

Pronto! Aí estava a reacção esperada. Os pescadores riram-se com vontade. Alguns até lhe deram uma palmadinha no braço enquanto brincavam com a situação, “Oh Mário também queres ir para a universidade?”, “olha que ouvi dizer que é preciso saber ler e escrever”, “ aquilo é como na tropa, tens de ter pelo menos metro e meio”. Mário era um pescador de cabelo cinza abundante e de baixa e estreita estatura. Sempre que se falava no tamanho do homem que era capitão de uma traineira com muito orgulho lá contava ele a mesma história:

- Sabes porque sou pequeno em tamanho? – perguntou o homem a Raquel
- Porque é preguiçoso demais para crescer!... – arriscou a novata com um sucesso espelhado na risota geral.

- Essa foi boa pequena. – respondeu Mário piscando-lhe o olho – Mas a verdade é que quando eu era miúdo o meu pai dizia-me sempre “ tens de aprender a fazer alguma coisa para quando cresceres trabalhares muito e sustentares uma família”, como aquela parte do trabalhar muito não me agradava, então resolvi não crescer.

    Raquel riu-se tanto até lhe chegarem as lágrimas aos olhos e lhe doer a barriga.

    Diana reparou num dos homens que se mantinha quieto numa mesa a um canto com o rosto moreno e cheio, uns óculos demasiados grandes e antiquados, vestia uma suera cinzenta que lhe ficava demasiado justa na barriga proeminente.

- Então Manuel! Passa-se alguma coisa? – Diana sentou-se na mesa dele a comer a tosta mista.
- Olha pequena, diz-me cá uma coisa… Conheces alguém da família da tua mãe? – Diana nunca havia pensado numa família para além do irmão e do pai. Sentiu de repente um vazio na sua história, na sua personalidade. Não sabia sequer o nome dos avós maternos.
- Não conheço ninguém. Devem já ter morrido…

    O café silenciou-se. Todos pararam a olhar para Diana. Podia-se ler naqueles olhos experientes e cansados uma incredulidade impossível.

- Tu não sabes quem é o teu avô materno? – desta vez era Paulo que a abordava sentando-se na mesa ao lado da rapariga enquanto lhe entalava suavemente a mão pequena no meio das suas acariciando-a como se a preparasse para algo menos bom. Guida colocou-se atrás do marido com a mão pousada no ombro deste num gesto que demonstrava incentivo para que fosse ele a conduzir aquela conversa.
- Eu acho que deves saber algumas coisas sobre a família da tua mãe, mas deves ser forte, porque o que te vou contar não te vai mostrar uma família feliz e que está aberta para te receber… Juro que estávamos convencidos que sabias Diana, por isso é que nunca falámos disto contigo… Pensámos que…
- Diz lá o que queres dizer Paulo que eu estou a ficar aflita. – Diana sentia aquela ansiedade doentia da espera. Sentia a garganta seca, as mãos tremiam-lhe e transpirava como se estivesse num estado febril…
- O teu avô, o pai da tua mãe era um homem bastante abastado, cheio de dinheiro que virou as costas à tua mãe quando ela casou com o Zé dos copos. Nunca foi capaz de esticar a mão à filha quando a viu passar por tantas dificuldades na vida. Convenceu-se que o teu pai era um oportunista que queria apenas o dinheiro dele. Não estava totalmente enganado, mas também não estava completamente certo. O teu pai é o traste que toda a ilha sabe, mas de dinheiro só quer o que lhe chegue para a bebida.
- Afinal quem é esse homem abastado? – perguntou Diana numa calma aparente. Não foi capaz de chamar avô a essa personagem que começava a odiar.

    Desta vez foi Guida que lhe deu a resposta. Colocou-se de cócoras em frente àquela rapariga meio selvagem afagou-lhe o cabelo queimado pelo sol, encaixou aquele rosto moreno entre as suas mãos e fixou-lhe aqueles olhos verdes opacos e inexpressivos.

