segunda-feira, 23 de abril de 2012

Capitulo I - Nas Asas do Corvo


Nas Asas do Corvo

Capítulo I

    O céu estava limpo de nuvens e o pequeno DashQ200 mostrou-se mais confortável do que Vanda poderia ter imaginado, quando se deparou com aquela aeronave no aeroporto da Horta. Quando trocou o imponente Airbus A320 da TAP pelo minúsculo DashQ200, sentiu que estava num voou de ligação para uma terra perdida no meio de África, como se recordava de alguns filmes. Passou-lhe pela mente uma imagem de uma avioneta cheia de ferrugem transportando de forma duvidosa seres humanos e galinhas na mesma proporção. Mas quando se sentiu confortavelmente sentada dentro do pequeno avião com a cabeça encostada à janela oval e admirando uma pequena traineira que se aventurava vagarosamente no meio de um oceano imenso, Vanda sentiu que aquele transporte era simpaticamente confortável. Os seus olhos teimavam em fechar-se sob o peso da ansiedade que transportava uma antecipação de algo mais importante do que leccionar história a miúdos do sexto ano. Ela escondia no seu íntimo uma espera de onze anos, que a conduz àquela ilha, que segundo o que averiguou tem apenas quatrocentos e pouco habitantes. Não será difícil encontrar uma pessoa no meio daquela pequena população. O anúncio de aproximação à ilha é feito solenemente, e os seus olhos perscrutam o mar numa procura curiosa que entra em alerta quando se afigura perante si não mais do que um ilhéu. A imagem de uma ilha de piratas desconhecida e perdida de todos os antigos olhares atravessa-lhe a mente. E esta imagem não a desagrada. Um verde húmido e agreste ergue-se de um mar azul e calmo, deixando apenas um lanço de terra plano, parecendo a palma de uma mão aberta com longos dedos que forçam uma entrada escura num mar que contesta incessantemente e onde recebe um aglomerado de casas trepantes pela encosta que se eleva. A calma de um presépio fá-la sorrir. Mas este sorriso desvanece-se no contacto visual imediato com a pequena pista. Não é um aeroporto que a espera, mas um pequeno aeródromo. O avião desce e a sensação que deixa é que roçara o mar antes de chegar ao asfalto. Vanda cerra os olhos e reza. O contacto das rodas com solo firme faz despoletar uma plateia de aplausos e hurras que deslumbrou Vanda.
    O recolher das malas foi simples e fácil, como parecia ser tudo ali naquele pequeno pedaço de terra perdido do resto do mundo. Vanda pegou nas duas malas de viagem e arrastou-as para fora da porta do aeródromo, pousou-as de seguida e pela primeira vez sentiu-se perdida naquela pequenez. Os seus olhos avistaram toda a Vila do Corvo, mas não viram um único táxi. Sentiu que o peito lhe caía aos pés. Olhou em redor e as pessoas deslocavam-se a pé arrastando pequenas malas confortáveis. Arrependeu-se instantaneamente por não ter comprado malas com rodinhas. Viu apenas dois carros passarem e quase sentiu um impulso para pedir boleia. O tempo passava por ela irónico e sem solução à vista.
- Olá! Precisas de ajuda? – Vanda desviou o olhar para a voz masculina que se fazia ouvir no seu lado direito. Um homem na casa dos trinta, alto com um corpo que denunciava bastante trabalho para manter os músculos latejantes anunciaram-se com um sorriso perfeito.
- Queria um táxi! – A gargalhada que recebeu como resposta foi demonstradora da probabilidade de isso acontecer.
- Então precisas mesmo de ajuda! – O homem prendeu o cabelo longo e rebelde com um elástico que trazia no pulso e Vanda pode descobriu-lhe uns olhos pequenos e astutos de um caramelo brilhante. – Eu sou o Vasco! – E a mão estendida esperou uns segundos por uma resposta lenta.
- Eu sou a Vanda!
- Ah! Então vais ser a nova professora de história, certo? – Vanda levou um momento a processar aquela informação.
- Sim! Mas como é que sabe? Também é professor?
- Bem-vinda ao Corvo! – Vasco brindou-a com um sorriso maroto que a deixou deliciada com uns dentes brancos e alinhados. O aspecto do seu primeiro conhecimento era apelativo á vista. O cabelo era de um louro escuro, mas que se mostrava mais claro, fazendo adivinhar longas exposições ao sol. A pele morena pela maresia denunciava ser mais clara do que se mostrava naquele momento. Vasco pegou na mala mais pesada e começou a caminhar, incentivando Vanda a acompanhá-lo.
- Já marcaste quarto?
- Não! Estava a pensar ficar os primeiros dias num hotel enquanto procuro casa. – Esta constatação despertou nova gargalhada em Vasco.
