Capitulo III
O espelho reflectia uma imagem impecável
repleta de respeito e rigidez. A primeira impressão que se causa numa sala de
aulas é o reflexo do restante ano lectivo. E só deus sabe como é difícil impor
respeito nos miúdos de hoje. O vestido escuro com um corte direito, o cabelo
estreitamente apanhado e uns sapatos confortáveis que a permitissem ter um
passo seguro eram os seus melhores alibis para a personificação de uma
professora que impões respeito dentro da sua sala de aula. As crianças reagem à
imagem que os adultos passam. Se um professor comete o erro de se apresentar
pela primeira vez com um ar desmazelado, os alunos, instintivamente, sentem-se
demasiado à vontade para colocarem as suas diabruras em prática. Mas se a
primeira imagem for intimidatória, os alunos reprimem os seus instintos
primários, sem sequer sentirem que estão a ser persuadidos nesse sentido. Com o
tempo, Vanda poderá aparecer com um ar desmazelado na aula que o respeito
continuará lá. No máximo conseguirá uns olhares admirados dos seus alunos. Mas
hoje é o dia que os vai conhecer. Terá o horário completo, uma vez que dará
aulas ao quinto, sexto e oitavo anos. Mas é o sexto ano que lhe interessa. É
naquela turma de meninos de onze anos que reside a sua verdadeira motivação
para se ter deslocado até àquela ilha.
A escola tinha sido uma surpresa para
Vanda. Os alunos chegavam sozinhos sem a supervisão dos encarregados de
educação. Dividiam-se entre o passeio de acesso e a beira da estrada que devia
ser reservada aos carros. A escola não destoava da visão de presépio que era
toda a vila. Os traços do estado novo eram visíveis nas suas linhas suavizadas
por obras recentes. As salas de aulas eram agradavelmente pequenas e
proporcionavam uma sensação de proximidade entre aluno e docente. A campainha
aguda avisou a hora de entrada pontual e sem grandes atribulações. Vanda sentiu
um aperto no peito. Chegara a hora de saber quem era o seu filho. Vanda
encontrava-se de pé, com a anca levemente encostada á secretária. A turma do
sexto ano era constituída apenas por três rapazes e duas raparigas. Os alunos
entraram aos pares cochichando e soltando risadinhas envergonhadas. Eram os
rapazes que lhe interessavam. Depois de estarem todos sentados, Vanda
apresentou-se.
-
Eu sou a professora Vanda Rodrigues, e vou ensinar-vos história!- Vanda
apresentou-se sem sorrir ou lançar qualquer olhar cúmplice à sua plateia, evitando
que os alunos se sentissem incentivados a certas liberdades. Ela passa os olhos
por cada um dos três rapazes e sente-se frustrada porque não consegue
identificar o filho. Deveria haver um chamamento de sangue. Um palpitar de
coração mais forte. Qualquer coisa que identificasse os laços que a unem a um
daqueles rapazes. Mas não sente absolutamente nada para além de frustração.
Terá de identificar o seu filho pela data de nascimento que está na ficha de
aluno. – Agora quero que cada um se apresente. Comecemos por esta menina.
-
Olá! Eu sou a Francisca e tenho onze anos. – Francisca era uma menina alta para
a idade de cabelos castanhos que lhe caíam sobre os ombros numas pontas mal
cortadas. Os seus olhos pequenos e astutos transmitiam um certo gozo. – E esta
é a minha irmã gémea Madalena. – A irmã gémea era o reflexo de Francisca.
Notava-se que a mãe tivera o cuidado de as distinguir pela cor da roupa.
-
Muito prazer em conhecer-vos meninas!
O olhar de Vanda desviou-se para um menino
de aspecto frágil, pequeno demais para a idade e com uma palidez doentia,
atenuada pelo seu sorriso fácil.
-
Eu sou o Matias e também tenho onze anos! – O rapaz sorriu à professora,
recebendo em troca um acenar frio que lhe desmanchou o sorriso.
-
Eu sou o Joel e sou o mais velho da turma! – O rapaz, de corpo robusto com o
cabelo demasiado grande que lhe tapava o olhar propositadamente, encheu-se de
orgulho. – Sou o primeiro a fazer doze anos. Faço logo em Janeiro.
Vanda não lhe deu demasiada importância,
murchando-lhe o peito.
-
E tu? – O último rapaz era magro e tinha um aspecto selvagem, com um olhar
perdido noutro assunto qualquer fora da sala de aulas.
-
Eu sou o Tiago! Sou primo do Matias! E fica já avisada que se for uma bruxa
para o meu primo eu torço-lhe o gorgomilo…
Agora Vanda não conseguiu evitar um sorriso
mal disfarçado.
