Capitulo V
A cabeça pesava-lhe toneladas e a garganta seca
implorava urgência num copo de água. Vanda levantou-se a custo e quando olhou
para o espelho sentiu-se confusa com o que viu. Pelos vistos nem conseguira
mudar de roupa na noite anterior. Ela não devia beber nenhum álcool. Ela sabia
disso. Mas a noite agradável e a companhia animada quase exigiam aquela
infracção. Vanda estremeceu face a esta palavra. Infracção. Ela tinha-se
permitido a uma infracção. O arrependimento sobrepôs-se ao sorriso vitorioso
que aquela constatação lhe provocava. Vestiu a custo uma camisola larga e uns
calções, e aventurou-se rumo à cozinha. Foi o cheiro do café que a fez
adivinhar que alguém estava na sua casa. A imagem de Vasco com as mesmas calças
da noite anterior e a camisa aberta e amarrotada fizeram-na temer o pior.
-
Bom dia Vanda! – Vasco despejou o café numa chávena grande. – Senta-te e bebe
este café. Vai fazer-te bem!
Vanda obedeceu. Sentia um constrangimento
no ar que não sabia explicar.
-
Dormiste cá? – Vanda fez a pergunta num fio de voz, receando a resposta.
-
Sim! – Vasco respondeu com uma monossílaba absorvendo a reacção de Vanda. Um
brilho de terror trespassou-lhe o olhar, enquanto todos os seus músculos se
retesaram. – Não te lembras de nada?
Vanda abanou a cabeça.
-
A última memória que tenho é de cantar “strangenrs in the nigth” e… - a memória
quase nítida de estar a rodopiar desajeitadamente com as sabrinas na mão
provocaram-lhe uma náusea. – Nem me lembro de ter entrado em casa…
O silêncio que se seguiu foi álcool na
ferida de ansiedade que Vanda sentia crescendo dentro de si. O pânico começou a
aflorar-lhe os olhos numas lágrimas tímidas.
-
Não chores Vanda! Não foi assim tão mau! – Vasco sorriu-lhe de uma forma
matreira, mas quando viu o rosto de Vanda perder a cor resolveu esclarecer a
situação imediatamente. – Não aconteceu nada Vanda! Não te preocupes.
Vanda levantou-se da mesa com o alívio a
cair de forma pesada no seu peito provocando-lhe um riso histérico que se
alternava de forma assustadora com uma choro compulsivo.
-
Estás a rir de alegria por não ter acontecido nada ou a chorar de tristeza? –
Vasco não sabia lidar com aqueles momentos típicos de Vanda sem recorrer ao
humor. Pelo menos ajudava…
-
Desculpa Vasco! Eu preciso de ficar um pouco sozinha! – Vanda recompôs-se um
pouco, mas sentia um emaranhado de sentimentos que não conseguia catalogar.
Queria paz para se acalmar e repensar as suas atitudes desleixadas.
-
Está bem Vanda! – Vasco sentiu-se aliviado por ser ela a pedir para ele sair.
Queria colocar as ideias em ordem. Ainda não sabia o que fazer com a revelação
da última noite. A sua mente sussurrava-lhe para se afastar. Ela era uma mulher
interessante, mas que exige demasiado. E o que ele procura são relações
simples, descomplicadas que começam da mesma forma que acabam, sem problemas ou
envolvimentos demasiado intensos. Não pode negar que gosta de uma boa
conquista, mas não se pode dar a esse luxo com Vanda. Ela acarreta em si uma
história que lhe exigiria mais do que ele está disposto a dar. “Esta mulher vai
dar-te problemas.” Sussurrava-lhe o bom senso, mas havia uma vontade interior
que o impulsionava para ela. O melhor era realmente afastar-se um pouco.