- Ainda bem que apareci na tua vida! No meio deste mundo de gente foi mesmo uma sorte! – Vasco piscou-lhe um olho que denunciou a ironia. – Vou ligar a um amigo que tem um pequeno apartamento para alugar. Podes vê-lo e se gostares ficas logo lá. Pode ser?
    Vanda acenou a cabeça afirmativamente. Sentiu uma incredulidade quando reparou que Vasco tirava um telemóvel das bermudas longas e gastas. Parecia que a tecnologia não combinava com aquele pequeno paraíso. A sua admiração cresceu quando, depois de atravessar uma rua e percorrer uns poucos metros da Rua Matriz, chegou a um emaranhado de casas pitorescas separadas por estreitas canadas. Vanda sentiu uma vontade súbita de abrir os braços, e apenas percebeu que tinha sucumbido àquele gesto quando sentiu as paredes de pedras roçarem-lhe as pontas dos dedos.
- Pois… Abrindo os braços alcanças ambos os lados da rua! Todos os novatos fazem isso! – Vasco pousara as malas e sentara-se nos degraus de uma pequena casa.
- Já estás cansado?
- Claro que não! – Vasco sentiu-se magoado no seu ego macho. – Chegámos ao nosso destino. - Os olhos negros de Vanda pousaram na casa escura de basalto com umas persianas de madeira pintadas de verde e uns vasos vazios no peitoril. Sentiu uma vontade imensa de plantar narcisos naqueles vasos e a curiosidade para conhecer o resto da casa correu-lhe nas veias fervilhando-lhe a decisão tomada antes mesmo de conhecer o resto.
- É perfeita!
- Achas mesmo? – Vasco ficou admirado com aquele comentário. Via em Vanda uma mulher mais exigente e levou-a exactamente até àquela casa para um momento de diversão. Ela exalava um perfume caro e sedoso e não vacilava em cima daqueles saltos altos, mesmo quando a levou por entre o emaranhado de canadas de calçadas escuras e húmidas. Esperava vê-la ruborizar e gaguejar tentando inventar a desculpa perfeita para se livrar daquela casa pequena. Pretendia um momento de brincadeira, que aquela mulher alta e esguia que vestia um vestido cinzento e pouco confortável lhe negava. Admirou-a mais do que quis e imaginou-a com o cabelo solto sobre os ombros e uns movimentos menos rígidos.
- Olá Vasco! Já estás há muito tempo à espera? – Marco endireitou a sua postura descaída assim que olhou para aquela mulher distinta que acompanhava o irmão. – Ah! Olá! Eu sou o irmão do Vasco.
- Muito prazer, irmão do Vasco! – Vando sorriu-lhe apreciando aqueles irmãos gloriosos. Ambos tinham um cabelo abundante que tentavam domar com um elástico largo e pouco exigente. Mas ao contrário de Vasco, este novo irmão tinha o cabelo castanho-escuro, e também queimado pelo sol. A pele tornava-se demasiado morena o que lhe conferia um sorriso celestial. Era pouco entroncado e mais alto do que Vasco, o que lhe dava um ar desengonçado tornando-o engraçado.
- O nome dele é Marco! – Vasco apressou aquele aperto de mão. – Vamos entrar? – Mais uma admiração. Entraram sem usar chave. A porta estava simplesmente aberta.
    A casa encontrava-se toda arranjada por dentro, o que a tornava mais apetecível. Entraram directamente para uma divisão que servia de sala e cozinha, pequena e bem decorada. Para além dessa divisão existia apenas um pequeno quarto e uma casa de banho. Era perfeito para ela. Fácil de limpar e de manter tudo em ordem, foi o principal pensamento que lhe ocorreu. No quarto havia uma portada que deixava o sol entrar descaradamente e que dava acesso a um pequeno logrador que tinha uma linha a atravessá-lo.
- Aqui a roupa seca que é um instante! – Vasco mostrava-se entusiasmado. – E podes sempre fazer uns churrascos para o pessoal! – Vasco piscou o olho ao irmão.
- Eu fico aqui! – Vanda não queria mostrar-se demasiado entusiasta, mas a verdade é que se sentia eufórica. Ia ter um cantinho só seu. Pela primeira vez nos seus vinte e nove anos, teria o seu espaço.
    Depois de acertarem o valor da renda e o dia de pagamento, Vanda tentou apressar as despedidas, tarefa que se mostrava impossível com Vasco estatelado no pequeno sofá apreciando os anúncios que passavam na televisão.
- Tens a luz e a água deste mês pagas. – Vasco colocou a mão atrás da cabeça de forma a levantá-la um pouco e encarar melhor Vanda. – E tens telefone fixo.
