Capitulo IV
Aquela
primeira semana aproximava-se do fim com o mesmo ritmo
calmo que regia aquela ilha. Vanda saiu da sua última aula satisfeita por
constatar que Matias era um menino inteligente e perspicaz, apesar de preguiçoso.
Teria de trabalhar com ele métodos de estudo e incentivo, para que ele possa
ter resultados mais satisfatórios. Sentia-se rendida àquele menino de sorriso
fácil que que se acanhava sempre que ela lhe dirigia uma palavra mais directa.
Os olhar era meigo e enternecia Vanda sempre ele o dedicava. Aquele rapazito
frágil era dela. Era a certeza de que ela era capaz de criar alguma coisa de
boa, sem máculas. Matias era o que a ligava a um mundo de esperança em que ela
era dotada de uma capacidade humana apta a gerar vida e beleza sem intervenções
negativas ou maldades indispostas. Ela tinha agora uma ligação a um mundo
luminoso em que a esperança de se tornar uma pessoa melhor se alastra e engole
o negrume da sua alma.
A
chave penetrou a fechadura e com um pouco de esforço girou abrindo a porta,
provocando um sorriso íntimo de segurança no peito de Vanda. Gostava do seu
quotidiano naquela ilha. Os cumprimentos corriqueiros, as conversas banais, os
toques casuais, as relações simples, os gestos despreocupados… tudo isso
começava a preencher o seu dia de uma forma natural.
Vanda
percorria o balcão da cozinha organizando os vegetais para a salada, quando os
seus olhos se prenderam no rodar da maçaneta da porta. Ela esperou um segundo e
riu alto quando o bater seco na porta se seguiu à primeira tentativa. Vanda
dirigiu-se à porta num passo lento disfrutando aquele momento. Se Vasco não
aprendia a bater à porta a bem, então aprenderia a mal.
-
Olá Vasco! – Vanda abriu a porta e não conseguiu evitar um arregalar de olhos
admirado. Vasco trazia o cabelo solto e ainda húmido do banho que se
adivinhava. Pela primeira vez vestia umas calças de ganga justas que lhe
delineavam umas pernas musculadas e uma camisa branca que lhe percorria o
tronco descontraidamente. O desmazelado deu lugar a qualquer coisa que Vanda
sentiu mas não soube descrever. Tentando disfarçar o seu ar embasbacado,
continuou a conversa. – Estás a ver como não é difícil bater à porta?
-
Nunca disse que era difícil… É apenas desagradável! – Vasco entrou e
ofereceu-lhe o seu melhor sorriso. Sentia o constrangimento de Vanda e o seu
ego masculino ficou agradecido. – Veste qualquer coisa e vamos sair.
-
Como assim? Eu estou a preparar o jantar… - Vasco deu a volta ao balcão e fez
uma careta quando viu que o jantar dela seria uma salada.
-
Estou a ver… Vais comer alpista e agrião?
-
Oh! – Vanda vibrou de indignação. – Vou ter uma refeição saudável! Não quero
morrer aos quarenta anos vítima de um ataque cardíaco…
-
Pois… Mas por enquanto tens apenas trinta anos e vais comer uma refeição
saudável comigo. – Vasco aproximou-se dela e olhou-a com um olhar sedutor
tentando uma resposta positiva.
-
Eu não tenho trinta anos… - ofendeu-se.
-
Anda lá Vanda! É sexta-feira à noite… Não podes estar sempre fechada em casa…
Vamos jantar a casa de uns amigos e depois vamos à disco! – Quando Vanda
franziu as sobrancelhas numa interrogação perfeita, Vasco suspirou. – Sim! Nós
temos discotecas no ilhéu… Sabes…cabe muita coisa num raio de dezassete Quilómetros
quadrados…
O
riso comum libertou Vanda da sua rigidez típica e impulsionou Vasco na direcção
daquela mulher que lhe preenchia os sentidos e lhe despertava emoções
contraditórias. Ele queria muito penetrar naquela capa protectora que Vanda
criara. Queria compreendê-la e completar o quebra-cabeças que ela representava…
Ela era um desafio que ele começava a aceitar. A proximidade fez com que Vanda desvanecesse
o sorriso e num desconforto notório afastou-se desculpando-se com o facto de ir
mudar de roupa. Vanda olhou para o seu guarda-fato e desejou ter um vestido
mais arrojado. Pela primeira vez queria desfazer-se dos cortes direitos e
solenes. Queria correr o risco que parecer sexy… Ela fechou os olhos com força
e afastou aquele desejo… “Os abusos nascem do excesso de confiança”, repetiu
para si mesma… Contentou-se com uma saia de sarja beije e uma blusa verde lisa
e justa que lhe desenhava as formas. As sabrinas castanhas pareceram-lhe uma
boa opção quando pensou na calçada que a esperava.