- O teu avô era o Pereira do talho. – Guida sentiu as lágrimas de Diana escorrerem-lhe pelas mãos. – Ele morreu ontem à noite. Dizem que teve um ataque de coração.
- Olha Diana, nós só te estamos a dizer isto porque achamos que tu e o teu irmão devem saber que o vosso avô morreu. – José Gaitinha tinha perdido o sorriso maroto, o olhar estava triste e a voz tremia-lhe enquanto falava.
- Perdoem-me a frieza, mas eu acho que te deves impor Diana, e este é o momento para isso… Pensei que soubesses, que esse distanciamento da família da tua mãe fosse consciente, mas nem te deram opção de escolha… São uns porcos esganados é isso que são… - Manuel sentia um lume, uma chama que lhe crescia dentro do peito na mesma medida em que tomava consciência do tamanho da injustiça.

- Tem calma Manuel… A rapariga acabou de saber que tinha um avô. – Mário tentava pôr água na fervura.

- Um traste… Um avarento… Um homem que podia ter ajudado os netos, que os podia ter tirado da miséria. Esta pequena foi criada pelas freiras até aos doze anos sem ter ninguém que lhe deitasse a mão, sujeita à caridade das freiras e ao amor do irmão… - Manuel sentia uma fúria que se demonstrava na vermelhidão das bochechas.

    Diana levantou-se bruscamente, pegou na mochila e saiu porta fora. Correu no máximo que as suas pernas permitiam guiada pela intuição já que os olhos estavam baços. As lágrimas soltaram-se numa corrente e o coração batia apressado batendo o ritmo da sua passada. Diana atravessou a cidade em menos de 15 minutos, entrou pela oficina dentro do irmão sem pedir licença e dirigiu-se a ele como uma voz acusadora.

 - Sabias disto tudo?... Diz-me que não sabias, Pedro… Diz-me que não fazias ideia de quem era o nosso… - incapaz de pronunciar a palavra avô, alongou o discurso – o pai da nossa mãe…

    Pedro não respondeu. Limitou-se a puxar a irmã para si e abraçou-a. Diana sentiu o cheiro a graxa que lhe era tão familiar e acalmou-se naquele peito demasiado conhecido. Passaram-se vários minutos sem que nenhum dos dois se atrevesse a falar.

- Vamos sair daqui. – decidiu Pedro.

    Saltaram ambos para a velha Zundap. Saíram da rua estreita em direcção à avenida marginal, subiram o morro da Espalamaca e pararam no miradouro da Santa como era conhecido, devido a uma imagem enorme de Maria cujos olhos se depositavam de uma forma protectora sobre a cidade que se alongava a seus pés naquela paisagem magnífica, como se de um presépio se tratasse.

- Eu não te disse, porque essa gente não nos é nada. Eles nunca olharam para nós como seres do mesmo sangue. Não nos têm como familiares. – Diana sabia que aquelas palavras eram sinceras. Ela não podia criticar a atitude do irmão. Ele sempre fez tudo para protegê-la. A sua vida girou à volta da felicidade da irmã. Era injusto culpá-lo daquele segredo.
- Sabes que ele morreu ontem? – perguntou Diana
- Ouvi dizer…
- Então temos tios, não é assim?
- Pois… O Sr. Pereira tinha mais um filho e uma filha para além da nossa mãe. Trata-se da D. Olinda e do Sr. Nuno que trabalham no talho. Deves saber quem são.
- Claro que sei… - depois de mais um momento de reflexão Diana perguntou sem ter muita esperança na resposta – eles sabem que têm sobrinhos?
- Sabem… Mas não querem saber…
- Que crueldade, Pedro…Ver uma irmã a morrer, a precisar de ajuda e não estender uma mão… Essa gente merece um pouco de aflição nas suas vidas. – e era exactamente isso que Diana lhes ia dar. – Levas-me ao capítulo?

1 comentário:

  1. Revejo o meu passado, em partes deste capítulo.Por exemplo, comer pizza e beber cola, na marina da Horta, durante o tempo de estudante, foi algo que marcou a minha adolescência.
    Parabéns pela estrutura do capítulo I...continua assim.O SONHO COMANDA A VIDA e se este é o teu, então segue em frente...

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