- Obrigada Vasco! Agora vou desfazer as malas… - E o entendimento de que ele se devia ir embora parecia difícil de chegar àquele homem de aspecto desmazelado que deixava cair os chinelos de plástico no chão. Vanda sentiu que o seu coração acelerava e as faces incendiaram-se. Tentando controlar a fúria que nascia no seu íntimo, Vanda pegou nos chinelos com a ponta do dedos e encaixou-os milimetricamente no canto da entrada. Quando sentiu que assim estava melhor, a porta de entrada abriu-se sem uma única batida de aviso e Marco entrou acompanhado por duas senhoras que falavam alto e ao mesmo tempo.
- Olá querida! Seja bem-vinda ao nosso cantinho! – A primeira mulher de cabelo branco e curto e generosa nas carnes que lhe rodavam as ancas, pousou um saco em cima do mesão de granito que dividia a cozinha da sala. – Eu sou a Emília, a mãe desses dois mandriões! – Depois de dois beijos rápidos, a senhora começou a tirar fruta do saco, espalhando-a na fruteira que se encontrava em cima do micro-ondas.
- E eu sou a Irene! A tia solteira desses mandriões! – O sorriso daquela mulher de cabelo artificialmente louro que deixava á mostra uma raiz escura, enterneceu Vanda por apenas uns escassos segundos. – Tens aqui carne assada para o teu jantar. Basta aqueceres um pouco no forno e fica como acabada de fazer.
- Ninguém faz carne assada melhor do que a tia Irene! – Vasco levantou-se finalmente do sofá e contornou a tia depositando-lhe um beijo na cova do pescoço, enquanto roubava uma pequena batata assada directamente do tabuleiro… e sem lavar as mãos, pensava Vanda. Já não poderia comer aquela comida. As mãos ágeis guardaram pacotes de leite, iogurtes queijo e manteiga dentro do frigorífico. O armário que estava livre de louças e tachos foi atafulhado de bolachas e cereais e a promessa de que no dia seguinte lhe trariam carne de vaca ficou gravada na mente de Vanda.
- Vais adorar a vida aqui! – Emília falava, enquanto fazia a cama de Vanda com roupa que cheirava a alfazema. – É tudo muito calmo! – Vanda revirou os olhos. Ainda não tinha tido um momento de calma desde que chegara àquela ilha. Aquelas duas senhoras, bem como os seus herdeiros ocupavam-lhe a mente e o espaço como se fossem um batalhão. Vasco abriu um pacote de bolachas e comia-as encostado ao balcão, sujando o chão de migalhas. Vanda teve de fechar os olhos para não ralhar e congratulou-se quando a tia Irene lhe deu uma palmada na mão tirando-lhe o pacote e varrendo de seguida a porcaria. Quando finalmente as mulheres olharam em redor e sorriram satisfeitas com o resultado começaram as despedidas e saíram da mesma forma atabalhoada que tinham entrado. Marco acompanhou-as queixando-se de que se esquecera de avisar a esposa do seu atraso.
- Bem! Agora que já estás orientada, vou andando… - Vasco estava a calçar os chinelos junto da porta de entrada.
- Espero que o Marco não tenha problemas com a mulher. – Vanda tentava apressar a despedida, abrindo-lhe a porta.
- Não te preocupes. Já todos sabem que nós estávamos aqui contigo!
- Mas… Como? – Tinha chegado apenas há um par de horas. Era impossível que toda a ilha soubesse da sua chegada.
- Bem-vinda ao Corvo! Aqui a tua vida é quase um livro aberto! – Vasco sorriu-lhe e beijou-lhe a face numa descontracção que incomodou Vanda. – Amanhã venho buscar-te por volta das dez… e veste qualquer coisa mais prática.
    Vasco fechou-lhe a porta antes que ela pudesse contestar. Não queria companhia para o dia seguinte. Queria apenas acordar como sempre por volta das oito horas da manhã, fazer a sua corrida matinal de trinta minutos, tomar um pequeno-almoço consistente e preparar a sua primeira aula que seria daí a uma semana.
    Vanda entrou na casa de banho para o merecido duche e sorriu quando verificou que as duas mulheres lhe tinham deixado embalagens de shampoo e gel de duche intactos. A água quente escoria-lhe pela pele massajando-a e descontraindo-a finalmente. Fechou os olhos e deixou que o perfume do shampoo de morango lhe percorresse o corpo e os sentidos. Estava quase relaxada. Os ombros começavam a descontrair e a mente a abstrair-se das preocupações corriqueiras, quando um toque irritante a arrancou deste relaxamento. O toque repetiu-se novamente até que Vanda voltou à realidade. Embrulhou-se numa toalha impecavelmente branca e procurou a fonte daquele som. Era o telefone. E esta constatação era estranha, uma vez que ainda não tinha tido tempo para dar o número a ninguém. Nem ela própria sabia o número do seu novo telefone. Levantou o auscultador.