-
Estou pronta! – A excitação da sua primeira saída desde há muitos anos, talvez
desde sempre morreu quando os seus olhos lhe lembraram a desarrumação da
cozinha. – Ora bolas!
-
O que foi? – Vasco sentiu um baque no peito quando a viu pela primeira vez com
o cabelo solto e rebelde, quase selvagem que lhe caía em cachos escuros pelos
ombros e lhe conferiam um ar agreste aos seus traços fortes. Os olhos pareciam
mais brilhantes e a forma como ela mordia o lábio de vez em quando fizeram-no
desejar algo mais. O pensamento foi bloqueado e afastado com muito custo.
-
Não posso deixar a cozinha assim!
Vasco
sabia que ela não deixaria mesmo a cozinha naquele estado, por isso arregaçou
as mangas e começou a arrumar os legumes dentro do frigorífico.
-
Vais ficar aí a olhar ou dás-me uma ajuda? – Vanda apreciou a forma caseira
como ele arregaçara as mangas e se deslocava sabedoramente na sua cozinha.
-
Claro!
Arrumaram
tudo num instante e quando Vanda pegou na esfregona, Vasco agarrou-lhe a mão.
-
Deixa isso para amanhã!
-
Não posso deixar o chão sujo!
-
O chão não está sujo! E amanhã podes fazer isso…
-
Mas…
-
Pode ficar para amanhã Vanda! – Vasco manteve-se irredutível. Queria que ela se
libertasse destas manias das limpezas.
Vanda
fez um esforço para se libertar mas sem sucesso. Vasco estava preparado para
manter a sua posição, mas quando lhe viu as lágrimas aflorarem os olhos, todas
as suas defesas se desmoronaram.
-
Eu não posso deixar isto assim… Se nos descuidamos uma vez, depois descuidamo-nos
outra e depois há sempre desculpas para nos descuidarmos e tornamo-nos uns
porcos sem salvação possível. – As palavras de Vanda eram demasiadamente
sentidas e pouco claras, mas Vasco percebeu que no intimo dela era importante
passar aquela esfregona pelo chão. – Não podemos facilitar em nada ou a nossa
vida sai do que é desejável e torna-se num inferno…
-
É só um dia…
-
Eu já deixei que a minha vida fosse um inferno… e não quero voltar para lá…
Percebes? – Agora Vanda chorava compulsivamente e Vasco atrapalhou-se nas ideias.
Tirou-lhe a esfregona das mãos, sentou-a no sofá e ele mesmo limpou o chão.
-
Bem, está tudo limpinho! Bora lá chica! – Vasco tinha esta capacidade de tornar
tudo muito mais fácil e Vanda sorriu-lhe grata.
O
jantar que Vanda interpretara como um encontro calmo entre amigos, era afinal
uma despedida de solteiro. O jovem casal optara por juntar os amigos comuns e
fazer uma jantarada com muita cerveja à mistura. Vanda entrou intimidade pela
animação e sentiu-se mais segura quando Vasco lhe pegou na mão e a conduziu por
entre os convidados.
-
Olá Sílvia! – Vasco cumprimentou aquela mulher com um abraço apertado que
incomodou Vanda. – Esta é a Vanda! E esta é o maior desperdício que esta terra
já conheceu… - Vanda cumprimentou Sílvia dirigindo um olhar confuso a Vasco. –
Vai casar-se… e não é comigo. Não é um desperdício?
-
Não digas disparates! Ela ainda está convencida de que está a fazer um bom
negócio! – Um homem de cabelo curto com uns olhos doces e um queixo saliente
surgiu por detrás de Vanda. – Olá Vanda! Eu sou o Tomás e sou o noivo…
O
beijo simples que uniu aquele casal transmitia uma solidez no tratamento que
fazia adivinhar cumplicidade. Sílvia rasgou um sorriso feliz quando o noivo a
envolveu num abraço firme. O seu cabelo curto e sedoso parecia mais brilhante e
olhar cúmplice que os dois trocaram fechava em si segredos sussurrados.
