quinta-feira, 26 de abril de 2012

Capitulo II - Nas Asas do Corvo



Capítulo II

    O primeiro dia de uma nova vida raiou numa luminosidade de esperança. Vanda acordou antes do anúncio do despertador, como acontecia sempre. Levantou-se pelo lado direito da cama como de costume e puxou a roupa da cama para trás. Dirigiu-se à cozinha e procurou uma base para colocar em cima do balcão. Quase desesperou quando percebeu que não havia base nenhuma. Teria de tomar o pequeno-almoço na rua, o que também não a agradava totalmente, mas não conseguia pousar um prato da sua mesa sem ter uma base própria para isso. Resignada voltou para o quarto e fez a cama com gestos compassados e quando terminou, alisou a colcha com as mão até obter um resultado perfeito. Vestiu umas caças de licra pretas e um top desportivo da mesma cor. Dobrou os pijamas e colocou-os milimetricamente na última gaveta da cabeceira. Depois de lavar o rosto e os dentes, Vanda prendeu o cabelo abundante e negro num elástico disciplinado e olhou-se ao espelho com um sorriso aprovador. Já na porta da entrada, ela descalçou as pantufas encaixando-as minuciosamente no canto encostado à porta e calçou os ténis com cuidado para não sair de cima do tapete. Tinha uma bolsa que lhe rodeava a cintura com um mp3 e algum dinheiro e entrou em pânico quando percebeu que a porta de entrada estava fechada apenas no trinco. Ainda não tinha chave de casa e dormiu descansadamente, quando bastava um maluco qualquer rodar a maçaneta e entrar na sua casa. Sentiu que o ar lhe faltava e a sua postura controlada começava a escapar-lhe por entre os dedos. Uma tontura trespassou-lhe os sentidos desequilibrando-a, e Vanda pisou o chão limpo com os ténis conspurcados. Tinha de controlar a situação como mulher adulta que era. A sua vida podia ser exactamente como ela desejava que fosse. Inspirou o ar com força, fechou os olhos e lembrou-se das técnicas de relaxamento que aprendera nas aulas de ioga. Sentou-se no tapete de entrada e descalçou os ténis, colocando no seu lugar as pantufas. De seguida arrumou os ténis na sapateira e foi buscar uma pana com água e detergente. Debruçou-se sobre o chão que tinha pisado sem intenção e esfregou furiosamente, até lhe faltarem as forças. Quando tudo parecia ocupar o seu lugar devido, Vanda sentou-se no sofá e esperou por Vasco. Ele dissera-lhe que ia busca-la para fazerem não sabe o quê, e quando ele chegasse, Vanda pedir-lhe-ia a chave e tudo ficaria bem… Ela sentia-se frustrada por abdicar da sua corrida matinal. Parecia que alguma coisa no seu dia tinha-se desconcertado de tal forma que a colocara num deserto de acções que lhe paralisava a mente e agora a reorganização do seu dia teria de ser todo repensado.
- Olá Vanda! – Vasco surgiu como era de esperar, dentro da sua casa sem sequer bater à porta. Precisava mesmo do raio das chaves. – Vim mais cedo porque a D. Emília resolveu correr com todos da cama antes da alvorada.
- Esqueceste-te de me dar as chaves de casa! – Os olhos de Vanda faiscavam por detrás daquela calma aparente, facto que não escapou a Vasco
- Não me esqueci, apenas não as tinha comigo ontem! – Vasco tirou-as do bolso a atirou as chaves a Vanda que se atrapalhou na recepção.
- E deixaste-me dormir aqui assim… Com a porta aberta… Podia ter entrado um maluco qualquer e… - Vanda sentia que a vista teimava em turvar-se e que o pânico estava a ganhar aquela batalha.
    Vasco olhou para aquela mulher rígida nos movimentos que não sorria demasiado apesar de ter uma boca carnuda e uns dentes perfeitos que mereciam estar sempre encaixados em sorrisos descontraídos. Olhou aquela mulher que não era capaz de fixar um olhar por mais de dois segundos, apesar de ter uns olhos grandes e negros que brilhavam uma humidade permanente. Olhou para aquela mulher que se movia sem rebolar umas formas divinas que era pecado esconde-las naquela postura fria e distante.
- Tem calma Vanda! Aqui ninguém tranca as portas… Não há problema nenhum… - Vasco aproximou-se dela e abraçou-a numa tentativa de a consolar. Mas a reacção de Vanda foi imediata e agressiva. Ela começou a gritar e a distribuir socos e pontapés sem um destino concreto, e Vasco pasmou perante aquele cenário. Afastou-se e quando achou que estava suficientemente afastado levantou os braços e falou-lhe de forma suave.