- Sim! – Vanda ouvia uma respiração do outro lado. – Quem fala? – A pessoa teimava em não responder, e ela desligou o telefone. Deve ser engano, decidiu. Mas o toque voltou a surgir no silêncio, e Vanda levantou o auscultador de imediato como se fosse perder o seu interlocutor.
- Estou! – A pessoa do outro lado continuava muda. – Eu sei que estás aí… Eu ouço a respiração… Se não responder eu chamo a polícia… e…e… vão descobrir o número de telefone de onde me está a ligar… e vão… vão prendê-lo numa jaula bem pequenina… e vais atrofiar lá… e vais ficar cada vez mais pequeno e mais pequeno…e… e vais apodrecer lá, percebes? – Vanda sentia que o pânico começava a controlar a sua voz que se esganiçava num nervosismo miudinho.
- Olá – A voz que respondeu do outro lado era suave e masculina, e surpreendeu Vanda que demorou um momento a retribuir o cumprimento.
- Olá! Quem fala?
- Daniel! – Vanda vasculhou na sua memória um Daniel, mas sem resultado.
- Qual Daniel?
- Preciso que me ouça por um instante sem desligar o telefone, por favor!
    Vanda sentiu que a curiosidade era maior do que o bom senso que a mandava desligar.
- Diga.
- O meu nome é Daniel e sinto-me sozinho. Moro em Oeiras e estou rodeado por muita gente, mas continuo a sentir-me sozinho. Hoje preciso de ouvir uma voz que não tenha segundas intenções ou interesses escondidos. Ainda ontem descobri que fui enganado pela pessoa com quem pensava passar o resto da minha vida. Pelo meu dia passam tantas pessoas, tantos sorrisos, tantas atenções e eu continuo a sentir-me sozinho. E hoje quando estava a pensar na minha solidão no meio de tanta gente resolvi pegar na lista telefónica e ligar para um lugar bem distante que falasse a mesma língua que eu… Queria ouvir uma voz que apenas conversasse comigo… Já te sentiste assim?
    Vanda sentia-se assim todos os dias. Não podia ser honesta com ninguém e afastava todos os seres humanos que insistissem em frequentar a sua vida por mais do que quinze dias. Não gostava das relações humanas. Tinha um medo excruciante de se expor para os outros, porque os abusos nasciam dos excessos de confiança.
- Sim! Sinto-me assim todos os dias… - Vanda respondeu em voz alta sem que percebesse. O momento de silêncio que se seguiu foi longo, mas nenhum dos dois desligou o telefone.
- Peguei simplesmente na lista telefónica e procurei o lugar mais improvável para encontrar alguém que pudesse conhecer…
- Hum! – Vanda não sabia o que dizer. Tinha os pensamentos dormentes.
- És daí do Corvo? Posso tratar-te por tu?
- Sim podes tratar-me por tu… E não, eu não sou do Corvo!
    Mais um momento de silêncio.
- És de onde?
- Sou de Ourém. – Vanda lembrou-se da sua terra com uma certa nostalgia, mas sem vontade de voltar, como se as suas dores estivessem todas lá guardadas.
- E já estás há muito tempo nessa ilha?
- Cheguei há umas horas…
- Hum! Isso é estranho…
- O que é que é estranho?
- Ando com este número de telefone rabiscado num pedaço de papel há duas semanas. Neste tempo levantei o auscultador todas as noites e marquei o número… Mas só hoje é que deixei o telefone tocar… É estranho, não achas?
    Vanda sentiu a mesma estranheza.
- É realmente estranho!
- Estás de férias? – Daniel sentiu um medo repentino que aquela voz se desvanecesse da sua vida. Se ela estivesse apenas de passagem, não queria manter o contacto. Não queria correr o risco de estabelecer aquele contacto com alguém que em breve pisaria a mesma terra que ele.
- Não!
- Então mudaste-te para ai?
- Sim!
- Porquê?
- Sou professora de história e fiquei aqui colocada.
- Ah! Tens nome?
- Sim… Sou a Vanda!
    Daniel fechou os olhos e absorveu aquele nome.
- Vanda!...
- Tenho de ir! – Vanda começava a sentir frio nos pés nus pousados sobre os mosaicos, e a humidade da toalha embrulhada no corpo era desconfortável.
- Ah! Desculpa! – Daniel forçou-se a ser educado e contra a sua vontade despediu-se – Então adeus!
- Adeus!

Sem comentários:

Enviar um comentário