-
Estou a ver que tens um defensor Matias! – E virando-se para o primo protector.
– Não tens com que te preocupar, porque tenho a certeza de que nos vamos dar
todos muito bem!
Como habitualmente na primeira aula, Vanda
conversou sobre a matéria que iriam dar nesse primeiro período e marcou logo a
data dos testes, recebendo gemidos de insatisfação da sua plateia.
Quando Vanda conseguiu finalmente um
momento sozinha na sala de professores, afastou os papéis que deveria organizar
com as actividades extra curriculares que lhe caberiam e pegou na ficha dos
alunos da única turma do sexto ano. O coração acelerou-se e a ansiedade reflectiu-se
na humidade das palmas das suas mãos. As fichas da Francisca e da Madalena
foram logo colocadas de parte. Para além de serem gémeas, Vanda tinha a certeza
de que tinha dado à luz um rapaz. A primeira ficha a ser aberta mostrou-lhe o
nome de Joel. Os seus olhos procuraram a data de nascimento. Doze de Janeiro.
Era impossível. As mãos trémulas procuraram a ficha seguinte e os olhos turvos
leram o nome Tiago que nascera no dia dezoito de Julho. Também não era o Tiago.
Os seus pulmões sustiveram a respiração e o coração parou uma fracção de
segundo quando os olhos transportaram a informação que ligava o nome do pequeno
Matias à data de vinte e sete de Agosto do ano dois mil. Era aquele o seu
filho. A emoção turvou-lhe a visão e o ar chegava-lhe aos pulmões em golfadas
aflitas. Matias… O pequeno Matias. Tinha-o transportado dentro de si durante
nove meses. Quiseram privá-la daquele filho, mas agora ele estava ali, num
mesmo espaço de terra limitado pelo mar. Ele não ia a lugar nenhum. Nunca mais
deixaria que o afastassem de si.
O primeiro dia de aulas chegou ao fim e
Vanda vigiava Matias de longe. Ele esperou à porta da escola por dois rapazes
mais velhos e caminharam ao longo da rua entre risadas e brincadeiras. Um deles
levava uma fisga improvisava com um elástico da caixa de costura da mãe e um ramo
bifurcado. Apanhou uma pedra do chão e fez mira para as pernas de Matias,
resultando num guincho mais de surpresa do que de dor. Vanda sentiu uma
indignação que lhe subiu pelo tronco acima ruborizando-lhe as faces.
-
Ei! Tu aí! – Os rapazes voltaram-se todos com um arregalar de olhos quando se
depararam com a professora nova deslocando-se para eles com um passo apressado
e um semblante carregado. – Dá-me essa porcaria, estás a ouvir! – Os três pares
de olhos pousavam agora na palma da mão de Vanda que se encontrava estendida
naquela direcção. – Vamos! Dá-me lá isso!
-
Isso o quê? – Matias tentava fazer um esforço para perceber ao que é que ela se
referia.
-
Está aí quieto Matias! Não te metas! E não te preocupes, porque eu protejo-te.
– Vanda dedica-lhe agora um olhar doce e meigo, que provocou um arrepio no
rapaz. Como o miúdo mais velho não se decidia, Vanda arrancou-lhe a fisga das
mãos.
-
Hei!...
-
Caluda! E que eu nunca mais te veja a magoar este menino… Estamos entendidos! –
Os rapazes, vendo um olhar brilhante e quase louco, não se atreveram a
contradizer aquela mulher. – Muito bem. Eu levo-te a casa Matias!
-
Mas… - O rapazito sentia-se confuso com aquela situação. – Eu vou sempre com os
meus irmãos.
-
Oh! Não sejas ridículo… - Vanda sobressaltou-se. Quase lhe escapara a afirmação
de que ele não tinha irmãos, mas conteve-se a tempo. Levou apenas uns segundos
a perceber que Matias se referia aos outros dois rapazes e tentando não
estragar a sua imagem, endireitou-se e adoptou novamente o seu ar de
professora. – E que isto não se repita…
-
Sim senhora! – Responderam os três em uníssono, sem perceberem bem ao que ela
se referia.
Vanda rodou sobre os calcanhares e seguiu o
caminho de volta para casa com o ritmo cardíaco a atraiçoar-lhe o ar empertigado.
Matias. Nunca tinha pensado no seu filho com um nome, e Matias era um nome que
lhe agradava. Ficava-lhe no ouvido. Sim, o seu filho pode chamar-se Matias…
Quando Vanda entrou em casa sorriu ao
encontrar tudo no seu devido lugar e fechou os olhos por um instante apreciando
o silêncio. Tirou os sapatos cuidadosamente substituindo-os pelas pantufas.