Assim
que Vasco saiu, Vanda correu para a casa de banho. Olhou-se longamente ao
espelho. Mirou o seu rosto tão conhecido. A ruga que se instalava no meio das
suas sobrancelhas sempre que a preocupação lhe ocupava o peito estava ali
reflectida naquele espelho. Os lábios tremiam de ansiedade. As linhas do rosto
estavam demasiado suaves, e os olhos… Ai os olhos… Vanda não os reconhecia. Os
olhos exibiam um brilho orgulhosamente culpado, quase como se a estivessem a
desafiar de forma deliberada. Vanda fechou-os com força e quando os voltou a
abrir sabia exactamente o que eles lhe diziam. Ela estava a abrir uma frecha…
Uma pequena frecha, pela qual Vasco começava a entrar.
O
telefone tocou.
-
Sim!
-
Olá Vanda!
-
Olá Daniel!
O
momento de silêncio impôs-se na mesma plenitude de sempre, como se a conversa
só fosse autorizada depois desta demonstração de respeito pelo momento que se
seguiria.
-
Estava com saudades de falar contigo Vanda.
-
Pois… - Vanda sentia-se ainda perdida e a sua desatenção chegou a Daniel.
-
Estás triste Vanda?
-
Sim!
-
Porquê?
-
Tenho saudades de quando tudo era simples!
-
Fala-me desse tempo… - Daniel esperou e Vanda falou.
-
Eu tenho duas vidas… A vida de antes e a vida depois…
-
Disseste-me que tens saudades. Tens saudades de qual das vidas?
-
Da vida de antes. Eu nasci em França, sabias?
-
Não! Pensei que fosses de Ourém.
-
Os meus pais eram de Ourém e emigraram para França assim que casaram. Eu nasci
em França.
-
Falas Francês?
Vanda
riu-se, sentindo-se próxima desse tempo em que tudo era simples… demasiado
simples… De uma simplicidade tão pura que a sua mente não sabia aproveitar,
porque a ambição humana de querer sempre um pouco mais, de nunca ter o
suficiente, de se sentir sempre vazia deturpa as maravilhas dos momentos
simples.
-
Sim! Eu falo francês.
-
Continua a tua história! Nasceste em França e depois?
-
A minha mãe era porteira no 94, em Paris e o meu pai trabalhava na construção
de estradas. Ele passava dias e por vezes semanas fora de casa por causa do
trabalho. Até aos quatro anos de idade conhecia apenas o prédio onde a minha
mãe trabalhava. Morávamos num pequeno apartamento destinado à porteira do
prédio. Era um prédio de luxo, com uma entrada toda em mármore e um candelabro
que eu imaginava que seria roubado de um palácio de princesas. Os habitantes
eram todos muito distintos, mas tratavam a minha mãe com muito carinho e tinham
sempre uma graça para mim. Lembro-me bem da Madame Dufoix que tinha duas filhas
gémeas mais velhas do que eu três anos. Elas eram altas e esguias de cabelo
castanho que usavam sempre elegantemente apanhado. Cresci
nos corredores daquele prédio acompanhando a minha mãe nas limpezas que ela
fazia em cada apartamento para ganhar mais uns trocos. Os meus pais trabalharam
mais do que a vida lhes exigia, mas a mentalidade aforradora fazia-os trabalhar
cada vez mais. Só saía daquele prédio para vir a Portugal. Agosto era o mês
mais aguardado do ano. A minha avó materna viva numa pequena freguesia de Ourém
e esperava-nos sempre com muita saudade. A viagem era sempre feita de carro e chegávamos
a casa da minha avó sempre derreados. – Vanda sorriu intimamente quando
recordou o sorriso fácil da avó e a sua sopa de feijão que ela pedinchava com
gritinhos agudos face à dificuldade utópica que a avó simulava. – Ourém era o
nosso pequeno paraíso. E assim fui crescendo. Entre o prédio da zona 94 de
Paris, a escola portuguesa e um recanto de Ourém. Quando o meu corpo começou a
mudar e as borbulhas a ameaçarem-me, trouxeram uma insatisfação irrequieta
própria da pré-adolescência. O facto de ser filha da porteira começou a
pesar-me na vergonha de uma condição inferior, sem sequer imaginar que por
detrás daquela mulher de mãos ásperas e ancas roliças que me obrigava a
chamar-lhe mãe estava uma mulher que daria a sua vida por mim. – Vanda sentiu
