quinta-feira, 12 de abril de 2012

Capitulo XXV - Na base da Montanha . FIM

    CAPÍTULO XXV

    “Dia 7 de Julho de 1954

Querida Glória,

    A saudade pesa-me todos os dias no meu peito, mas diminui no mesmo ritmo dos dias que nos separam. Consegui arrendar uma casa na rua onde moramos. Não é muito grande, mas dá para começares uma nova vida aqui em Denver. Fiquei muito contente quando decidiste vir para cá com o João e o Armando. Por falar no menino, já começou a andar? A Jewel anda ansiosa para conhecer o primo.
Os pais adoram viver aqui, se bem que no princípio foi difícil. A mãe desconjurava tudo e excomungava todas as raparigas que namoravam libertinamente na rua. E quando viram uma televisão pela primeira vez… Foi de rir… A mãe assustou-se, e gritava que se tratava de um rádio com imagens enquanto o pai virava a televisão ao contrário na esperança de perceber como é que aquilo era possível. Temos vários electrodomésticos que depois de criticar, a dona Luzia abençoou… Mas quem está mesmo a gostar desta vida é a nossa Maria. Devias vê-la agora. Está transformada numa mulherzinha muito linda e anda sempre nas últimas modas. Ela já acabou o curso de costura e diz que vai trabalhar numa fábrica de roupa que fica aqui em Denver até ter dinheiro suficiente para ir para Hollywood. A rapariga sonha poder fazer as roupas do Elvis Presley, que é um cantor de rock n’ roll. Vou contar-te uma das histórias dela para que te rias. Na base militar onde o George está havia um rapaz que se embeiçou por ela. Pois ela fez gato-sapato dele. Se chovia fazia o pobre rapaz estar com um guarda-chuva fora da escola à espera dela. Se fazia sol ralhava-lhe sempre que ele não lhe oferecia um sorvete. Um dia perto do fim de ano estava tudo coberto de neve, e o rapaz veio bater à nossa porta. A Maria abriu-lhe a porta e quando o viu com um trenó na mão ralhou-lhe, porque ele devia estar mal da cabeça se pensava que ela ia embrulhar-se num casaco grosso e sair assim à rua parecendo uma salsicha. Ora o rapaz que fez um longo caminho na neve para tentar passar um bom momento com ela saiu de cabeça baixa. Passado um bom bocado, a Maria sentou-se à janela a fazer a bainha de umas calças dela, quando vê o rapaz na rua numa troca de brincadeiras e gargalhadas com uma outra moça. A Maria não tem meias medidas e sai porta fora embrulhada num robe com uns sapatos de salto alto que se enterravam na neve atrapalhando-lhe cada passada, mas mantendo a cabeça erguida enquanto caminhava de uma forma desastrosa. Arrancou a outra rapariga do trenó e ordenou para o rapaz com aquele ar superior dela “empurra”. O rapaz atrapalhado empurrou o trenó enquanto ela reprimia o entusiasmo que aquela acção simples lhe proporcionava. Passadas duas semanas apaixonou-se perdidamente por um outro militar mais velho que sempre que a vê lhe faz uma festa no topo da cabeça reduzindo-a à sua idade e fazendo-a ferver de indignação.
Eu estou tranquila nesta minha vida. Gosto muito de viver aqui, mas sinto muito a falta do nosso Pico. O cheiro da terra húmida ao acordar, do pão cozido no forno de lenha. Tenho saudades da simplicidade das nossas gentes e mesmo da proximidade das pessoas. Hoje olhando para trás não guardo mágoa de ninguém. Afinal de contas trata-se de um povo solitário que se fecha na redoma de uma mentalidade oprimida e que afasta qualquer perigo de fenda nessa mesma redoma. Aqui as mentalidades são mais abertas, mas com o perigo que isso acarreta em si. As mentalidades demasiado abertas desprendem-se da solidariedade e do altruísmo com uma facilidade angustiante. Na nossa ilha se alguém fica doente, as pessoas ajudam sem esperas de grandes retornos, porque fecham-se numa mentalidade comum, numa família comum, numa sociedade comum que protegem sem esforço ou obrigação. Protegem simplesmente porque sim… Protegem tanto que quando a ajuda necessitada por um dos membros foge do entendimento comum excomungam esse membro. E o mais interessante é que esta não é a atitude errada. É uma forma de ajuda, porque libertar aquilo que nós não entendemos é um acto de sabedoria. Viraram-me as costas quando não me compreendiam e eis que me deram oportunidade de encontrar o meu caminho. Mas quando a ajuda está ao seu alcance, aquele povo é incansável como nenhum outro.
Fiquei muito triste quando me relataste na tua última carta o estado do Francisco. Um casamento como o que ele fez com essa moça de Lisboa, requintada e lustrada, mas sem afecto só podia resultar nesse cenário que me contaste. Mas doí-me muito imaginar o Francisco numa vida de traições e leviandades. Que Deus me perdoe, mas ainda bem que não têm filhos.
Eu, o George e a Jewel estamos bem, com a graça de Deus.
A minha felicidade só estará completa quando a nossa família estiver novamente reunida, que será daqui a nada. Cá estaremos todos como de costume com os braços abertos para te receber numa nova vida.
Até breve irmã da minha alma.
Com Amor,
Ana Ferreira Smith”



Fim

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