Abriu o frigorífico e tirou o salmão já temperado com sal e limão. Ela adorava
as segundas-feiras, uma vez que salmão era o seu prato preferido. Preparava-o
sempre da mesma forma. Temperava-o de manhã e perto da hora do jantar,
embrulhava a posta de salmão em papel de alumínio regado com azeite extra
virgem e levava ao forno. Como ainda era cedo para preparar o jantar, Vanda
resolveu apanhar a roupa que tinha no logradouro. Encostou o nariz à roupa alva
e seca e sorriu satisfeita com o cheiro próprio do novo detergente de Aloé
Vera. O seu pensamento fugiu novamente para junto de Matias. Ainda era cedo
para revelar a verdade ao rapaz. Primeiro queria conquistar a simpatia e
confiança dele. Queria que ele gostasse dela naturalmente ao ponto de a desejar
como mãe. Então aí seria a altura certa para lhe abrir os braços e chamá-lo de
filho. Ela achava que já tinha começado bem. Hoje quando o defendera, deve ter-lhe
ficado na memória como uma heroína…
-
Vanda! Estás aí? – Vasco estava na sala a gritar por ela. Esta mania de
entrarem na casa dela sem baterem à porta vai ter de acabar.
-
O que é que queres? – Vanda espreitou pela porta do quarto que dava acesso á
sala.
-
Olá para ti também! – Vasco sorriu-lhe, aquele sorriso malandro e Vanda teve de
reconhecer que pela primeira vez em muitos anos tinha-se afeiçoado àquela
espécie de amizade.
-
Tenho de tirar hoje um tempinho para ti! – Esta afirmação surpreendeu Vasco que
abriu os olhos numa admiração clara.
-
Vais tirar um tempinho para mim… Por iniciativa tua? Sem que eu me imponha ou
me faça de convidado…
.
Sim! – Vanda não resistiu a devolver-lhe o sorriso malandro e bateu as
pestanas. – Vou ensinar-te a bater às portas antes de entrar…
-
Oh! Eu logo vi que era sorte a mais… - Vasco encostou-se ao balcão e cruzou os
braços simulando que ficara amuado. – Então, gostaste do primeiro dia de aulas?
-
Sim! Fala-me do Matias!
-
Qual Matias?
-
Um menino que é meu aluno do sexto ano… Deves saber quem é de certeza… Nesta
ilha o impossível é não se saber quem é quem. – Depois de rirem os dois, Vasco
permitiu-se estranhar a pergunta, mas fez-lhe a vontade.
-
Não há muito para dizer. É um rapaz normal. Sempre teve uma saúde um pouco
frágil…
-
Como assim? – Vanda assaltou-lhe o discurso com aquela pergunta aflita,
aguçando ainda mais a curiosidade de Vasco.
-
Nada de especial. As viroses dão-se sempre muito bem com ele. É do tipo que tem
gripe todos os invernos… Se há um andaço de vómitos e diarreia, lá o garoto
fica em casa… não há nada que ele não apanhe…
-
Se calhar é mal cuidado pelos pais, coitadinho! Devia estar com alguém que
tratasse bem dele, que o agasalhasse, e lhe desse comida decente…
-
Nada disso! Ele é filho do meu irmão Marco. Ele e a Vera são muito cuidadosos.
-
O Matias é teu sobrinho? – Depois da surpresa, Vanda lembrou-se de que estava
numa ilha com quatrocentos e qualquer coisa habitantes… Era mais do que normal,
o Vasco ser parente do Matias… No entanto esta constatação provocou-lhe um
mal-estar interior que analisaria mais tarde.
-
Vejo que o miúdo te causou uma forte impressão… É de família! Uma mulher bonita
depois de conhecer um de nós não quer outra fruta! – O riso de Vasco foi
interrompido pelo mau humor repentino de Vanda. Mas que mulher estranha.
-
Pára lá com as gracinhas, que eu não estou para aí virada! O que é que vieste
cá fazer?
-
Dar-te um beijo! – E adivinhando uma resposta torta e rezingona, Vasco beijou-lhe
à pressa a bochecha e fugiu, rindo como uma criança orgulhosa de uma qualquer
diabrura.