-
Tanto tempo a tentar enganar a melhor mulher que esta ilha já conheceu e agora
queres estragar-me o engate antes do casamento? – Tomás brincava, mas por uma
questão de segurança não largava a futura esposa. – Arranja uma para ti…
-
Estou a tentar! Mas não está fácil! – Vasco piscou um olho aos amigos e
afastou-se com Vanda pela mão. O jantar resumia-se a frango e salsichas feitas
num churrasco por debaixo de uma vinha e muita cerveja. Vanda olhava ao seu
redor e não se atrevia a iniciar a refeição. As pessoas pegavam em pratos de
papel e comiam com as mãos. Lambuzavam os dedos que pingavam gordura e depois
metiam os mesmos dedos dentro de taças cheias de batata frita. Vanda sentia-se
incendiada pelo cheiro apetitoso e a tentação da fome tornava-a cada vez mais
fraca nos seus intuitos. Vasco ofereceu-lhe uma cerveja que ela aceitou. Depois
de limpar a garrafa com um guardanapo, bebericou um pouco. A festa foi-se animando
pelas luzes improvisadas daquele logradouro, a música que ela não reconhecia,
mas que lhe começava a girar na cabeça as vozes soavam-lhe misturadas e o seu
corpo pedia uma libertação.
-
É melhor comeres qualquer coisa! A beberes dessa maneira com o estomago vazio,
é capaz de dar mau resultado. – Vasco esticou-lhe um prato com uma coxa de
frango e batata frita, que Vanda recebeu de bom grado.
-
Obrigada! Estava faminta! – Vasco sorriu quando a viu arrastar as palavras e
comer com a mão sem se queixar. A mente entorpecida pela cerveja fazia-a falar
com todos os presentes de uma forma agradável e engraçada. Depois de ter o estômago
reconfortado, Vanda juntou-se a uma grupo que jogava à sueca.
-
Eu sou perita a jogar à sueca! Só preciso de um parceiro à minha altura.
-
Então vamos jogar parceira! Quem se atreve a enfrentar-nos? – Tomás, o noivo
fez as delícias de Vanda ao juntar-se a ela no jogo.
-
Nós somos o par ideal! – Vasco surgiu de braço dado com Sílvia que também
sorria e ria sem razão aparente.
O
jogo foi distribuído e os quatro pares de olhos perscrutaram reacções que
denunciassem algum movimento antecipado.
-
Se não tiveres ouros corta, Tomás! Só falta sair a bisca! – Vanda jogava com
inteligência e militarismo nas ordens.
-
Pensei que a sueca fosse um jogo para mudos! – Sílvia tentava desencorajar os
opositores vencedores.
-
A Vanda é uma tagarela… É mais forte do que ela… Só Deus e eu sabemos o que eu
sofro! – Vasco arregalou os olhos quando sentiu a palmada seca no braço. –
Estão a ver do que eu falo?
Marco
apareceu com o mesmo ar sonolento de sempre e sentou-se na mesma mesa.
-
Olá pessoal! Desculpem lá o atraso, mas os filhos dão-nos cabo dos horários. –
Todos riram. – Vera! Estou aqui! – Marco acenou à mulher. Tratava-se de uma
mulher de estatura larga, com um corpo forte mas tonificado, o cabelo liso
exibia uns reflexos artificiais louros que lhe suavizavam as expressões
cansadas e evidenciavam um olhar verde e brando. Vera aproximou-se e sentou-se descontraidamente
no colo do marido apreciando o jogo.
A
conversa fluía e Vasco encantou-se com o efeito do álcool em Vanda. Ela
soltara-se da sua rigidez e ria alto sem razão aparente. Conquistou definitivamente
os outros dois casais que prometeram mais jantaradas daquelas.
O
caminho de volta para casa antecipou a prometida ida à discoteca, uma vez que
as horas se haviam passado sem serem notadas. Vanda transportava as sabrinas na
mão e dançava em rodopios trapalhões ao som de uma música muda. A porta de casa
recusava-se a abrir face à pressão que ela colocava na chave.