- Pronto! Já me afastei… Está tudo bem! - Vasco começou a ver o corpo de Vanda descontrair. Os punhos fechados abriram-se lentamente, os olhos latejantes fixaram os de Vasco. A boca estreita relaxou e Vanda deixou-se cair no sofá. Sem emitir uma única palavra. Tinha perdido o controlo. Aquele dia estava a começar mal. Estava tudo fora do lugar. Ela planeara estreitamente aquele dia, mas as suas previsões não se estavam a cumprir. Ela só precisava de um momento para se recompor e voltar a planear o seu dia a partir daquele momento.
- O que é que se passa? – Marco entrou pela porta dentro… sem bater, constatou Vanda suspirando. – Ouvi gritos!
- Gritos? – Vasco olhou para o irmão que trazia o cabelo solto, parecendo um ninho de palha. – O que ouviste foram gargalhadas histéricas. Eu e a Vanda estamos a dar-nos lindamente, não é assim?
- Sim! – Vanda não se sentia com forças para responder melhor do que uma monossílaba. Teria gritado assim tanto?
- Ah! Que susto! - Marco tentava prender o cabelo atrás da orelha mas sem sucesso. – Bem então vou-me embora.
    Vanda levantou-se do sofá e preparou-se para enfrentar as perguntas de Vasco. Adoptou o seu ar de professora, que perdeu assim que viu Vasco literalmente sentado no balcão da sua cozinha a comer bolachas, sujando tudo de farelos.
- Ai não! Assim já é demais! – Vanda voltou a estreitar o olhar, aproximou-se de Vasco e arrancou-lhe o pacote de bolachas das mãos. – Vai sentar-te no sofá! Já!
- Sim mãe! – Vasco gostava mais dela assim… Mal disposta, mas sem reacções estranhas. No entanto quando a viu a esfregar o balcão aflitivamente só porque ele tinha deixado umas migalhas, ficou alarmado.
- Onde é que eu posso tomar o pequeno-almoço?
- Aqui! – Vasco parecia confuso. – Não gostas dos cereais ou das bolachas? A minha mãe deixou-te aqui tanta coisa… Ora deixa cá ver! – Vasco mostrou intenção de começar a remexer nos armários.
- Nem penses nisso! Afasta-te já dos meus armários, ou eu amarro-te pelos cabelos fora da minha porta.
    Vasco levantou as mãos em sinal de rendição e voltou-se para ela devagar.
- Eu não tenho bases para os pratos, por isso não posso comer em casa!
- Hã? – Vasco emitiu aquela admiração levantando um sobrancelha confusa. Vanda não esperava que ele percebesse. Só queria que ele a orientasse naquela terra desconhecida. Saíram e Vanda deixou que a sua vista absorvesse aquela nova realidade. Vivia realmente no meio de um emaranhado de calçadas negras e escorregadias, que sozinha, já não conseguia descobrir o caminho que fizera no dia anterior. As casas alternavam-se em paredes de basalto negro e tristes e outras brancas e calmas como se houvesse uma eterna promessa naqueles cantos. Desceram as canadas num passo lento e Vasco aproveitou para entranhar-se nuns becos minúsculos onde, por vezes cumprimentava pessoas e noutras fazia festas na cabeça de uns porcos limitados pelo curral.
- Isto é tudo muito pitoresco!
- E calmo! Não mudava nada por aqui! Assim que te habituares a esta terra não vais querer sair daqui!
- És mesmo de cá? – Vanda admirava a paixão com que Vasco falava da sua terra, o respeito que lhe lia no olhar quando cumprimentava os mais idosos, o sorriso manhoso quando piscava o olho aos mais jovens. Ele pertencia ali. Encaixava-se ali, naquela simplicidade. Ela nunca se encaixou em lado nenhum. Sentia saudades da sua terra sem desejar voltar a pisá-la. As únicas pessoas que ela amara já não existiam, e o mundo parecia não ter um lugar em que ela se fundisse de forma perfeita.
- Sou! Nascido e criado.
- E nunca saíste daqui?
- Já! Sabes que quando eu era jovenzinho não havia escola secundária aqui no Corvo. Por isso quando tinha apenas treze anos, fui para o Faial estudar… Sozinho… Imaginas lá o que foram aqueles anos.
- Como assim? Os teus pais deixaram-te ir assim? Sozinho?
- Ou era isso, ou não continuava os estudos! Estive no Faial cinco anos, em que só vinha a casa nas férias do natal, da páscoa e no verão… Adorei essa altura. A minha mãe enchia-me de mimos assim que eu pousava as minhas patas aqui… agora para lhe arrancar um mimo é um ver se te avias.
    Pararam num café pequeno, mas movimentado que se evidenciava por umas mesas díspares de plástico vermelho no seu exterior, ocupadas por velhotes que sorriam e cumprimentavam como se ela passasse por ali todos os dias.