Vanda respirou de alívio. Gostava da
companhia dele, da forma descontraída com que ele se movia, do sorriso fácil,
do facto de ele não exigir nada em troca, mas agora sentia-se pressionada pelo
facto de Matias ser seu sobrinho. Não sabia que tipo de pressão é que sentia no
peito, mas assemelhava-se a uma angústia de vir a desiludi-lo. Sempre se
sentira sozinha ao longo da sua vida, sem ninguém que lhe controlasse os actos
ou lhe desse um aconchego. Mas agora sentia um certo conforto por saber que
alguém se dava ao trabalho de a procurar só para ver se ela estava bem. Afinal
fora isso que Vasco fizera. O salmão libertava um cheiro apetitoso ao qual
Vanda não se poupou. Podia ter convidado Vasco para jantar. Gostava de vê-lo a
ficar satisfeito com uma posta de salmão e uns brócolos cozidos. Sorriu face à
careta de Vasco que lhe trespassou a mente… O telefone tocou.
-
Estou!
-
Olá Vanda!
-
Olá Daniel!
O silêncio que se repetia ao cumprimento
era já um ritual ao qual nenhum dos dois se poupava. E como de hábito foi
Daniel a interromper.
-
Como foi o teu dia?
-
Foi bom! Comecei hoje aquilo que vim fazer a esta ilha.
-
Ah! Pois é… Foi o teu primeiro dia de aulas.
-
Também!
-
Foste fazer mais alguma coisa a essa ilha para além de dar aulas?
-
Sim! – Vanda sentia o coração a palpitar numa antecipação de ter um confidente.
Pela primeira vez na vida precisava de desabafar. Pesquisara o paradeiro do
filho sempre sozinha e em silêncio, planeara cada passo seu antecipadamente de
modo a chegar àquela ilha sem levantar suspeitas… Mas agora que ia agir, sentia
uma necessidade quase física de aprovação de alguém.
-
E queres contar-me a verdadeira razão que te levou para o Corvo?
-
O meu filho!
O silêncio voltou. Prolongado e vazio.
Desta vez era um silêncio incómodo.
-
Tens um filho?
-
Sim! Ele tem onze anos, e chama-se Matias!
O silêncio voltou.
-
E ele está a gostar do Corvo?
-
Eu acho que sim…
-
Como assim?
-
Ele sempre viveu cá… Nem sei se ele conhece outra terra. – Agora que pensava
nisso sentiu um vazio de informação acerca do seu próprio filho.
-
Mas tu disseste-me que tinhas acabado de chegar ao Corvo!
-
Daniel!
-
Sim…
-
Não te vou contar já a minha história! Conta-me tu um pouco da tua…
-
Está bem! Eu sou o Daniel, tenho trinta e cinco anos e sou solteiro… - Daniel
parou a conversa á espera de uma reacção.
-
E…
-
Mexeriqueira!
-
Pensei que era assim que as pessoas se conheciam…
-
Tens razão Vanda! Sou cirurgião plástico… - Mais uma espera.
-
Interessante!
-
Só isso! Estava à espera de uma reacção mais entusiasta… quando eu digo isto a
uma mulher pergunta-me logo de que retoques é que precisa ou quantos pares de
mamas é que eu vejo por dia… - Agora riam ambos.
-
Eu não preciso de retoques… mas agora deixaste-me curiosa! Vês muitas mamas?
-
Ahahahaha! Muitas… e olha que isso nem sempre é agradável.
-
Imagino! – Vanda estendera-se no sofá relaxadamente e deixava-se envolver pela
conversa ocasional. – Coitadinho do Daniel que sofre tanto no trabalho…
O assunto do filho de Vanda não voltou a
ensombrar a conversa que se tornou animada e fluida, nascendo entre eles uma
cumplicidade que prometia servir de apoio a ambos.
Olá Maria Gaspar. É a primeira vez que escrevo aqui, mas já li as 2 primeiras histórias e gostaria de lhe dar os parabéns. Sou colega de trabalho do seu marido e foi ele que me falou no livro que já foi editado e neste blog. Devo dizer que gostei muito das 2 histórias anteriores, mas esta 3ª está a deixar-me ainda mais com a água na boca. Parece-me que sua a imaginação está a "aguçar-se" com o tempo e a ficar cada vez melhor. Espero que saibam dar-lhe o devido valor e que as suas histórias possam chegar ao maior número de pessoas possível, porque este país precisa de criativos assim. :)
ResponderEliminarBeijinhos
Liliana
Olá Liliana! Muito obrigada pelas palavras :)
EliminarAinda estou babada com alguns elogios, que de uma forma um pouco egoísta leio e releio :)
É engraçado a Liliana dizer-me isso sobre este terceiro romance, porque o número de visualizações diárias quadruplicaram neste romance. Tenho a sensação de que esta leitura está a cativar muito mais do que as anteriores :) Pode ser que esteja realmente a melhorar, ou que seja só uma boa fase :) De qualquer forma vou aproveitar :)
Fico muito contente sempre que sei de alguém que segue com gosto aquilo que vou escrevendo :)
Mais uma vez muito obrigada pelo incentivo :)
Bj grande