-
Estás a ver porque é que trancar as portas à chave atrapalha? – Vasco sentia-se
vingado naquela dificuldade motora de abrir a porta. Arrancou-lhe a chave da
mão e abriu a porta sem dificuldades. Quando entraram, Vanda atirou as sabrinas
provocando um cair de queixos a Vasco que se apressou a arrumá-las, receando a
reacção dela na manhã seguinte quando se deparasse com as sabrinas caídas no
meio da sala. Nunca mais sairia com ele, e Vasco não queria arriscar este
cenário.
-
Dança comigo Vasco… - Ela rodeou-lhe o pescoço com os seus longos braços e
Vasco engoliu em seco antes de se aventurar naquele abraço. Fechou os olhos e apertou-a conduzindo-a calmamente ao
ritmo da música de Nina Simone que lhe cantava ao ouvido “Birds flying high you
know how I feel, Sun in the sky you know how I feel, Breeze driftin’on by you
know how I feel, It’s a new dawn, It’s a new day, It’s a new life for me, And
I’m feeling good”. Os olhos de Vasco abriram-se e
procuraram os de Vanda que lhe corresponderam com um fogo brilhante permissivo.
As bocas uniram-se calmamente, mas a sofreguidão do desejo acelerou os gestos e
o ritmo cardíaco. Vasco conduziu-a para o quarto sem nunca a largar. A
respiração ofegante aumentava de intensidade e Vasco atirou-a para cima da
cama. A urgência impunha-se à intenção e os movimentos ritmados explodiam de
numa pressa íntima. Vasco arrancou-lhe a camisola e livrou-a do soutien num
movimento brusco. Quando os seus olhos se deliciaram com aquela visão, os seus
ouvidos perderam-se na confusão de um murmúrio.
-
Os abusos resultam do excesso de confiança… - Vanda tinha uma olhar arregalado
que denunciava desejo. Mas foi um brilho de terror de despertou um alerta em
Vasco.
-
O quê?
-
Agora vais abusar de mim… - Não era uma pergunta. Era uma afirmação que Vasco
recebeu como sendo um jogo de sedução.
-
Pois vou… Porque tu portaste-te muito mal… - Vasco sorriu-lhe recebendo em
troca apenas um olhar resignado.
-
Não faz mal… De qualquer forma eu nunca conheci a intimidade de outra forma a
não ser desta… Violação…
Vasco
saltou da cama segurando as calças. O seu coração agora batia acelerado, mas já
não era de excitação. A sua cabeça parecia explodir de raiva, indignação e
surpresa.
-
Achaste que eu ia violar-te? – O olhar resignado voltou e Vasco percebeu uma
resposta positiva… - Eu era incapaz de tal coisa… Mas que raio… O que é que eu
fiz que te levasse a pensar isso?
As
ideias atropelavam-lhe o cérebro sem sentido e as pernas fraquejaram,
obrigando-o a sentar-se na cadeira do quarto. Apoiou a cabeça nas mãos e tentou
ordenar ideias. Não sabe quanto tempo esteve ali até perceber que Vanda tinha
sido vítima de abusos sexuais e esta certeza acertou-lhe a mente num murro invisível.
Primeiro sentiu-se enjoado perante esta constatação, depois alterado praguejando
promessas violentas contra o agressor e por fim dolorido pelas dores daquela
mulher que adormecera com o cabelo espalhado pela almofada alva. Vasco
aproximou-se finalmente daquela cama e olhou-a, não com a paixão anterior, mas
com um carinho que o assustou. Como não sabia bem a melhor forma de lidar com
esse sentimento, cobriu Vanda com uma manta e fixou-se novamente na raiva que
sentia naquele exacto momento pelo seu agressor.
O
telefone tocou.
-
Estou. – Vasco atendeu sem pensar bem no seu interlocutor.
-
Quem fala? – Daniel estranhou a voz masculina do outro lado.
-
Vasco. – Depois de esfregar os olhos cansados, Vasco continuou a conversa. -
Ela foi violada…
Fez-se
um momento de silêncio após aquela revelação em voz alta.
-
Vou continuar a ligar-lhe todos os dias e dar-lhe o melhor apoio possível.
-
Vou continuar a acompanhá-la por aqui todos os dias e tentar aliviar-lhe as
dores…
A
promessa foi trocada sem pressões e com a certeza de que seria cumprida de
ambas as partes.
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