- Bom dia professora! – Um senhor de idade avançada, de pele curtida e com uma falta de dentes descarada, cumprimentou-a com a simplicidade e ternura dos ingénuos.
- Bom dia! Como está? – Vanda retribuiu o cumprimento sem esperar resposta, surpreendendo-a o facto do velhote começou a tagarelar.
- Vai ser professora do meu neto. É o Tiago! Ele é um traquina dos diabos… Pode dar-lhe umas palmadas no rabo quando for preciso.
- Eu estou certa que nos entenderemos muito bem, sem precisar de recorrer a umas palmadas…
- Ah, então a senhora vai ter problemas! – O velho sorria e piscava o olho aos companheiros. – Se não lhe arrear de vez em quando, vai ter problemas… Ele é esperto como um raio… Sai ao meu filho que era para ser doutor se tivesse mais tino na cabeça, mas só queria saber de rabos de saias, e agora tem cinco filhos. São todos espertos… Ou sim, não há nenhum que tenha saído burro, mas são uns malandros…
- Oh Ti Joaquim! O senhor depois conta as suas histórias, mas agora vamos comer qualquer coisa. – Vasco salvou Vanda daquele role de informação que nunca mais acabava com uma descontracção que impressionou-a.
- Ah! Pois já sabe! Vai lá com a moça, que ela há-de preferir um novo do que um velho como eu… - E depois de deixar escapar uma gargalhada animada gritou – Oh Zé! Dá-lhe de comer que sou eu que ofereço.
    Vanda avançou na direcção e começou a contestar educadamente, mas Vasco agarrou-lhe o braço e fê-la entrar no café.
- És tonta ou quê? – Ele sentou-se com as pernas exageradamente abertas e com uma postura desleixada. – Ias recusar um pequeno-almoço à pala… Mas de que planeta é que tu me saíste?
- Eu nem conheço o senhor!
- Mas ele conhece-te a ti e quer ter uma delicadeza com sua excelência. – Vasco ofereceu-lhe um dos seus sorrisos genuínos. – Tu és estranha!
    Aquela afirmação apanhou Vanda desprevenida.
- Se te estás a referir ao que aconteceu lá em casa…
- Tu tens qualquer coisa que te torna cinzenta…
- Oh! Muito obrigada pelo elogio! – Vanda mostrava-se agora um pouco ofendida.
- Não tens que quê! Mas eu descubro os teus segredos noutra altura, porque agora vamos devorar estas torradas.
    Vanda nem percebera como estava faminta. Comeram sem trocar uma palavra. Quando saíram do café, o tempo tinha mudado radicalmente. Vanda nem queria acreditar que estava no mesmo lugar. Até há uns minutos atrás, um sol desavergonhado evidenciava toda a sua claridade num calor húmido, mas agora o céu estava negro e carregado de promessas molhadas. As gotas eram grossas e caíam sem vergonha em cima dela, como se fossem donas daquele espaço. Vanda compadeceu-se de Vasco que vestia umas bermudas coloridas e uns chinelos, que depressa tirou dos pés facilitando a sua movimentação. As canadas eram agora escorregadias e Vanda agradeceu o facto de ter os ténis calçados. Quando chegaram a casa de Vanda, Vasco despediu-se à porta dizendo que tinha de ir trabalhar, causando uma certa estranheza, uma vez que ela nunca o havia interiorizado como uma pessoa com emprego. A própria mãe tratava-o por mandrião. O resto dia foi passado enroscada no sofá com a chuva a fustigar-lhe a janela. Ela teve tempo para pensar. Estava tão perto… Começaria as aulas daí a poucos dias e como apenas havia uma turma do 6º ano, o seu filho faria parte dela com toda a certeza. A não ser que tivesse chumbado algum ano, mas esta hipótese parecia-lhe pouco razoável. Ainda não tinha tido acesso às fichas dos alunos, mas assim que visse as datas de nascimento saberia qual era o dela. Mas primeiro queria dar-se a oportunidade de tentar reconhecê-lo sem recorrer a artimanhas. Ela tinha a esperança que o conseguir reconhecer no meio dos outro rostos infantis, apenas porque tinham um laço de sangue e carne a uni-los.
    Pouco antes de decidir dar por terminado aquele dia ensombrado por um céu negro, O telefone tocou, e Vanda hesitou em pegar no auscultador, mas quando decidiu fazê-lo, ela já sabia quem iria ouvir do outro lado.
-Sim!
- Olá Vanda!
- Olá Daniel!
    O silêncio confortável impôs-se por uns segundos.
- O teu primeiro dia correu bem?
- Começou mal, mas acabou bem!
- Então conta-me como foi…


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