que a garganta se apertava face à lembrança dos olhos cor de mel da mãe que se
faziam cobrir por um cabelo abundante e rebelde que teimava em escapar ao lenço
velho e gasto. – Ela era uma mulher extraordinária… Mas nós humanos só sabemos
avaliar a verdadeira imensidão de outro ser, quando já não podemos usufruir
dele… E eu só agora tenho capacidade para perceber a importância que aquela
mulher quase analfabeta e de modos brejeiros tinha na minha vida pacata. Era
nesta simplicidade que ela me protegia dos perigos da vida e eu não era capaz
de perceber a magnificência dos seus conselhos e carinhos. Quando tinha apenas
catorze anos fomos de férias para Ourém, como fazíamos sempre. Numa discussão
acesa acusei os meus pais de me privarem das coisas boas da vida. Morava em
Paris e nunca tinha ido à Disney, como se este facto fosse decisivo para uma
vida melhor. Morava no mesmo prédio das raparigas que me vestiam em segunda
mão. Eles não percebiam a vergonha de vestir roupa usada pelas raparigas do
andar de cima. Não percebiam a importância de ter dinheiro no bolso para pagar
uma bebida aos amigos, que eram todos endinheirados. Não percebiam a vergonha
de ser filha da porteira quando todos os outros da zona 94 de Paris eram filhos
de advogados, médicos e embaixadores. Não percebiam a vergonha de eles exibirem
orgulhosamente a sua nacionalidade portuguesa, num lugar onde o trabalho que
mais ninguém queria era assegurado por esta gente submissa e trabalhadora.
Discutimos em voz alta, até que esta nos faltou e os olhos se incharam na
impotência de poderem chorar mais. Eu disse-lhes que tinha vergonha deles… -
Vanda sentiu as primeiras lágrimas aflorarem os olhos. Percorreram-lhe as faces
e salgaram-lhe os lábios. – Foi nessa noite que ficou decidido que eu ficaria
em Portugal com a minha avó. Os meus pais queriam que eu fosse feliz e nessa
noite cederam ao meu pedido de não voltar para Paris, onde a vergonha nas
minhas origens perseguir-me-iam. Abriram mão de mim por amor e eu nunca tive
oportunidade de agradecer. Eles morreram num acidente de carro na viagem de
volta dois dias depois da nossa discussão, sem terem ouvido dos meus lábios o quanto
eu os amava… Sem saberem que tinha orgulho no trabalho deles… Sem se sentirem
apreciados pelo ser que eles haviam criado…
-
Lamento muito Vanda! – Daniel sentiu uma necessidade impotente de estar perto
dela de lhe afagar a dor com a palma da sua mão.
-
Sabes o que é pior do que cometer um erro?
-
Não…
-
É insistir nele… E foi o que eu fiz. Em vez de recordar os meus pais com
carinho, no lugar de corresponder em morte ao que eles esperavam de mim,
recusei-me a pensar neles. Nos poucos momentos que o fiz chorei horas a fio até
que o cansaço me embalasse. A consciência é uma defesa contra actos hediondos,
mas quando atacada é uma pena demasiado pesada. E a minha consciência
penalizava-me magoava-me, torturava-me sempre que me atrevia a ter saudades dos
meus pais. E a minha mente seguiu o caminho mais fácil. Aproveitei-me de uma
avó velhota e desactualizada dos novos tempos para enganá-la na dimensão da
liberdade que me deveria dar. Aproveitei-me da dor de perda dela, convencendo-a
de que não me podia contradizer sob pena do meu sofrimento aumentar… E assim
afastei todos aqueles que me protegiam e desafiei os perigos que viria a sofrer
mais tarde…
O
silêncio impôs-se. Vanda tinha falado em voz alta os tormentos que lhe haviam torturado
em sussurros nestes anos todos. Havia mais tormentos, mas hoje não queria
pensar neles. Hoje queria chorar a saudade dos pais, queria fechar os olhos e
pensar neles com o carinho que não lhes tinha dedicado em vida. Queria chorar os
desgostos que talhara no rosto velho e recortado da avó. Queria chorar… Apenas
chorar.
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